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Bibliot ; BAKUNIN textos escolhidos ~ O Conceito de Liberdade © Estado e Governo © Deus 0 Estado © A Fraternidade Internacional Revolucionéria * A Igreja e 0 Estado © Programa de uma Organizacao Revolu- Ce mae LO Le REO AN CM Lem gear Comuna de Paris © Autogestao Operinia. Daniel Guérin pet Michael Alexandrovich Bakunin (1814-1876) Bakunin, o mais brithante entre todos os anar- quistas. pertencia a uma rica familia de proprietarios de terras na Rtissia. Alguns membros da familia de sua mae tinham participado do levante decembrista de 1825, mas de inicio @ rebelido de Bakunin teve ca- riter filos6fico, quando ele descobriu Hegel e Fichte Foi Herzen que iniciou a sua conversio ao radicalismo politico e mais tarde, em 1843. quando completava scus estudos filosdficos na Europa. cle se tomou um tevolucionario gracas a influéncia de Wilhelm Wei- ting ¢ Proudhon, Durante os anos de 18-48-1849, t0- mou parte ativa nas rebelidies que ocorreram em Pa: ris, Praga ¢ Dresden: caprirado apos o fracasso da te- belido de Dresden. esteve preso cm prisdes da Suxd- nix eda Austria, tendo sido entregue posteriormente A policia do Czar. Depois de um longo periodo de in- ternamento na fortaleza de Pedro-e-Paulo, onde o escorbuto provocou a perda de seus dentes, foi envia: do paraa Sibétia, conseguindo mais tarde fugir parao Japao ¢ de i, para os Estados Unidos ¢ Furopa. Parti- cipou de uma fracassada revolta na Poldnia e, tendo abandonado definitivamente suas idéius pan- eslavicas, desenvolveu uma série de teorias anarquis- tas € fundou uma organizagio politica secreta, a Alianga da Social Democracia. Em 1868 juntou-se a Internacional ¢ liderou a corrente que se opunha a Marx; foi oficialmente expulso da Internacional em 1872. mas muitos membros oriundos da Itdlia. Espa- nha. Bélgica, Franca ¢ Suica sairam com ele, fundan- do uma ofganizagao independente. a chamada Inter- Nacional St, Imier. Na década que se iniciou em 1870, Bakunin tomou parte na tevoltas de Lyon ¢ Bo- lonha, acabando por morrer em Berna. onde foi se- pultado, Sua obra estita € vigorosa mas muito mal organizada: cra um ativista, € talvez a sua mais im- portante contribuicdo & causa tenha sido como fun dador do movimenty anarquista hist6rico, que aca bare com a destruigio das orpanizagdes anarco- sindicalistas espanholas ocorrida em [39 BAKUNIN Daniel Guérin BAKUNIN Tradugio de Zila Bernd Extraido do original francés Ni Diew i Maitre (Anthologie de I'anarchisme), de Daniel Guerin, capa: L&PM Editores revistio: Marcia Camargo radugao: Zila Bernd © Daniel Guérin, 1980 Todos os direitos para a lingua portuguesa reservados a L&PM Editores Ltda. — Av. Nova lorque, 306 90.000 — Porto Alegre Rio Grande do Sul Impresso no Brasil Inverno de 1983 Indice A ates de Fevereiro de 1848 Vista por Bakunin. Ha ell eae 231 A Sociedade ou Fraternidade Intemnacional Revolucionaria......... 35 Um Federalismo Internacionalista. A Igteja ¢ 0 Estado. Programa e Objetivo da Organizacao Secreta Revolucionaria dos Inmidios Intermacionais....... 0... 660 e cee cece e eee ee eee eee Polémica com Marx. Bakunin ¢ Marx sobre a Comuna. 5 i Bakunin sobre a Autogest4o Operatia......... 0... c ccc eee eee 115 A Revolugao de Fevereiro de 1848 Vista por Bakunin* Michel Bakunin, emigrado russo, apressou-se em chegar a Paris a época da revolugao de fevereiro: A revolucio de fevereiro eclodiu. Quando soube que havia luta em Paris, consegui, para ptevenir qualquer eventualidade, um passaporte com uma pessoa de minhas relagbes € parti para Paris. Mas 0 passaporte foi inatil: ‘A Repiblica foi proclamada em Paris’, estas foram as ptimeiras palavras que ouvimos nia fronteira. Diante desta noticia, senti um attepio; cheguei a pé a Valenciennes, devido a interrupgao da estrada de ferro. Por toda parte, multiddes, gritos entusiasmados, baudeiras vermelhas em todas as ruas, em todas as pracas em todos os prédios pabli- cos. Fui obrigado a fazer um desvio; como a estrada de ferro estava imprati- cAvel em muitos pontos, s6 cheguei a Paris em 26 de fevereiro, trés dias de- pois da proclamaco da Repiiblica. No caminho, cudo me divertia. Esta cidade enorme, centro da cultura européia, tornara-se, de re- pente, um Céucaso selvagem: em cada rua, quase em toda parte, batti- cadas erguidas como montanhas elevando-se até os tetos; sobre estas barricadas, entre as pedras ¢ os méveis estragados, como georgianos em seus desfiladeiros, operarios com blusas pitorescas, negros de p6 ¢ at- + Extraido de Confession (carta a0 czat), 1857; Paris, 1932. (N. de Daniel Guérin) mados até os aentes; comerciantes com as feigSes alteradas pelo pavor olhavam cheios de medo pelas janelas; nas ruas € nas avenidas, nenhum carro; desapareceram todos os velhos arrogantes, todos os dandys de mo- noculo e, em seu lugar, meus caros operarios, massas entusiastas € uiun- fantes agitando bandeiras vermelhas, cantando cangOes patridticas, em- briagados pela vitoria No meio desta alegria sem limites, desta embriaguez, todos estavam de tal modo ternos, humanos, compassivos, honestos, modestos, polidos, améveis € espirituosos, coisa que s6 pode acontecer na Franga ¢, especificamente, em Paris. Em seguida, durante mais de u- ma semana, morei com operarios na caserna da rua Tournon, a dois pas- sos do palicio de Luxemburgo. Esta casernia, anteriormente ocupada pela guarda municipal, transformara-se, como muitas outras, em uma fortale- za republicana, servindo de acantonamento ao_exército de Cassidiere. Eu hava sido convidado a morar ai por um amigo democrata que coman- dava um destacamento de quinhentos operitios. Tive, portanto, oportunidade de ver os operirios ¢ de estudé-los da manha & noite, Nunca ¢ em nenhum lugar, em nenhuma outra classe social, encontrei tanta abnegacdo, tanta integridade, verdadeiramente comovente, tanta delicadeza de maneiras ¢ jovialidade unidas ao he- toismo como entre estas pessoas simples sem cultura, que sempre vale- ram € sempre valerao mil vezes mais que seus chefes. O que comove neles 0 seu profundo instinto de disciplina; nas suas casernas nao podia haver nem ordem estabelecida, nem leis, nem imposig6es; mas foi vontade de Deus que todo soldado regular soubesse obedecer com exatidao, adivinhar os desejos de seus chefes ¢ manter a ordem to estritamente quanto os homens livres. Eles pediam chefes, obedeciam com minticia, com paixo; no seu penoso servigo durante dias inteiros, passavam fome ¢ nao deixavam de ser amaveis ¢ sempre alegtes. Se estas pessoas, se estes operarios franceses tivessem encontrado um chefe digno deles, capaz de compreendé-los ¢ amé-los, este chefe teria realizado, com eles, verdadeiros milagres. (...) Este més passado em Paris (...) foi um més de embriaguez pa- ta a alma, Nao apenas eu estava embriagado, mas todos: uns de medo, outros de éxtase louca, de esperancas insensatas, Levantava-me as quatro ‘ou cinco horas da manha ¢ deitava-me as duas horas, ficando todo o dia em pé, indo a todas as assembléias, reunides, clubes, passeatas ou de- monstragSes; em suma, eu respirava por todos os sentidos € por todos os poros a embriaguez da atmosfera revolucionaria Era uma festa sem comego ¢ sem fim; cu via todo 0 mundo e nao via ninguém, pois cada individuo se perdia na multidao incontavel e ctrante; eu falava com todo mundo sem lembrar nem das minhas pala- vras nem das dos outros, pois a atengdo estava absorvida a cada passo por acontecimentos novos, por noticias inesperadas. Esta febre geral ndo era mantida medioctemente ¢ era reforgada por noticias chegadas de outras partes da Europa; ouviam-se apenas pa- lavras como estas: ‘Luta-se em Berlim; o rei fugiu depois de ter pronun- ciado um discurso! Lutou-se em Viena, Metternich fugiu, a repiblica foi proclamada! Levante em toda a Alemanha; os italianos triunfaram em Milao € Veneza; 0s austriacos softeram uma vergonhosa derrota! A re- ptblica foi proclamada; toda a Europa torna-se Reptiblica. Viva a Re- publica!” Parecia que 0 universo inteiro havia mudado; o inacreditavel tor- nava-se habitual; o impossivel, possivel; ¢ 0 possivel ¢ o habitual, in- sanos. Em uma palavra, o estado de espirito era tal que, se alguém viesse dizer: ‘Deus acaba de ser expulso do céu onde a Republica foi procla- mada!’’, todo mundo teria acreditado e ninguém teria se surpteendido. E os democratas nao eram os tinicos a sentirem-se inebriados, ao contra- tio: foram os primeiros a acordar, forcados a comecar o trabalho ¢ a consolidar um poder que Ihes coube contra toda expectativa € como que por milagre. O partido conservador ¢ a oposicao da dinastia, que se tornou em um dia mais conservadora que os préprios conservadores, enfim todos os homens do antigo regime, acreditavam mais que os democtatas em to- dos os milagres ¢ em todas as coisas inverossimeis; eles deixaram de a- cteditar que dois e dois s4o quatro ¢ o proprio Thiers declarou: ‘6 nos festa uma coisa, fazer com que nos esquegam'’. Apenas este fato bas- taria para explicar a prontidéo e a unanimidade com que todas as cidades do interior € todas as classes, na Franca, reconheceram a Repa- blica. 9 Bakunin, por James Guillaume Depois de sua curta passagem por Paris durante a Revolugao de 1848, Bakunin, eletrizado pelo exemplo que teve diante de si, fot par- ticipar do levante popular de Dresden (3 de maio de 1849). Por isso foi condenado @ morte em Saxe, depois na Austria, em 1850, sendo fi- nalmente libertado pela Austria durante o governo russo. Ele sofreu era seu pais de origem um longo e duro cativeiro. Depots conseguiu fugir da Subéria em 1861 e chegar a Londres, Foi apos a revolta da Polonia contra 0 império czarista (1863-1864) ¢ também sem ditvida em conseqiiéncia de seus encontros com Proudhon, em Paris, em fins de 1864 — um Proudbon perto do fim — que Bakunin tornou-se anarquista. Apre- sentamos aqui a biografia de Bakunin por James Guillaume apenas a partir deste novo rumo que tomou sua vida. (...) Quando eclodiu, em 1863, a insurreicéo polonesa, Bakunin tentou unir-se aos homens de acao que a dirigiam, mas a organizacao de uma legiao russa fracassou, a expedicdo de Lapinski nao péde chegar a um resultado e Bakunin que fora a Estocolmo (onde sua mulher o en- controu) com a esperanca de obter uma intervencao sueca, teve que vol- tar a Londres (outubro) sem ter tido sucesso em nenhuma das démar- i ches. Voltou a Italia de onde partiu, em meados de 1864, para uma segunda viagem 4 Suécia, regressando por Londres, onde reviu Marx, € por Paris onde reviu Proudhon. Apés a guerra de 1859 ¢ da herdica expedicao de Garibaldi, em 1860, a Itdlia acabava de nascer para uma nova vida: Bakunin permane- ceu neste pais até 0 outono de 1867, detendo-se primeiramente em Flo- renga, depois em Népoles € nos arredores. Ele havia concebido o plano de uma organizagao internacional secreta de revolucionarios, com vistas a propaganda, e, quando chegasse o momento, a acdo ¢ a partir de 1864 conseguiu agrupar um certo nGmero de italianos, franceses, escandina- vos ¢ eslavos nesta sociedade secreta que chamou-se ‘‘Fraternidade In- ternacional’’ ou ‘*Alianga dos Revolucionarios Socialistas’’ Na Itélia, Bakunin e seus amigos dedicaram-se sobretudo a lutar contra 0s mazzinianos,* que eram republicans autoritérios € religiosos, tendo por divisa Dio e popolo. Um jornal, Léberta e Giustizia, foi fun- dado em Napoles, no qual Bakunin desenvolveu seu programa. Em ju- tho de 1886, anunciava a Herzen e a Ogareff** a existéncia da sociedade secreta 4 qual consagrava, ha dois anos, toda sua atividade, comunican- do seu programa que, segundo ele proprio, escandalizou dois de seus antigos amigos. Neste momento, a organizacéo na Nofuega, na Dinamarca, na Inglaterra, na Bélgica, na Franga, na Espanha, na Italia e na Suécia possuia adeptos, segundo testemunho de Bakunin, contando também com poloneses e russos entre seus membros. Em 1867, os democratas burgueses de diversas nagées,. principal- mente franceses ¢ alemies, fundaram a Liga da Paz e da Liberdade € convocaram, em Genebra, um congresso que teve ampla repercussao. Bakunin nutria ainda algumas ilusdes em relagéo aos democratas: foi a este congresso onde pronunciou um discurso, tornou-se membro do co- mité central da Liga, fixou residéncia na Suiga, perto de Vevey, ¢, du- rante o ano seguinte, esforcou-se em trazer seus colegas do comité para o socialismo revolucionatio. No segundo congresso da Liga, em Berna (setembro de 1868), fez, com alguns amigos, membros da organizaco secreta fundada em 1864, (...) uma tentativa de fazer votar na Liga reso- lugdes francamente socialistas, mas, depois de varios dias de debates, os socialistas revolucionarios, em minoria, declararam que se separariam da ‘Mazzinianos, discipulos de Mazzini (1805-1872), conspirador republicano jitalia- no, um dos artifices da unificacao da Italia. (N. de Daniel Guérin) ** Nicolas Ogareff (1813 - 1877), poeta russo, co-editor com Alexandre Herzen do didtio Kofokot ("*O Sino'’), em Londres, correspondente de Bakunin. (N. de Da- niel Guérin) 12 Liga (25 de setembro de 1868), fundando no mesmo dia, sob o nome de Alianca Internacional da Democracia Socialista, uma nova associacao da qual Bakunin redigiu o programa. Este programa, que resumia as concep¢Ges as quais seu autor havia chegado, ao fim de uma longa evolucio comegada na Alemanha em 1842, afirmava entre outras coisas: ““A Alianga se declara atéia; ela quet a abolicao definitiva e completa de classes ¢ a igualdade politica, eco- némica ¢ social dos individuos de ambos os sexos; ela quer que a terra, os instrumentos de trabalho, bem como qualquer outro capital, tor- nando-se propriedade coletiva de toda a sociedade, possam ser utilizados somente pelos trabalhadores, isto é, pelas associac6es agricolas ¢ industriais. Ela reconhece que todos os Estados politicos autoritarios a- tualmente existentes, restringindo-se cada vez mais a simples fungdes administrativas dos servicos pablicos em seus paises, deverdo desaparecer na unio universal das associagdes livres, tanto agricolas como industriais '* Constituindo-se, a Alianga Internacional da Democracia Socialista havia declarado seu desejo de tornar-se um ramo da Associacao Interna- cional dos Trabalhadores, cujos estatutos gerais ela aceitaria, Em 1° de setembro de 1868 surgira em Genebra o primeiro néme- 1o de um jornal russo, Narodnoé Diélo, redigido por Michel Bakunin ¢ Nicolas Jukovsky; ele continha um programa intitulado ‘Programa da democracia socialista russa’’, idéntico quanto ao contedido ao programa adotado alguns dias mais tarde pela Alianca Internacional da Democra- cia Socialista. Mas, a partir de seu segundo numero, o jornal mudou de tedacao, passando para as mos de Nicolas Qutine* que imprimiu-lhe uma direcao totalmente diferente. A Associagao Intetnacional dos Trabalhadores havia sido fundada em Londres a 28 de setembro de 1864: mas sua organizacio definitiva e a adogio de seus estatutos dataram de seu primeiro congresso realizado em Genebra de 3 a 8 de setembro de 1866. Em sua passagem por Londres em outubro de 1864, Bakunin, que ndo revia Karl Marx desde 1848, recebeu sua visita: Marx vinha explicar- se com ele a respeito de uma caliinia,** outrora acolhida pela Nee Rheinische Zeitung, que jornalistas alemaes puseram em circulacao em * Nicolas Outine (1845 - 1883), emigrado russo vivendo na Suiga, marxista, parti- cipou do Congresso da Liga da Paz e da Liberdade, em Berna, em 1868 ¢ da con- feréncia de Londres da Internacional, em 1871; redator do jornal A Igualdade, em Genebra, em 1870 - 1871. (N. de Daniel Guérin) Calinia segundo a qual o revolucionario Bakunin teria sido um agente secreto do governo russo, como seta descrito, mais adiante. (N. de Daniel Guérin) 13 1853. Mazzini ¢ Herzen colocaram-se entao em defesa do caluniado a- ptisionado em uma fortaleza russa. Marx. na ocasido, declarara ao jornal inglés Morning Advertiser que nao. acteditava nesta _caltinia, actescentando que Bakunin era seu amigo e isto cle repetiu-lhe Apés esta conversa, Marx instou Bakunin a juntar-se Internacio- nal, mas este, uma vez de regresso a Itdlia, preferiu dedicar-se a orga- nizacdo secreta j4 mencionada; a Internacional, no inicio, era represen- tada fora do Conselho Geral de Londres apenas por um grupo de ope- ratios mutualistas de Paris ¢ nada levava a prever a importancia que itia adquitir. Foi somente depois de seu segundo congresso em Lausanne (setembro de 1867), depois dos dois processos de Paris ¢ da grande greve de Genebra (1868), que esta associacZo passou a chamar a atencdo, tor- nando-se uma poténcia cujo papel de alavanca da acdo revoluciondria nao podia mais ser desconsiderado. Em seu terceiro congresso em Bruxe- las (setembro de 1868), as idéias coletivistas apareceram em oposigao a0 cooperativismo. Desde julho de 1868, Bakunin foi admitido como membro da secao de Genebra e, depois de sua saida da Liga da Paz no congtesso de Berna, fixou-se em Genebra para poder engajar-se ativa- mente no movimento operario desta cidade. Um vivo impulso foi dado em seguida 4 propaganda e a organiza- do. Uma viagem do socialista italiano Fanelli* a Espanha teve por re- sultado a fundacdo da segdes internacionais de Madrid e de Barcelona. As segdes da Suica francesa uniram-se em uma federacdo que levou o nome de Federacao Romanda’** ¢ teve como 6rgao o jornal Egalité, cria- do em janeiro de 1869. Foi travada uma luta contra os falsos socialistas que, no Jura suico, infiltravam o movimento, terminando com a adesio da maioria dos operarios jurassianos ao socialismo revolucionario. Varias vezes Bakunin foi ao Jura ajudar com sua palavra aqueles que lutavam contra o que ele chamava ‘‘a reacao mascarada em coopetagao’ ’; isto ori- ginou a amizade que manteve com os militantes desta regiao. Em Ge- nebra, um conflito entre os operdrios da construcdo, socialistas tevolucionarios por instinto, € os operarios relojoeiros € joalheiros, ditos da “‘fabrica’’, que queriam participar das lutas eleitorais ¢ aliar-se aos politicos radicais terminou, gracas a Bakunin, que promoveu no Egalité Giuseppe Fanelli (1827 - 1877), primeiramente republicano italiano com Mazzi nie Garibaldi: rompeu com o primeito por nao partilhar do centralismo estatatis ta; torna-se colaborador ¢ amigos de Bakunin a partir de 1864, que © enviou em outubro de 1868. para a Espanha pata criar uma seco a0 mesmo tempo da Inter: nacional ¢ de sua Aliana Internacional da Democracia Socialista, ainda que Fa- nelli no falasse espanhol. (Nota de Daniel Guérin) Romande: Suica Francesa. (N. do T.) 14 uma enérgica campanha, expondo, em uma série de artigos notaveis, 0 programa da ‘‘politica da Internacional’, pela vitéria, infelizmente momentanea, do elemento revolucionario. As sessdes da Internacional na Franga, na Bélgica ¢ na Espanha seguiam de acordo com as da Suiga francesa € podia-se prever que 110 proximo congresso geral da Associacio 0 coletivismo reuniria a grande maioria dos votos. O Conselho Geral de Londres nao quisera admitir a Avianca Inter- nacional da Democracia Socialista como membro da Internacional, por- que a nova sociedad constituiria um segundo corpo internacional ¢ sua presenga na Internacional seria motivo de desorganizacio. Uma das razOes que determinaram esta decisdo foi a malevoléncia de Marx em re- lagdo a Bakunin, em quem o ilustre comunista alemao acteditava ver um “‘intrigante’’ que queria ‘‘subverter a Internacional e transforma-la m seu instrumento’’; mas, independentemente dos sentimentos pes- soais de Marx, € certo que a idéia de criar, ao lado da Internacional, u- ma segunda organizacao era uma idéia desastrosa: era esta a opiniao de amigos belgas e jurassianos de Bakunin que rendeu-se diante de seus ar- gumentos e reconheceu a justeza da deciséo do Conselho Geral. Conse- qtientemente, o Bureau Central da Aliana, depois de ter consultado seus adeptos, determinou sua dissolugio: o grupo local que havia se constituido em Genebra transformou-se em uma simples secao da Inter- nacional sendo como tal admitido pelo Conselho Geral (julho de 1869). No quarto Congresso Geral, em Bale (6-12 de setembro de 1869), a quase unanimidade dos delegados da Internacional pronunciou-se pela propriedade coletiva, mas péde-se constatar ent4o, que havia entre eles duas correntes distintas: uns, alemaes, suicos-alemaes ¢ ingleses eam comunistas de Estado; os outros, belgas, suicos, franceses, espa- nhGis € quase todos os franceses eram comunistas anti-autoritérios, ou federalistas, ou anarquistas que tomaram o nome de coletivistas. Ba- kunin pertencia naturalmente a esta dltima faccao, 4 qual pettenciam entre outros o belga de Paepe, ¢ 0 parisiense Varlin.* (...) A organizagio secreta fundada em 1864 dissolveu-se em ja- neiro de 1869 ap6s uma crise interna, mas varios de seus membros con- tinuaram mantendo relagoes €, a este grupo intimo, juntaram-se alguns novos recrutas, suicgos, espanhdis ¢ franceses entre os quais Varlin, Este livre agrupamento de homens que se uniam pela agao coletiva em uma Eugenio Varlin (1839 - 1871), internacionalista e partidaria da Comuna de Paris, fuzilado na rua des Rosiers, em 28 de maio de 1871 pela contra-revolucdo versa- Ihense. (N. de Daniel Guérin) 15 fraternidade revolucionaria deveria, acredita-se, dar mais forca ¢ coesio ao grande movimento do qual a Internacional era a expressao. No vero de 1869, um amigo de Marx reproduziu na Zukunft de Berlim a antiga caliinia de que ‘‘Bakunin era um agente do governo rus- so” € Liebknecht* repetiu esta afirmagio em varias circunstincias. Quando este Gltimo veio a Bale por ocasiéo do Congresso, Bakunin convidou-o a explicar-se diante de um juri de honra, Nesta ocasido, 0 socialista saxo afirmou jamais ter acusado Bakunin e que se havia limi- tado a repetir coisas lidas nos jornais. Por unanimidade o jari declarou que Liebknecht agira com leviandade culposa e entregou a Bakunin u- ma declaracao escrita ¢ assinada por seus membros. Liebknecht, reco- nhecendo que fora induzido a erro, estendeu a mao a Bakunin que, diante de todos, queimou a declaracao do jtiti com a qual acendeu o ci- gatto. Depois do Congresso de Bale, Bakunin deixou Genebra ¢ retirou- se pata Lucarno (Tessin): tomou esta resolugao por motivos de ordem es- tritamente pessoal, sendo um deles a necessidade de fixar-se em um lu- gar onde a vida fosse barata e onde pudesse dedicar-se inteiramente aos trabalhos de traducao que tencionava realizar para um editor de Petets- burgo (tratava-se, em primeiro lugar, da traducao do primeiro volume do Capital de Marx, lancado em 1867). Entretanto, a partida de Bakunin de Genebra deixou, infelizmente, campo livre aos intrigantes politicos que, associando-se as manobras de um emigrado russo, Nicolas Outine, muito conhecido pelo triste papel que desempenhou na Internacional, n3o havendo, portanto necessidade de caracteriz4-lo aqui, conseguiram em alguns meses desorganizar a Internacional de Ge- nebra, tomar o poder e apoderar-se da redacao do Egalité. Marx, que deixava-se cegar por rancores ¢ citimes mesquinhos em relagio a Bakunin, nao se envergonhou em ter que rebaixar-se ao fazer alianca com Outine e o grupo de politicos pseudo-socialistas de Genebra, homens do Temple Unique**, 20 mesmo tempo que, pot uma Comuntcagao confidencial (28 de matco de 1870) enviada a seus a- migos da Alemanha, procurava denegrir Bakunin diante da opiniao dos democratas socialistas alemaes, representando-o como agente do Partido Panslavista, do qual recebia, segundo Marx, vinte e cinco mil francos por ano. + Wilhelm Liebknecht (1826 - 1900), introdutor do marxismo na Alemanha, fun- cai da social-democracia no congtesso de Elsenach (1869), (N. de Daniel Gué- + Era o nome do local onde de reunia entao a Internacional Genebrina, antigo tem- plo magénico (N. de James Guilaume), 16 As intrigas de Outine ¢ seus correligionarios genebrinos consegui- ram provocar uma cisdo na Federagéo Romanda a qual separou-se (abril de 1870) em duas faces, uma das quais, de acordo com os internacio- nalistas da Franca, Bélgica e da Espanha se havia pronunciado pela politica revoluciondria, declarando que ‘‘toda participacio da classe o- perdnia na politica burguesa governamental nao podera ter outros resul- tados que a consolidacao da ordem de coisas existente"”; enquanto a ou- tra faccdo “‘professava a intervencdo politica ¢ as candidaturas opera- tias’’. O Conselho Geral de Londres bem como os alemies ¢ os suigos- alemes tomaram partido da segunda faccio (de Outine ¢ do Temple Unique), enquanto os franceses, os belgas e os espanhéis tomaram o partido da outra (facgao do Jura). Bakunin estava neste momento absorvido com as negociagdes rus- sas. Ja na primavera de 1869, iniciara telacionamento com Netchaieff*, acreditando na possibilidade de organizar na Riissia um amplo levante de camponess (...). Foi quando ele exreveu em mso o apelo intituldo Algumas Palavras aos Jovens Irmaos da Rissia e a obra A Ciéncia e a Causa Revolucionaria Atual, Netchaieff voltara 4 Russia, mas teve que fugit novamente, depois da priséo de quase todos os seus amigos e da destruigio de sua organizacio, voltando para a Suica em janeiro de 1870. Exigiu de Bakunin que abandonasse a tradugdo comecada do Ca- pital para dedicar-se inteiramente & propaganda revolucionaria russa (..). Bakunin esreveu em uso o optisulo Aas Oficiais do Exérito Russo ¢, em francés, Os Ursos de Berna e os Ursos de Séo Petersburgo, publicando também alguns ntimeros de uma nova série de Koloko/** ¢ desenvolvendo durante alguns meses uma grande atividade. Contudo, acabou por apetceber-se que Netchaieff pretendia utiliz4-lo como um simples instrumento tendo recorrido, para garantir uma ditadura pes- soal, a procedimentos jesuiticos: apés uma explicacao decisiva, que teve lugar em Genebra em julho de 1870, rompeu completamente com 0 jo- vem revolucionario. Ele foi vitima de sua grande confianga e da admira- Zo que lhe havia inspirado a energia selvagem de Netchaieff. ‘Nao ha nada a dizer’’, escreve Bakunin a Ogaref depois deste rompimento, “‘passamos por idiotas. Como Herzen se divertiria com nds dois se esti- vesse l4 € como ele estaria acertado! Bem, s6 nos resta engolir esta pilula Setge Netchaieff (1847 - 1882): jovem revolucionario russo, encontrou, seduziu € influenciou Bakunin na Suica, fazendo-o pantilhar, por algum tempo, de suas idéias tetroristas e nihilistas; extraditado, morteu na prisio na Russia depois de longo calvario. (N. de Daniel Guérin) * 0 didsio Kolokol (“0 Sino") era publicado no Ocidente pelo revoluciondtio rus- so Alexandre Hersen (1812 - 1870). (N. de Daniel Guérin) 7 amarga que nos tornard mais prudentes de ora em diante’’ (2 de agosto de 1870). Entretanto, a guerta entre a Alemanha e a Franca acabava de e- clodir e Bakunin acompanhava os acontecimentos com apaixonado in- teresse. ‘fs apenas russo, escreve a 11 de agosto a Ogareff, enquanto cu sou internacional’. A seus olhos, 0 esmagamento da Franca pela Alemanha feudal ¢ militar, era o triunfo da contra-revolucao € este es- magamento s6 poderia ser evitado pelo apelo ao povo francés para um levante em massa, para, ao mesmo tempo, repelir o invasor estrangeiro ¢ livrar-se dos tiranos internos que o mantinham em regime de servidao e- conémica ¢ politica. Ele escreve a seus amigos socialistas de Lyon: “© movimento patridtico de 1792 nao € nada em comparacio com 0 que vocés devem fazer agora, se quiserem salvar a Frariga. Levantem, pois, amigos, a0 som da Marselhesa que volta a ser hoje 0 canto legitimo da Franga, palpitante de atualidade, o canto da liberdade, 0 canto do povo, o canto da humanidade, pois a causa da Franca tornou-se enfim a causa da humanidade. Agindo pattioticamente, salvaremos a liberdade universal. Ah! se eu fosse jovem, eu nfo escreveria cartas, eu estaria en- tre vocés.”” Um cortespondente do Volkstaat (0 jornal de Licbknecht) esctevera que os operarios parisienses estavam ‘‘indiferentes 4 guerra a- tual’’, Bakunin fica indignado com o fato que se possa pensar numa a- patia que seria criminosa; escreve pata mostrar-Ihes que nao podem de- sinteressar-se pela invasio alema, que devem a qualquer preco defender sua liberdade contra os bandos armados do despotismo prussiano: “Ah! se a Franca tivesse sido invadida por um exército de prole- tarios alemaes, ingleses, belgas, italianos, espanhdis levando a bandeira do socialismo revolucionério ¢ anunciando ao mundo a emancipacio fi- nal do trabalho, eu teria sido o primeiro a gritar aos operarios da Franga: “Abram-lhes os bragos, so vossos irmaos ¢ uni-vos a eles pata vatter os restos apodrecidos do mundo burgués!’ Mas a invasio que desonra a Franca hoje € uma invasio aristocratica, mon4rquica € militar, Permane- cendo passivos diante desta invasao os operarios franceses nao traitiam a- penas sua propria liberdade, trairiam também a causa do proletariado do mundo inteiro, a causa sagrada do socialismo revolucionario.’’ As idéias de Bakunin sobre a situagio € sobre os meios a serem empregados para salvar a Franca e a causa da liberdade foram expostas por ele num curto ensaio publicado sem nome do autor, em setembro, sob o titulo de Cartas a um Francés sobre a Crise Atual. 18 Em 9 de setembro de 1870, deixou Lucarno, dirigindo-se a Lyon onde chegou dia 15. Um ‘Comité de Salvagao da Franca’’, do qual foi ‘o membro mais ativo ¢ mais aguerrido, organizou-se para tentar um le- vante revolucionario. © programa deste movimento foi publicado em 26 de setembro em um cartaz vermelho que trazia a assinatura dos de- legados de Lyon, Saint Etienne, Tarare ¢ Marselha, Bakunin, embora es- trangeito, nao hesitou em unir sua assinatura a de seus amigos, a fim de dividir seus perigos e sua responsabilidade. O cartaz, depois de ter decla- rado que ‘a maquina administrativa e governamental do Estado, tomado impotente, estava abolida’’ e que “‘o povo da Franca entrava em plena posse de si mesmo’’, propunha a formacao, em todas as co- munas federadas, de comités de salvagdo da Franca ¢ o envio imediato a Lyon de dois delegados de cada comité de capital, de departamento “para formar a Convenicao revolucionaria de salvacao da Franga’’. Um movimen- to popular, em 28 de setembro, colocou os revolucionarios nia posse da pre- feitura de Lyon, mas a traigéo do general Clouseret, a covardia de alguns nos quais © povo havia depositado sua confianga tornaram esta tentativa fracassada. Bakunin, contra quem o procurador da Repiblica, Andricux, havia dado um mandado de prisao, conseguiu chegar a Mar- selha, onde permaneceu algum tempo escondido, tentando preparar um novo movimento; durante este tempo as autoridades francesas fizeram correr o boato de que ele era um agente pago da Priissia € que 0 governo da Defesa Nacional tinha provas. Por seu turno 0 Volkstaat, de Liebk- necht, imprimia estas linhas a propésito do movimento de 28 de setembro ¢ do programa do cartaz vermelho: ‘Nao se poderia ter agido melhor no escritério de imprensa, em Berlim, para servir aos desejos de Bismarck’. Em 24 de outubro, desesperangoso com a Franga, Bakunin partiu de Marselha, a bordo de um niavio cujo capitao era amigo de seus ami- gos, para regressar a Lucarno por Génova ¢ Milao, Na véspera, cle escre- via a um socialista espanhol, Sentifion, que viera 4 Franca com a espe- ranca de envolver-se no movimento revolucionario: “0 povo francés nao € mais revolucionario. O militarismo e a bu- rocracia, a aftogancia nobiliarquica € o jesuitismo protestante dos prus- sianos, aliados ao Anout do meu caro soberano ¢ senhor, o imperador de todas as Russias, vao triunfar sobre o continente da Europa, Deus sabe durante quantas dezenas de anos. Adeus aos nossos sonhos de emancipacdo proxima."” © movimento que eclodiu em Marselha, a 31 de outubro, sete dias 19 depois da partida de Bakunin, apenas confirmou seu julgamento pessi- mista: a Comuna fevolucionaria que se instalara na prefeitura diante da noticia da capitulagdo de Bazine, manteve-se apenas por cinco dias ¢ abdicou em 14 de novembro entre as maos do comissario Alphonse Gent, enviado de Gambetta. De volta a Lucarno, onde passou solitario todo o inverno, envolto pela afligao material e a miséria negra, Bakunin escreveu, como continuagio as Cartas a um Francés, uma exposigao sobre a nova situa- ao da Europa, que foi publicada na primavera de 1871 com este titulo caracteristico: O Impénio Knouto-germanico e a Revolugao Social. A i10- ticia da insurreigao parisiense de 18 de marco veio desmentir em parte seus sombrios progndsticos, mostrando que o proletariado parisiense havia conservado, ao menos, sua energia ¢ seu espirito de revolta Mas 0 hetoismo do povo de Paris seria impotente pata galvanizar a Franca esgotada ¢ vencida; as tentativas feitas em varios locais do inte- fior para generalizar 0 movimento comunalista fracassaram, os corajosos parisienses insurrectos foram finalmente esmagados pelo ntimero e Ba- kunin, que se juntara (27 de abril) a seus amigos do Jura para estar mais proximo a fronteira francesa, foi obrigado a retornar a Lucarno sem ter podido agir (1° de junho). Entretanto, desta vez ele nao se deixou desencorajar. A Comuna de Paris, objeto de ddios furiosos de todas as reacées coligadas, acendera no coragao dos explorados uma centelha de esperanga’ ; 0 proletariado uni- versal saudava, no povo herdico cujo sangue acabava de correr pela e- mancipacéo humana, ‘‘o Sata moderno, o grande revoltado vencido, mas nao pacificado’’, de acordo com a expressao de Bakunin. O patriota italiano Mazzini havia somado sua voz daqueles que maldiziam Paris ¢ a Internacional; Bakunin escreveu a Resposta de um Internacional a Mazzini, publicado 20 mesmo tempo em italiano e em francés (agosto de 1871). Este trabalho obteve imensa repercussio na Itilia e produziu entre a juventude e os operarios deste pais um movimento de opinido que deu origem, antes do fim de 1871, a numerosas segdes da Inter- nacional. Uma segunda obra: A Teologia Politica de Mazzini e a Inter- nacional, completou a tarefa iniciada e Bakunin que, com o envio de Fa- nelli a Espanha em 1868, fora o criador da Internacional espanhola, foi, pela polémica contra Mazzini em 1871, 0 criador da Internacional ita- liana que iria lancar-se com tanto ardor na luta, nao apenas contra a do- Escrito de Bakunin sobre a Comuna de Paris. (N. de Danie! Guérin) 20 minagio da burguesia sobre o proletariado, como também contra a ten- tativa dos homens que quiseram, neste momento, instaurar o principio da autoridade 11a Associagao Internacional de Trabalhadores, A cisio na Federacao Romanda, que poderia ter terminado por u- ma reconciliagao se 0 Conselho Geral de Londres assim o desejasse, agra- vou-se, tornando-se irremediavel. Em agosto de 1870, Bakunin ¢ trés de seus amigos haviam sido expulsos da secio de Genebra porque manifes- taram sua simpatia pelos jurassianos. Logo apés o fim da guerra de 1870—71, agentes de Marx vieram a Genebra para reavivar disc6rdias: os membros da sega da Alianca acreditaram dar uma prova de suas in- tengies pacificas dissolvendo sua seco. O partido de Marx e de Outine contudo, nao se desarmou: uma nova segéo, de propaganda e de agio revoluciondria socialista, constituida em Genebra pelos refugiados da Comuna, € a qual entraram os antigos membros da secao da Alianga, teve sua admissao recusada pelo Conselho Geral. Ao invés de um congrtesso geral da Internacional, o Conselho Geral, dirigido por Marx e seu amigo En- gels, convocou em Londres, em setembro de 1871, uma conferéncia secre- ta, composta quase que exclusivamente de partidarios de Marx, por quem foi conduzida a tomar medidas que destruiam a autonomia das segdes ¢ federagies da Internacional, concedendo ao Conselho Geral uma auto- tidade conwraria aos estatutos fundamentais da Associagao. A Conferén- cia pretendeu, ao mesmo tempo, organizar, sob a direcio deste Con- selho, o que ela chamava ‘‘acao politica da classe trabalhadora’’. Havia urgéncia em nao deixar absorver a Internacional, vasta fede- ragdo de agrupamentos organizados para lutar no plano econémico contra a exploracdo capitalista, por um grupo insignificante de sectarios marxistas ¢ blanquistas. As segdes do Jura, unidas a secao de propaganda de Genebra, se constituiram a 12 de novembro de 1871, em Sonvilier, em uma Federag3o Jurassiana, ¢ dirigiram a todas as Federacées da In- ternacional uma circular convidando-as a unirem-se a ela para resistir as usurpacdes do Conselho Geral ¢ reivindicar energicamente sua autono- mia “A sociedade futura, dizia a circular, sera a universalizagao da organizagio que a Internacional apresentar. Devemos, pois ter 0 cuida- do de aproximar o mais possivel esta organizacao de nosso ideal. Como podera uma sociedade igualitaria ¢ livre surgir de uma organizacao auto- ritéria? E impossivel. A Internacional, embrido da futura sociedade hu- mana. deve ser, desde agora. a imagem fiel de nossos principios de li- berdade ¢ de federacao ¢ repelit de seu seio qualquer principio que ten- da para o autoritarismo e a ditadura.”” Bakunin acolheu com entusiasmo a circular de Sonvilier e dedicou- se inweiramente a propagar seus principios nas segGes italianas. A Espa- nha, a Bélgica, a maior parce das seg6es reorganizadas na Franca, apesat da reacao de Versailles, sob a forma de grupos secretos, ¢ a maioria das segdes dos Estados Unidos se pronunciaram do mesmo modo que a Fe- deragdo Jurassiana, 0 que nos assegurou logo de que a tentativa de Marx € seus aliados de estabelecer sua dominagao na Internacional seria frustra- da A primeira metade de 1872 foi marcada por uma “‘Circular Confidencial'’ do Conselho Geral, obra de Marx, impressa em uma bro- chuta intitulada As Presensas Cisdes na Internacional, onde os principais militantes do partido autonomista ou federalista foram atacados pes- soalmente e difamados. Os protestos que se levantaram de toda parte contra certos atos do Conselho Geral foram representados como resul- tado de uma intriga urdida pelos membros da antiga Alianga Interna- cional da Democracia Socialista que, sob a diregao do ‘‘papa misterioso de Lucarno’’, trabalhavam para a destruicio da Internacional. Bakunin qualificou esta circular como ela o metecia, escrevendo a seus amigos: “A espada de Damocles, com a qual nos ameagaram durante tanto tem- po, acaba de cair sobre nossas cabecas. Nao € propriamente uma espada aarma habitual de Marx, mas um monte de sujeita”” Bakunin passou o verao € 0 outono de 1872 em Zurique, onde fundou-se (agosto), por sua iniciativa, uma secdo eslava formada quase que exclusivamente por estudantes russos € sérvios, a qual aderiu 4 Fe- deracdo Jurassiana da Internacional. A partir de abril, a de Lucarno passou a relacionar-se com alguns jovens russos residentes na Suica, of- ganizando-os em um grupo secreto de acdo ¢ de propaganda. (...) Um conflito com Pierre Lavroff* e desentendimentos pessoais entre alguns membros, determinariam a dissolucao da secao eslava de Zurique em 1873. Entretanto, o Conselho Geral decidira convocar um congresso ge- tal para 2 de setembro de 1872, escolhendo Haia para sede deste con- Pierre Lavroff (1823 - 1900), professor de mateméatica tornou-se revolucionario; evadido da Sibéria, veio a Paris ¢ simpatizou com a Comuna; apés foi a Suica, depois a Londres voltando finalmente a Paris onde morreu. (N. de Daniel Gué- tin) 22 gresso a fim de poder mais facilmente trazer de Londres, em grande na- mero, delegados com mandates ficticios, inteiramente dedicados a sua politica, ¢ de tornar mais dificil o acesso dos delegados das federacdes a- fastadas, principalmente para Bakunin para quem seria impossivel a vinda. A Federacio Italiana, totalmente renovada, absteve-se de enviar delegados; a Federacao Espanhola enviou quatro, a Jurassiana dois, a Belga sete, a Holandesa quatro e a Inglesa cinco: estes vinte ¢ dois dele- gados, tanicos verdadeiros representantes da Internacional, formaram o nticleo da minoria. A maioria, somando quarenta homens, represen- tando, em realidade, sua propria pessoa, havia decidido anteriormente executar tudo 0 que Ihe fosse ditado pelo grupo chefiado por Marx e En- gels. O Gnico ato do congresso de Haia que destacamos aqui foi a expul- sio de Bakunin, determinada no tltimo dia (7 de setembro), quando um terco dos delegados j4 havia partido, por vinte sete votos a favor, sete contra € oito abstengdes. Os motivos alegados por Marx e seus partida- rios para pedir, apds uma enquete simulada feita a portas fechadas por uma comissio de cinco membros, a expulsio de Bakunin, eram_ os seguintes: “Esté provado, por um projeto de estatutos e por cartas assinadas por Bakunin, que este cidadao tentou € conseguiu fundar, na Europa, uma sociedade chamada Alianca, com estatutos completamente dife- rentes, do ponto de vista social ¢ politico, dos da Associacao Interna- cional de Trabalhadores; que 0 cidadao Bakunin serviu-se de manobras inescrupulosas para apropriar-se da fortuna de terceiros, fato que cons- titui-se em fraude ¢ que, além disto, impedido de cumprir seus compro- missos, ele ou seus agentes recorteram 3 intimidagio.”” E esta segunda parte do ato de acusagio marxista, aludindo aos tre- zentos rublos recebidos antecipadamente por Bakunin pela traducao do Capital ¢ a carta esctita por Netchaieff ao editor Poliakof, que qualifi- quei, anteriormente, como tentativa de assassinato moral. Contra esta infamia, foi logo publicado um protesto, por um gru- po de emigrados russos, do qual destacamos as principais passagens: “Genebra € Zurique, 4 de outubro de 1872. — Ousaram langar contra nosso amigo Bakunin a acusagao de fraude ¢ chantagem. Nao a- creditamos set nem necessario nem oportuno discutir os pretensos fatos sobre os quais se apoiatam a estranha acusacéo langada contra nosso compatriota ¢ amigo, Conhecemos bem esses fatos, nos minimos de- talhes, sendo nosso dever restabelecé-los 4 luz da verdade assim que nos 23 seja permitido faze-lo. Agora estamos impedidos pela infeliz situagao de um outro compatriota que nao € nosso amigo, mas que devido as perse- guigdes por parte do governo russo de que € vitima atualmente, o tor- nam sagrado" . O Senhor Marx, cuja habilidade ndo queremos contestar, neste Momento, ao menos, calculou muito mal. Os coragdes honestos, em todos os paises, sentirao indignacdo ¢ desgosto diante de uma intriga tao grosseira e de uma violacdo tao flagrante dos principios mais comezinhos de justiga. Quanto a Rtissia, podemos garantir ao St. Marx que todas as suas manobras serao pura perda de tempo: Bakunin €, 11¢s- te pais, muito estimado e conhecido para que a caltinia possa o atin- gir...’’ (Seguiam-se oito assinaturas). No dia seguinte a0 Congresso de Haia, um outro congresso inter- nacional reuniu-se em Saint-Imier (Jura suigo), a 15 de setembro: cons- titufam-no delegados das federacées Italiana, Espanhola ¢ Jurassiana e Tepresentantes de segdes francesas e¢ americanas. Este Congtesso declarou, por unanimidade ‘‘repelit energicamente todas as resolugdes do Congtesso de Haia, e nao reconhecer de modo algum os poderes do novo Conselho Geral, por ele nomeado’”’, o Conselho estava sediado em Nova York. A Federacao Italiana confirmara, antecipadamente, as resolugdes de Saint-Imier, por votos obtidos na conferéncia de Rimini em 4 de agosto; a Federacao Jurassiana confirmou-os num congresso especial rea- lizado em 15 de setembro; a maioria das segdes francesas apressaram-se em enviar sua inteira aprovacdo; a Federacdo Espanhola e a Federacao Belga confirmaram por sua vez estas resolugSes em seus congtessos tealizados em Cordoba ¢ em Bruxelas durante a semana de Natal de 1872; a Federagdo Americana agiu da mesma forma na sesso de seu Conselho Federal (Nova York, Spring Street) de 19 de janeiro de 1873, assim como a Federagao Inglesa, onde havia dois dos antigos amigos de Marx, Eccarius e Jung**, do qual se haviam separado em virtude de scus ptocedimentos* **, em seu congresso de 26 de janeiro de 1873 Netchaieff acabava de ser preso em Zutich a 14 de agosto de 1872: foi entregue pela Suiga a Réssia em 27 de outubro de 1872 (N. de James Guillaume) Jean-Georges Eccarius (1818 - 1889), operatio alfaiate alemdo, membro da Liga dos Comunistas, depois, a partir de 1864, em Londres, da Internacional, secreté- tio do Conselho Geral de 1867 a 1871; rompeu com Marx no momento da cisao de Haia, em 1872 €, ainda que nao fosse anarquista, uniu-se 3 Internacional “anti-autoritatia’ ~— Hermann Jung (1805 - 1870), relojoeito suigo estabelecido em Londres. amigo de Marx, tesoureito do Conselho Geral da Internacional, (N de Daniel Guérin) Os blanquistas separaram-se de Mare a partir de 6 de setembro, no Congresso de Hata. acusando-o de té-los traido (Nota de J. Guillaume) 24 © Conselho Geral de Nova York, querendo fazer uso de poderes que lhe tinham sido concedidos no Congresso de Haia, pronunciou em 5 de janeiro de 1873 a “‘suspensio”’ da Federacao Jurassiana, declarada re- belde, tendo este ato como tinico resultado o fato da Federagéo Holan- desa que, no inicio preferira manter-se neutra, saisse de sua reserva ¢ se unisse as sete outras federacdes da Internacional, declarando, a 14 de fe- vereiro de 1873, ndo reconhecer a suspensao da Federagao Jurassiana. A publicagéo, por Marx € 0 pequeno grupo que lhe permaneceu fiel, na segunda metade de 1873, de um panfleto contendo as mais grosseiras alteragdes da verdade, intitulado A Alianga da Democracta Soctalista e a Associagéo Internacional dos Trabalhadores nao surtiu outros efeitos que o de provocar o desprezo dos que leram este triste pro- duto de um édio cego. Em 1° de setembro de 1873 abria-se em Genebra 0 sexto Congres- so Geral da Internacional: as Federagdes da Bélgica, Holanda, Itdlia, Es- panha, Franga, Inglaterra € Jura suigo estavam representadas; os socia- listas lassalianos de Berlim enviaram uma mogao de simpatia assinada por Hasenclever ¢ Hasselmann. O congresso tratou da revisio dos estatutos da Internacional, declarou a supresso do Conselho Geral, tornando a Internacional uma federagdo livre, sem autoridade dirigente de nenhu- ma espécie: “As Federacdes € Secdes que compdem a Associagao, rezam os no- vos estatutos (artigo 3), conservam sua completa autonomia, isto é, 0 di- reito de organizarem-se conforme sua vontade, de administrarem seus proprios negécios sem nenhuma ingeréncia e de determinarem o cami- nho que pretendem seguir para chegar 4 emancipagao do trabalho."” Bakunin estava fatigado de uma longa vida de lutas: a prisio 0 en velhecera prematuramente, sua satide estava seriamente abalada ¢ ele s6 desejava agora o repouso ¢ a aposentadoria. Quando viu g Internacional reorganizada pelo triunfo do principio da federacao livre, pensou que chegara 0 momento em que poderia afastar-se de scus companheitos € dirigiu aos membros da Federagio Jurassiana uma carta (publicada em 12 de outubro de 1873) pedindo-lhes que aceitassem sua demissio co- mo membro da Federacdo Jurassiana ¢ da Internacional, acrescentando: “Nao me sinto mais com as forcas necessarias para a luta: seria, pois, no campo do proletariado, um estorvo, no uma ajuda. Retiro-me, portanto, caros companheiros, cheio de reconhecimento e de simpatia por esta grande € santa causa, a causa da humanidade... Continuarei 25 seguindo com ansiedade fraterna todo os vossos passos ¢ saudarei com a- legria cada um dos vossos novos triunfos. Até a morte setei vosso.”” Ele teria apenas mais trés anos de vida. Seu amigo, o revoluciondtio italiano Carlo Cafiero’, hospedou-o em uma vila que acabara de comprar perto de Lucarno. 14 Bakunin viveu até meados de de 1874, exclusivamente absorvido, segundo cons- ta, por este novo género de vida, no qual enicontrava finalmente a tran- diiilidade, a seguranga ¢ um bem-estar relative, Entretanto, ele nao cessara de considerar-se um soldado da Revolugao; seus amigos italianos tinham preparado um movimento subversivo. Regressou a Bolonha (ju- lho de 1874) para tomar parte do movimento que, mal organizado, a- bortou ¢ Bakunin teve que voltar 4 Suica disfargado. (...) Bakunin era, em 1875, apenas uma sombra dele mesmo, Em junho de 1876, na esperanca de encontrar algum conforto para seus ma- les, deixou Lucarno para it a Berna onde chegou no dia 14 de junho. Disse a seu amigo, doutor Adolf Vogt: “Venho aqui para que me cures ‘ou para morter.”’ (...) Expirou no dia 1° de julho, ao meio-dia. ‘© GUILLAUME, James (1884-1916) — Guillaume passou a interessar-se pelo anar- quismo quando ainda estudante em Zurique e, mais tarde, quando trabalhava como tipégrafo em Neuchatel, tornou-se um dos membros mais importantes da Federacio do Jura da Rrimeita Internacional. Adotando as crencas anarquistas, ligou-se a Baku- nin, sendo também expulso da Internacional durante o Congreso de Hague em 1872 Patticipou ativamente da fundacéo da Internacional de St. Imier ¢ teve um papel deci- sivo na conversio de Kropotkin ao anarquismo, trabalhando com ele como agitador anarquista na Suiga. A partir de 1880, Guillaume afastou-se do anarquismo pattici pante, voltando 3 ativa vinte anos depois, quando se integtou 20 movimento anatco- sindicalista, Os quatro volumes que publicou durante esse periodo — L "International: documents et souventrs — s4o a mais importante fonte de informacées sobre a Inter- nacional considerada sob o ponto de vista do anarquismo. Carlos Cafiero (1816 - 1892), anarquista italiano, inicialmente amigo de Marx. depois discipulo de Bakunin, enfim comunista libertério com Kropotkin. Elsée Reclus, etc, (Nota de Daniel Guérin) 26 Quem sou?* Nao sou nem sabio, nem filésofo, nem escritor profissional. Esctevi muito pouco na vida ¢ sempre que o fiz foi a contragosto, somente quando uma apaixonante conviccio forcava-me _a vencer minha repugnancia instintiva contra qualquer exibicZo pablica de meu proprio cu, Quem sou eu, pois, ¢ 0 que me leva agora a publicar este trabalho? Sou um pesquisador apaixonado pela verdade ¢ om encarnigado inimigo das ficgGes malfazejas das quais 0 partido do sistema, este repre- sentante oficial, privilegiado e interessado em todas as baixezas religio- sas, metafisicas, politicas, juridicas, econdmicas € sociais, presentes € passadas, pretende utilizar-se ainda hoje para embrutecer e submeter 0 mundo. : i : Sou um amante fanatico da liberdade, considerando-a como o Gni- co espaco onde podem crescer ¢ desenvolver-se a inteligéncia, a digni- dade € a felicidade dos homens; nao esta liberdade formal, outorgada e regulamentada pelo Estado, mentira eterna que, em realidade, repre- senta apenas o privilégio de alguns, apoiada na escravidao de todos; nao +O titulo nosso, estraido de A Comuna de Paris ¢ a Nogdo de Estado, 1870. In: OBRAS. IV, p.249. (Nota de Daniel Guérin) 27 esta liberdade individualista, egoista, mesquinha e ficticia, enaltecida pela escola de J -J. Rousseau por todas as outras escolas do liberalismo burgués, que considera o assim chamado direito de todo mundo, repre- sentado pelo Estado, como o limite do direito de cada um, 0 que con- duz, sempre e necessariamente, o direito de cada um a zero. Nio, s6 aceito uma tinica liberdade que possa ser realmente digna deste nome, a liberdade que consiste no pleno desenvolvimento de to- das as potencialidades materiais, intelectuais ¢ morais que se encontrem em estado latente em cada um; a liberdade que nao reconhega outras tes- trigdes que aquelas que nos sio tragadas pelas leis de nossa propria na- tureza; de maneira que nao ha, propriamente, restrig6es, pois estas leis no nos sao impostas por nenhum legislador de fora, situando-se ao lado ou acima de nés; elas nos s4o imanentes, inerentes € constituem a base de nosso ser, tanto material quanto intelectual ¢ moral. Ao invés de a- char nelas um limite, devemos considerd-las como as condigdes reais € como a razao efetiva da nossa liberdade. Entendo esta liberdade de cada um que, longe de parar como diante de um marco, diante da liberdade de outrem, encontra ai sua confirmagao ¢ sua extensao-ao infinito; a liberdade ilimitada de cada um pela liberdade de todos, a liberdade pela solidariedade, a liberdade na igualdade; a liberdade triunfante da forca bruta e do principio de auto- tidade que nunca foi nada mais do que a expresso ideal desta forca; a liberdade, que depois de ter derrubado todos os idolos celestes ¢ terrestres, fundard e organizara um mundo novo, o da humanidade so- lidatia, sobre as ruinas de todas as Igrejas ¢ de todos os Estados. Sou um partidario convicto da igualdade econédmica e social, porque sei que fora desta igualdade, a liberdade, a justica, a dignidade humana, a moralidade e o bem-estar dos individuos, assim como a pros- peridade das nagées, sctio nada mais do que mentiras. Mas, partidario da liberdade, condicao primeira da humanidade, penso que a igualdade deve estabelecer-se no mundo pela organizacao espontanea do trabalho € da propriedade coletiva das associagdes produtoras, livremente organi- zadas ¢ federalizadas nas comunas, ¢ pela federagao igualmente espon- tanea das comunas, € nao pela acdo suprema e tutelar do Estado. E este o principal ponto que divide os socialistas ou coletivistas re- volucionarios dos comunistas autoritarios partidarios da iniciativa abso- luta do Estado. Seu objetivo € 0 mesmo; um ¢ outro partidos querem i- gualmente a criagdo de uma nova ordem social fundada unicamente sobre a organizacao do trabalho coletivo, inevitavelmente imposto a ca- 28 da a um ea todos pela propria forca das coisas, com iguais condigdes eco- nOmicas para todos, ¢ sobre a apropriagdo coletiva dos instrumentos de trabalho. Os comunistas, contudo. imaginam que poderio chegar a isto pelo desenvolvimento ¢ pela organizagio da poténcia politica das classes ope- rarias € principalmente do proletariado das cidades, com a ajuda do ta- dicalismo burgués, enquaito os socialistas revoluciontios, inimigos de ligagdes ¢ aliancas equivocas, consideram, ao contrario, que s6 podem a- ingir este objetivo pelo desenvoivimento ¢ pela organizagio da forca politica mas social ¢, conseqiientemente, anti-politica das massas ope- rarias tanto nas cidades quanto no campo, incluindo todos os homens de boa vontade das classes superiores que, rompendo com todo seu passa- do, gostariam de unir-se a eles ¢ aceitar integralmente seu programa. Ha, portanto, dois métodos diferentes. Os comunistas acreditam que devem organizar as forcas operarias para dominar a poténcia politica dos Estados. Os socialistas revolucionarios se organizam com vistas 3 destruigao, ou se quisermos usar um eufemismo, com vistas a0 aniqui- lamento dos Estados. Os comunistas sao partidarios do principe ¢ da pratica da autoridade, os socialistas revolucionarios s6 tém confianga na liberdade. Uns e outros igualmente partidarios da ciéncia que deve ma- tat a superstiggo € substituir a fé; os primeiros queriam impé-la, os ou- ttos se esforgarao por propagé-la para que os grupos humanos, conven- cidos, se organizem e se federalizem espontaneamente, livremente, de baixo para cima, através de seu proprio movimento € de seus reais inte- fesses, nunca seguindo um plano tracado antecipadamente e imposto as massas ignorantes por algumas inteligéncias superiores. Os socialistas revolucionarios acreditam que ha muito mais razio pratica ¢ espirito nas aspiragdes instintivas € nas necessidades reais das massas populares do que na inteligéncia profunda de todos estes dou- tores € tutores da humanidade que, apés tantas tentativas frustradas de tornar a humanidade feliz, ainda querem ajudar. Os socialistas tevolucionarios pensam, ao contrario, que a humanidade deixou-se, por um tempo demasiado longo, governar, ¢ que a fonte destas infelicida- des nao se encontra em uma ou outra forma de governo, mas no princi- pio € no proprio governo qualquer que cle seja Esta € enfim a contradigao, ja historica, que existe entre o comunis- mo cientificamente desenvolvido pela escola alemd e aceito em parte pe- los socialistas americanos € ingleses. de um lado, ¢ 0 proudhonismo 29 largamente desenvolvido € levado até suas Gltimas conseqiiéncias, de outro, aceito pelo proletariado dos paises latinos’ F igualmente aceite e sera sempre mais pelo instinto anti-politico dos povos es- Javes (Nota de Bakunin) 30 Deus e 0 Estado (1871)* INDIVIDUO, SOCIEDADE, LIBERDADE"* (...) Partindo do estado de gorila, € para o homem um proceso muito dificil chegar 4 consciéncia de sua humanidade e 4 realizacgao de sua liberdade. Primeiramente, ele nao pode ter nem esta consciéncia, nem esta liberdade; ele nasce besta feroz ¢ esctava, ¢ s6 se humaniza ¢ se emancipa progressivamente no seio da sociedade que é necessariamente anterior ao nascimento de seu pensamento, de sua palavra ¢ de sua von- tade; ¢ ele s6 pode fazé-lo pelos esforcos coletivos de todos os membros passados e presentes desta sociedade que é, em conseqiiéncia a base ¢ 0 ponto de partida natural de sua existéncia humana. Resulta que o homem s6 realiza sua liberdade individual ou sua personalidade com- pletando-se com todos os individuos que 0 cercam € somente gracas a0 tuabalho e a forca coletiva da sociedade, fora da qual, de todos os ani- mais ferozes que existem na terra, ele seria, sem dtivida ¢ sempre, 0 mais esttipido ¢ miseravel. No sistema dos materialistas, que € 0 Gnico natural Trechos titados do manuscrito de Bakunin Império Knouto-germanico, 1871 In: OBRAS. L.p. 275.277.278.281.287-8, 324-5. (Nota de Daniel Guérin) Os sub-titulos so nossos. (Nota de Daniel Guérin) 31 ¢ légico, a sociedade, longe de diminuir e de limitar, cria, ao contrario, a liberdade dos individuos humanos. Ela é a raiz. a arvore, ¢ a liberdade é seu fruto. Logo, em cada época, o homem deve procurar sua liberda- de, no no inicio, mas no fim da historia, ¢ pode-se dizer que a emanci- Ppagao real ¢ completa de cada individuo humano € o verdadeiru, o gran- de objetivo, o fim supremo da historia. ALIBERDADE E EU (...) A definigao materialista, realista ¢ coletivista da liberdade (....) € esta: o homem s6 se torna homem e€ 6 chega 4 consciéncia ¢ a realiza- cao de sua humanidade em sociedade e somente através da acdo coletiva da sociedade inteira; ele s6 se emancipa do jugo da natureza exterior pe- lo trabalho coletivo ou social que € 0 tinico capaz de transformar a su- perficie da terra em lugar favoravel aos progressos da humanidade. Sem esta emancipacao material nao pode haver a emancipagao intelectual ¢ moral para ninguém. Ele s6 pode emancipar-se do jugo de sua prépria natureza, isto €, s6 pode subordinar os instintos ¢ os movimentos de seu Ptéprio corpo na direcdo de seu espirito cada vez mais desenvolvido, a- través da educacao ¢ da instrugdo; mas uma e outra sao coisas eminen- temente ¢ exclusivamente sociais, pois fora da sociedade 0 homem teria petmanecido eternamente na condicao de anima! selvagem ou de santo, © que significa quase a mesma coisa. Enfim, 0 homem isolado nao pode ter a consciéncia de sua liber- dade: Ser livre, para o homem, significa ser reconhecido, considerado ¢ tratado como tal por um outro homem, por todos os homefis que o cir- cundam, A liberdade nao é, pois, um fato de isolamento, mas de reflexio matua, nao de exclusao, mas de ligacao; a liberdade de todo in- dividuo é entendida apenas como a reflexao sobre sua humanidade ou sobre seu direito humano na consciéncia de todos os homens livres, seus mos, seus semelhantes ‘S6 posso considerar-me ¢ sentir-me livre na presenga e em relacdo a outros homens. (...) $6 sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, s4o igualmente livres. A liberdade do outro, longe de ser um limite ou a negagao da minha liberdade, é, a0 contrario, sua condicao necessaria ¢ sua confirmacao. Apenas a liberdade dos outros me torna verdadeiramente livre, de forma que, quanto mais numerosos forem os homens livres que me cercam, € mais extensa ¢ 32 ampla for sua liberdade, maior ¢ mais profunda se tornaré minha li- berdade, Ao contrario. é a escravidao dos homens que poe uma barreira na minha liberdade, ou, 0 que é a mesma coisa, € sua animalidade que é uma negacio da minha humanidade porque. ainda uma vez, s6 posso considerar-me verdadeiramente livre, quando minha liberdade, ou 0 que quer dizer a mesma coisa, quando minha dignidade de homem, meu diteito humano, que consiste em ndo obedecer a nenhum outro homem ¢ a s6 determinar meus atos de acordo com minhas proprias conviccdes, tefletidos pela consciéncia igualmente livre de todos, me sao confitmados pela aprovacdo de todos. Minha liberdade pessoal assim confirmada pela liberdade de todos se estende ao infinito. ESTADO E GOVERNO (...) Nao hesito em dizer que o Estado € 0 mal, mas um mal histo- ricamente necessario, t@0 necessario no passado quanto o sera sua extin- @o completa, cedo ou tarde; tdo necessario quanto foram a bestialidade primitiva ¢ as divagac6es tcol6gicas dos homens. O Estado absolutamen- te nfo € a sociedade, € apenas uma forma hist6rica to brutal quanto absurata. Nasceu historicamente, em todos os paises, do casamento da vio- léncia, da rapina ¢ do saque, isto é, da guerra e da conquista, com os deuses ctiados sucessivamente pela fantasia teol6gica das nagdes. Foi, desde sua origem e permanece ainda hoje, a sancao divina da forca bruta e da iniqitidade triunfante (...) A tevolta € muito mais facil contra 0 Estado, porque ha na propria natureza do Estado alguma coisa que leva a revolta. © Estado €a autoridade, € a forga, € a ostentagdo € a enfatuacao da forca. Ele nao se insinua, ndo procura converter: sempre que interfere, o faz de mau jei- to, pois sua natureza na € de persuadir, mas de impor-se, de forgar Inutilmente tenta mascarar esta natureza de violador legal da vontade dos homens, de negagéo permanente de sua liberdade, Ento, mesmo que determine o bem, ele o estraga, precisamente porque o ordena, ¢ porque toda ordem provoca € suscita revoltas legitimas da liberdade; € porque o bem, no momento, da moral humana, nao divina, do ponto de vista do respeito humano e da liberdade, torma-se um mal (...) Exploracio € governo, o primeiro dando os meios de governar € constituindo a base necessaria assim como o objetive de todo governo, que por sua vez garante ¢ legaliza o poder de explorar, sao os dois termos inseparaveis de tudo que se chama politica. Desde 0 inicio da 33 historia eles constituiram a vida real dos Estados: teocraticos, monarqui- cos, afistoctaticos e até mesmo democriticos. Anteriormente € até a grande Revolucao do fim do século XVIII , sua intima relagdo era mas- carada por ficgdes religiosas, legais e cavalheirescas, mas, desde que a mao brutal da burguesia destruiu todos os véus, alids nitidamente trans- parentes, desde que seu sopro revoluciondtio dissipou todas as vas ima- ginacOes atras das quais a Igreja ¢ Estado, a tecnocracia, a monarquia ¢ a aristocracia puderam, durante tanto tempo, taugiiilamente realizar t0- das as suas torpezas hist6ricas; desde que a burguesia, cansada de ser bi- gorna tornou-se, por sua vez, martelo; desde que inaugurou o Estado moderno, esta ligagdo fatal tornou-se para todos uma verdade revelada € até mesmo incontestavel A exploracdo € 0 corpo visivel € 0 governo € a alma do regime bur- gués. E, como acabamos de ver, uma e outra, nesta ligacdo tio intima, so, tamo do ponto de vista te6rico como pratico, a expressdo riecessaria € ficl do idealismo metafisico, a conseqiiéncia inevitavel desta doutrina burguesa que procura a liberdade ¢ a moral dos individuos fora da soli- dariedade social. Esta doutrina leva 40 governo espoliador de um pe- queno grupo de privilegiados, ou de eleitos, a escravidao espoliada da maioria e, todos, & negacao de toda moralidade ¢ de toda liberdade. 34 A Sociedade ou Fraternidade Internacional Revoluciondria (1865) Os textos que seguem sdo ao mesmo tempo os menos conhecidos é talvez os mats importantes dos escritos anarquistas de Bakunin. Eles ndo constam dos sets volumes das Obtas cuja publicagao for empreendida bor seu discipulo James Guillaume, entre 1895 ¢ 1913. Ainda nio fo- ram recolhidos aos Arguivos Bakunin, em fase de publicagao nos Paives Batxos. Constam apenas da monumental Biografia de Bakunin escrita & mito, em alemao, por Max Nettlau", e da qual s6 extstem raros exem- plares autografados nas principais bibliotecas do mundo. Trata-se de varios documentos separados. Apresentam, por isso, repetigoes. Nao achamos, contudo, necessino fazer cortes, ao menos na sua parte ideoligica, nem tentar modificar a ordem de exposigdo. Serta o mesmo que deflorar 0 rico e poderoso caudal do pensamento hakunta no. Um destes textos tem por titulo Catecismo Revolucionario. Ele nao deve ser confundido com as Regras nas quats deve inspirar-se 0 revolu ctonanio (erradamente conhecido como “Catecismo Revoluctonério) Max Nettlits (N64 - 1944), nascide em Viena, de nacionalidade alema, infani- Rivel historiador ¢ historidgeafo do anarquismo, autor prolixo enudivo de nv, merosas ubras € artytos e. principalmente, da monumental biografia de Baku nin. (Nota de Daniel Guétin | 35 onde se sustentaré que ‘'o fim sustifica 0s mesos. A colaboragao de Bakunin neste ‘'catectsmo"’ amoral de 1869 é hose contestada. por riety de provas, pelo editor dos Arquivos Bakunin, Arthur Lehning. Os textos que apresentamos agora foram redigidos por Bakunin na Itilia, em 1865. Constituem. ao mesmo tempo. 0s estalutos 0 Progra ma de sua Sociedade (ou Fraternidade) Internactunal Revoluctonira. A organtzacao deveria comporse de uma ‘familia internactonal” & de “familias nacionats’’. Os membros eram divididos emt das categorias os “‘irmaos ativos”’ e os “irmaos honorarios””. seguindo o exemplo dos Carbonart e dos franco-magons. Entretanto, parece que a urganizagiv projetada permaneceu por um longo periodo no papel. Como observou Arthur Lehning, estes programas e estatutos traduzere melhor a evolu ¢ao das idéias de Bakunin que o funcionamento de uma organtzagao. O que confirma A. Romano, quando declara que se tratava, efetivamente. de “um pacto secreto entre quatro ou cinco amigos: uma alianga fantas ma"'.” O punhado de homens que na Italia fundaram com Bakunin a Fraternidade eram todos, como Giuseppe Fanelli, antigos discipulos do re. publicano Giuseppe Mazzini, com o qual adqutriram o gosto e 0 habito das ‘sociedades secretas. Eles acabavam de separar-se de seu chefe de escola, pul- gando caducar ao mesmo tempo seu deismo e sua concepgao de wma revo- lugito puramente ‘‘politica’’, logo, burguesa e sem contetido social, A onginalidade do programa da Fratermidade ndo era unicamente seu conteido soctalista e internacionalista, a afirmagao do “'direito de secessio"’, que serd retomado por Lenin, mas sua inspiracao libertaria. Como escreve H.E. Kaminski, “‘langando as palavras de ordem da anarquia, ele apresenta-se semelhante ao Manifesto Comunista de Marx e Engels, ao qual é inferior quanto & argumentagao cientifica, mas se iguala pelo ardor de seu entusiasmo revoluciondrio. E 0 fundamento espintual de todo movimento anarquista”’.** Hai nas paginas que seguem, uma contradigao, ao menos aparente. Ora Bakunin pronuncia-se categoncamente pela “‘destruigao dos Esta- dos": “O Estado, afirma, deve ser radicalmente demolido”’. etc: ora reintroduz a palavra ‘'Estado'’ em sua argumentacao. Definindo-o, en- tao, como “‘unidade central do pais’. como um 6rgav federativo. E nao + A. Lebning © A, Romano. In: A Primeina Internacional (coloquo de 1964. CN.R.S.. 1868, p.281, 335, 349), (Nota de Daniel Guérin) ++ HLE, Kaminski, Bakunin, A Vida de um Revoluctonéno, 1938. p 213-4. (Nota de Daniel Guérin) 36 deixa de vituperar ’o Estado tutelar, transcendente, centralizado"’, e a denunciar ‘a pressio despoticamente centralizadora do Estado"’. Hé, pots, para Bakunin, Estado e Estado. Encontra-se a mesma ambigiidade em Proudhon, em quem Bakunin tanto se apotou, A acusagao do Esta. do foi o tema central do pensamento proudhoniano. Entretanto o Proudbon do iltimo periodo, o do Principio Federative (1863), esto apenas dots anos antes do programa de Bakunin, nao hesita mats em empregar a palavra “‘Estado’’, no mesmo sentido federalista a anti- centralista com que Bakunin o utilizou, O PROGRAMA DA FRATERNIDADE A Sociedade Internacional Revoluciondtia sera constitufda por duas organizacGes diferentes: a familia internacional, propriamente dita, ¢ as familias nacionais; estas ltimas deverdo ser em toda parte organizadas de modo que permanecam sempre submissas 4 direcZo absoluta da familia internacional. A familia internacional Composta unicamente de irmaos internacionais tanto honorarios quanto ativos, seré o fecho de abébada sobre a qual repousara nosso grande empreendimento revolucionario. Seu sucesso dependera princi- palmente da boa escolha dos f.i., fréres internationaux (irmaos intetna- cionais). Além das qualidades indispens4veis para constituir cardter revo- lucionario sério e honesto, tais como: boa fé, coragem, prudéncia, dis- cregdo, constancia, firmeza, resolugao, dedicacéo sem limite, auséncia de vaidade ¢ ambicao pessoal, inteligéncia pratica, € preciso ainda que o candidato adote com 0 coragio, a vontade € 0 espitito, todos os principios fundamentais de nosso Catecismo Revoluciondrio. E preciso que seja ateu ¢ que reivindique para o homem e para a tetra tudo o que as religides transportaram para o céu € atribuiram a seus deuses; a verdade, a liberdade, a justica, a felicidade ¢ a bondade, E Preciso que reconheca que a moral, independente de toda teologia e de toda metafisica divina, tenha como fonte apenas a consciéncia coletiva dos homens, E preciso que seja come -16s 0 inimigo do principio da autoridade ¢ que deteste tous as suas aplicagoes ¢ conseqiiéncias, seja no mundo in- telectual ¢ moral, seja no mundo politico, econdmico e social E preciso que ame antes de tudo a liberdade e a justiga ¢ que reco- nhega conosco que toda organizacio politica e social, baseada na nega- ¢40, ou mesmo em qualquer restrigao deste principio absoluto da lil dade, deve necessariamente levar a iniquidade ou 4 desordem e que a nica organizagéo social racional, equilibrada, compativel com a dignidade c a felicidade dos homens sera a que tiver por base ¢ por fina- lidade suprema a liberdade. E preciso que compreenda que nao existe liberdade sem igualdade € que a tealizagao da maior liberdade na mais perfeita igualdade de di- reito ¢ de fato, politica, econémica ¢ social ao mesmo tempo, é a justica. E preciso que seja federalista, como nés, tanto no interior quanto fora de seu pais. Deve compreender que o advento da liberdade € incompativel com a existéncia dos Estados. Deve querer, por via de con- seqliéncia, a destruigo de todos os Estados ¢, a0 mesmo tempo, a de to- das as instituig6es religiosas, politicas e sociais: tais como Igrejas oficiais, ex€ércitos permanentes, poderes centralizados, burocracia, governos, par- lamentos unitarios, universidades ¢ bancos do Estado, bem como mono- POlios aristocraticos ¢ burgueses. Para que sobre as ruinas de tudo isto possa nascer, enfim, a sociedade humana livre e que se organizara nao mais como hoje, de cima para baixo e do centro para a circunferéncia, por via de unidade ¢ concentracao forgadas, mas partindo do individuo livre, da associacao livre ¢ da comuna auténoma, de baixo para cima e da circunferéncia para o centro, por via de federacio livre. E preciso que adote, tanto na teoria quanto na pratica e em toda a amplitude de suas conseqiiéncias, este principio: todo individuo, toda associac4o, toda comuna, toda provincia, toda regiao, toda nacdo tem o direito absoluto de dispor de si proprias, de associar-se ou de nao asso- ciar-se, de aliar-se com quem quiserem e de romper suas aliancas sem Pteocupar-se com os assim chamados direitos hist6ricos, nem com as conveniéncias de seus vizinhos; ¢ que esteja firmemente convencido que somente quando estiverem formadas pela forca de suas atragdes € necessidades inerentes, naturais ¢ consagradas pela liberdade, estas no- vas federagdes de comunas, de provincias, de regides ¢ de nagées se tor- nardo verdadeiramente fortes, fecundas ¢ irtdissolveis. E preciso, pois, que reduza o assim chamado principio da naciona- lidade. principio ambiguo, cheio de hipocrisias ¢ de armadilhas, princi- pio de Fstado historico, ambicioso, 20 principio muito maior, muito 38 simples ¢ nico legitimo, da liberdade: cada um, individuo ou corpo co- letivo. sendo ou devendo ser livre, tem o direito de ser ele proprio. € ninguém tem o ditcito de impor-Ihe seus costumes, sua vestimenta, sua Jingua. suas opinides ¢ suas leis: cada um deve ser absolutamente livre em si, Eis a que se reduz, em sua sinceridade. 0 diteito nacional. Tudo que estiver além disto, nao é a confirmacao de sua propria liberdade na- cional, masa negacéo da liberdade nacional de outrem. © candidato de- ve, pois, detestar, como nés, todas estas idéias estreitas. ridiculas, liberticidas ¢, conseqiientemente, criminosas, de grandeza, de ambigao ¢ de gléria nacional boas apenas para a monarquia ¢ para a oligarquia, hoje igualmente boas para a burguesia, porque lhe sao iteis para enga- nar 0s povos ¢ amotind-los uns contra os outros para melhor submeté- los E preciso que em seu coracio 0 patriotismo, ficando daqui para frente em segundo plano, ceda lugar ao amor pela justiga ¢ pela liberda- de, € que se necessario, se sua prpria patria separar-se destes valores, jamais hesite em tomar partido contra ela; o que nao custard muito, se estiver realmente convencido, como deve estar. de que sé ha prtosperidade ¢ grandeza politica em um pais através da justica € da li- berdade. E preciso que esteja convencido de que a prosperidade e a felicida- de de seu pais, longe de estar em contradicao com aquelas de todos os outros paises, ao contrario necessitam para sua prdépria realizacdo que e- xista entre os destinos de todas as nagdes uma solidariedade final toda- poderosa ¢ que esta solidariedade, transformando pouco a pouco o sen- timento estreito € freqiientemente injusto de patriotismo em um amor mais amplo, mais generoso e mais racional da humanidade, criaré final- mente a federacio universal e mundial de todas as nagées. E preciso que seja socialista na mais completa acepgao do termo pe- lo nosso catecismo revolucionario € que, conosco, ele o reconhega como legitimo € como justo, que o proclame com toda sinceridade, e que es- teja pronto a contribuir com todos os esforcos para o triunfo de uma or- panizacio social, na qual todo individuo humano, nascendo para a vida homem ou mulher, encontre meios iguais de manutenco, de educacao ¢ de instrugao na infancia e na adolescéncia e que, mais tarde, na maio- tidade, encontre facilidades exteriores, isto €, politicas, econdmicas ¢ sociais iguais para ctiar seu proprio bem-estar, aplicando ao trabalho as diferentes forcas ¢ aptiddes que a natureza Ihe concedeu ¢ que uma ins- trugao igual para todos tenha desenvolvido. 39. E preciso que compreenda que, assim como a hereditariedade do mal, que € incontestavel como fato natural, é por todos rejeitada pelo principio da justiga, € pela mesma légica justiceira, assim também deve ser rejeitada a hereditariedade do bem pois, os mortos nao existindo mais, néo podem exercer influéncias sobre os vivos € a igualdade econd- mica, social e politica, ponto de partida de cada um e condi¢do absoluta da liberdade de todos, € incompativel com a propriedade hereditaria com o direito de sucessio. E preciso que esteja convencido de que sendo o trabalho 0 Gnico produtor de riquezas sociais, aquele que trar proveitos sem tabalhar € um explorador do trabalho do outro, um ladrao, ¢ de que 0 trabalho sendo a base furidamental da dignidade humana, tinico meio pelo qual 0 homem conquista e cria realmente sua liberdade, todos os direitos poli- Ucos € sociais deverao, daqui em diante, pertencer unicamente aos traba- thadores. E preciso que reconheca que a terra, dom gratuito da natureza a cada um, nao pode € nao deve ser propriedade de ninguém. Mas que seus fratos, enquanto produto do trabalho, devem reverter unicamente para os que cultivam com suas proptias maos Deve estar convencido, conosco, de que a mulher, diferente do ho- mem, mas nao inferior a ¢le, inteligente, trabalhadora e livre como ele, deve ser declarada, em todos os direitos politicos ¢ sociais, semelhante a ele; de que na sociedade livre 0 casamento religioso ¢ civil deve ser subs- tituido pelo casamento livre, ¢ que a manutencko, educagio e instru- 40 das criancas serao iguais para todos, as custas da sociedade, a qual, embora protegendo-as seja contra a ignoranicia, seja contra a negligénicia, seja contra a ma vontade dos pais, no teriha necessidade de separa-las, pois as ctiangas no pertencenn nem a sociedade nem a seus pais, mas sua fucu- ta liberdade, e a autoridade tutelar da sociedade nao deve ter outro objetivo, nem outra missio em relagao a elas que a de prepard-las para uma educagao racional e viril, alicercada unticamente na justiga, 10 respeito hu- mano eno culto ao trabalho. E preciso que seja revolucionario. Ele deve compreender que uma uansformegao tao completa _€ radical da sociedade, devendo necessariamente determinar a ruina de todos os privilégios, de todos os monopélios, de todos os poderes constituidos, nao podera naturalmen- te efetuar-se por meios pacificos; que, pela mesma razao, tera contra ela todos os poderosos, todos os ricos, € por ela, em todos os paises, apenas 0 povo assim como esta parte inteligente ¢ nobre da juventude que, em- 40 bora pertencendo por nascimento as classes privilegiadas, por suas con- viccoes generosas € por suas ardentes aspiracSes, abrace a causa do povo. Deve compreender que esta revolucdo que tera por objetivo tinico ¢ supremo a emancipacao real, politica, econdmica e social do povo, ajudada, sem davida, e organizada em grande parte por esta juventude, s6 poderé , em tiltima instancia, ser realizada pelo povo; que todas as outras questdes, religiosas, nacionais, politicas, tendo sido completa- mente esgotadas pela historia, ficam reduzidas a uma s6, na qual se re- sumem todas as outras € a tinica, agora, capaz de mexer com os povos: a questao social. Deve compreender que toda revolucao, seja de independéncia na- cional, como o dltimo levante polonés ou como 0 que apregoa Mazzini, seja exclusivamente politica, constitucional, monarquica ou mesmo re- publicana, como o dltimo movimento dos progressistas abortado na Es- panha, que toda revolugao semelhante, fazendo-se fora do povo € nao podendo, em conseqiiéncia, triunfar sem apoiar-se em uma classe privi- legiada qualquer, representando seus interesses exclusivos, se fara necessariamente contra 0 povo e sera um movimento retrogrado, funesto € contra-revolucionario. Desprezando, portanto, e vendo como um erro fatal ou como um engano indigno qualquer movimento secundario que nao tenha por objetivo imediato € direto a emancipagao politica ¢ social das classes tra- balhadoras, isto €, do povo, inimigo de qualquer transacao, de qualquer conciliagio, impossivel de ora em diante, e de qualquer coalis mentifosa com os que, por scus interesses, so inimigos naturais deste povo, no deve ver outra solugdo para seu pais ¢ para o mundo inteiro que a revolugao social E preciso que compreenda, ao mesmo tempo, que esta revolucao, cosmopolita por exceléncia, como o sio igualmente a justiga ¢ a liberda- de, 56 podera triunfar se, ultrapassanndo como um incéndio universal as barreiras estreitas das nagdes € fazendo desmoronar todos os Estados no seu caminho, abranger primeiramente toda a Europa, logo o mundo. E preciso que compreenda que a revolucio social se tornara necessaria- mente uma revolugao européia ¢ mundial. Que o mundo se separara necessariamente em dois campos, o da nova vida e o dos antigos privilégios ¢ que. entre estes dois campos opos- tos, formados como no tempo das guerras religiosas. nao mais por atra- «Ges nacionais, mas pela comunidade das idéias € dos interesses, devera onginar-se uma guerra de exterminagdo, sem piedade € sem trégua, que 4i a revolugao social, contréria em esséncia a esta politica hipécrita de nao- intervencio, que s6 € Gtil aos moribundos € aos impotentes. no proprio interesse de sua salvagao € de sua conservacao, néo podendo viver ¢ triunfar sem expandir-se, nao se render antes de ter destruido todos os Estados ¢ todas as velhas instituig6es religiosas, politicas ¢ econémicas da Europa € de todo mundo civilizado, Que nao serd uma guerra de conquista, mas de emancipagao, de e- mancipagao algumas vezes forcada, € verdade, mas sempre salutar porque tera apenas por objetivo ¢ por resultado a destrui¢ao dos Estados ¢ de sua base secular que, consagrados pela religido, foram sempre a fonte de toda escravidao, Que a revolucao social, uma vez fomentada em um ponto, encon- trara cm todos os paises, embora aparentemente hostis, aliados ardentes ¢ formidaveis nas massas populares que, logo que tenham compreendi- do sua acao € seu objetivo, no agirao de outra forma seno tomando seu partido; que sera, portanto, necessario escolher para comeco um terreno proprio onde ela s6 tenha que resistir ao primeiro embate da teacao, de- pois do que, alastrando-se, ndo poder deixar de triunfar sobre as fiirras de seus inimigos, federalizando ¢ unindo em uma formidavel alianca re- volucionatia todos os paises que ela tiver atingido Que os elementos da revolugao social se encontrem j4 amplamente divulgados quase em todos os paises da Europa ¢ que para formar uma forca efetiva, deva-se apenas harmoniza-los ¢ concentré-los; que isto deva ser obra de revolucionarios sérios de todos os paises organizados em associagées 40 mesmo tempo publicas e secretas com 0 duplo objetivo de ampliar 0 campo revolucionario ¢ de preparar, ao mesmo tempo, um movimento idéntico ¢ simultneo em todos os paises onde o movimento for vidvel, pelo trabalho secreto dos revolucionarios mais inteligentes destes paises. Nao é suficiente que nosso candidato compreenda tudo isso. E pre- ciso que tenha em si a paixdo revolucionaria; que ame a liberdade a justica a ponto de querer seriamente contribuir com seus esforgos para seu triunfo, a ponto de entender como um dever o sacrificio de seu re- pouso, de seu bem-estar, de sua vaidade, de sua ambicao pessoal ¢ até mesmo de seus interesses particulares. E preciso que esteja convencido de que a melhor mancira de servi- los € dividir nossos trabalhos ¢ que saiba que, tomando lugar entre nds. contrairé em relacdo a nds os mesmos compromissos solenes que nés contrairemos em relagao a ele. E preciso que tenha tomado conhecimen- to de nosso catecismo reyoluciondrio, de todas as nossas regras € leis € que jure observa-las sempre com fidelidade escrupulosa. Deve compreender que uma associagéo, tendo uma finalidade re- volucionaria, deve necessariamente formar-se como sociedade secreta, € que toda sociedade secreta, no interesse da causa a que serve ¢ da eficdcia de sua acdo, assim como no interesse da seguranga de cada um de seus membros, deve submeter-se a uma forte disciplina, que é apenas 0 resu- mo € 0 resultado puro do engajamento teciproco dos membros uns em relagéo aos outros € que, conseqitentemente, submeter-se a uma condi- do de honra € um dever de cada um. Qualquer que seja, portanto, a diferenca de capacidade entre os ir- maos internacionais, teremos apenas um senhor: nosso principio; uma 86 vontade: nossas leis para cuja criagéo todos contribuimos, ou as quais consagramos por nossa livre vontade. Embora nos inclinemos com respeito diante dos servicos passados de um homem, embora apreciando a grande utilidade que nos trariam uns, com sua fiqueza, outros, com sua ciéncia € ainda outros com suas clevadas posicées ¢ influéncias pabli- cas, literatias, politicas ou sociais, longe de procura-los, por estes moti- vos, veriamos nisso uma razao de desconfianga, pois todos estes homens poderiam trazer para o nosso meio, habitos, pretensdes de autoridade, de heranca de seu passado € nés nao podemos aceitar nem estas preten- s6es, nem esta autoridade, nem esta heranga, olhando sempre para fren- te, jamais para tras, € s6 reconhecendo 0 mérito e direito naquele que servir mais ativa € resolutamente nossa associacao. O candidato compreendera que s6 se entra na associago para servi- la e que, portanto, ela tera direito de esperar de cada um de seus mem- bros uma utilidade positiva qualquer ¢ que a auséncia dessa utilidade, suficientemente constatada ¢ provada, acarretara sua exclusio. Entrando em nosso meio, 0 novo irmao devera solenemente consi- derar seu dever em relacao a esta sociedade como seu primeito dever, co- locando em segundo lugar seu dever em relagio a cada membro da sociedade, seu itmio. Estes dois deveres deverio dominar, de ora em diante, sendo seu coragéo, a0 menos sua vontade, sobre todos os outros. Pontos essenciats dos catectsmos nactonats Os catecismos nacionais dos diferentes paises podetio variar sobre todos os pontos secundarios 43 Mas h4 pontos essenciais e fundamenais que deverio ser igualmente obrigat6rios para as organizagbes nacionais de todos os paises € que deverao formar, por conseguinte, a base comum de todos os cate- cismos nacionais, Estes pontos s40 0s seguitntes A impossibilidade de sucesso de uma revolugao nacional isolada ¢ a conseqiiente necessidade de uma alianga e de uma federagao revolucionaria entre todos os povos que querem a liberdade A impossibilidade de tal federacao ou alianga sem um programa comum que satisfaca igualmente os direitos ¢ as legitimas necessidades de todas as nragdes € que, sem considerar os assim chamados direitos his- tOricos, nem o que se chama a necessidade ou salvagao dos Estados, nem, as glorias nacionais, nem qualquer outra pretensio vaidosa ou ambiciosa de prepoténcia ou forca, coisas que um povo deve saber rejeitar se quiser ser verdadeiramente livre, tendo somente, por furndamento € por princi- pio, a liberdade igual para todos € a justiga. Incompatibilidade de um determinado programa, incompaubili- dade da liberdade, da igualdade, da justica, do governo barato, do bem-estar ¢ da cmancipacao real das classes wabalhadoras com a existéncia dos Estados centralistas. militares ¢ burocraticos. Necessidade absoluta da destruigao de todos os Estados atualmente existentes na Eu- ropa, com excecao da Suica, e da demoligao radical de todas as institui- goes politicas, militares, administrativas, judicidrias ¢ financeiras que constituem atualmente a vida ¢ a forca dos Estados. Abolicao de qualquer relacao e de qualquer igreja do Estado ou mantida pelo Estado, confisco de todos os bens mobiliarios ¢ imobilia- tios das igrejas em beneficio das regides administrativas ¢ das comunas, dispondo que as religides se tornaram livres ¢ que, portanto, s6 dizem fespeito a consciénicia individual de cada um, devendo ser mantidas uni- camente por seus fiis. Necessidade absohuta de cada pais que quiser fazer parte desta fe- deragao livre de povos de substituir a organizacdo centralista, burocratica € militar por uma organizacao federal, baseada na liberdade absoluta € na autonomia das regides, das provincias, dos municipios, das associa- Ses € dos individuos com funcionarios eletivos € responsaveis diante do povo, € com o armamento nacional, organizagio que nao se formara, como atualmente, de cima para baixo, mas de baixo para cima e da circunferéncia para o centro, pelo principio de federacao livre, partindo dos individuos livres que formaro as associagdes, as comunas autonomas; das comunas autdniomas que formarao as provincias autd- 44 nomas; das provincias autonomas que formario as tegides e das regioes que, federalizando-se livremente entre si, formarao 0s paises que, por sua vez, formarao cedo ou tarde a federacdo universal e mundial. Necessidade de reconhecer 0 direito absoluto de secessao para todos os paises, todas as tegides, todas as provincias, todas as comunias, todas as associag6es, bem como para todos os individuos com a convicgio de que uma vez teconhecido o direito de secessio, as secessdes de fato se torarao impossiveis, porque as unidades nacionais deixando de set o produto da violéncia ¢ da mentira hist6rica se formario livremente pelas necessidades ¢ pelas afinidades inereites a cada uma de suas partes. Impossibilidade da liberdade politica sem igualdade politica. Im- possibilidade desta, sem igualdade econdmica ¢ social. Necessidade de uma revolugio social. A extensao e 0 alcance desta revolugio apresentario maiores ou menores diferengas em cada pais, de acordo com a situacao politica € social € 0 grau de desenvolvimento revoluciondrio existente em cada um Entretanto, em todos os paises, sera preciso proclamar certos principios que somentte agota setZo capazes de interessar ¢ subverter as massas po- pulates independentemente de seu estigio de civilizagio. Estes ptinci- pios sao os seguintes: A terra pertence a todo mundo. Mas seu aproveitamento perten- cera apenas aos que a cultivem com suas proprias maos. Abolicao da renda da terra. Sendo todas as riquezas sociais produzidas pelo uabalho, quem de- las se aproveitar sem trabalho sera um ladrao. Os direitos politicos pertencerao apenas as pessoas honestas, per- tencerao apenas aos trabalhadores. Sem nenhuma espoliagao, mas pelos esforgos ¢ forgas econdmicas das associagSes operarias, o capital € os instrumentos de trabalho’ se tor- narao propriedade dos que os utilizarem para a produgao de riquezas pelo seu préprio trabalho. Cada homem deve ser o filho de suas obras, € s6 havera justica quando a organizagdo da sociedade for tal que cada um ao nascer encon- ue os mesmos meios de manuteng4o, de educacao, de instrugo ¢, mais tarde, as mesmas facilidades externas de criar seu proprio bem-estar atra- vés do trabalho. Em cada pais podera fazer-se a emancipacao do casamento da tute- la da sociedade € igualar os direitos das mulheres aos do homem Nenhuma revolugao sera vitoriosa em nenhum pais, atualmente, 45 se ndo for uma tevolugio politica e social, Toda revolucdo exclusivamen- te politica, seja nacional e dirigida apenas contra a dominacao estrangei- ra, seja constitucional interna, mesmo que tenha a repablica como objetivo, nao tendo, conseqiientemente, por finalidade aemancipacio imediata ¢ real, politica e econdmica do povo, seré uma revolucio ilus6- tia, mentirosa, impossivel, funesta, retrograda contra-revolucionaria. A revolugao nao deve ser feita unicamente para 0 povo, cla deve fa- zet-se pelo povo ¢ nao podera jamais ser vitoriosa se ndo captar 20 mesmo tempo todas as massas campesinas ¢ urbanas. Assim centralizada pela idéia e pela identidade de um programa comum a todos os paises; centralizada por uma organizacdo secteta que unira nao apenas todas as partes de um pais, mas muitos, sende todos os paises, em um Gnico plano de ago; centralizada ainda pela simultanei- dade dos movimentos revoluciondrios no meio rural € urbano, a revolu- Gao devera adquirir 0 carater local no sentido de que nao devera comegar por uma grande concentragao de todas as forcas revolucionarias de um pais em um Gnico ponto, nem adquirir jamais o carater romanesco ¢ burgués de uma expedicéo quase revolucionaria, mas surgindo ao mes- mo tempo em todos os pontos de um pais, tera o carater de uma verda- deira revolugao popular na qual tomarao igualmente parte mulheres, velhos, criancas ¢ que, por isso mesmo, sera invencivel Esta revolucao podera ser sangrenta e vingativa nos primeiros dias, durante os quais se fara justica popular. Esta caracteristica, contudo, nao permaneceré por muito tempo e nunca se tornara um tertorismo siste- matico ¢ frio. Ela se opora as posigdes € as coisas, bem mais que aos ho- mens, certa de que as coisas € as posigGes privilegiadas € anti-sociais, muito mais fortes do que os individuos, constituem o carater e a forca de seus inimigos. Comegara, pois, por destruir, em toda parte, todas as instituigdes € todos os estabelecimentos, igrejas, parlamentos, tribunais, administra- gdes, exércitos, basicos, universidades, etc., que constituem a propria e- xisténcia do Estado. O Estado deve ser radicalmente demolido e declara- do em bancarrota, nao apenas do ponto de vista financeiro, como tam- bém dos pontos de vista politico, burocratico, militar, judiciario e poli- cial. Tendo entrado em bancarrota, tendo mesmo cessado de existir, in- capaz de pagar suas dividas, 0 Estado nao poderd mais forgar ninguém a Pagar as suas, ficando esta preocupacao a cargo da consciéncia de cada um, Ao mesmo tempo, nas comunas € nas cidades, confiscar-se-4, em proveito da revolugao, tudo que pertencera ao Estado; serao também 46 confiscados os bens de todos os reacionarios ¢ queimados todos os certifi- cados seja de processos, de propriedades, de dividas, considerando-se nula toda papelada civil, criminal, judicidria ou oficial que nao tenha sido possivel destruir, ficando cada um no status guo da posse. Assim sera feita a revolugao social ¢ os inimigos da revolugdo, uma vez privados dos meios de prejudic4-la, ndo precisario mais ser alvo de medidas san- grenitas € severas que poderiam cedo ou tarde provocar violentas reagbes. Localizando-se em toda parte, a revolugdo adquirira necessaria- mente um carater federalista. Logo apis a derrubada do governo estabe- lecido, as comunas deverdo reorganizar-se revolucionariamente, escolher chefes, estabelecer uma administragao ¢ tribunais revoluciondrios, edifi- cados sobte o suftagio universal ¢ a responsabilidade real de todos os funcionarios diante do povo. Para defender a revolucao, seus voluntarios formarao uma milicia municipal. Entretanto, permanecendo isoladas, as comunas nao poderao defender-se. Sera, pois, necessario propagar a revolucao fora delas, sublevar todas as comunas vizinhas ¢, 4 medida que se sublevem, organiz4-las em federacdes para a defesa comum. For- marao necessariamente entre si um pacto federal baseado, ao mesmo tempo, na solidariedade de todas ¢ na autonomia de cada uma. Este acto constituira a carta provincial. Para o governo nos negécios comuns sera ecessério um governo* € uma assembléia ou parlamento provin- ciais. As mesmas necessidades revolucionarias levam as provincias aut6- nomas a se federalizarem em tegides, as regioes em federacdes nacionais, as nagdes em fedetagdes internacionais. Assim, a ordem ¢ a unidade, destruidas enquanto produtos da violéncia ¢ do despotismo, renascerio do proprio seio da liberdade. Necessidade de conspiragéo e de uma forte organizacao secreta, convergindo pata um centro intetnacional,, para preparar esta tevolugao, CATECISMO REVOLUCIONARIO Principios gerais’* Negagao da existéncia de um Deus real, extra-mundial, pessoal e, Portanto, de qualquer revelagao e de qualquer intervencao divina nos negécios do mundo ¢ da humanidade. Aboligdo do setvigo e do culto da divindade. * Max Nettlau. copiando & mio este texto no seu Bakunin, autografado, achou que deveria acompanhar as palavras chefs e gouvernement de um (sic). (Nota de Danie! Guérin) # Os titulos sao nossos. (Nota de Daniel de Guérin) 47 Substituindo o culto de Deus pelo respeito e o amor da humanida- de, declaramos a razio humana como critério inico da verdade; a cons. ciéncia humana como base da justiga: a liberdade individual e coletiva como criadora tinica da ordem da humanidade. A liberdade € 0 direito absoluto de todo homem ou mulher maiotes de s6 procurar na propria consciéncia e na propria razdo as san- Ses para seus atos, de determind-los apenas por sua propria vontade € de, em conseqiiéncia, setem responsaveis primeiramente perante si mes- mos, depois, perante a sociedade da qual fazem parte, com a condigao de que consintam livremente dela fazerem parte. Nio é verdadeiro que a liberdade de um homem seja limitada pela de todos os outros. O homem s6 é realmente livre na medida em que sua liberdade, livremente reconhecida e representada como por um ¢s- pelho pela consciéncia livre de todos os outros, encontre a confirmagao de sua extensio até o infinito na sua liberdade. O homem s6 € verda- deiramente livre enue outros homens igualmentelivres,e como ele s6 € livre na condigao de ser humano, a esctavidao de um s6 homem sobre a tetra, sendo uma ofensa contra o proprio principio da humanidade, é u- ma negagao da liberdade de todos. A liberdade de cada um s6 se realiza, pois, com a igualdade de to- dos. A realizacdo da liberdade na igualdade de direito e de fato € a justi- va. Existe apenas um dogma, uma Gnica lei, uma Gnica base moral para os homens, € a liberdade. Respeitar a liberdade do préximo é um dever; amé-lo, ajuda-lo, servi-lo € uma virtude. Excluséo absoluta de qualquer principio de autoridade e de razio de Estado — a sociedade humana, tendo sido prtimitivamente um fa- to natural, anterior a liberdade ¢ ao despertar do pensamento humano, uansformada mais tarde em fato religioso, organizada de acordo com o principio da autoridade divina e humana, deve reconstituit-se, hoje, com base na liberdade, que deve ser de ora em diante 0 Gnico principio constitutivo de sua organizagao politica e econdmica. A ordem na socie- dade deve ser resultante do maior desenvolvimento possivel de todas as liberdades locais, coletivas ¢ individuais. A otganizacao politica e econdmica da vida social deve partir, con- seqiientemente, no mais como atualmente de cima pata baixo ¢ do centro para a circunferéncia, por principio de unidade e de centralizacao forcadas, mas de baixo para cima e da circunferéncia para 0 cénuro, por Pfincipio de associacao ¢ de federacao livres. 48 Organizagao politica E impossivel determinar uma norma concreta, universal e obrigat6- ria para o desenvolvimento interior € para a organizacio politica das nagdes; ficando a existéncia de cada uma subordinada a uma série de condigdes historicas, geogréficas ¢ econdmicas diferentes ¢ que nunca permitirao estabelecer um modelo de organizagio, igualmente bom ¢ aceitavel para todas. Tal empreendimento, completamente desprovido de utilidade pratica, traria expectativas em relagio a riqueza ¢ 4 espontaneidade da vida que se caracteriza pela diversidade infinita e, 0 que € mais importante, seria contratio ao préprio principio da liberda- de. Entretanto, ha condigées essenciais, absolutas, fora das quais a reali- zag3o pratica € a organizacao da liberdade serao sempre impossiveis. Essas condigdes so as seguintes: A abolicao radical de qualquer religiao oficial e de qualquer igreja privilegiada ou apenas protegida, paga e mantida pelo Estado. Liberdade absoluta de consciéncia e de propaganda para cada um, coma faculdade ilimitada de construir tantos templos quantos quisetem, aos seus deuses quaisquer que sejam, desde que paguem e mantenham os padres de sua teligiio As igrejas, consideradas como corporages teligiosas, no gozario de nenhum dos direitos politicos que serao atribuidos as associagées pro- dutivas, nao poderao nem herdar, nem possuir bens em comum exceto suas casas ou estabelecimentos religiosos, nao podendo nunca ocupar-se da educagao de seus filhos, j4 que 0 Gnico objetivo de sua existéncia é a negacdo sistematica da moral, da liberdade e a feitigaria hucrativa. Abolicao da monarquia, reptblica. Aboligao das classes, das categorias, dos privilégios e de todas as es- pécies de distingdes. Igualdade absoluta de direitos politicos para todos, homens ¢ mulheres; sufragio universal. AboligZo, dissolugéo € bancarrota moral, politica, judiciaria, burocratica e financeira do Estado tutelar, transcendente’ centralista, substituto e a/ter ego da Igreja, e, como tal, causa permanente de empobrecimento, de embrutecimento ¢ de submissdo dos povos. Como conseqiiéncia natural: abolicgéo de todas as universidades do Estado, devendo 0 cuidado da instrucao publica pertencer exclusivamente as co- munias € as associagdes livres; abolicao da magistratura do Estado, de- vendo todos 0s juizes ser eleitos pelo povo; abolicao dos cédigos crimi- nais € civis atualmente em vigor na Europa porque todos, igualmente 49 inspirados pelo culto de Deus, do Estado, da familia religiosa ou politi- camente consagrada ¢ da propriedade, séo coniratios ao direito humano € porque o cédigo da liberdade s6 poderia ser ctiado para a li berdade. Abolicao dos bancos ¢ de todas as outras instituigdes de crédite do Estado. Aboligao de toda administracao central, de toda burocracia, dos exétcitos permanentes ¢ da policia do Estado. Eleiggo imediata ¢ direta de todos os funcionatios pablicos, judiciarios € civis, assim como dos representantes ou conselheitos nacio- nais, provinciais e municipais, pelo povo, isto é, pelo sufrégio universal de todos os individuos, homens e mulheres maiores. Reorganizacao interna de cada pais tomando-se como ponto de partida e como embasamento a liberdade absoluta dos individuos, das associacdes produtivas dos municipios. Direitos individuats Direito de cada um, desde 0 nascimento até a maioridade, de ser inteiramente mantido, fiscalizado, protegido, educado, instruido em todas as escolas piblicas primérias, secundarias, superiores, industriais, artisticas e cientificas as custas da sociedade. Direito igual para todos de ser aconselhado € sustentado por esta Ultima, na medida do possivel, no comeco da carreira que cada individuo maior escolhera livremente, aps 0 que a sociedade tendo-o declarado completamente livre nao exercer4 mais sobre ele nenhuma vi- gilancia nem autoridade de nenhuma espécie ¢, declinando em relacao a ele de qualquer responsabilidade, lhe devera apenas respeito e, even- tualmente, a protecao de sua liberdade. A liberdade de cada individuo maior, homem ou mulher, deve ser absoluta e completa, liberdade de ir vir, de professar elevadamente to- das as opinides possiveis, de ser preguigoso ou ativo, imoral ou moral, em suma, de dispor de sua propria pessoa ¢ de seus bens como melhor Ihe aprouver, sem dar satisfagdo a ninguém; liberdade de viver, seja ho- nestamente pelo seu trabalho, seja explorando vergonhosamente a cari- dade ou a confianga privada, desde que esta caridade ¢ esta confianga se- jam voluntarias ¢ s6 lhe sejam proporcionadas por individuos maiores. Liberdade ilimitada de toda espécie de propaganda através do dis- curso, da imprensa, em reunides publicas € privadas, tendo esta liberda- de por limite apenas a forca natural e salutar da opiniao pablica. Liber- 50 dade absokuta de associagSes, sem isentar aquelas que por sua finalidade parecerem imorais € mesmo aquelas que tiverem por objetivo a corrup- cdo ea destruigao* da liberdade individual ¢ publica. A liberdade s6 pode ¢ sé deve defender-se pela liberdade, sendo ‘um perigoso contra-senso querer atac4-la sob o pretexto de protege-la; € como a moral ndo possui outra fonte, outro estimulo, outra causa, outro objetivo além da liberdade ¢ como ela propria nao € nada mais do que a liberdade, todas as restrig6es que se Ihe impuseram com a finalidade de proteger a moral, sempre agiram em seu detrimento. A psicologia, a es- tatistica ¢ toda a histéria nos provam que a imoralidade individual ¢ so- cial sempre foi a conseqiiéncia necessaria de uma ma educacio pablica ¢ privada, da auséncia e da degradacao da opiniao piblica que s6 existe, se desenvolve ¢ se moraliza pela liberdade; ¢ sobretudo a conseqiiéncia de uma organizacao viciosa da sociedade. A experiéncia nos ensina, diz 0 ilustre estatistico Quetelet” *, que € sempre a sociedade que prepara os crimes € que os malfeitores sdo aperias os instrumenos fatais que os co- metem. E, pois, intitil opor a imoralidade social os rigores de uma legis- lagao que invadiria a liberdade individual A experiencia nos ensina, a0 contririo, que o sistema repressivo € autoritario, longe de ter sustado os abusos, sempre os propiciou de mo- do mais amplo e profundo nos paises atingidos ¢ que a moral piiblica e privada sempre desceu ¢ subiu 4 medida que a liberdade dos individuos diminufa ou aumentava. E que, por via de conseqiiénicia, para moralizar a sociedade atual, devemos comecar, antes de tudo, por destruir inteira- mente toda esta otganiizacio politica ¢ social baseada na desigualdade, no privilégio, na autoridade divina ¢ no desprezo da humanidade, ¢ de- pois de té-la reconstruido sobre as bases da mais completa igualdade, da justiga, do trabalho e de uma educagao racional unicamente inspirada No respeito humano, devemos dar-lhe a opiniao pablica por guardia e, por alma, a liberdade mais absoluta. Entretanto a sociedade nao deve permanecer completamente de- sarmada contra os individuos parasitas, malfeitores ¢ nocivos. Devendo set 0 urabalho a base de todos os direitos politicos, a sociedade como u- ma provincia ou nagao, cada qual tia sua respectiva circunsctigao, pode- 4 privar (destes direitos) todos os individuos maiores que, nao sendo nem invalidos, nem doentes, nem velhos, viverem as custas da caridade Hegivel no manuscrito de Nattlau. (Nota de Daniel Guérin) “* Bakunin escrevera: ““O lustre estatistico francés Cretelet””. Ffciivamente trata- se do belga A. Quetelet (1798 - 1834), estatistico © soeidlogo. (Nota de Danie! Guétin) St publica ou privada, com a obrigacao de Ihes restituir estes direitos assim que comecarem a viver do seu proprio trabalho. Sendo a liberdade de cada individuo humano inaliendvel, a socie- dade nao sofrera se um individu qualquer alienar juridicamente sua li- berdade ou se a engajar, por contrato, a outro individuo de outra maneira que no seja a mais inteira iguaidade ¢ reciprocidade. Ela néo podera, contudo, impedir que um homem ou uma mulher, desprovidos de todo sentimento de dignidade pessoal, se coloquem por contrato em relagéo a um outro individuo, numa telagio de servidao vo- luntaria, mas os considerar4 como individuos que vivem da caridade pri- vada e portanto, destituidos do gozo dos direitos politicos, durante a duragao desta servidao. Todas as pessoas que tiverem perdido seus direitos politicos serao também privadas do direito de educar € consetvar seus filhos. Em caso de infidelidade a um compromisso livremente contratado ou em caso de ataque aberto ou provado contra a propriedade, contra a pessoa € sobre- tudo contra a liberdade de um cidadao, seja autéctone ou estrangeifo, a sociedade inflingira ao delingiiente autéctone ou estrangeito as penas determinadas por suas leis. Aboliggo absoluta de todas as penas degradantes ¢ cruéis, das punicdes corporais e da pena de morte, embora consagrada ¢ executada pela lei. Abolicao de todas as penas por tempo indeterminado ou muito longo € que nao deixem nenhuma esperanca, nenhuma possibilidade teal de reabilitagdo, devendo o crime ser considerado como uma doenga € a punigao antes como uma cura do que como uma vinganica da socie- dade. Todo individuo condenado pelas leis de uma sociedade qualquer, comuna, provincia ou nagao, conservara o direito de nao se submeter a pena que the tiver sido imposta, declarando que nao quer mais fazer parte desta sociedade, Mas neste caso a sociedade tera o direito de expul- sa-lo de seu seio ¢ de declara-lo fora de sua seguranga ¢ de sua protecao. Voltanido, assim, para a lei natural do olho por olho, dente por dente, ao menos no espaco ocupado por esta sociedade, o refratério podera ser assaltado, maltratado ¢ até assassinado sem que a sociedade se envolva. Todos poderao desfazer-se dele como de um animal selvagem, contudo jamais poderao submeté-lo nem utilizé-lo como escravo. Direitos de associagées As associagbes cooperativas operarias so um fato novo na historia; 52 assistimos hoje ao seu nascimento, e podemos apenas pressentir, mas ngo ainda determinar, o imenso desenvolvimento que, sem nenhuma davida, adquirirao ¢ as novas condigées politicas € sociais que surgirdo no futuro. E possivel ¢ até provavel que, ultrapassanido um dia os limites das comunas ¢ mesmo dos Estados atuais, déem uma nova constituigao a sociedade humana como um todo, dividida nao mais em nagGes, mas em grupos individuais e organizada de acordo com as necessidades 1130 da politica, mas da producio. Isto diz respeito ao futuro. Quanto a n6s, s6 podemos colocar hoje este principio absoluto: qualquer que seja seu objetivo, todas as associacdes, como todos os itt. dividuos, devem gozar de uma liberdade absoluta. Nem a sociedade, nem nenhuma parte da sociedade: comuna, provincia ou aco, tem o direito de impedir os individuos livres de se associarem livremente em um objetivo qualquer: religioso, politico, cientifico, industrial, artistico ou até corrupto ¢ de exploracdo de inocentes € de tolos, desde que nao sejam menores. Combater os charlatdes ¢ as associagdes petniciosas, € tarefa que diz respeito unicamente a opiniao pitblica. A sociedade, contudo, tem o dever ¢ 0 direito de recusar a garantia social, o reconhecimento jutidico e 08 direitos politicos e civicos a toda associaga0, como corpo coletivo, que, por seu objetivo, seus regulamentos, seus estatutos, for contraria aos pfincipios fundamentais de sua constituigéo € cujos membros no estejam em pé de igualdade ¢ de reciprocidade perfeitas, sem contudo Poder privar os préprios membros unicamente pelo fato de participarem de associagdes no regularizadas pela garanttia social A diferenga entre as associagdes regulates ¢ irregulares sera, pois, a seguitite: as associagbes juridicamente reconhecidas como entidades coleiivas terao, por esta razd0, o direito de perseguir peranite a justica so- cial todos os individuos, membros ou estranhos, assim como todas as ou- as associacOes regulares, que tiverem faltado com scu compromisso em telacdo a elas. As associagGes juridicamente nao reconhecidas nao terao este direito enquanto entidades coletivas; também 1ido poderao estar submetidas a nenhuma responsabilidade juridica, devendo todos 0s seus empreendimentos ser considerados tulos aos olhos de uma sociedade que no sancionou sua existéncia coletiva, o que, entretanto, 140 podera liberar nenhum de seus membros dos compromissos que tiverem assu- mido individualmente. Organizagao politica nacional A divisao de um pais em regides, provincias, disttitos ¢ comunas ou em departamentos € comunas como na Franca, dependera naruralmence dos habitos hist6ricos, das necessidades atuais ¢ da natureza peculiar de cada pais. $6 pode haver dois principios comuns ¢ obrigat6rios para cada pais que quiser organizar seriamente a liberdade, O primeiro: woda organizacao deve proceder de baixo para cima, da comuna para a unida- de central do pais, 0 Estado, por via da federagao. A segunda: deve ha- ver enue a comuna ¢ o Estado ao menos um intermediario aut6nomo: o departamento, a regido ou a provincia. Sem o que, a comuna, tomada na gcepgio restrita do termo, seria demasiado fragil para resistir & pres- sio uniforme ¢ despoticamente centralizadora do Estado, o que levaria cada pais ao regime despotico da Franca monarquica, como tivemos por duas vezes 0 exemplo na Franca, tendo tido o despético sempre sua ori- gem muito mais na organizacdo centralizadora do Estado do que nas disposigdes naturalmente sempre despéticas dos reis. A base de toda organizagio politica de um pais deve ser a comutia, absolutamente auténoma, representada sempre pela maioria dos votos de todos os habitantes, homens e mulheres em igualdade de condigées, maiores, Nenhum poder tem o diteito de imiscuit-se em sua vida, em seus atos € em sua administracao interna. Ela nomeia ¢ destitui por cleigdo todos os funcionarios: administradores ¢ juizes, ¢ administra sem controle os bens comunais ¢ suas financas, Cada comuna teré o direito incontestavel de criar independemente de qualquer sangao superior sua propria legislacio ¢ sua propria constituigao, Entretanto, para entrar na federagao provincial ¢ para fazer parte integrante de uma provincia, de- vera adequar sua carta (constituigio) particular aos principios funda- mentais da constituig&o provincial ¢ fazé-la sancionar pelo parlamemto desta provincia. Devera submeter-se também aos julgamentos do tribu- nal provincial ¢ as medidas que, depois de terem sido sancionadas pelo voto do parlamento provincial, Ihe forem ordenadas pelo governo da provincia. De ourra forma, ela sera excluida da solidariedade, da garan- tia. ¢ comunidade, permanecendo fora da lei provincial A provincia nao deve ser nada mais do que uma federacao livre de comunias autonomas. O parlamento provincial, compreendendo, seja u- ma nica camara composta de representantes de todas as comunas, seja duas camaras, das quais uma compreenderia os representantes das co- munas, a outra os representantes da populacéo provincial imteira, inde- S4 pendentemente das comunas, sem ingerir-se na administracéo interna das comunas, devera estabelecer os ptincipios fundamentais que consti- tuirao a carta provincial ¢ serio obrigat6rios (sic) para todas as comunas que quiserem participar do parlamento provincial. * Tomando os principios deste catecismo como base, 0 parlamento codificara a legislacio provincial em relag’o tanto aos deveres quanto aos direitos respectivos dos individuos, das associagSes ¢ das comunas, quanto as penas que deverao ser impostas a cada um em caso de infracéo as leis por ele estabelecidas, deixando contudo as legislacdes comunais o direito de divergir da legislagao provincial sobre pontos secundarios, ja- mais nos fundamentais, cedendo a unidade real, viva, ndo a uniformidade, confiando, para formar uma unidade ainda mais intima, na experiéncia, no tempo ¢ no desenvolvimento da vida em comum, nas préptias convicges € necessidades das comunias, na liberdade, em su- ma, jamais na pressio nem na violéncia do poder provincial, pois a pré- ptia verdade ¢ a justica, violentamente impostas, tornam-se iniqiiidade e mentira. O parlamento provincial estabeleceré a carta constitutiva da federagao das comunas, seus direitos seus respectivos deveres, bem co- mo seus direitos e deveres em relagio ao parlamento, ao tribunal ¢ ao governo provinciais. Votara todas as leis, disposigées ¢ medidas que serao ditadas, seja pelas necessidades da provincia inteira, seja pelas tesolugdes do parlamento nacional, sem jamais perder de vista a autono- mia das comunas. Sem jamais ingetit-se na administrago interna das comunas, estabelecera a parte de cada um, seja nos impostos nacionais, seja nos impostos provinciais. Esta parte ser repartida na propria comu- na por todos os habitantes validos e maiores. Controlara, enfim, todos 08 atos, sancionara ou rejeitard todas as proposigdes do governo provin- cial, que sera naturalmente sempre eletivo. O uibunal provincial, igualmente cletivo, julgara sem apelagéo todas as causas entre indivi- duos € comunas, entre associagdes € comunas, entre comunas € comu- nas, e, em primeira instancia, todas causas entre a comuna € 0 governo 0u 0 parlamento da provincia. A nagao deve set apenas uma federagao de provincias autonomas O parlamento nacional, compreendendo, seja uma Gnica camara com- Posta dos representantes de todas as provincias, seja duas camaras uma das quais compreenderia os representantes das provincias, a outra os aS Ee eee se Aqui. no manuscrito de Nettlau. varias palavras ilegiveis. (Nota de Daniel Guétin) 55 representantes da populagdo nacional inteira independentemente das provincias, © parlamento nacional, sem ingetir-se de nenhum modo na ad- ministracdo e na vida politica interna das provincias, deverd estabelecer os principios fundamentais que constardo na constituigao nacional ¢ que sera0 obnigat6rios para todas as provincias que quiserem participar do pacto na- cional O parlamento nacional estabelecerd 0 c6digo nacional, deixando aos cédigos provinciais 0 diteito de divergir nos pontos secundarios, ja- mais na base. Estabelecera a carta constitutiva da federagdo das provincias, votard todas as leis, disposigdes ¢ medidas determinadas pelas necessidades da 1acdo inteira, estabelecera os impostos nacionais € os repartira entre as provincias, deixando a estas 0 cuidado de reparti-los entre as respectivas comunas, controlar enfim todos os atos, adotard ou rejeitara as proposicdes do governo executivo nacional que sera sempre eletivo © por prazo determinado, formara as aliangas nacionais, fara a paz ¢ a guerra, ¢s6_ cle tera o direito de ordenar por um tempo sempre determinado a formagdo de um exército nacional. © governo sera ape- nas 0 executor de suas vontades. tribunal nacional julgara sem apelac&o as causas dos individuos, das associagdes, das comunas entre si ¢ da provincia, assim como todos os debates entre as provincias. Nas causas entre a provincia ¢ 0 Estado, que setao iguaimente submetidas a seu julgamento, as provincias poderao apelar ao tribunal internacional, quando este for estabelecido A Federagao Internacional A Federagio Interiiacional compreendera todas as nagdes que se U- verem unido sobre as bases acima ¢ abaixo desenvolvidas. E provavel € desejavel que, quando a hora da grande revolugio soar novamente, (0- das as nagGes que seguirem a luz da emancipacdo popular dar-se-40 a mao pata uma alianca constante € intima conitta a coalizao dos paises que se colocardo sob as ordens da reagdo, Esta alianga deverd formar uma federacdo primeiramente restrita, getmem da federagao universal dos povwos que, no futuro, devera abraniger toda terra. A federagao interna- Gonal dos povos revolucionarios com um parlamento, um tribunal ¢ um comité diretor intetnacionais, sera naturalmente baseada nos proprios principios da revolugao, Aplicados a politica internacional esses princi- pios sao. Cada pais, cada nagio, cada povo, pequeno ou grande, fraco ou for- te, cada regido, cada provincia, cada comuna tem o direito absoluto de dispor de sua sorte, de determinar sua propria existéncia, de escolher suas aliancas, de unir-se ¢ de separar-se, de acordo com suas vontades € necessidades sem nenhuma vinculagdo com os assim chamados direitos hist6ricos ou as necessidades politicas, comerciais ou estratégicas dos Es- ados. A unido das partes em um todo, para ser verdadeira, fecunda e forte, deve ser absolutamente livre; deve resultar unicamente das neces- sidades locais internas e da atracéo mitua das partes, atraco ¢ necessi- dades das quais as partes serao os dinicos juizes. Aboligao absoluta do assim chamado direito hist6rico € do horrivel direito de conquista como contarios ao principio da liberdade. Negacao absoluta da politica de crescimento, de gloria e de fortale- cimento do Estado, politica que, fazendo de cada pais uma fortaleza que exclui de seu meio todo o resto da humanidade, forgando-o por assim dizer a considerar-se como a humanidade inteira, a bastar-se a si mesmo, a ofganizar em si mesmo um mundo independente de qual- quer solidariedade humana e a colocar sua prosperidade e sua gloria no mal que fara a outras nagées* . Um pais conquistador é necessariamente um pais internamente escravo. A gloria ¢ a grandeza de uma nago consistem unicamente no de- senvolvimento de sua humanidade. Sua forca, sua unidade, a poténcia de sua vitalidade interior se medem unicamente pelo grau de sua liber- dade. Tomando a liberdade por base, chega-se necessariamente 4 unio; mas da unidade dificilmente, ou jamais, se chega a liberdade. E se che- garmos, sera somente destruindo uma unidade que foi feita fora da li- berdade. A prosperidade ¢ a liberdade das nagées como dos individuos sio absolutamente solidarias, ¢ isso leva, conseqiientemente, a liberdade absoluta de comércio, de transagao e de comunicagio entre todos os paises federados, a abolicao das fronteiras, dos passaportes ¢ das alfandegas. Cada cidadao de um pais federado deve gozar de todos os direitos civicos, devendo poder adquirir facilmente o titulo de cidadao e todos os direi- tos politicos em todos os outros paises pertencentes 4 mesma federa- Gao. ___ Na liberdade de todos, individuos ¢ entidades coletivas sendo soli- darios, nenhuma ago, provincia, comuna ou associagio seria oprimida, sem que todas as outras o fossem € se sentissem ameacadas Sobre o manuscrito de Nettlau ‘‘de’* em lugar de '“a’”. (Nota de Daniel Guérin) 57 ua sua liberdade. Cada um por todos € todos por um, esta deve ser a re- gra sagrada e fundamental da federagao internacional Nenhum dos paises federados podera conservar exército perma- hente, tiem instituigdes que separem o soldado do cidadao. Causas de tuina, de corrupgao, de brutalidade ¢ de trania interuias, os exércitos permanentes € a profissdo de soldado sao uma ameaga contra a prosperi- dade e a independéncia de todos os outros paises. Cada cidadao valido deve, se necessatio, tornar-se soldado para a defesa dos lares ou da li- berdade, O armamento material deve ser organizado em cada pais por comuna € por provincia, mais ou menos como 110s Estados Unidos da América € 1a Suica O parlamento internacional composto seja de uma Gnica camara (de representantes de todas as nacdes) ou de duas cimmaras (compreendendo, uma, estes mesmos representantes, outta, os representantes diretos de toda a populaco compreendida pela federacao internacional, sem dis- tingio de nacionalidade) — o parlamento federal, assim composto, esta- belecera o pacto internacional ¢ a legislagao federal que ter unicamente a missdo de desenvolver ¢ de modificar segundo as necessidades da época. O tribunal internacional ter como Ginica missdo julgar em tiltima instancia os Estados € suas respectivas provincias. Quanto aos debates que poderao surgir entre dois Estados federados, s6 poderao ser julgados em primeira e em tltima instancia pelo parlamento internacional que decidira, ainda sem apelacao, sobre todas as quest6es de politica comum € de guerra, em nome da federacao revolucionatia global e contra a coalizao Teacionafia. Nenhum Estado federado podera jamais promover guerra contra um outro Estado federado. Tendo o parlamento internacional pronun- ciado seu julgamento, o Estado condenado deve submeter-se. Caso con- trario, todos os outros Estados da federagdo deverdo interromper suas comunicagées com ele, expulsa-lo da lei federal ¢, em caso de ataque, armar-se solidariamente contra ele. Todos os Estados participantes da federacao revolucionria deverao tomar parte ativa em qualquer guerra que um deles fizer a um Estado nao fedetado. Cada pais federado, antes de declara-la, deve prevenir 0 parlamento internacional ¢ s6 declara-la se este achar que ha razdes sufi- cientes para a guerra. Em caso afirmativo, o diretério executivo federado, assumira a causa do Estado ofendido e pedira ao Estado agressor estran- geiro, em nome de toda a federacao revolucionaria, pronta reparacao. Se ao contrario, o parlamento julgar que nao houve agressio, nem 58 ofensa real, aconselharaé ao Estado queixoso a no iniciar a guerra, advertindo-o que, se comegar, o fard sozinho E preciso esperar que, com 0 tempo, os Estados federados renuncian- do ao luxo ruinoso de representagdes particulares.tse contentarao tcom. uma representacao diplomitica federal. A federagio internacional revolucionaria restrita estaré. sempre aberta aos povos que dela quiserem participar mais tarde, sobre a base dos principios e da solidaridade militante ¢ ativa da revolugao acima e abaixo expostos, mas sem jainais fazer a menor concessdo de principios a nenhum. Logo, s6 poderio ser recebidos na federagio os povos que tiverem aceito todos os principios recapitulados no presente catecismo. Organizagao social Sem igualdade politica nao hé liberdade politica real, mas a igual- dade politica s6 se tornara possivel quando houver igualdade econémica ¢ social. A igualdade nao implica o nivelamento das diferengas individuais, nem a identidade intelectual, moral ¢ fisica dos individuos. Esta diversi- dade das capacidades e das forcas, estas diferenas de raca, de nagao, de sexo, de idade e de individuos longe de ser um mal social constituem, ao contratio, a riqueza da humanidade. A igualdade econémica e social nao implica também o nivelamento das fortunas individuais, enquanto produtos da capacidade, da energia produtiva ¢ da economia de cada um. A igualdade e a justica reclamam unicamente: uma tal organizagao da sociedade que todo individuo humano encontre ao nascer, embora isto dependa nao da natureza mas da sociedade, meios iguais para o de- senvolvimento de sua infancia e de sua adolescéncia até a idade de sua virilidade. Meios iguais primeito para sua educacio e sua instrugdo, e mais tarde para o exercicio das forcas diferentes com que a natureza tera agtacia- do a cada um para o trabalho. Esta igualdade de ponto de partida, que a justiga reclama para todos, serd impossivel enquanto existir o direito de sucessio. A justia, assim como a dignidade humana, exige que cada um seja unicamente 0 filho de suas obras. Repelimos com indignagao o dogma do pecado, da vergonha e da responsabilidade hereditarias. Pela mesma tazdo, devemos repudiar a hereditariedade ficticia da virtude, das honras € dos direitos, assim como a da fortuna. O herdeiro de uma fortuna 59 qualquer nao é mais o filho de suas obras ¢, em relacdo ao ponto de par- tida, € um privilegiado. Abolicao do direito de heranca. — Enquanto este direito existir, a diferenca hereditaria das classes, das posicdes, das fortunas, a desigual- dade social e o privilégio subsistirio, sendo de direito ao menos de fato, por uma lei inerente 4 sociedade que produz sempre a igualdade dos direitos: a desigualdade social se torna necessariamente desigualdade politica. E sem igualdade politica, como ja se afirmou, nao ha liberdade no sentido universal, humano, verdadeiramente democratico da palavra; a sociedade permanecerd sempre dividida em duas partes de- siguais, das quais uma imensa, compreendendo toda a massa popular, sera oprimida ¢ explorada pela outta. Logo, o dieito de sucessao € con- uario ao triunfo da liberdade ¢, se a sociedade quer se tornar livre, deve aboli-lo. Deve aboli-lo porque, repousando sobre uma fico, este dircito € contrario ao proprio principio da liberdade. Todos os direitos indivi- duais, politicos ¢ sociais vinculam-se ao individuo teal e vivo. Uma vez motto, nao hé mais nem vontade de um individuo que nao mais existe € que, em nome da morte, oprime os vivos. Se o individuo morto insiste na execucao de sua vontade, que venha executé-la ele proprio se puder, mas ele nao tem o direito de exigit que a sociedade coloque sua forca € seu direito a servigo de sua nao-existéncia O objetivo legitimo ¢ sério do direito de sucessdo foi sempre asse- gurar ds geragSes futuras os meios de desenvolverem-se ¢ de tornarem-se ho- mens. Portanto, apenas 0 fundo de educacao e de instrucao puiblica tera © diteito de herdar com obrigagao de prover igualmente a manutengio, a educacdo € a instrugdo de todas as ctiangas desde 0 nascimento até a maioridade ¢ sua completa emancipacao, Desta maneira todos os pais ficardo igualmente uranqiilizados sobre a sorte de seus filhos, ¢ como a igualdade de todos é uma condicao fundamental da moralidade de cada um, e todo privilégio € uma fonte de imoralidade, todos os pais cujo amor pelos filhos for razoavel € aspirem nao a vaidade mas a sua dignidade humana, mesmo que tivessem a oportunidade de deixar-lhes uma heranga que os colocaria em uma posicao privilegiada, prefeririam para e- les o regime da mais completa igualdade. A desigualdade resultante do direito de sucesst0 uma vez abolida, permanecera sempre, embora consideravelmente diminuida, principal- mente a desigualdade resultante da diferenga das capacidades, das forcas € da energia produtiva dos individuos, diferenga que. por sua vez, sem 60 nunca desaparecer inteiramente, diminuita sempre mais por influencia de uma educagdo € de um sistema de organizagao social igualitatio e que alias, uma vez abolido o direito de sucesso, jamais pesara sobre as pera- oes futuras Sendo o trabalho o Gnico produtor de riqueza, cada um € sem dii- vida livre, quer para morrer de fome, quer para ir viver em desertos ou em florestas entre animais selvagens, mas quem quiser viver em socieda- de deve ganhar sua vida com seu proprio trabalho, sob pena de ser con- siderado um parasita, um explorador do bem, isto é, do trabalho de outrem, como um ladrio O wabalho é a base fundamental da dignidade e do direito huma- no. Pois € unicamente pelo trabalho livre ¢ intcligente que 0 homem tia 0 mundo civilizado, tornando-se por sua vez ctiador € conquistan- do sua humanidade € seu direito sobre o mundo exterior e sobre sua propria animalidade. A desonra que no mundo antigo, assim como na sociedade feudal, prendeu-se a idéia do trabalho, e que permancce em grande parte ainda hoje, apesar de todas as frases que ouvimos tepetir a toda hora sobre sua dignidade, este desprezo esttipido pelo trabalho tem duas fontes: a primeira esta conviccdo tao caracteristica dos antigos ¢ que ainda hoje encontra partidarios secretos: pata conceder a uma deter- minada parte da sociedade os meios de humanizar-se pela ciéncia, pelas artes, pelo conhecimento ¢ pelo exercicio do diteito, € preciso que uma outra parte, naturalmente mais numerosa, se dedique ao trabalho como esctava. Este principio fundamental da civilizagao antiga foi a causa de sua tuina. A cidade corrompida e desorganizada pela ociosidade dos ci- dadaos, minada por outro lado pela ago imperceptivel ¢ lenta mas constante deste mundo deserdado dos escravos, moralizados apesar da escravidao € mantidos em sua forca primitiva pela acao salutar do traba- Iho mesmo forgado, caiu sob os golpes dos povos barbaros, aos quais, por nascimento, haviam pertencido em grande parte estes escravos O cristianismo, esta religido dos escravos, s6 destruiu mais tarde a ‘antiga irtegularidade para criar uma outta: o privilégio da graga e da e- leicao divinas baseado nna desigualdade, produzida naturalmente pelo di- feito de conquista, sepatou novamente a sociedade humana em dois campos: a canatha € a nobreza, os servos ¢ os senhores, atribuindo aos alumos a nobre profissdo das armas ¢ do governo, deixando aos servos a- penas o trabalho, nao apenas aviltado, mas maldito. A mesma causa produz necessariamente os mesmos efeitos; 0 mundo nobilidrio, cnervado ¢ desmoralizado pelo privilégio da ociosidade, caiu em 1789 sob os golpes dos servos, trabalhadores revoitados unidos ¢ poderosos 61 Foi, entao, proclamada a liberdade do trabalho, sua reabilitacdo de direito. Mas somente de dircito, pois de fato o trabalho permanece ain- da desonrado, escravizado, A primeira fonte desta escravatura, princi- palmente a que consistia no dogma da desigualdade politica dos ho- mens, tendo sido suprimida pela grande Revolugdo. torna necessario a- tribuir © atual desprezo pelo trabalho a segunda, que € o-somente a separacdo feita ¢ que vigora ainda hoje. entre o trabalho intelectual © 0 trabalho manual e que, reproduzindo sob uma nova forma a antiga de- sigualdade. divide novamente 0 mundo social em dois campos: a mino- tia privilegiada, de ora em diante, nao mais pela lei, mas pelo capital, ¢ a maioria dos trabalhadores forcados, no mais pelo dircito iniquo do privilégio legal, mas pela fome. Efetivamente, hoje, a dignidade do trabalho € teoricamente reco. nhecida € a opiniao piiblica admite que € vergonhoso viver sem traba- tho. O trabalho humano, considerado na sua totalidade, divide-se em duas partes, uma das quais, intelectual ¢ exclusivamente nobre, com- preende as ciéncias, as artes, ¢, na industria, a aplicagdo das ciéncias ¢ das artes, a idéia, a concepgao, a invengdo, o caleulo, o governo © a direcao geral ou subordinada das forcas operdrias, ¢ a outra apenas a exe- cucdo manual reduzida a uma agdo puramente mecanica, sem inteligén- cia, sem idéia, por esta lei econdmica ¢ social da divisao do trabalho, Os privilegiados do capital, sem excetuar os menos autorizados pela medida de suas vapacidades individuais, apoderam-se da primeira ¢ deixam a se- gunda ao povo. Dai resultam trés grandes males: uim para estes privile- giados do capital; outro para “as massas populares; ¢ 0 terceiro, procedente de um ¢ de outro, para a producéo das riquezas, para o bem-estar, para a justiga ¢ para o desenvolvimento intelectual ¢ moral de toda a sociedade. © mal de que softem as classes privilegiadas € 0 seguinte: ficando com a melhor parte na reparticdo das fungdes sociais, desempenham um papel cada vez mais mesquinho, no mundo intelectual ¢ moral. E perfeitamente verdadeiro que um certo grau de lazer € absolutamente necessério para o desenvolvimento do espitito, das ciéncias ¢ das artes: mas deve ser um lazer conquistado, sucedendo as sadias fadigas de um trabalho diario, um lazer justo € cuja possibilidade, dependendo unica- mente de maior ou de menor energia, de capacidade ¢ de boa vontade no individuo, setia socialmente igual para todo mundo, Ao contrario, todo lazer privilegiado, longe de fonificar 0 espitiwo, o debilita, 0 des- moraliza ¢ 0 mata. A historia nos prova: com raras exceydes, as classes 62 privilegiadas pela fortuna ¢ pela origem, sempre foram as menos produtivas em relacdo ao espirito, ¢ as maiores descobertas nas ciéncias, nas artes ¢ na indiistria, foram feitas, na maior parte das vezes, por ho- mens que, na sua juventude, foram forcados a ganhar a vida com 0 tra- balho rude. A natureza humana é feita de tal forma que a possibilidade do mal produz infalivelmente ¢ sempre a realidade, dependendo a moralidade do individuo muito mais das condigées de sua existéncia e do meio no qual vive do que da sua propria vontade. Sob esse aspecto bem como sob todos os outros, a lei da solidariedade social é inexoravel, de forma que para moralizar os individuos ndo € necessatio cuidar de sua cons- ciéncia tanto quanto da natureza da sua existéncia social; € ndo existe outro moralizador nem para a sociedade nem para o individuo do que a liber- dade na mais perfeita igualdade. Tome 0 mais sincero democrata ¢ co- loque-o em um trono qualquer; se nao descer logo, se tornard infalivel- mente um canalha. Um homem nascido na aristocracia, se, por um feliz acaso, no desptezar e nfo detestar seu sangue, ¢ se ndo tiver vergonha da aristocracia, sera necessariamente um homem to mau (sic) quanto fatil, saudoso do passado, indtil no presente ¢ ardente adversério do fu- turo. Da mesma forma o burgués, filho querido do capital ¢ do lazer privilegiado, wansformara seu lazer em ociosidade, em corrupgio, em desregramento, ou ainda se serviré dele como de uma arma terrivel para submeter ainda mais as classes operdrias e terminara por levantar contra e- le uma revolucdo mais terrivel do que a de 1793. O mal de que softe 0 povo € ainda mais facil de determinar: ele tra- balha para outrem e seu trabalho, privado de liberdade, de lazer e de in- teligéncia, € por isso mesmo aviltado, o degrada, o esmaga e o mata. E forcado a uabalhar para outrem porque nasceu na miséria e privado de instrugao ¢ de toda ¢ qualquer educacao racional, moralmente escravo; gracas as influéncias religiosas, ele se vé jogado na vida desarmado, desa- creditado, sem iniciativa e sem vontade propria. Fotcado pela fome, des- de a mais tenra infancia, a ganhar sua triste vida, deve vender sua forca fisica, seu trabalho, nas mais duras condicdes sem ter nem o pensamento, nem a faculdade material de exigir outras. Reduzido ao desespero pela miséria, algumas vezes revolta-se, mas, faltando-Ihe esta unidade e esta forca dada pelo pensamento, mal conduzido, muitas vezes traido e ven- dido por seus chefes, ¢ ndo sabendo quase nunca em quem lancar as cul- pas dos males que suporta, batendo as vezes injustamente, ele tem, a0 63 menos até hoje, fracassado em suas revoltas ¢, fatigado por uma luta es- téril, volta sempre a antiga escravidao, Esta escravidao durara enquanto o capital, ficando fora da aca co- letiva das forgas operarias, explore 0 povo € enquanto a instrucio que numa sociedade bem organizada deveria ser igualmente repartida entre todos, desenvolvendo apenas o interesse de uma classe privilegiada, atri- bua a esta Gltima a parte expiritual do trabalho, deixando ao povo unica: mente a brutal aplicagao de suas forcas fisicas escravizadas ¢ sempre con- denadas a exercer idéias que nao sao as suas. Por este injusto € funesto desvio, o trabalho do povo, tornando-se um trabalho puramente mecdnico ¢ semelhante ao de uma besta de car- ga, € desonrado, desprezado e, como conseqiténcia natural, deserdado de qualquer direito. Resulta para a sociedade, sob o aspecto politico, in- telectual ¢ moral, um mal imenso. A minoria usufruindo do monopélio ¢ da ciéncia, pelo proprio efeito desse privilégio, € ferida ao mesmo tem- po em sua inteligéncia € na sua sensibilidade, até o ponto de tornar-se esttipida devido & instrugao, pois nada é tio maléfico € estéril do que a inteligéncia patenteada e privilegiada, Por outro lado o povo, completa- mente destituido de ciéncia, esmagado pelo trabalho cotidianio meca- nico, capaz antes de embrutecer do que desenvolver sua inteligéncia na- tural, privado da luz que poderia mostrar-Ihe o caminho da libertacdo, debate-se inutilmente em seu cubiculo, ¢ como cle tem sempre a seu fa- vor a forca dada pelo niimero, poe sempre em perigo a propria existén- cia da sociedade. E pois necessario que a iniqua divisdo estabelecida entre o trabalho intelectual € 0 trabalho manual seja estabelecida de mancira diferente, A propria produgao econdmica da sociedade softe consideravelment inteligéncia separada da ago corporal debilita-se, seca ¢ murcha, até que a forca corporal da humanidade separada da inteligencia embruteca €, neste estado de separacdo artificial, nenhuma produz a metade do que poderia, do que devera produzit quando, reunidas em uma nova sintese social, formem apenas uma Gnica ago produuva. Quando o ho- mem de ciéncia trabalhar ¢ 0 trabalhador pensar, o trabalho inteligente ¢ livre sera considerado como o mais belo titulo de gloria para a humani- dade, como a base de sua dignidade, de seu direito, como a manifesta- 30 de seu poder humano na tetra; € a humanidade sera constituida. O trabalho inteligente ¢ livre sera necessariamente um trabalho as- sociado. Cada um serd livre de associar-se ou nao pelo trabalho, mas nao ha davidas de que, com excecao dos trabalhos de imaginacdo € cuja na- 64 tureza exige a concentragao da inteligéncia individual em si mesma, em todos os empreendimentos industriais ¢ mesmo cientificos ow artisticos que, por sua natureza, admitem o trabalho associado, a associacio sera preferida por todo mundo, pela simples razdo de que a associagao multi- plica de maneira maravilhosa as forcas produtivas de cada um, € de que cada um tornando-se membro € cooperador de uma associagao produ- tiva, com muito menos tempo ¢ esforco, ganhara muito mais Quando as associages pridutivas ¢ livres deixando de ser escravas ¢ tornando-se, por sua vez, as senhoras € as proprietarias do capital que Ihe sera necessdrio, contarem em seu meio, a titulo de membros coope- radores, ao lado das forcas operarias emancipadas pela instrugao geral, com todas as inteligéncias especiais necessdrias para cada empreendi- mento, quando, combinando entre si, sempre livremente, de acordo com suas necessidades ¢ com sua natureza, ultrapassando cedo ou tarde todas as fronteiras nacionais, formarem uma imensa federaco econémi- ca, com um parlamento esclarecido por dados tao amplos quanto preci- 50s € detalhados de uma estatistica mundial, como nao pode existir ain- da hoje, ¢ que combinem a oferta ¢ a procura para governar, determinat ¢ repartir entre diferentes paises a produgao da inddstria mundial, de modo que nao haja mais, ou muito poucas, crises comerciais ou indus- tials, estagnagdo forcada, desastres, sacrificios nem capitais perdidos, entdo o tabalho humano, emancipacdo de cada um ¢ de todos, regene- rar. o mundo. A terra, com todas as suas tiquezas naturais, € propriedade de todo mundo, mas sera possuida apenas por aqueles que a cultivarem. A mulher, diferente do homem, trabalhadora livre como cle, € declarada sua igual em todos os direitos como em todas as fungSes ¢ de- veres politicos € sociais. Da familia e da escola Aboligao nao da familia natural, mas da familia legal, fundada so- bre o diteito civil e sobre a propriedade. O casamento religioso € civil € substituido pelo casamento livre. Dois individuos maiores ¢ de sexos di- ferentes tém o diteito de unir-se ¢ separat-se conforme sua vontade. seus interesses muatuos € as necessidades de seu coragdo, sem que a sociedade tenha o direito, seja de impedir sua unio, sefa de manté-los juntos con- tra a vontade. O direito de sucessio estando abolido, a educagao de to- das as criangas estando assegurada pela sociedade. todas as razées que fo- ram até hoje apontadas para a consagracdo politica ¢ civil do casamento 65 desaparecem e a unido de dois sexos deve readquirir sua inteira liberda- de que aqui, como em toda parte e sempre, é a condicao sine qua non da moralidade sincera. No casamento livre o homem ¢ a mulher devem igualmente gozar de uma liberdade absoluta. Nem a violéncia da paix4o, nem os direitos livremente concedidos no passado poderao servir de desculpa para nenhum atentado de um contra a liberdade do outro, ¢ semelhantes atentados serao considerados crimes. Do momento em que uma mulher engravida até 0 momento em que dé luz, ela tem o direito a uma subvengio por parte da sociedade, Paga nao 4 mae, mas a ctianga. Toda mae que quiser nutrir ¢ educar seus filhos receberd igualmente da sociedade todas as despesas de manu- tengao e de seu trabalho gasto com as ctiancas. Os pais terao o direito de manter junto a si as ctiangas ¢ ocupar-se com sua educacao, sob a tutela ¢ 0 controle supremo da sociedade que conservara sempre 0 direito € o dever de separar os ‘ilhos dos pais sempre que estes, seja pelo exemplo, pela mentalidade ou tratamento brutal e desumano, puderem desmoralizar ou até entravat o desenvolvimento de seus filhos. As criangas nao pertencem nem a seus pais nem a sociedade, per- tencem 4 si proprias e a sua futura liberdade. Como ctiancas, até a idade de sua emancipacao, sao s6 potencialmente livres devendo estar, portan- to, sob o regime da autoridade. Os pais so seus tutores naturais, € ver- dade, mas o tutor legal e supremo € a sociedade, que tem 0 direito € 0 dever de ocupar-se delas, porque seu proprio fururo depende da direcao intelectual e moral dada as criancas. A sociedade s6 pode dar liberdade aos maiores com a condig&o de supervisionarem a educagio dos menores, A escola deve substituir a igreja com a imensa diferenca de que cs- ta, ministrando sua educacao religiosa, nao tem outra finalidade senao a de eternizar o regime da ingenuidade humana e di assim chamada au- toridade divina, enquanto a educacdo ¢ a insurugdo da escola, ndo pos- suindo, ao contrario, outra finalidade sendo a emancipacao real das ctiangas quando chegarem a maioridade, nao sera nada mais do que sua iniciacao gradual e progressiva na liberdade, pelo triplo desenvolvimen- to de suas forcas fisicas, de seu espirito ¢ de sua vontade. A razdo, a ver- dade, a justica, o respeito humano, a consciéncia da dignidade pessoal, solidaria ¢ inseparavel da dignidade humana no outro, 0 amor da liberdade por si mesma ¢ por todos os outtos, 0 culto do trabalho como base e condicao do direito; o desprezo pelo desatino, pela mentira, pela 66 injustica, pela covardia, pela escravidao e pela ociosidade, estas deverdo ser as bases fundamentais da educacao publica. Ela deve, primeiramente, formar homens, depois operarios espe- cializados ¢ cidadaos, ¢ 4 medida que avangar acompanhando a idade das criancas, a autoridade devera naturalmente ceder lugar 4 liberdade, a fim de que os adolescentes, chegando 4 maioridade, estando emancipados, pela lei, possam esquecer como na infancia foram gover- nados ¢ conduzidos por outros caminhos que nao os da liberdade. O res- peito humano, este germem da liberdade, deve estar presente mesmo nos atos mais severos ¢ mais absolutos da autoridade. Toda educagao moral esté contida nesses principios; inculquem este tespeito nas ctiangas e voces os terao tornado homens. Uma vez concluida a instrugdo primaria e secundaria, as criangas, de acordo com suas capacidades e simpatias, aconselhadas, esclarecidas, mas nao violentadas por seus superiores, escolherao uma escola superior ou especial qualquer. Ao mesmo tempo, cada um deverd aplicar-se a0 estudo teGrico € pratico do ramo da inddstria que mais lhe agradar € a importancia que ganhar com seu trabalho durante o aprendizado lhe se- 14 dada quando for maior. Atingida a maioridade, o adolescente sera proclamado livre ¢ senhor absoluto de seus atos. Em troca dos cuidados que a sociedade lhe prodigalizou durante a infancia, ela exigird dele tés coisas: que perma- nega livre, que viva de seu trabalho e que respeite a liberdade de seu se- melhante. E como os vicios ¢ os crimes de que softe a sociedade atual sio unicamente produto de uma ma organizacao social, poderemos estar certos de que com uma otpanizacao ¢ uma educagao da sociedade baseadas na ra- z40, na justica, na libetdade, no respeito humano e na mais completa igual- dade, o bem se tornara a regra e o mal uma excecdo doentia que diminuira cada vez mais sob a influéncia toda-poderosa da opinido pablica moralizada. Os velhos, os invalidos, os doentes, cercados de cuidados, de res- peito e gozando de todos os seus direitos, tanto pablicos quanto sociais, sero tratados ¢ mantidos com profusao as custas da sociedade. Politica revolucionéria E nossa convicgio fundamental que, todas as liberdades nacionais sendo solidarias, as revolucées particulares de todos os paises também deve sé-lo, que daqui em diante na Europa, como em todo mundo ci- Vilizado, nao haveré mais revolugdes, apenas a revolucao universal, as- sim como s6 ha uma reagao européia € mundial; que, portanto, todos os interesses particulares, todas as vaidades, pretensdes, citimes ¢ hostilida- des nacionais se fundam hoje em um Gnico interesse comum e universal da revolucio, que garantiréa liberdade ea independéncia de cada nacao pela solidariedade de todas; que a Santa Alianca da contra-revolucao mundial eda conspiracao dos eis, do clero, da nobreza e do feudalismo burgués, apoiados €m enormes orcamentos, em exércitos permanentes, em uma formidavel bu- rocracia, atmados de todos os terriveis meios que Ihe dé a centralizago mo- derna, como habito e por assim dizer com a rotina da acio eo direito de cons- pirar ¢ de fazer tudo em nome da lei sio um fato imenso, ameacando, esma- gandoe que, para combaté-lo, para opor-Ihe um fato de igual poténcia, para vencé-lo ¢ destrui-lo, € preciso nada menos que a alianca € a aco revolucio- nérias simultaneas de todos os povos do mundo civilizado. Contra essa reagio mundial, a revolugio isolada de nenhum povo poderia ter sucesso. Ela seria uma Jouciira, logo, um erro e uma traicao, um crime contra todas as outras nag6es. De hoje em diante, o levante de cada povo deve fazer-se no em sua propria intengo, mas na intencdo de todo mundo. Mas para que uma nacio se subleve na intengio de, ¢ em nome de todo mundo, é preciso que ela tenha o programa de todo mundo, suficientemente grande, profundo, verdadeito, humano em suma, pata abarcar os interesses de todo mundo e para eletrizar as pai- x6es de todas as massas populares da Europa, sem diferenga de naciona- lidade. O programa s6 pode ser o da revolucdo democritica e social. O objetivo da revolucéo democratica social pode ser definido em duas palavras: Politicamente: € a abolicao do direito histérico, do direito de con- quista e do dircito diplomatico. E a emancipacao completa dos indivi- duos ¢ das associagdes do jugo da autoridade divina e humana: é a des- truigdo absoluta de todas as unides e aglometagdes forcadas das comunas nas provincias, das provincias ¢ dos paises conquistados no Estado. Enfim € a dissolugdo radical do Estado centralista, tutelar, autoritario, com todas as ins- tituigdes militares, burocrdticas, governamentais, administrativas, judiciarias ecivis. E, em uma palavra, a liberdade desenvolvida a todo mundo, aos in- dividuos, como a todas as entidades coletivas, associag6es, comunas, provin- cias, tegides ¢ nagdes ¢ a garantia miitua desta liberdade pela federacao. Socialmente: € a confitmagao da igualdade politica pela igualdade econdmica. E, no comeco da carteira de cada um, a igualdade de ponto de partida, igualdade nao natural, mas social para cada um, isto €, igualdade de meios de manutencao, de educagdo, de instrugdo para ca- da crianga, rapaz ou moga, até a €poca de sua maioridade 68 Um Federalismo Internacionalista Como afirma James Guillaume, Bakunin tentara em vao fazer ado- tar, pelo congresso de Berna (setembro de 1868) da Liga da Paz e da Li- berdade, da qual era membro, liga de tendéncias burguesas, liberais € humanitarias, 0 seguinte texto, onde se encontra um certo niimero de idéias 7a desenvolvidas no programa da Federagao Revolucionaria que precede. Mais claramente ainda que o precedente, este texto € de inspi- ragdo proudhontana, tanto no que concerne a apologia do principio federativo quanto a critica do principio de nactonalidade, caro a Napo- ledo III (ao qual Bakunin subscrevia ainda quando voara em socoro da insurreicao polonesa de 1863) Estamos contentes de poder declarar que o principio federativo foi una- nimente aclamado pelo Congresso de Genebra. A propria Suica que, aliés, 0 pratica hoje com tanta felicidade, a ele aderiu. sem restrigées ¢ 0 aceitou em todas as suas conseqiiéncias. Infe- lizmente, nas resolucdes do congreso, este principio foi muito mal for- mulado ¢ nao se acha nem indiretamente mencionado, primeito por o- casiao da Liga que devemos estabelecer, ¢ mais abaixo, em relacao ao jornal que devemos redigir com 0 nome “Estados Unidos da Europa’’, ) enquanto deveria, na nossa opiniao, ocupar o primeiro lugar na nossa declaracao de principios E uma lacuna deplorivel que devemos nos apressar em preencher. Confotme o sentimento undnime do congresso de Genebra, devemos proclamar: 1. Que para fazer triunfar a liberdade, a justica ¢ a pax nas relagdes internacionais da Europa, para tornar impossivel a guerra civil entre os diferentes povos que compoem a familia curopéia, s6 existe um meio: € constituir os Estados Unidos da Europa 2. Que os Estados Unidos da Europa jamais poderao formar-se com os Estados tal como séo hoje constituidos, dada a desigualdade monstruosa que existe entre suas respectivas forcas 3. Que o exemplo da falecida Confederagio Germanica provou de mancita peremptoria que uma confederacdo de monarquias é uma toli- ce; que ela € impotente para garantir seja a paz, seja a liberdade das po- pulagdes. 4, Que nenhum Estado centralizado burocratico € por isso, militar, mesmo dizendo-se repGblica, podera enuar séria e sinceramente em uma confederacao internacional. Por sua constituicao, que sera sempre u- ma negacdo aberta ou mascarada da liberdade interna, seria necessaria- mente uma declarac4o de guerra permanente, uma ameaga contra a e- xisténcia dos paises vizinhos. Fundado essencialmente sobre um ato ul- terior de violéncia, a conquista, ou o que na vida privada chamamos roubo com arrombamento, ato abencoado pela Igreja de uma religiao qualquer, consagrado pelo tempo e por isso transformado em Direito hist6rico, e apoiando-se nesta divina consagracdo da violéncia triunfante como em um direito exclusivo € supremo, cada Estado centralista se co- loca como uma negacio absoluta do diteito de todos os outros Estados, 8 os reconhecendo, nos tatados que ultima com eles, por interesse politico ou por impoténcia. 5. Que os adeptos da Liga deverao, portanto, tentar com seus esfor- 608 reconstituir suas respectivas patrias, a fim de substituir a antiga orga- nizagao fundada, de alto para baixo, sobre a violéncia € 0 principio de autoridade por uma organizagao nova tendo por base apenas os interes- ses, as necessidades ¢ as attagSes naturais das populacdes ¢ por principio a federacao livre dos individuos nas comunas, das comunas nas provin- cias, das provincias das nagdes, enfim, destas nos Estados Unidos da Eu- ropa primeiramente ¢ mais tarde do mundo inteiro 6. Conseqiientemente, abandono absoluto de tudo que se chame 70 direito hist6rico dos Estados; todas as questdes relativas as fronteiras na- rurais, politicas, estratégicas, comerciais deverfo ser consideradas de ora em diante como pertencendo a hist6ria antiga ¢ repelidas energicamente por todos os adeptos da Liga. 7. Reconhecimento do direito absoluto de cada nagéo, grande ou pequena, de cada povo, fraco ou forte, de cada provincia, de cada co- muna a uma completa autonomia, desde que sua constituicao interna ndo seja uma ameaca e um perigo pata a autonomia e a liberdade dos paises vizinhos. 8. Do fato de um pais fazer parte de um Estado, mesmo que tenha sido anexado livremente, nao se depreende a obrigacao de permanecer sempre ligado a cle. Nenhuma obrigacdo perpétua seria aceita pela jus- tiga humana, a Gnica com autoridade entre nés, € nds jamais reconhece- temos outros direitos nem outros deveres que os que se fundamentam na liberdade. O direito da livre reuniao ¢ da secessao igualmente livre € o primeiro, o mais importante de todos os direitos politicos; aquele sem o qual a confederagao seria apenas uma cenwralizacao mascarada. 9. Do exposto resulta que a Liga deve francamente proscrever qualquer alianga de tal fragdo nacional da democracia européia com os Estados mondrquicos, mesmo que esta alianca tenha por objetivo recon- quistar a independéncia ou a liberdade de um pais oprimido; tal alian- a, 86 podendo tazer decepgdes, seria a0 mesmo tempo uma traicdo contra a revolugao. 10. Em compensagio a Liga, precisamente por ser a Liga da Paz ¢ por estar convencida de que a Paz s6 poder ser conquistada e construida sobre a mais intima ¢ completa solidariedade dos povos na justica ¢ na liberdade, deve proclamar suas simpatias por toda insurreico nacional contra qualquer opressdo seja estrangeira, seja autéctone, desde que esta insutteicgdo se faga em nome de nossos principios e no intetesse tanto po- litico quanto econdmico das massas populares, mas no com a intengdo ambiciosa de fundar um Estado poderoso. 11. A Liga desencadeara uma guerra sem limites a tudo 0 que se chama gloria, grandeza ¢ forca dos Estados. A todos esses falsos ¢ nocivos ‘doles aos quais foram itnoladas milhdes de vitimas humanas oporemos as gl6rias da inteligéncia humana que se manifesta na ciéncia e de uma Ptosperidade universal fundada sobre 0 trabalho, a justica ¢ a liberdade. 12. A Liga reconheceré a nacionalidade como um fato natural, ten- do incontestavelmente direito a uma existéncia ¢ a um desenvolvimento livre, ndo como um principio, pois todo principio deve ter o carater da 71 universidade € a nacionalidade, ao contrario, € um fato exclusivo, se- parado. O suposto principio da nacionalidade, como foi colocado em nossos dias pelos govenos da Franca, da Riissia e da Prussia e até por muitos patriotas alemfes, poloneses, italianos ¢ hingaros, € apenas um derivativo oposto pela reagdo ao espirito da revolugéo: eminentemente aristocratic no fundo, ao ponto de desprezar os dialetos das populagdes nao letradas, negando implicitamene a liberdade das provincias e a au- tonomia real das comunas, ¢ mantido em todos os paises nao pelas mas- sas populares, cujos interesses reais ele sacrifica sistematicamente a um suposto bem piblico, que nada mais € do que o das classes privilegiadas, este principio exprime apenas os pretensos direitos hist6ri- cos € a ambicao dos Estados. O direito de nacionalidade unicamente po- der ser considerado pela Liga como uma conseqiiéncia natural do prin- cipio supremo da liberdade, deixando de ser um direito no momento em que se coloca quer contra a liberdade, quer fora da liberdade. 13. A unidade é 0 objetivo em diregio da qual tende isresis- tivelmente a humanidade. Mas ela se tornara fatal, destruidora da inteligéncia, da dignidade, da prosperidade dos individuos ¢ dos povos, sempre que se formar fora da liberdade, seja sob a autoridade de uma idéia teolégica, metafisica, politica ou até econdmica qualquer. O pa- triotismo que tem por objetivo a unidade fora da liberdade € um mau Patriotismo, sempre funesto aos intetesses populares ¢ reais do pais que pretende exaltar € servir, amigo, sem o saber, da reagéo — inimigo da revolucao, isto €, da emancipacdo das nagdes e dos homens. A Liga s6 podera teconhecer uma Gnica unidade: a que se constituir livremente pela federacao das partes auténomas no todo, de forma que este, cessando de ser a negacdo dos direitos e dos interesses particulares, ces- sando de ser 0 cemitério onde forcosamente se enterram todas as prospe- tidades locais, se tornar4 ao contrario a confirmagio ¢ a fonte de todas estas autonomias ¢ de todas estas prosperidades. A Liga atacar4, pois, vi- gorosamente, toda organizacao religiosa, politica, econdmica e social que nao esteja envolta por este grande principio da liberdade: sem ele nao ha inteligéncia, nao ha justiga, nao ha prospetidade, nem huma- nidade. 72 A Igreja e o Estado Introduzimos aqui um texto filoséfico-politico, contra a Igreja ctimplice do Estado, para mostrar a diversidade das inspiragoes de Baku- nin. Data de 1871 € é, na verdade, uma continuagao do texto que re- produziremos a seguir intitulado: ‘‘A Comuna de Paris’. O titulo ‘A Igreja e 0 Estado"’, assim como o do outro texto, sho de nossa autoria, O livro de onde um e outro foram extraidos tem por titulo A Comuna de Paris ¢ a Nogo de Estado. ‘Esta divistio em dots da obra, que nOs nos per- mitimos fazer, tem uma justificativa: acontecta a Bakunin de langar-se, de cabeca baixa, em um assunto e, em um dado momento do trabalho, mudar bruscamente para abordar, com a mesma impetuosidade, wm as- sunto bastante afastado, ou mesmo completamente diferente do pbrimeiro. Foi o que the aconteceu quando redigiu esta obra, Dai a liber- dade que tomamos em dividi-la. Diz-se que 0 acordo ¢ a solidariedade universal dos interesses dos individuos ¢ da sociedade nunca poder realizar-se de fato, porque seus interesses, sendo contraditérios, nao estéo em condigdes de contrabalan- gar-se de si mesmos ou de chegar a uma interpretagdo qualquer. A tal objecdo eu responderia que se, até hoje, os interesses nunca ¢ em lugar 73 algum estiveram de matuo acordo, foi por causa do Estado, que sacrifi- cou os interesses da maioria em proveito de uma minoria privilegiada. Eis Porque esta famosa incompatibilidade € esta luta de interesses Pes- soais com os da sociedade nada mais € do que um logro e uma mentira politica, nascido da mentira teolégica, que criou a doutrina,do pecado original para desonrar o homem e destruir nele a consciéncia de seu pr6- prio valor. Esta mesma falsa idéia de antagonismo de interesses foi gerada também pelos sonhos da metafisica que, como se sabe, € parente proxi- ma da teologia. Desconhecendo a sociabilidade da natureza humana, a metafisica olhava a sociedade como um aglomerado mecnico ¢ pura- mente artificial de individuos, associados de repente, em nome de um tratado qualquer formal ou secreto, concluido livremente ou por in- fluéncia de uma forga superior. Antes de unirem-se em sociedade, estes individuos dotados de uma espécie de alma imortal gozavam de inteira liberdade. Mas se os metafisicos, principalmente aqueles que acreditam na imortalidade da alma, afirmam que os homens sao fora da sociedade se- tes livres, chegamos inevitavelmente entao 4 conclusao de que os ho- mens s6 podem unir-se em sociedade se renegarem sua liberdade, sua independéncia natural e sacrificarem seus interesses, ptimeiramente pes- soais, ¢ depois locais. Tal rentincia ¢ tal sacrificio de si mesmo deve ser, por isso mesmo, tanto mais imperioso quanto mais numerosa for a socie- dade e mais complexa sua organizac4o. Em tal caso, o Estado € a expres- so de todos os sacrificios individuais. Existindo sob esta forma abstrata, € ao mesmo tempo violenta, continua, como conseqiiéncia natural, a perturbar cada vez mais a liberdade individual em nome desta mentira que se chama ‘‘felicidade pablica’’, embora, evidentemente, represente apenas o interesse da classe dominante. O Estado, deste modo, nos aparece como uma inevitdvel negacdo e uma anulacdo de toda liberdade, de todo interesse, tanto individual quanto geral. Vé-se que nos sistemas metafisicos € teolégicos tudo se liga ¢ se ex- plica por si mesmo. Eis porque os defensores légicos destes sistemas podem e até devem, com a consciéncia tranqiiila, continuar a explorar as massas populares por meio da Igreja ¢ do Estado. Enchendo seus bolsos € saciando todos seus sujos desejos, podem ao mesmo tempo con- solar-se com 0 pensamento de que sofrem pela gléria de Deus, pela vi- t6ria da civilizacao e pela felicidade eterna do proletariado. Nés, contudo, nao acteditando nem em Deus nem na imortalida- 74 de da alma ¢ nem na propria liberdade da vontade, afirmamos que a li- berdade deve set compreendida, na sua acepgdo mais completa ¢ mais ampla, como a finalidade do progresso hist6rico da humanidade. Por um estranho, embora légico, contraste nossos adversarios idealistas da tcologia € da metafisica, tomam o principio da liberdade como funda- mento € base de suas teorias, para concluir candidamente que a escravi- dio dos homens € indispensivel. Nés outros, materialistas em teoria, tendemos na pratica a criar ¢ a tornar duravel um idealismo racional € nobre. Nossos inimigos, idealistas divinos ¢ uanscendentais, caem no materialismo pratico, sanguindrio e vil, em nome da propria légica se- gundo a qual cada desenvolvimento é a negacao do principio funda- mental, Estamos convencidos de que toda a riqueza do desenvolvimento intelectual, moral ¢ material do homem, assim como sua aparente inde- pendéncia, é 0 produto da vida em sociedade. Fora da sociedade, o homem nao s6 nao seria livre, como nem mes- mo se tornaria um verdadeiro homem, isto é, um ser que tem conscién- cia de si proprio, que sente, pensa ¢ fala. O concurso da inteligéncia ¢ do trabalho coletivo tem podido forcar o homem a sair de seu estado de selvagem e bruto que constitufa sua natureza primordial ou seu ponto inicial de desenvolvimento ulterior. Estamos profundamente conyenci- dos desta verdade que toda a vida dos homens, interesses, tendéncias, necessidades, ilusdes € até tolices, assim como as violéncias, as injustigas ¢ todas as ages, aparentemente voluntérias, representam apenas a conse- quiéncia das forcas fatais da vida em sociedade. As pessoas nao podem admitir a idéia da independéncia matua sem renegar a influéncia reci- ptoca da correlacao das manifestacdes da natureza exterior Na propria natureza esta maravilhosa correlagao ¢ filiagdo dos fend- menos nao é esperada, certamente, sem luta. Ao contratio, a harmonia das forgas da natureza s6 aparece como um verdadeiro resultado desta luta continua, que € a propria condigéo da vida ¢ do movimento, Na natureza assim como na sociedade, ordem sem luta € morte. Se no universo a ordem € natural e possivel € unicamente porque esse universo nao é governado por nenhum sistema imaginado antecipa- damente ¢ imposto por uma vontade suprema. A hipdtese teolégica de uma legislacio divina leva a um absurdo evident ¢ & negacao nao ape- nas de toda ordem, mas da propria natureza. As leis naturais sdo reais a- penas na medida em que sao inerentes 4 natureza, isto €. nao sao fixadas por nenhuma autoridade. Estas leis sao simples manifestagdes ou conti- nuas modalidades do desenvolvimento das coisas € das combinagdes des- 75 tes fatos muito variados, passagciros, mas reais. O conjunto constitui o que chamamos ‘‘natureza’’. A inteligéncia humana e a ciéncia observa- ram esses fatos, os controlaram experimentalmente, depois os reuniram m um sistema ¢ os chamaram leis. Mas a propria natureza nada conhe- ce de leis. Age inconscientemente, representando por si propria a varie- dade infinita dos fendmenos, aparecendo ¢ representando-se de manei- ta fatal. Eis porque, gracas a esta inevitabilidade da agio, a ordem universal pode existir ¢ de fato existe. Tal ordem aparece também na sociedade humana, que, em aparéncia, evolui de maneira supostamente antinatural, mas na realida- de submete-se 4 marcha natural ¢ inevitavel das coisas. Somente a supe- tioridade do homem sobre os outros animais ¢ a faculdade de pensar trouxeram em seu desenvolvimento um elemento particular, completa- mente natural, diga-se de passagem, no sentido que, como tudo o que existe, o homem representa 0 produto material da uniao e da acao das forcas. Este elemento particular é 0 raciocinio, ou esta faculdade de ge- neralizagao e de abstrac4o, gracas 4 qual o homem pode proteger-se pelo pensamento, examinando-se ¢ observando-se, como um objeto externo ¢ estranho. Elevando-se identicamente acima de si mesmo, assim como do meio-ambiente, chega 4 abstrago perfeita, ao nada absoluto. Este Ultimo limite da mais alta abstracdo do pensamento, este nada absoluto € Deus. i Este € o sentido ¢ o fundamento historico de toda doutrina teolégi- ca. Nao compreendendo a natureza ¢ as causas materiais de seus proprios pensamentos, nem mesmo dando-se conta das condig6es ou leis naturais que lhes sao especiais, esses primeiros homens em sociedade nao pude- ram certamente suspeitar que suas nogGes absolutas nada mais eram do que o resultado da faculdade de conceber as idéias, tiradas da natureza, como objetos reais diante dos quais a propria natureza deixaria de ser al- guma coisa. Puseram-se, entao, a adorar suas ficgdes, suas impossiveis nogGes de absoluto, ¢ a dedicar-Ihes todas as honras. Mas era preciso, de qualquer modo, imaginar ¢ tornar sensivel a idéia abstrata do nada ou de Deus. Com este objetivo, aumentaram a concepgao da divindade ¢ a dotaram, além disso, de todas as qualidades e forcas, boas ¢ mas, que reconheceriam apenas na natureza ¢ na sociedade. Esta foi a origem ¢ o desenvolvimento histérico de todas as religides, comecando pelo fetichismo ¢ terminando pelo ctistianismo, Nao temos a intengao de nos langar na hist6ria dos absurdos reli- giosos, teolégicos ¢ metafisicos ¢ menos ainda de falar do desdobramen- 76 to sucessivo de todas as encarnagées ¢ visdes divinas criadas por séculos de barbaric. E sabido por todos que a supersticéo dava sempre origem a certiveis desgracas ¢ forcava o derramamento de tios de sangue ¢ de li- gtimas. Diremos apenas que todos estes revoltantes delitios da pobre humanidade foram fatos hist6ricos inevitaveis no crescimento normal na evolugdo dos organismos sociais. Tais erros geraram na sociedade esta idéia fatal, dominando a imaginagdo dos homens, de que o universo era supostamente governado por uma fora ¢ por uma vontade sobrenatu- rais, Sucedetam-se os séculos ¢ as sociedades se habituaram a tal ponto a esta idéia, que finalmente mataram nelas qualquer tendéncia em dire- do a um longinquo progresso ¢ qualquer capacidade de desfruta-lo, Primeiro a ambic4o de alguns individuos, depois de algumas clas- ses sociais erigiram em principio vital a escraviddo e a conquista, e en- raizaram, mais do que qualquer outra, esta terrivel idéia da divindade. Desde entao, qualquer sociedade foi impossivel sem tet como base estas duas instituigdes: a Igreja ¢ o Estado. Estes dois flagelos sociais so de- fendidos por todos os doutrinarios Mal estas instituigdes aparecetam no mundo e, em seguida, duas castas se organizaram: a dos sacerdotes e a dos aristocratas que, sem perda de tempo, tiveram o cuidado de inculcar profundamente no povo submetido a indispensabilidade, a utilidade ¢ a santidade da Igreja e do Estado. Tudo isto tinha por finalidade mudar a escravidao brutal em escra- vidio legal, prevista, consagrada pela vontade do Set supremo. Mas os sacerdotes ¢ os aristocratas acreditavam sinceramente nestas instituigdes que mantinham com todas as suas forcas, em seu interesse particular? Nao eram eles simplesmente mentirosos € trapaceiros? Acre- dito que eram ao mesmo tempo crentes ¢ impostores. Eles acreditavam porque partilhavam natural ¢ inevitavelmente dos etros da massa € foi somente mais tarde, na época da decadéncia do mundo antigo, que se tornaram céticos ¢ enganadores desavergonhados. Uma outa razdo permite considerar os fundadores dos Estados como Pessoas sinceras. O homem facilmente acredita no que ele deseja € na- quilo que nao contradiz seus interesses. Se for inteligente e instruido é a mesma coisa: por seu amor préprio e por seu desejo de viver com seus se- melhantes ¢ de ser respeitado por eles, acreditara no que lhe for agrada- vel € util. Estou convencido de que, por exemplo, Thiers ¢ o governo de Versailles esforgaram-se muito para convencer-se que matando em Paris alguns milhares de homens, mulheres e criancas, salvariam a Franca. ~ Mas se os sacerdotes, os adivinhos, os aristocratas ¢ os burgueses, dos velhos € dos novos tempos, puderam acreditar sinceramente, cles fo ram de todo modo sicofantes. Nao se pode, com efeito, admitir que te- nham acreditado em cada um dos absurdos que constituem a fé ¢ a poli- tica. Nem falo da época em que, de acordo com Cicero, ‘‘dois adivinhos nao podiam olhar-se sem rit’’. Mesmo no tempo da ignorancia e da su- perstigio geral, € dificil supor que os inventores de milagres cotidianos estivessem convencidos da tealidade desses milagres. Pode-se dizer a mesma coisa da politica, que pode ser resumida pela seguinte regra: ‘‘E preciso subjugar ¢ espoliat 0 povo de tal modo que ele nao se queixe muito alto de seu destino, que ele nao esqueca de submeter-se ¢ que ndo tenha tempo de pensar na resisténcia € na revolta”’ Como, pois, depois disto, imaginar que as pessoas que transforma- ram a politica em profissao ¢ conhecendo seu objetivo, isto é, a injustica, avioléncia, a mentira, a trai¢o, o assassinato_em massa ou isolado, pos- sam acreditar sinceramente na afte politica ¢ na sabedoria do Estado getador da felicidade social? Eles nao podem ter chegado a este grau de tolice apesar de toda sua crueldade. A Igteja ¢ o Estado foram desde sempre grandes escolas de vicios. A Hist6ria esta ai pata atestar seus cri- mes; em toda parte € sempre, o padre ¢ o estadista foram os inimigos € 0s cafrascos conscientes, sistemAticos, implacdveis e sanguinarios dos po- vos. Mas como, assim mesmo, conciliar duas coisas em aparéncia to in- compativeis: enganadores ¢ enganados, mentizosos ¢ crentes? Logicamen- te, isto parece dificil; contudo, na vida prética, estas qualidades se asso- ciam seguidamente. Em sua grande maioria, as pessoas vivem em contradigao consigo mesmas, ¢ em continuos mal-entendidos; geralmente nao o notam, até que algum acontecimento extraordinario os retire de sua sonoléncia ha- bitual ¢ os force a dar uma olhada em si mesmos € em volta de si. Em politica como em teligido, os homens so apenas mAquinas nas mios dos exploradores. Mas ladrées € vitimas, opressores € oprimidos, vivem uns ao lado dos outros, como verdadeiros exploradores. Sao as mesmas pessoas livres de preconceitos, politicos € religiosos, que maltra- tam ¢ oprimem conscientemente. Nos séculos XVII ¢ XVIII, até a ex- plosao da grande Revolucao, como atualmente, eles mandam na Europa © agem quase 4 sua moda. E preciso acreditar que sua dominagao nao se prolongara por muito tempo. Enquanto os principais chefes enganam ¢ perdem os povos cons- 78 cientemente, servidores, ou as cfiaturas da Igreja ¢ do Estado, dedi- cam-se zelosamente em manter a santidade ¢ a integridade de suas o- diosas constituigdes. Se a Igreja, conforme afirmam os sacerdotes ¢ 0s ¢s- tadistas, € tao necessaria a salvacao da alma, o Estado, por sua vez, € ne- cessario para a conservagao da paz, da ordem e da justica, e os doutrina- tios de todas as escolas clamam: *‘Sem Igreja e sem governo nao hi civi- lizacdo nem progresso." Nao discutiremos o problema da salvacdo eterna, porque nao acre- ditamos na imortalidade da alma. Estamos convencidos de que a mais nociva das coisas para a humanidade, para a verdade e 0 progresso, € a Igreja. E pode ser diferente? Nao € a Igreja que cabe 0 cuidado de per- verter as geracées jovens ¢ principalmente as mulheres? Nao é ela que, por seus dogmas, suas mentiras, sua tolice ¢ sua ignonimia, mata o ra- ciocinio l6gico € a ciéncia? Ela nao atenta a dignidade do homem, per- vertendo nele a nogao dos direitos e da justiga? Nao transforma em cadiver 0 que € vivo, nao perde a liberdade, nao é ela que apregoa a es- cravidao eterna das massas em beneficio dos tiranos e exploradores? Nao € ela, esta implacavel Igreja, que tende a perpetuar o reino das urevas, da ignordincia, da miséria ¢ do crime? Se o progresso de ndsso século nao € um sonho mentifoso, ele deve acabar com a Igreja. 79

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