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Professor: Cleber Amorim

Introdução ao estudo da História


cultura e nos valores de nossa sociedade. Em outras palavras, entre
Olhamos para o passado com os pés fincados no tempo o atual e o antigo sempre se impõem cuidado, reflexões e
presente. Os relatos de acontecimentos de outros tempos e relativizações, mas nunca censura ou juízos de valor.
lugares são articulados com questões do presente e refletem A moralidade, as práticas e as crenças funcionam de formas
diferentes pontos de vista. Por isso esses relatos nunca diferentes em culturas diferentes; por isso não é possível julgar uma
apresentam versões únicas e definitivas dos acontecimentos. cultura de acordo com os pontos de vista de outra cultura. Essa ideia
Em cada momento da História e a cada análise sobre de relativismo cultural nos foi legada pela Antropologia. O
determinado período, fato ou episódio criam-se versões. Com antropólogo alemão Franz Boas (1858-1942) dizia: “A humanidade é
base nelas, podemos refletir sobre o mundo em que vivemos uma. As civilizações, muitas”.
e sobre nosso passado. Essa compreensão do mundo pode
servir ao exercício da cidadania. O conceito de relatividade cultural afirma que os padrões do
Vicentino, 2016. certo e do errado (valores) e dos usos e das atividades
A construção do saber histórico (costumes) são relativos à cultura da qual fazem parte. Na
1 - Nossa História: Uma leitura do passado sua forma extrema, esse conceito afirma que cada costume é
Durante todo o século XIX, a História priorizou o estudo de válido em termos de seu próprio ambiente cultural.
fatos e feitos de “pessoas notáveis”. Por meio desse estudo, os HOEBEL, Edward Adamson; FROST, Everett. Antropologia cultural e social. Rio de Janeiro:

historiadores apontavam como as nações da Europa nasceram e/ou Cultrix, 1996. p. 22.
se consolidaram. Os estudiosos desse período apoiavam-se Dessa forma, nenhuma cultura pode medir a qualidade das
principalmente em documentos oficiais escritos, que eram outras com base em sua própria cultura, pois cada uma tem um
considerados a única e verdadeira versão dos acontecimentos. sistema de valores próprio que não pode ser comparado ao das
No século seguinte, pesquisas históricas ampliaram o outras.
debate, e novos olhares sobre a construção do saber histórico
conquistaram espaço. As pesquisas passaram a abranger toda Hoje, todos os etnólogos estão convencidos de que as
atividade humana. Em algumas décadas, estudar História deixou de sociedades diferentes da nossa são sociedades humanas
significar a memorização de datas, de “fatos importantes” e de tanto quanto a nossa, que os homens que nelas vivem são
“personagens ilustres”. Dessa forma, a seleção de temas, períodos e adultos que se comportam diferentemente de nós, e não
objetos de pesquisa histórica passou a ser feita com base em “primitivos”, autômatos atrasados [...]. Mas nos anos [19]20
preocupações e anseios da época em que cada historiador se isso era propriamente revolucionário.
encontra. LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 81.
Com essas mudanças, a História passou a ser um 3 - Leituras do tempo
conhecimento dinâmico: o passado inclui tudo o que já aconteceu, A História é o estudo das ações humanas ao longo do
sem possibilidade de modificação, mas as formas de olhar para o tempo e em determinados espaços geográficos. As diferentes formas
passado mudam conforme muda o presente. O que sabemos, por de organização, constituição e ocupação do espaço fazem parte do
exemplo, sobre os antigos gregos continua a ser constantemente campo de estudo da Geografia, uma das ciências com a qual os
atualizado, e opiniões e afirmações são modificadas de acordo com estudos historiográficos dialogam. Mas como definir o tempo?
as escolhas temáticas de cada historiador. Isso possibilita novas Há muitas maneiras de explicar e sentir a passagem do
descobertas, pesquisas e abordagens. tempo. Todos nós convivemos com fenômenos temporais: dia, noite,
2 - Fonte histórica ou documento histórico estações do ano, crescimento, envelhecimento. Várias civilizações
O que distingue o conhecimento histórico de outras formas estabeleceram divisões do tempo que adotaram a observação dos
de conhecimento sobre o passado (como o discurso religioso e o ciclos da natureza como base: o movimento da Terra, do Sol e da
senso comum) é a forma como esse conhecimento é produzido. O Lua. Muitos calendários surgiram da análise dos astros, por sua
conhecimento histórico é construído por meio do método histórico, influência sobre as plantações e a necessidade de definir os tempos
que deve ser racional, seguir um raciocínio lógico e apresentar de plantio, poda e colheita.
argumentos baseados em evidências. Essas evidências que Essas diferentes formas de dividir o tempo correspondem
sustentam os argumentos históricos são as fontes. ao tempo físico ou cronológico. Cada civilização tem uma leitura
Fonte histórica ou documento histórico é tudo aquilo particular do tempo, que pode ser a melhor, a mais adequada ou a
que de algum modo está marcado pela presença humana. Além dos mais confortável para seu próprio povo.
documentos escritos, as fontes históricas compreendem grande Embora seja fundamental para a compreensão da História,
variedade de vestígios e evidências em objetos e materiais diversos. o tempo cronológico não é seu objeto de estudo, mas sim o tempo
As fontes históricas não falam por si e não desvendam a histórico, ou seja, os períodos da existência humana em que
verdade absoluta do passado: é preciso que o historiador interrogue ocorrem eventos que fazem parte de estruturas e contextos mais
o contexto em que foram produzidas, identifique os grupos ou os amplos, como a economia ou a política.
valores que elas representam e de que maneira abordam e retratam
diferentes grupos sociais. Essas perguntas são geradas pelos
Periodização
interesses do historiador e pelas questões da época em que ele se
A vida das pessoas, no entanto, não muda de modo
encontra. Por isso, diferentes perguntas revelarão diferentes
abrupto na passagem de um período histórico para outro. Datas,
aspectos de um mesmo documento ou levarão a outros.
períodos, eras e outras formas de demarcar o tempo histórico são
convenções e orientam a leitura do passado, mas não representam
A relação presente-passado
mudanças definitivas e rupturas em todos os aspectos da sociedade.
A relação presente-passado exige cuidados: é preciso Após uma revolução, por exemplo, algumas condições de vida ou o
sempre distinguir o tempo estudado do tempo em que o historiador sistema de governo podem ser modificados de maneira brusca, mas
está inserido. Por exemplo, cometemos equívoco histórico, o modo de pensar, as práticas e atitudes diante dos acontecimentos
denominado anacronismo, se julgamos eventos do passado, de mudam mais lentamente, em ritmos diversos. Entretanto, estudando
outras culturas, regidas por outras regras morais, com base na os períodos históricos, podemos compreender a História de forma
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EEEFM CORONEL SARMENTO
mais ampla e realizar divisões de acordo com alguns critérios, como representados os vinte dias do calendário sagrado, denominados
organização social, relações de trabalho e sistemas de governo. vintenas. No total, seriam dezoito meses, e ao final do calendário
O tempo histórico, portanto, não é regular, contínuo e haveria mais cinco dias reservados à meditação. Há outra hipótese
linear como o tempo físico ou cronológico, e sim composto de sobre sua função original: seria um altar de sacrifícios humanos ao
diferentes durações, já que está vinculado às ações de grupos deus Sol, com uma representação da divisão asteca do tempo.
humanos e aos conjuntos de fenômenos – mentais, econômicos,
sociais e políticos – que resultam dessas ações. Divisão de tempo e poder
Desse modo, diversas periodizações podem ser feitas para No processo de expansão de um povo, sua forma de
estudar História. Diferentes historiadores e pesquisadores podem compreender, dividir e periodizar o tempo também é transmitida a
criar tantas organizações para o tempo histórico quantos forem os outros povos. Para que ocorra essa transmissão, entretanto, não
recortes ou pontos de vista: cultural, político, ideológico, etc. Para basta que exista determinada marcação do tempo: é preciso que ela
alguns historiadores, por exemplo, o século XIX não começa em esteja ligada aos indivíduos ou grupos sociais que detêm o poder,
1801, mas em 1789 (início da Revolução Francesa), e termina não tanto no âmbito econômico e político como no religioso, e que esse
em 1900, mas em 1914 (início da Primeira Guerra Mundial). poder perdure. O calendário gregoriano, por exemplo, foi adotado
Ainda para esses historiadores, o século XX teria se iniciado em 1914 pelos povos europeus, que expandiram seu poder econômico e
e se encerra em 1991, com o fim da União Soviética. Isso político por todo o globo, e tornou-se referência para vários outros
acontece porque, segundo eles, esses marcos – início da Revolução povos. Os líderes chineses, por exemplo, adotaram o calendário
Francesa e início da Primeira Guerra Mundial – delimitam períodos gregoriano em 1912, por causa das relações comerciais com o
em que os eventos seguem algumas linhas mestras. Ocidente. No entanto, entre a população chinesa, continua valendo
É importante considerar que periodizar o tempo histórico, seu calendário tradicional, usado há mais de 5 mil anos.
ou seja, dividi-lo em períodos, é um ato arbitrário: a escolha do Outro exemplo de uso político da marcação do tempo foi a
ponto inicial da contagem e dos eventos mais importantes é feita por criação de um calendário pelos revolucionários franceses, no final do
algumas pessoas, segundo sua compreensão do mundo e da século XVIII, para demarcar o início de uma nova era com a
existência humana, e seguida por outros, sem que necessariamente Revolução Francesa. No entanto, ele deixou de ser adotado quando o
exista uma concordância entre todos. As periodizações também são grupo que o criou foi expulso do poder.
expressões da cultura e evidenciam os principais valores de uma O historiador francês Jacques Le Goff afirma que o
sociedade ou civilização. calendário pode ser entendido como um recurso de controle do
Tomemos um exemplo. Na cultura cristã ocidental, o ano tempo, geralmente por parte dos poderosos.
2000 chegou há mais de uma década, mas os judeus já passaram
dessa data há muito tempo (seu calendário está sempre 3 761 anos A conquista do tempo através da medida é claramente
à frente do cristão). Já os que seguem o islamismo (muçulmanos) percebida como um dos importantes aspectos do controle do
ainda não chegaram ao ano 2000 (a contagem de seu calendário universo pelo homem. De um modo não tão geral, observa-
inicia-se no ano 622 do calendário cristão). Afirmar que “chegamos se como numa sociedade a intervenção dos detentores do
ao ano 2000” significa que, para nós, o tempo começa a ser contado poder na medida do tempo é um elemento essencial do seu
a partir de um evento ocorrido há 2 mil anos, aproximadamente – no poder: o calendário é um dos grandes emblemas e
caso, o nascimento de Jesus de Nazaré, chamado de Cristo. instrumentos do poder; por outro lado, apenas os detentores
Embora muitas pessoas no Ocidente não sejam cristãs, carismáticos do poder são senhores do calendário: reis,
essa periodização baseia-se na ideia de que o nascimento de Cristo é padres, revolucionários.
tão importante para a humanidade que o tempo deve ser dividido em LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990. p. 487.
dois períodos: antes de Cristo (a.C.) e depois de Cristo (d.C.) As A utilização do calendário gregoriano no continente
sociedades cuja religião majoritária segue essa crença (como as das americano resulta de um processo que teve início na conquista da
Américas pós-ocupação europeia e as da Europa) são chamadas, em América pelos europeus. Eles dominaram os povos nativos e suas
conjunto, de civilizações cristãs ocidentais. culturas e escravizaram diferentes povos africanos, que foram
transportados para a América. Esses atos de violência e exploração
Os calendários moldaram e marcaram as novas sociedades americanas. O poder
Existiram na História diferentes tipos de calendário: solares passou a ser exercido, inicialmente, pelos descendentes dos
(como o cristão); lunares (como o islâmico ou muçulmano); e colonizadores sustentados por instituições e modelos europeus
lunissolares, em que os anos seguem o movimento da Terra ao redor (políticos, jurídicos, policiais, educativos, religiosos, etc.). Por isso
do Sol e os meses acompanham o movimento da Lua em torno da podemos dizer que o tempo (o calendário, a periodização) que
Terra (como o calendário hebreu). utilizamos também é, até hoje, uma expressão da cultura do
Entre os gregos, romanos e maias, observa-se o predomínio colonizador.
da ideia de um tempo cíclico (em função dos ritmos naturais e da Nesse processo de colonização, herdamos ainda uma
cosmologia, como já vimos). Dessa forma, os povos antigos divisão da História de acordo com os grandes marcos ou eventos
acreditavam que o tempo era circular e que os fenômenos se valorizados pela história política e cultural da Europa ocidental. Essa
repetiam. Assim, não haveria um momento inicial de criação do divisão foi ampliada no final do século XIX, com a inclusão da Pré-
Universo, ideia difundida pela tradição judaico-cristã. História, o que formou a chamada periodização clássica.
A concepção de um tempo linear, não cíclico, marcado por Podemos questionar os critérios utilizados nos recortes adotados por
acontecimentos únicos, era uma característica dos hebreus e dos essa divisão clássica. A queda do Império Romano do Ocidente, por
persas zoroastristas que acabou sendo adotada também pelos exemplo, não é um evento relevante para os chineses ou para as
cristãos. O nascimento de Cristo e o fim do mundo (apocalipse) são civilizações da América pré-colombiana. É importante, porém, ter em
exemplos de demarcações do tempo que não poderiam se repetir. mente que as periodizações, embora facilitem o estudo da História,
A Pedra do Calendário ou refletem determinado poder político, econômico e cultural que se
Pedra do Sol é uma gigantesca expressa nas datas e nos temas selecionados para estudo. Trata-se,
escultura asteca descoberta em neste caso, de uma visão centrada nos interesses europeus – o
1790 na praça central da Cidade do eurocentrismo. Analisar criticamente o papel do eurocentrismo na
México. Pesando 24 toneladas e história ocidental exige primeiro conhecê-lo historicamente.i
medindo quase 4 metros de
diâmetro, esse baixo-relevo foi
interpretado como a representação
da divisão do tempo para os
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Conteúdo retirado de: Cotrim, Gilberto História global 1 /
astecas. A figura central simboliza Gilberto Cotrim. -- 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
um deus Sol em torno do qual estão

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Contato: clbamorim@gmail.com

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