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f Elk fe Casa do Psicélogo® - © 2002 Casa do PricGlogo Livraria ¢ Editore Leda. E protbida a reprodugaa total ou parcial desta publicagao, para qualquer finalidade, sem autorizagio por escrito dos editores. 3" Edigéo 2002 Editor Anna Elia de Villemor Amaral Gizntert Produgio Grafica Renata Vieira Nines Capa Yeoty Macambira Sobre obra de I. Ingres, Edipo e a Esfinge Efitoragio Bletrinica Angelica Gomes Borba Revistio Sandra Regina Souza Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mezan, Renato, 1950 ~ ‘A Vinganga da Esfinge : Ensaios de Psicandiise /Renato Mezan. — 3a. ed. —~ Sao Paulo : Casa do Psicdlogo, 2002. Bibliografia, ISBN 85-7396-171-6 1, Peicandlise 2. Psicandlise ~ Interpretacio 3. Pscoterapia 1 Téeulo 02-1573, CDD-150.195, Indices para catalogo sistema L. Psicandllise : Interpretacio 150.195, 2. Psicandlise : Psicoterapia 150.195 Impresso no Brasil Printed in Brazil Revervados todos os diteitos de publicagio em lingua portuguesa & GG Casa do Psicélogo® Livraria e Editora Ltda. Bz Rua Mourato Coelho, 1.059 — Vila Madalena ~ 05417-011 ~ Sao Paulo/SP ~ Bras Bw Tels (11) 3034.3600 ~ E-mail: casadopsicologo@casidopsicologo.com.br F — bup://wwwcasaiopsicologo.com.br SUMARIO Prefiicio P Psicandlise ¢ psicoterapia 23 Rumo a epistemologia da psicandlise. 47 A querela das interpretagdes_ _ 67 Desejo ¢ inveja Nostra culpa, nostra maxima culpa s Uma primeira sessio na poltrona Memoria e identidade A vinganga da Esfinge Pode-se ensinar psicanaliticamente a psicandlise?_ Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicandlise Inveja, narcisismo e¢ ca: Klein, Lacan: para além dos mondélogos cruzados Identidade ¢ cultura Viena imagindria _ Reinvencdo da psicanilise _ 5 O bati de Freud : Seis autores em busca de um personagem Indice de obras ¢ autores _ 2 429 Sobreoautor BT om direitos PREFACIO E ste livro retine textos redigidos entre 1982 e 1986, que me pareceram conservar algum interesse, para além do evento ou da publicagao que lhes deu origem. Raras sao as ocasides em que se escreve um ensaio por pura necessidade interior; 0 mais das vezes, prosaicamente, é em fungao do convite para participar de um coléquio ou de algum niémero de revista sobre determinado tema que nos decidimos a p6r em ordem certas idéias e damos nascimento a um texto... Nao ha entre estes escritos, assim, mais do que a unidade um tanto ficticia devida ao fato de serem assinados pela mesma pessoa; ¢ digo “um tanto ficticia”, porque hd sérios motivos para duvidar da “mesmidade” do autor. Pois, como mostrou Foucault em A arqueologia do saber, as idéias nao provém da subjetividade soberana de uma consciéncia, mas de um solo que torna possiveis certos recortes e impossiveis outros, que autoriza alguns a falar e a outros impée siléncio, que legitima certos objetos de pensamento e certos tipos de discurso, em detrimento de outros, desqualificados. Os temas a que se referem estes ensaios me foram ditados por esta configuragao, que é a da psicandlise no Brasil na década de oitenta. E claro que materializam interesses e preocupacdes que me s4o préprios, porém seria erréneo supor que devam sua origem apenas aeste fator. Ha que considerar ainda, no interior desta rede descrita por Foucault, que a prépria figura do autor nado coincide consigo 8 A VINGANGA DA Eseince mesma: suas idéias podem se modificar, em nenhum de seus textos ele esté completamente ec em todos esté de algum modo. Experiéncia mais ampla, leituras que tém o poder de desperta-lo de algum sono dogmiatico, encontros inopinados impostos pela Fortuna e que, no caso de um psicanalista, podem tomar a forma de momentos cruciais vividos no diva de outrem ou em sua propria poltrona — estes fatores e certamente outros vém a determinar modos de inserg4o de quem escreve no tecido do pensamento de uma época e de um lugar. E sobretudo, se admitirmos as descobertas da psicandlise, ha o fato de que nenhum de nés é “um”: somos varios, e, como disse Drummond, “das peles que visto / muitas ha que nao vi”. Tal constatagao é mais do que um artificio de retérica, destina- do a converter a necessidade em virtude: j4 que sdo dispares estes escritos, e que nado ha meio de apagar sua disparidade, mais vale reconhecer isso de saida e transformar o defeito em qualidade... E um lugar-comum da técnica de redigir prefacios a alegacao de que, ao se reunirem ensaios num volume, a heterogeneidade deles seja decretada apenas aparente, posto que, “‘no fundo”, obedecem a uma inspiragéo comum, a ldégica sinuosa que preside aos desdobramen- tos sucessivos de um mesmo percurso. Nao creio que este seja 0 caso da presente coletinea. Preferi, alids, deixar os textos na ordem cronolégica em que foram escritos, renunciando a uma sistemati- zagao artificiosa e inutil. Pois foram feitos para intervir em debates diferentes, destinaram-se originalmente a ptblicos diversos, e 0 ato de os apresentar em conjunto responde ao desejo de tornd-los aces- siveis a um circulo mais amplo, submetendo-os 8 critica e ao deba- te publicos sem os quais no existe cultura. KK Porque a psicanilise faz, é claro, parte da cultura, e nao apenas como parte num todo. A cultura também atravessa a psicanilise, tanto no sentido lato de que esta é uma pratica social que pressupde determinagGes nao geradas por ela mesma, quanto no sentido res- PREFACIO 9 trito de que as ideologias vigentes reverberam sobre nossa discipli- na de modos variados, quanto ainda no sentido especffico em que Sérvulo Figueira fala de uma “cultura psicanalitica’’', Figueira su- gere que uma cultura psicanalitica pode ser decomposta segundo trés eixos: um eidos ou légica para O pensamento, um ethos ou cédigo para as emogées, um dialeto ou forma de expressao codifi- cada que serve para a coesio e 0 controle de certos grupos no inte- rior da sociedade. Estas sao as categorias utilizadas pelo autor para dar conta daquilo que denomina “psicologismo” sobre variados com- portamentos sociais e sobre a producgo de conhecimentos tanto nas ciéncias sociais quanto na psicandlise. Neste dltimo caso, Figueira assinala a existéncia de um duplo desconhecimento: a recusa, pelos psicanalistas, de perceber que eles mesmos e sua disciplina sio um dos focos irradiantes do psicologismo, que contribuem ativamente para a instauracao de uma cultura psicanalitica; e a ago retroativa do psicologismo e da psicologizagéo sobre 0 campo psicanalitico, nele influenciando, de forma sutil, a produg&o de conhecimentos. Estas idéias de Sérvulo Figueira me parecem extremamente liteis para situar adequadamente o problema das relagoes entre a psicandlise e 0 meio no qual ela se implanta. Gostaria de acrescentar a elas um outro aspecto que me parece importante, e que diz respeito a uma faceta facilmente perceptfvel no campo psicanalitico brasileiro, embora esteja longe de se reduzir apenas a este setor da nossa sociedade. Refiro-me a algo que chamarei “vulnerabilidade ao dogmatismo”, ¢ que consiste na facilidade com que certas idéias adquirem valor de evidéncia axiomatica, como se desde sempre estivessem inscritas em nosso céu de anil. Um dos determinantes da cultura psicanalitica brasileira é que, entre nds, a psicandlise é uma planta exdtica, importada dos centros culturais hegemOnicos; que existam neste momento muitos analistas praticando-a, muitos pacientes se tratando e numerosas instituigdes (1) Figueira S. et alii, Cultura da psicandlise, Sio Paulo, Brasiliense, 1985. 10 A Vinoanga ba Esrsct que dispensam um ensino de psicandlise nao altera, ainda, este fato. Quando doutrinas ou praticas de origem estrangeira se instalam num meio sociocultural, é evidente que sua implantagdo e sua difusio virdo a se dar segundo prismas de refragio especificos a este meio. Entendo por “prismas de refragao” tanto as instituigdes formais € informais que servem de canal entre o que é importado e seus destinatérios, quanto os sistemas de representagdes formais e informais que vao filtrar este “algo”, o qual deverd se impor em face de tais sistemas e a tais instituigdes, acomodar-se em parte a eles, reformulé-los parcialmente para os torar compatfveis consigo proprio. Relativamente as instituigdes que a acolhem, nao é indiferente que a psicandlise se difunda em determinado pais através do vetor médico-psiquiatrico, ou da Universidade, ou dos meios literdrios e culturais em sentido amplo. Quanto aos sistemas de representagdo que atuam como filtro ou como peneira, podem ser formais (por exemplo teorias psiquidtricas, psicologicas ou filos6ficas vigentes e aceitas) ou informais (por exemplo, atitudes difusas porém socialmente s6lidas relativas 4 sexualidade, ao sofrimento psiquico, a loucura, as categorias que captam a vivéncia emocional, etc.). A respeito destes grandes prismas de refragao que operaram na difusio e no enraizamento da psicandlise no Brasil, pouco se sabe de concreto; hd pouquissimas pesquisas acerca desta questao, varias delas valiosas, mas que nao permitem ainda uma visdo de conjunto do processo que resultou na situagio atual.? Por (2) Algumas indicagées: R. aw: . “A psicandlise pioneira e os pioneiros da psicandlise em Sao Paulo”, in Cultura da psicandlise, R. Sagawa, “Durval Marcondes ¢ 0 inicio do movimento psicanalitico brasileiro”; Cadernos Freudo- Lacanianos, n° 2, S80 Paulo, Cortez, s. d.; M. Perestrello, Histéria da sociedade brasileira de psicandlise do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Imago, 1987; U. Tourinho, “Um processo em questo”, Ensaios de Psicandlise, n° 1, Salvador, 1981: U. Tourinho, “Psicandlise na Bahia”, Revirdo, n° 3, Riode Janeiro, Aoutra, s. d.: J. Freire Costa, Ordem médica e norma familiar, Rio de Janeiro, Graal, 1983; P. Lima Silva, Crénica da vida clinica, tese de doutorado na PUC-SP; ¢ outros trabalhos, poucos, mencionados na bibliografia destes que citei.

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