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Revista SymposiuM

cessariamente o rótulo de leviandade, superfici-


alidade e, portanto, fuga ou inabilidade para o
exercício do rigor acadêmico, pois, a rigor, a fi-
losofia prima pela inteligibilidade do sistema,
Revista SymposiuM pela própria sistematização e pela reta compre-
ensão dos conceitos como fidelidade radical à
EMMANUEL natureza e à operacionalidade da própria razão.

LÉVINAS: Correndo o risco da inserção no âmbito da


aludida rotulação, julgamos conveniente apre-
O HOMEM E A sentar alguns dados da pessoa humana Lévinas
e uma breve consideração sobre o conjunto de
OBRA sua produção teórica. Tal procedimento nos
parece necessário, pois se trata de um pensador
que conseguiu um espaço significativo no cená-
José Tadeu Batista de Souza* rio diversificado da filosofia contemporânea.
Ademais, é crescente a atenção dada a sua obra
Resumo: O texto objetiva apresentar o pensador por pensadores consagrados dentro da
contemporâneo Emmanuel Lévinas. Pontua dados intelectualidade que ressaltam, sobretudo, a ori-
de sua vida pessoal e de sua produção teórica. ginalidade, a autenticidade, a novidade de sua
Apresenta a obra do autor seguindo uma cronolo- proposta, bem como o grau de dificuldade na
gia. Expõe pares de oposições como característi- compreensão das categorias-núcleo do seu pen-
cas gerais de sua obra, que se configuram como samento, até mesmo para os iniciados no campo
chaves de leitura. do saber propriamente filosófico.
Palavras-chave: Lévinas, vida, obra Lévinas tem, hoje, nos meios acadêmicos
contemporâneos, um lugar de considerável des-
Abstract: This text will introduce the taque. A conquista desse espaço deve-se, so-
contemporary thinker Emmanuel Lévinas. It bretudo, à originalidade de suas análises e à pri-
selects data from his personal life and his
oridade temática que imprime aos seus textos.
theoretical production. It presents the work of this
Saliente-se, sobremaneira, a perspectiva que as-
author chronologically and it shows opposite pairs
sume nas considerações de temas tradicionais da
as general characteristics of his work. Those are
Filosofia e a novidade das sugestões que apre-
considered keys to a reading of his work.
senta.
Key words: Lévinas, life, work.
O seu labor filosófico que aparece como
obras sistemáticas e artigos diversificados na sua
I - INTRODUÇÃO
temática deixa-se marcar por uma profunda sen-

É
sibilidade aos problemas humanos, que, na mai-
de praxe reconhecer-se que apresentar oria das vezes, não encontra lugar nas obras dos
dados da vida pessoal e fazer observa- denominados grandes filósofos, nem nos gran-
ções generalizadas de um determinado des sistemas que configuram a história da filo-
autor é, no contexto atual do trabalho acadêmi- sofia. Quando as exceções se efetivam, elas
co, um procedimento que suscita quase que ne- aparecem apenas nas articulações de uma “An-
tropologia Filosófica”, de uma “Filosofia Políti-
______________________
ca”, uma “Filosofia Moral” e mesmo como um
* Mestre em Filosofia e Prof. Assistente do Depto. de Filosofia da
Unicap sistema de ética.

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Todavia o estatuto que lhes é conferido Ainda neste mesmo ano (1930), juntamente com
nem sempre ultrapassa o “status” de apêndice ou uma colega de curso, Mlle. Peiffer, fez a tradu-
aspecto complementar de um sistema mais glo- ção para o francês das “Meditações Cartesianas
bal. Além disso, quando a presença do humano de Husserl”.
e seus problemas se deixam visibilizar nos siste-
mas e obras de determinados pensadores, é com Em 1939, nos horrores da segunda guerra
o claro intuito de se evidenciar a coerência lógi- mundial, foi tolhido pelo nacional-socialismo e
ca do pensamento e exaltar elegantemente as passou cinco anos de prisão nos campos de con-
possibilidades e o potencial da razão. centração nazistas na Bretanha (Alemanha).

A obra de Lévinas, senão a totalidade, mas, De regresso à França, torna-se um regular


pelo menos, parte significativa, pode ser consi- conferencista do Collège Philosophique e começa
derada numa perspectiva que vai de encontro a uma intensa atividade nos meios intelectuais
“démache”, até então, apresentada na tradição fi- judeus, chegando a tornar-se diretor da Escola
losófica do Ocidente, constituindo-se numa ver- Israelita Oriental de Paris por dezoito (18) anos.
dade fratura. A intuição de base fundamental
que assume o papel de núcleo original, como Em 1964, torna-se professor de Filosofia
verdadeira condição de possibilidade para a ela- na Universidade de Poitiers. Em 1967, torna-se
boração da reflexão filosófica é que a “ÉTICA É A professor da Universidade Nanterre. Em 1973,
FILOSOFIA PRIMEIRA”. assume também o magistério docente na
Portanto, com a ética, ele dilui a priorida- Sorbonne. Posteriormente foi professor convi-
de central da ontologia que sempre circula pelas dado das universidades de Lovaina e Leiden, das
“amarras do ser” e instaura o humano como ele- quais recebeu o título de Doctor Honoris Causa
mento inspirador e desafio para a reflexão que em Filosofia e Teologia. Foi também professor
pretende ter o atributo de lucidez. convidado da Universidade Utrecht e Universi-
dade Hebraica de Jerusalém.
II - O HOMEM
Aos oitenta e nove anos, morre Lévinas,
Pontuamos, inicialmente, que Lévinas nas- em Paris, a 25 de dezembro de 1995.
ceu em Kaunas, na Lituânia em 1906. É filho
de um casal judeu. Ainda na infância, migrou O exposto, até então, evidencia que o au-
para Ucrânia, onde vive, aos onze (11) anos, a tor, que ora apresentamos, teve uma experiên-
Revolução Russa de 1917. Posteriormente emi- cia de vida um tanto itinerante e, de certa for-
gra da Ucrânia para a França, país onde se ma, marcada pelo traumatismo. Outrossim, re-
radicaliza. Aí, na França, inicia seus estudos vela um homem de intensa atividade cujo vigor
superiores em Estrasburgo, em 1923. Em 1927, e a seriedade com que encarou a vida acadêmi-
começa a estudar Fenomenologia com Jean ca, sua produção teórica dispensam outros tes-
Hering. Em 1928, vai para a Alemanha, Friburg, temunhos.
assistir a um curso ministrado por Edmund
Husserl e Heidegger (1929). Em 1929, retorna III - A OBRA
à França, após ter minar sua tese de Adotando-se um critério cronológico 1, po-
doutoramento, que versou sobre a “Teoria da demos situar a obra do autor num arco de tempo
Intuição na Fenomenologia de Husserl”. Esse que vai dos anos 1929 a 1979. Nesse arco, pode-
trabalho foi publicado no ano seguinte, 1930. se determinar três períodos.

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O PRIMEIRO PERÍODO COMPREENDE OS ANOS DE 1929- O TERCEIRO PERÍODO VAI DE 1966-1979.


1951.
As pesquisas desse período culminaram
Neste primeiro momento, seus interesses com a publicação de duas importantes obras:
estão centralizados na Fenomenologia de H UMANISMO DO O UTRO H OMEM , publicada em
Edmund Husserl e Martin Heidegger. Sua tese 1972 e OUTRO QUE SER OU PARA ALÉM DA ESSÊNCIA,
doutoral, publicada em 1930, trata da “TEORIA publicado em 1974; em 1975, publica DEUS E A
DA INTUIÇÃO NA FENOMENOLOGIA DE HUSSERL”, FILOSOFIA. Em 1968, publica QUATRO LEITURAS
como já afirmamos antes. Em 1931, conforme TALMÚDICAS ; em 1977, DO SAGRADO AO SANTO,
menção anterior, ele faz a tradução do alemão texto que reúne estudos sobre o nome de Deus,
para o francês da obra de Husserl - MEDITAÇÕES o Estado e a revelação na tradição judaica e, por
CARTESIANAS. Em 1935, publica: DA EVASÃO. Em outro lado, possibilita a compreensão de Lévinas
1947, publica DA EXISTÊNCIA AO EXISTENTE. Em hermeneuta da Bíblia.
1948, publica O TEMPO E O O UTRO. Em 1949, Em 1982, publica ÉTICA E INFINITO e ÉTICA
publica DESCOBRINDO A EXISTÊNCIA COM HUSSERL COMO FILOSOFIA PRIMEIRA. Em 1984,
E HEIDEGGER, texto que reúne trabalhos dedica- TRANSCENDÊNCIA E INTELEGIBILIDADE. Em 1986,
dos aos dois filósofos. aparece um texto com o título: DE DEUS QUE VEM
A IDÉIA.
O SEGUNDO PERÍODO VAI DE 1952-1964.
Essa vasta produção teórica dá testemu-
Este período é caracterizado pela produ- nho da seriedade com que encarou a pesquisa e
ção de obras de caráter mais pessoal do autor. do esforço despendido para contribuir com a re-
A principal obra deste momento é TOTALIDADE E flexão que se pretende rigorosa, quer no âmbito
INFINITO, publicada em 1961. Essa obra repre- da religião ou teologia, quer no âmbito filosófi-
senta, de algum modo, o ápice dos trabalhos an- co propriamente dito.
teriores e constitui-se em ponto de referência fun-
damental para a compreensão de obras posteri- Da considerável obra do autor, original-
ores. mente escrita em francês, já temos ‘razoáveis’
traduções em português, como é o caso de Tota-
São deste período os textos: A FILOSOFIA E lidade e Infinito, traduzida por José Pinto Ribei-
A IDÉIA DO INFINITO(1957); INTENCIONALIDADE E ro e publicada pelas Edições 70, em 1980; Éti-
METAFÍSICA (1959); REFLEXÕES SOBRE A TÉCNICA ca e Infinito, traduzida por João Gama, publicada
FENOMENOLÓGICA (1959); A PRIORI E S UBJETIVI- em 1982, também pelas Edições 70;
DADE (1962). Nesses textos, Lévinas estabelece Transcendência e Inteligibilidade, traduzida por
um diálogo crítico com Husserl e a José Freire Colaço, publicada em 1984, Edições
fenomenologia. 70, Lisboa - Portugal, e Humanismo do Outro
Homem, traduzida por um grupo brasileiro de
Em 1963, publica DIFÍCIL LIBERDADE, ensaio Estudiosos do autor, como Anízio Meinerz,
sobre o Judaísmo. Nesse período, ele não só in- Jussemar da Silva, Luis Pedro Wágner, Magali
vestiga autores da filosofia como Husserl e Mendes Menezes, Marcelo Luiz Pelizzoli, sob a
Heidegger, Spinoza, Kierkegaard, M. Buber, coordenação do Prof. Dr. Pergentino S. Pivatto,
Franz Rozenzweig, mas também grandes expo- publicada pela Editora Vozes, em 1993.
entes da literatura como Marcel Proust, M.
Blanchot. Esses estudos (com esses autores) Um estudo muito importante que acessa a
foram reunidos e publicados numa obra, em obra do autor no seu conjunto, mas, sobretudo,
1975, com o título de NOMES PRÓPRIOS . o aspecto Antropológico, foi realizado pelo Prof.
Dr. Luiz Carlos Susin. Traz como título “O

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Homem Messiânico. Uma introdução ao Pensa- Ainda segundo Ulpiano, é possível apon-
mento de Emmanuel Lévinas”. Publicado em tar-se, no conjunto da obra de Lévinas, quatro
parceria pela Escola Superior de Teologia São características internas que, de algum modo, ser-
Lourenço de Brindes e Editora Vozes, em 1984. vem de chave de leitura e aproximação à pro-
blemática por ele enfrentada. Essas caracterís-
O mesmo autor (Luiz Carlos Susin) tem ticas aparecem em pares de oposições que con-
importantíssimos estudos temáticos sobre a obra vergem e se complementam como formulações
do autor que estão difundidos em Revistas e de uma só oposição fundamental.
Textos Coletâneas. Veja-se, por exemplo:
“Lévinas e a Reconstrução da Subjetividade” IN: A PRIMEIRA CARACTERÍSTICA QUE SE PODE CONSTA -
VERITAS, Porto Alegre, n. 37, nº 147 - setembro TAR É A OPOSIÇÃO ENTRE FILOSOFIA E TEOLOGIA.
de 1992; “O esquecimento do <Outro> na His-
tória do Ocidente”, IN: REB, vol. 47, Fasc. 188, Por várias vezes, mas, sobretudo, a par-
dezembro de 1987; “Lévinas: A Ética é a Óti- tir de TOTALIDADE E INFINITO, Lévinas afirma que
ca”, IN: DIALÉTICA E LIBERDADE. Ernildo Stein e a intenção de suas investigações deve ser consi-
Luis A. De Boni, Petrópolis: Vozes, 1993; derada filosófica. Com isso ele quer rebater seus
“Lévinas e a Opção pelos Pobres”, IN: CADER- críticos que consideram sua obra como um
NOS DA FAMINC, Viamão, nº 13, 1995; “Pensar empirismo ou simplesmente Teologia. Contra
a Morte”, IN: FINITUDE E TRANSCENDÊNCIA. Luis eles, Lévinas afirma que nem quer, nem pode
A. De Boni, Petrópolis: Vozes, 1996. fazer Teologia. Seu discurso é propriamente fi-
Sobre a idéia do “Infinito”, temos o estu- losófico. Por outro lado, na sua obra OUTRO QUE
do (dissertação de mestrado) realizado pelo Prof. SER OU PARA ALÉM DA ESSÊNCIA, ele afirma que a
Ricardo Timm de Sousa, PUC-RS, Porto Alegre, tarefa da filosofia é “escutar a Deus”.
em 1991.
O seu projeto filosófico de proceder a uma
Um estudo também significativo foi reali- investigação para além da essência termina nos
zado (dissertação de mestrado) pelo Prof. Mar- seus últimos escritos, por determinar esse “mais
celo Luiz Pelizzoli, sobre a Relação ao Outro além”, Deus. O problema de Deus, que nos seus
em Husserl e Lévinas, PUC-RS, Porto Alegre, em primeiros escritos fica um pouco recalcado, por
1994. assim dizer, desponta vigorosamente depois de
Totalidade e Infinito e, a partir daí, põe-se como
Sugere Ulpiano Vazquez 2 que as obras inseparável do problema do Sentido, da Lingua-
posteriores a HUMANISMO DO O UTRO HOMEM e gem, da Subjetividade, da Ética, enfim, da Filo-
OUTRO QUE SER, sobretudo, DEUS E A FILOSOFIA, é sofia.
um referencial obrigatório para a interpretação
de todo fazer filosófico de Lévinas, assim como No entanto, Lévinas pensa que essa opo-
os trabalhos sobre Husserl e Heidegger servirão sição não é real e não pode constituir-se numa
de chave para a análise das características da alternativa, pois os termos contrapostos cami-
relação estabelecida com os filósofos alemães nham numa mesma direção, ou seja, tanto a fi-
desde os primeiros anos de sua (atividade) in- losofia ocidental como a teologia podem ser con-
vestigação filosófica. Tal relação verifica-se sideradas como destruidoras da transcendência.
como diálogo ou debate crítico travado por Por isso, ele busca um escutar a Deus fora do
Lévinas com a tradição filosófica ocidental. No discurso filosófico ocidental e fora da teologia
último período desse debate, ele cita figuras que desemboca numa ontologia.
como Spinoza, Kant, Hegel e Nietzsche.

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A SEGUNDA CARACTERÍSTICA EXPRIME-SE NA OPOSIÇÃO mental do sentido, em oposição à fenomenologia,


ENTRE METAFÍSICA E ONTOLOGIA. que é tematização teórica que institui o sentido
a partir da consciência.
Aqui a característica principal da obra de
Lévinas seria a Metafísica sempre oposta à A relação ética, relação com o Outro ao
Ontologia. Inicialmente a oposição teve como impor-se, de modo irrecusável, a responsabili-
alvo Heidegger, mas posteriormente significou dade do mesmo, “é o modelo exclusivo em que
oposição a todos os modelos ontológicos produ- a intenção transcendente que anima a metafísica
zidos na História da Filosofia Ocidental. A ra- chega a poder realizar-se, sem que em sua reali-
zão maior da oposição é porque, segundo ele, a zação, nem a intenção transcendente, nem a
Ontologia constitui-se como subordinação da transcendência fiquem como tais desmedidos.
relação com o ente à relação com o ser, onde o Quer dizer: a ética é a concreta e única realiza-
ente fica neutralizado e reduzido como outro para ção da possibilidade de uma intenção que não
poder ser compreendido como o mesmo. Além pertence a estrutura “Noesis-Noema”; é desejo
disso, a Ontologia significa o predomínio do co- que não pode reduzir-se a estrutura formal do
nhecimento e do saber, da liberdade como auto- pensamento como relação sujeito-objeto na qual
nomia e do saber como poder. Em suma, o pro- toda transcendência é reduzida a imanência”.
testo do autor é contra a primazia dada à Aqui, ele fala da possibilidade de uma “signifi-
Ontologia enquanto investigação do ser em de- cação sem contexto” cuja estrutura formal foi
trimento da moral. À Ontologia ele contrapõe a introduzida na filosofia por Descartes, com a
Metafísica, tentando evidenciar que a Metafísica idéia do Infinito.
se realiza filosoficamente no tratamento do sen-
tido da subjetividade humana. Outrossim, pro- Essa possibilidade formal se realiza na re-
põe que a linguagem mais apropriada para expri- lação ética onde ocorre a inversão da subjetivi-
mir a verdade da subjetividade humana é a éti- dade em que há o descolamento do nominativo
ca. A partir da subjetividade estruturada como eu para o acusativo me. Relação essa que não
radicalidade ética, é possível introduzir-se Deus pode ser tematizada nem representada. É
na linguagem filosófica, superar a filosofia do irredutível. Assim, na ética realiza-se o mais
mesmo, da imanência, da totalidade e abrir-se à além do ser, a transcendência, o infinito e, por-
dimensão da exterioridade, do infinito. Enfim, tanto, a metafísica na sua radicalidade, como
sair do círculo do anonimato e impessoalidade desinteresse que não pode ser apreendido numa
do ser; lançar-se para o outro, para a verdadeira intenção teórica nem fenomenológica. Em vez
Metafísica. de uma significação que parte do eu, mesmo o
eu transcendental, ele propõe uma significação
A TERCEIRA CARACTERÍSTICA PODE SER DETECTADA NA que vem da exterioridade do outro.
OPOSIÇÃO ENTRE ÉTICA E FENOMENOLOGIA.
POR ÚLTIMO, A QUARTA CARACTERÍSTICA PODE EXPRES-
Lévinas investiga a subjetividade como SAR-SE COMO A OPOSIÇÃO ENTRE TRADIÇÃO JUDAICA
criaturalidade e contesta os discursos filosóficos E TRADIÇÃO CRISTÃ.
ou teológicos sobre a criação. A Ética significa
para ele a renovação do sentido da linguagem Essa característica visibiliza-se com mui-
religiosa e teológica. Além disso, pensa que na to ímpeto, no interior de sua obra. No caso, aqui,
justiça está a originária última justificação do trata-se de apresentar uma condição de possibi-
discurso filosófico. Em suma, essa oposição re- lidade do discurso filosófico capaz de fundamen-
vela o esforço do autor por estabelecer o prima- tar uma ética, prescindindo do idealismo
do da ética como origem primeira e mais funda- transcendental que, por sua idéia de fundamen-

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to, mostrou-se, segundo Lévinas, incapaz de man- sua função de “ANCILLA” da Teologia e da Políti-
ter-se como fundamento de uma situação ética. ca bem como a função de mediadora absoluta.
Essa possibilidade é afirmada por ele, recorren- Entende que a sua função específica, indispen-
do à Bíblia hebraica e à interpretação talmúdica sável deve efetivar-se como “sabedoria do amor
da Bíblia, que são consideradas por ele como ao serviço do amor” 5. Isso quer significar que
“concretização empírica onde a possibilidade a Filosofia deve estar a serviço de um DIZER
condicionante do discurso se realiza permitindo que se põe para além do âmbito do ser. “Dizer
que o sentido invisível na condição se torne vi- inesgotável na APOFANSIS do DITO e, por e
sível na concretização” 3. Dessa maneira, admi- para ele, serviço a justiça”6.
te o autor, que é possível pensar-se na possibili-
dade de o discurso filosófico fundamentar uma Nesse sentido, é mister enfatizar-se, aqui,
ética, à medida que esse discurso seja capaz de que a idéia de justiça é uma das mais fundamen-
operar com um recurso não recorrente à tais questões nas considerações do nosso autor.
ontologia, mas para além do ser. Por conseguin- Ousamos até afirmar que a justiça é para ele uma
te sugere que a instância ancoradora desse dis- espécie de idéia matriz ou um firme alicerce, a
curso seja, o Bem, o Infinito, Deus, enfim, como partir do qual se constrói o edifício da compre-
condição fundante da incondicional situação éti- ensão e o sentido radical de outras tantas cate-
ca. gorias também fundamentais, como: Verdade,
Metafísica, Significação, Desejo, Transcendência,
Nessa direção, Lévinas contesta a civiliza- Infinito etc. Certamente, por isso, um de seus
ção cristã e a filosofia ocidental, por preferir os interlocutores, Philippe Nemo, apresenta uma de
filósofos e rejeitar os profetas. Ou ainda, sim- suas obras e diz: “A questão primeira, pela qual
plesmente pretender assimilar e preferir profetas o ser se dilacera e o humano se instaura como
e filósofos simultaneamente, conciliando, assim, <diversamente de ser> e transcendência relati-
Grécia e Jerusalém. Nisso Lévinas vê uma gran- vamente ao mundo, aquela sem a qual, ao invés,
de hipocrisia. Diz ele: “Desde que a escatologia qualquer outra interrogação do pensamento é
opôs a paz a guerra, a evidência da guerra se apenas vaidade e corrida atrás do vento - é a
mantém em uma civilização essencialmente hi- questão da justiça”7.
pócrita, quer dizer: ligada ao mesmo tempo ao
Verdadeiro e ao Bem, desde então antagonistas. Além dessas quatro características percep-
Já é hora de reconhecer na hipocrisia não só um tíveis na obra de Lévinas, também se pode en-
desprezível defeito contingente do homem, mas contrar, na sua produção teórica como um todo,
também o profundo desgarramento de um mun- três grandes eixos temáticos que podem servir
do ligado simultaneamente aos filósofos e aos de critério ou chave de leitura para compreen-
profetas” 4. der-se a evolução do seu pensamento.

O posto, porém, não nos permite formular Num primeiro momento, viabiliza-se uma
uma oposição irredutível entre profecia e filoso- temática de caráter eminentemente ontológico.
fia. Tal oposição não encontra plausibilidade no Tem-se, nesse momento, a subjetividade relaci-
interior de sua obra. O que deve ficar em evi- onada ao mundo e à intersubjetividade no mun-
dência é a denúncia que ele faz à pretensão que do. A categoria articuladora desse eixo seria a
julga possível manter simultaneamente uma idên- categoria do “SER”.
tica adesão à Filosofia e à Profecia.
Um segundo momento apresenta-se como
Ele reconhece e reivindica a importância e Metafísico. (Para além da Ontologia). Aqui, tem-
função do discurso filosófico, porém contesta a se a alteridade e a relação ao Outro no Face-a-

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Face e na Linguagem. A categoria articuladora senta-se como impessoal e há nisto uma


desse momento seria a categoria de “INFINI- inumanidade” 10 . “A filosofia do poder, a
TO”. ontologia, como Filosofia Primeira que não põe
em questão o MESMO, é uma filosofia da injus-
Em terceiro lugar, aparece o eixo propria- tiça” 11.
mente ÉTICO. Nessa fase, ele evoca a
“Exterioridade mais interior do que a Em suma, as constatações de Lévinas aci-
interioridade - o BEM - inspirada na imolação, ma postas podem ser resumidas, dizendo-se que
na expiação e substituição”8. O conceito chave para ele tudo que é outro não pode manter-se
deste momento seria Bem-além-do-Ser. enquanto tal, ou seja, na sua verdadeira condi-
ção de alteridade.
Cada uma das características apontadas
assim como os momentos (eixos temáticos) não A relação possível que o pensamento oci-
se deixam perceber por inteiro, numa obra em dental encontrou para efetivar essa ‘relação’
particular. Perpassam, de certo, de uma manei- mesma, foi o recurso à Teoria implementada
ra ou outra, o conjunto de sua produção. pelo próprio pensamento, que operou a redução
Sugerimos que a obra “Totalidade e Infini- de toda alteridade na mesmidade, ou seja, toda
to, Ensaio sobre a Exterioridade” representa, a diferença radical tornou-se identidade.
de algum modo, uma síntese de toda essa pro-
blemática. Aliás, trata-se da obra que projetou A proposta levinasiana é muito clara e se
o autor no cenário mundial. inscreve numa direção oposta a toda investida
até então implementada. Diz ele: “É preciso in-
Provavelmente, de um modo já bastante verter os termos12. E, por isso, opõe-se ao ano-
amadurecido, Lévinas tenha, nessa obra, clare- nimato, à impessoalidade, às abstrações
za dos limites ou impasses da tradição filosófica conceituais, à indeterminação de idéias, à vio-
ocidental e condições de propor uma alternati- lência do poder, à verdade enquanto abstração
va. Pelo menos são claras suas declarações lógica ou teórica.
diagnosticadoras. Vejamos: “A Filosofia ociden-
tal foi, na maioria das vezes, uma ontologia: uma Ora, num contexto que já se considera pós-
redução do Outro ao Mesmo, pela intervenção metafísico, como é o caso de J. Habermas13, ele
de um termo médio e neutro que assegura a in- propõe um retorno à METAFÍSICA como pos-
teligência do ser”. (...) “A Filosofia é uma sibilidade de uma verdadeira RELAÇÃO em
Egologia”9. A relação com o ser, que atua como absoluto respeito à Alteridade do Outro, como
ontologia, consiste em neutralizar o ente para o radicalmente diferente do mesmo. “...a
compreender ou captar. Não é, portanto, uma metafísica tem lugar onde se joga a relação soci-
relação com o Outro como tal, mas a redução al nas relações com os homens” (...) “A
do Outro ao Mesmo. Tal é a definição de liber- metafísica tem lugar nas relações éticas. Sem a
dade: manter-se contra o outro, apesar de toda sua significação tirada da ética, os conceitos te-
relação com o outro, assegurar a autarquia de ológicos permanecem quadros vazios e for-
um eu” (...) “Eu penso” redunda em “eu posso” mais”14.
(...) “A ontologia como filosofia primeira é uma
filosofia do Poder. Desemboca no Estado e na Por fim, o seu projeto ainda se torna mais
não-violência da totalidade, sem se presumir claro conforme aparece em Totalidade e Infini-
contra a violência de que vive essa não-violên- to ao dizer: “O estabelecimento do primado da
cia e que se manifesta na tirania do Estado. A ética, isto é, da relação de homem a homem -
verdade, que deveria reconciliar as pessoas, exis- significação, ensino, justiça - primado de uma
te aqui anonimamente. A universalidade apre- estrutura irredutível na qual se apóiam todas as

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outras (e, em particular, todos os que, de uma já estão por demais afeitos ao modo de pensar e
maneira original, estético ou ontológico), é um ao estilo próprio da racionalidade levada a cabo
dos objetivos da presente obra”15. no Ocidente, cunhada no rigor da lógica e na pre-
cisão conceitual.
É nessa perspectiva que se deve conside-
rar o vigor de força que tem suas intuições de Talvez seja necessário “inverter os ter-
que “a ética é ótica”16. E que “a moral não é um mos”, como ele o diz, e fazer-se um esforço de
ramo da filosofia, mas a Filosofia Primeira”17. um pôr-se no lugar de alguém que sofreu, na pró-
pria pele, os horrores e danos de uma
Parece-nos, portanto, que o autor nos ins- racionalidade que distinguiu, separou e opôs ra-
tiga a pensar a nossa condição de homens, en- dicalmente o ato de inteligir e o ato de sentir, e
quanto entes capazes de manter uma relação tentar uma nova maneira de compreender a
intersubjetiva, à medida que formos capazes de inteligibilidade, prescindindo da radicalidade da
pensar a nossa subjetividade estruturada funda- distinção e da oposição. Em outras palavras,
mentalmente pela responsabilidade infinita para pensamos ser oportuno sugerir como recurso
com a alteridade do outro, de modo que “o infi- facilitador para a entrada na perspectiva do pen-
nito da responsabilidade não traduza a sua imen- samento de Lévinas, a fórmula de Xavier Zubiri
sidade atual mas um aumento de responsabili- ao dizer que “Inteligir é um modo de sentir, e
dade, à medida que ela se assume, os deveres sentir é no homem um modo de inteligir”19.
alargam-se à medida que se cumprem”18.
Se uma tal perspectiva for implementada,
Essa exigência de radical responsabilida- muito provavelmente emergirá a desconfiança na
de para com o outro deve acontecer como se Potência da razão, assim como em suas grandes
nunca pudéssemos dizer: “Estou satisfeito com conquistas como a síntese, o conceito, o siste-
a medida da minha responsabilidade”. Pois, o ma, a objetividade e, enfim, a maravilha da
último parâmetro possível de medida é a sua pró- abrangente totalidade. Essas maravilhas se cons-
pria desmedida. Em outras palavras, ela põe-se tituíram em elementos fundamentais,
para nós como exigência de infinito, como uma identificadores do nosso modo próprio de ser. E,
espécie de desejo que nunca encontra satisfa- por isso, motivo do nosso grande “orgulho”.
ção.
Certamente, será preciso proceder-se a uma
IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS troca de óculos para poder-se enxergar a “vergo-
nha” de querer sempre poder sobre “aquilo” que
As considerações que fizemos neste mo- não se pode poder. O outro é para Lévinas esse
desto texto, sobre Lévinas, o homem e a obra, “aquilo”, que a rigor não é “aquilo” nem “isto”
visaram tão-somente a oferecer informações pre- é ALGUÉM. Alguém que, na sua condição de
liminares com o intuito de possibilitar uma mo- alteridade, se apresenta solicitando um entrar em
tivação a uma leitura e meditação de seus pró- relação, em pôr-se frente-a-frente, num verda-
prios textos. deiro face-a-face, sem que haja a possibilidade
de assimilação ou introdução de um no outro
Aqueles que, porventura, dispuserem-se a respectivamente. Mas, de fato, a relação se efe-
um contato mais próximo e íntimo com a sua tive sem que seja quebrada a distância que os
obra ou com um texto particularmente, com cer- separa e sem que a separação impossibilite a re-
teza encontrarão algumas dificuldades para com- lação. Quer dizer que aconteça a relação em ra-
preender determinados conceitos e algumas de dical respeito pela alteridade do outro.
suas intuições originais, sobretudo aqueles que

Universidade Católica de Pernambuco - 52


Revista SymposiuM

Dessa feita, um pensamento que está ha- 6


Op. cit., p. 33.
bituado a operar como atividade sincrônica e, 7
Nemo, Philippe IN: Ética e Infinito. Lis-
por conseguinte, pretende atingir a síntese, será boa, Ed. 70, pp. 10-11.
interpelado a proceder ao movimento inverso.
Quer dizer, parar a atividade sincrônica como 8
Jedraszewski, M. Le relazioni Intersoggetive
quem pretende apenas viajar no horizonte do nella Filosofia di Emmanuel Lévinas. Apud:
Outro, sem nunca sentir saudade do lugar de onde SUSIN, Luiz Carlos. O homem messiânico.
partiu e, por isso, não pretende o retorno. Uma introdução ao pensamento de Lévinas.
Petrópolis, Vozes, 1984.
Olhando-se a partir de um tal lugar, certa- 9
Lévinas, E. Totalidade e Infinito. Lisboa,
mente, será mais fácil compreender-se um pen- Ed. 70. p.31.
samento que pensa pretendendo promover uma
“Descarga do ser que se desprende”, mas para 10
Ibid., p. 33.
cair necessariamente na Humanidade do Huma-
no. Assim nos ensinará Lévinas: 11
Ibid., p. 34.
“Desfalecimento do ser que tomba em humani-
dade, fato este que não foi julgado digno de con- 12
Ibid., p. 34.
sideração pelos Filósofos”20.
13
Cf. Oliveira, Manfredo de Araújo de. So-
bre a Fundamentação. EDIPUC-RS, 1993.
NOTAS Nota 1 - p. 9.

1
Este critério é aplicado por Ulpiano Vazquez 14
Lévinas, E. Totalidade e Infinito. Lisboa, Ed.
Moro na obra “E L D ISCURSO SOBRE D IOS EN LA 70. p. 65.
O BRA DE E. LÉVINAS”. Publicaciones de la
Universidad Pontificia Consillas, Madrid, 15
Ibid., p. 65
1982.
16
Ibid., p. 65
2
Ibid., p. 9.
17
Ibid., p. 284.
3
Ibid., p. 25..
18
Ibid., p. 222.
4
Ibid., p. 31.
19
Citado por Severino Pintor Ramos. In: De
5
Ramos, Antonio Pintor, In: De otro modo Otro modo que ser, o más allá de la essencia.
que ser, o más allá de la essencia - Ediciones p. 31.
Sígneme, Salamanca, 1987. p. 30.
Lévinas, E. Humanismo do Outro Homem,
20

Petrópolis, Vozes, 1993, p. 16.

NOVA FASE • Ano 3 • Número Especial • junho-99 - 53

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