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Os dois Ee titanteyy do homem: TS One c terapia e educacio Ee Rec mccan Cert oo VIAVERITA Producio de algo, Talvez assim nos seja dado um espago em que Possamos ndo submergir na necessidade da pressa, do contro- le, do imediato. Talvez possamos ir mais além, mais longe, mais distante, numa distancia em que tudo pode se dar, até mesmo a presenca do divino, a distancia que é 0 vazio de um horizonte que ¢ de cada um. Prece, uma poesia de Fernando Pessoa, nos fala dessa dis- tancia tio necesséria e que constitui, a meu ver, 0 pro-pdsito da terapia em Daseinsanalyse: Semhor, a noite veio e a alma é vl. Tanta foi a tormenta e a vontade! Restam-nos hoje, no siléncio hostil, © mar universal e a saudade. Mas a chama, que a vida em nés criou, Se ainda hé vida ainda nio ¢ finda, 0 frio morto em cinzas a ocultou: A mio do vento pode ergué-la ainda. Dé o sopro, a aragem, — ou desgraca ou ansia Com que a chama do esforco se remoca, E outra vez conquistemos a Distincia — Do mar ou outra, mas que seja nossa.® 6 PESSOA, Fernando, Obra pottica. Rio de janeiro: Companhia José Agui- lar Editors, 1969, p. 83, M40 DASEINSANALYSE E CLINICA No campo da psicologia, o que é entendido como clinica principalmente a psicoterapia, ou seja, o trabalho clinico no con. sultdrio. Mas esse trabalho clinico pode ter como base concep- bes psicolégicas diferentes, das quais resultarao diversas formas de psicoterapia. Assim, torna-se dificil dizer com precisio 0 que € a dinica. Nao s6 variam aqui as teorias psicol6gicas, mas 0 pr6- prio conceito de psicologia nem sempre fica muito claro, Por isso, quero me deter aqui na compreensio dessa palavra psicologia Af encontramos, etimologicamente, logos e psique. Pense- mos um pouco na histéria desses dois termos. Podemos ver no livro de Heidegger, Herdclito, que a pala- vra logos jé aparece no século 6 a.C. com Herdclito. Esse filésofo dizia em seu framento de niimero 50: “Auscultando nao a mim, ‘mas ao logos, é sébio dizer que tudo é um’! Se pensarmos o “um” como 0 que unifica ou reine, compreenderemos o sentido de 1 Heréclito, Fragmento 50, em: Pensadores Origindrios. Petrépolis: Vozes, 198. colheita que a palavra logos ja teve um dia. Como colheita, como © que tudo retine, logos pode ser pensado como o ser de tudo, © ser dos entes na totalidade. E, se os homens podem escutar 0 dizer do logos, isso significa que eles esto abertos para ele. De ois, porém, quando a logica se desenvolve na metafisica, o logos Passa a ser concebido como 0 enunciado, ou seja, como 0 que anuncia que algo é algo. Mas ai logos também se mostra como 0 que se anuncia no anincio ¢, assim, logos se revela como a ideia. No aniincio, porém, toma-se algo como algo, isto é, ocorre um julgar, ¢ esse julgar é expresso pelo verbo reor, do qual se deriva ratio, razio. E logos passa a ser considerado, entio, razao Em seguida, logos, que ja significou aquilo que reine tudo ‘como um no ser e que é passivel de ser escutado pelo homem, vai paulatinamente assumindo no decorrer da histéria da metafisica © significado de enunciado, de ideia, de juizo, de razao. E, por fim, logos chega a ser tomado como o conhecimento. £ 0 conhe. cimento que ordena e organiza as determinacdes mais universais dos entes em categorias, No mundo ocidental, o conhecimento considerado como logos constitui-se com um cardter especial que podemos descre- ver da seguinte forma, De modo geral, ele parte de situacdes ou casos particulares e, depois de um processo de abstracao, chega a generalizacdes mais amplas, o que permite o estabelecimento de categorias e a formulagdo de leis gerais que possam reger aquilo que & conhecido; ou, a partir de principios ou ideias gerais, dedu- tivamente, segundo as leis da l6gica, chega a explicacao de casos. particulares. De um modo ou de outro, porém, é importante que ele opere com universais, ¢ isso implica um distanciamento da realidade enquanto 0 “em cada caso’, o “tinico’, “esta coisa aqui’ Assim, a partir de um certo momento da hist6ria da filosofia, as coisas do mundo, que ai estdo para que sejam conhecidas, pas sam a se chamar objetos. IDEGGER, Martin. Hericlto. Rio de Janeiro: Relume Dumari, 1998 2 Para abstrair, é preciso deixar de lado as caracteristicas par- ticulares de cada objeto e buscar as caracteristicas essenciais que © constituem. O singular & inscrito numa categoria que o con- tém ¢, assim, o conhecimento pode desenvolver-se, organizar-se como verdadeiro, como veritas. Em resumo, é preciso que haja ‘um afastamento do singular para que se constitua o logos. Hi algumas caracteristicas préprias do conhecimento, en- re as quais podemos destacar quatro. Uma delas ¢ a atomizacio, isto é, para conhecer é preciso decompor o que vai ser estudado em seus elementos mais simples. Isso vale para todas as ciéncias, incluindo a psicologia desde seu inicio, em seus estudos das sen- sages e no associacionismo. Mesmo depois, essa tendéncia se mantém nas teorias que descrevem os componentes da estrutura do psiquismo e seus mecanismos. Outra caracteristica a procura por explicagdes causais O objeto de conhecimento que esté em jogo deve ser estudado tendo em vista a busca de explicagdes que justifiquem o fato de ele ser 0 que é, como é. As explicagdes so dadas em termos causais, isto &, 0 que vigora é o principio da causalidade. Assim, passa-se a achar evidente que conhecer algo seja identificar suas causas Uma vez conhecidas as causas de algo, torna-se possivel a busca de meios que permitam interferir nessas causas. Dessa in- terferéncia pode resultar a alteracéo daquela realidade. Conheci- mento, nesse sentido, passa a ser um instrumento de interven¢ao, de modificagao de uma realidade. A possibilidade de modificar ‘uma realidade ou situacéo confere poder a quem a possui e, as- sim, 0 conhecimento se constitui como instrumento de poder. Nao é a toa que Plato, que se dedica & criagdo de um sistema filos6fico, idealiza também uma teoria politica de organizacao da cidade. No decorrer da histéria do mundo ocidental, 0 conheci: mento, sob a forma da ciéncia e da tecnologia decorrente, foi se tornando de tal forma necessério e poderoso, que ele hoje est presente em todos os setores, dominando o planeta. Uma quarta caracteristica decorre da anterior, pois, poden. do interferir ¢ modificar uma realidade, 0 conhecimento con. segue controlar essa realidade de acordo com o que é por ele considerado desejével. Nesse caso, conhecer equivale a ser capaz de submeter a realidade, de destruir o indesejavel e, nesse sen- tido, ele ¢ luta. Podemos pensar em exemplos: Se for conhecida a causa de uma doenga e for possivel i meio de um medicamento, isso significard poder climinar essa terferir nessa causa por doenga; 0 conhecimento de um assunto numa determinada érea pode ser usado por aqueles que o detém como fator de pressio ara a modificaco do modo de pensar das pessoas sobre aquele assunto, em favor do que eles consideram como sendo o bem € contra 0 que eles identificam como mal; mesmo no ambito das religides, algumas vezes é mais valorizado 0 conhecimento oderoso que luta contra o mal, representado pelo deménio, do que o saber que aproxima de Deus. Embora o conhecimento resulte numa possibilidade imen. sa de atuagao sobre a realidade, ele, em sua elaboragio, em sua constituigao como teoria, se faz.em meio a uma determinada ati- tude de distanciamento diante das coisas do mundo. £. preciso distanciar-se para conhecer, pois a ciéncia é feita abstraindo 0 que é particular e indo a procura do que é comum, do que pode ser categorizado e assim chegar a leis gerais. Quando 0 que est em questdo é conhecer 0 homem, também acontece 0 mesmo. © homem, como objeto do conhecimento é conhecido no dis tanciamento considerado como cientificamente indispensivel. Podemos dizer que o logos, tal como é entendido no mun. do atual, é esse conhecimento racional que opera a partir de um recuo, de um distanciamento categorizador, em busca do uni- versal. E 0 conhecimento que formula a teoria. Ele é geralmente simbolizado por metaforas que falam da luz da razio, que ilu- mina. S40 metéforas que privilegiam o olhar, o enxergat. Teoria, em grego theoria, contemplacéo, tem também um sentido que remete a um panorama que se estende diante da vista. a4 Se logos significa conhecimento, a palavra psicologia deve significar conhecimento da psique. E 0 logos que opera na psicologia tem as mesmas caracteristicas daquele que opera nas ciéncias naturais, o mesmo distanciamento do seu objeto do conhecimento. A palavra psique, de onde provém psiquismo, também tem, por sua vez, uma histéria Psique deriva-se do grego psyche, com 0 significado de so- pro, como em um sopro de vida. Psiquico vem de psychikos, que 6 relativo a0 sopro, a vida, aos seres vivos, & alma como principio de vida. A palavra latina equivalente & anima, alma. Assim, no inicio, as palavras psique e alma descrevem uma peculiaridade dos seres vivos em geral. Para Aristételes, a alma é a forma, no sentido de esséncia, de todos os corpos naturais que tém vida. As plantas tém a alma ‘que responde por suas fungdes de alimentacdo, crescimento, re- produgao. A alma dos animais, alma sensitiva, desempenha mais ‘outras fungdes, como discriminacao, locomocao. E a alma dos seres humanos, além dessas fungdes que so comuns as plantas e aos outros animais, tem algo que a distingue, isto é, tem a facul- dade da razio. O homem é o animal racional, pensamento de Aristételes predomina durante toda a Idade Média, com as modificagdes introduzidas por Séo Tomés de Aquino. No século 17, porém, Descartes rompe com a tradicao aris- totélica. A partir dele temos um dualismo: de um lado, algo que conhece, a res cogitans, ou seja, a coisa pensante, o pensamento e, de outro, a res extensa, ou seja, a coisa extensa, a matéria, isto tudo o mais que ha para ser conhecido, mesmo o corpo humano. AA res eogitans é a substancia pensante, a alma cartesiana, mas esta perde a caracteristica de principio de vida que possuia em Aristoteles. Entdo, com o cartesianismo que vem em seguida, a Mas Palavra psique passa a se referir Aquilo que diz respeito ao sujei- to, a subjetividade, mente ou consciéncia, a qual cabe conhecer o que existe no mundo externo a ela Visando a explicagio de como é possivel que exista 0 co- nhecimento, surgem as tendéncias racionalistas, que privile- giam a mente, a razio, como fundamento de todo 0 conheci- mento possivel, assim como as tendéncias empiristas, para as quais todo o conhecimento se deriva direta ou indiretamente da experiéncia sensivel As teorias do conhecimento procuram esclarecer como a ‘mente entra em contato com 0 que existe fora dela, como & que cla conhece o que ha para ser conhecido e como podemos ter certeza de que aquilo que conhecemos é verdadeiro. Com isto, as coisas do mundo se transformam em objetos. E como se a coisa perdesse a dignidade de ser coisa para passar a ser objeto. E,nesse contexto, quando falamos da verdade, nés nos referimos @ uma verdade objetiva a cujo conhecimento chegamos funda- mentados no método cientifico. No final do século 19, as questées relativas & mente € ao comportamento humano sao levadas ao laboratério pela pri- meira vez para serem estudadas cientificamente. Na Alemanha, ‘Wundt faz, pesquisas na drea de sensagdes e percep¢es, avalian. do tempos ¢ modos de reagao diante de estimulos como cor, ta- manho, profundidade, movimento. Preocupa-se com a capaci- dade mental de organizar ativamente as informagoes, No século 20, Freud, tendo seu foco na clinica, comeca a delinear sua concepgio da estrutura do psiquismo e do seu fun- cionamento e descreve os mecanismos que nele operam. Ai no 86 estdo presentes as palavras psique, mente, consciéncia, como também surge com importincia muito grande a palavra incons. ciente como forte determinante de grande parte do que se passa na subjetividade e no comportamento humanos. Mas nesse mesmo século destacam-se também duas outras tendéncias importantes na psicologia: 0 behaviorismo, que com M46 eat seus estudos do comportamento mostra a importincia dos con dicionamentos, ¢ a gestalt, que estuda o fendmeno da percepcio. Segundo o behaviorismo, 6 0 que pode e deve ser conhecido do sujeito é 0 que ¢ observvel externamente, o que pode ser quan- tificado, medido e controlado, isto é, 0 comportamento. Esse & 0 objeto de estudo, de pesquisa, Desenvolvem-se, assim, as teorias, comportamentais. © que antes pertencia a0 Ambito do sujeito ou da subjetividade passa a ser visto como algo que pode ser estu- dado ou conhecido por meio do mesmo método cientifico das ciéncias naturais, com sua objetividade caracteristica Além disso, com 0 desenvolvimento das pesquisas que vi- sam a0 conhecimento mais detalhado do cérebro e suas fung6 aumenta a compreensio que temos dos componentes orginicos que interferem nas emogoes, no pensamento, nas doencas men- tais. Nessa perspectiva, espera-se que a ciéncia objetiva, no caso @ neurociéncia, dé conta da explicagao da chamada vida psiqui: ca. O que eraa subjetividade torna-se algo objetificado. A alegria a tristeza tornam-se uma questo de niveis de serotonina; a fé, uma questio de sinapses. Nese momento, notamos que a palavra psique, que jé sig- nificou alma ou espirito, cede lugar a psique com outros signi- fcados: pensamento ou consciéncia que pensa o objeto; mente; Psiquismo, que abrange nao s6 o consciente como também o in- consciente. Nesse caso, 0 foco ainda é mantido na subjetividade, em algo interno ao homem. Ao mesmo tempo, porém, segundo c outro enfoque, o comportamental, embora o termo psique per- manega na palavra psicologia, pois fala-se de psicologia compor- tamental, esvazia-se o seu cardter de subjetividade, e o importan te passa a ser 0 comportamento observavel. Além disso, temos ainda a neurociéncia, que progride no estudo do cérebro, permi tindo-nos falar de uma neuropsicologia, na qual a palavra psique «que ai esté contida diz respeito a um dado totalmente objetivo, Isso significa que aquela conotacio de subjetividade que cercava a palavra psique evapora-se, na medida em que pensamentos, 7 emogdes, valores, problemas oe “mentais” podem ser explicados eeaeceiea enzimas, neurotransmissores etc. wna oahnente a nko ea psicandlise, cua perspecivaéa de utura inconsciente subjetiva determinante da experién 7 ioe ou seja, do modo como o objeto vai se apresentar os Fae das teorias caminha em direcio a obje. Assim, quando hoje empregamos a expressiv clinica psico- Logica, a“psique” que compae a palavra“psicologica’j& nao diz respeito ao que ela significou no passado. E outro compone; “ tro componente da palavra, o “logos”, significa agora aquele conhecimento que se organiza em teorias, que distancia seu objeto para poder expli o conheciment que visa a0 seu objeto, a p que é proprio das ciéncias c4-1o, categorizé-lo. £0 conhecimento que, de um modo semelhante aquele m geral Na clinica psicol6gica, embor pow ra psicologo nao pense o tem: otamos 0 quanto, em geral, seu trabalho é determi nado pelos padrdes caracteristicos do logos como conhecimento. Sua tendéncia é geralmente esta: agir de acordo com aquela erspectiva que, diante do objeto a ser conhecido, procura de- ome ‘ara melhor encontrar explicagbes causais¢, assim, Poder ntfs wa realidade para produzir alguns resultados Sonsiderados desejaves. E preciso conhecer as causus da queixa Paciente para poder lutar contra o “mal” seja esse o sintoma, sito distirbio, seja 0 que, no inconsciente, ¢ o fator de per {irbagio. A clinica aparece como um processo de intervengio Psicélogo frequentemente veste a armadur , a para ir a luta e, como Sao Jorge, matar o drag; Jeceoabape io, Nessa empreitada, ele acab se preocupar, pois a ind ft cdo mais “dra. oe idistria quimica esta matando mais “dra- Bes’ ¢ com mals eficéncia do que ele. Mas, uma vez mortos eunkaesise ‘dragées’, controlados os sintomas, surgem ou- questdes. Uma pessoa pensa, por exemplo: “Que bom, com 0 Mas remédio agora nao tenho mais aqueles sentiments de antes, no estou ansiosa, deprimida; foi tudo modificado por meio de uma ‘quimica, Mas, entio, os meus outros sentimentos 0 que so? O amor que sinto por meus filhos, a alegria que aparece as veze saudade de certas pessoas, serd que tudo isso também é s6 uma {questo quimica?” Ou pode pensar: “Passou a coisa ruim que eu estava sentindo, mas minha vida continua sem sentido.” Além disso, sabemos que a pressa em eliminar o que incomoda impede {que a pessoa se aproxime de suas questdes mais basicas. Nao es- tamos negando, entretanto, a importancia do acompanhamento psiquiitrico em certos casos, quando a necessidade de um remé: dio ¢ fundamental Analogamente a atomizagio que caracteriza o conhecimen- to cientifico em geral, hé a tendéncia de ver o problema trazido pelo paciente de uma forma pontual, de decompé-lo num aspec to especifico. Com base nisso, 0 curar também é sempre pontu- al, Ja existe 0 especialista em problema sexual, em anorexia, em crise de pinico. O importante é se ver livre daquele problema. 0 que aconteceré daqui a uns anos... bem, isso se resolver de- pois com um outro especialista Na clinica psicolégica tem prevalecido a intengao de curar paciente, liveé-lo de um mal, de algo que esté errado. A fun do curar & pragmitica. Curar significa eliminar algo, tal como nna medicina ¢ importante destruir o virus, a bactéria, aquilo que esta configurando a doenga. Se temos a perspectiva da cura, nosso trabalho mergulha nessa referéncia do mal e da necessidade de destruir, de elimi nar o problema. O paciente pergunta como ele deve fazer para acabar com o problema. Ele nao vé que aquela dificuldade pode ser oportunidade de crescimento; ele s6 se vé como alguém sub- metido a um mal. Por exemplo, o problema de alguém esta nos receptores de serotonina: para resolver esse problema, ele preci sa de um determinado remédio. Outro come demais e engorda muito; isso que est acontecendo ¢ um erro e precisa ser elimi M49 nado, Nessa perspectiva, nem o paciente nem o terapeuta veem que ali hd uma questao, sim, mas a que: crescimento, para uma aproximagdo maior da vida pessoal com 10 € um convite para um as suas contradigdes. Eles veem que ali hé um erro ou um mal que deve ser subjugado, eo quanto antes. Aquele paciente quer submeter a sua fome, reduzir o seu estomago. Ele pede ao médi- co que tire de suas maos a liberdade de comer ou de néo comer, ele nao suporta lidar com a sua liberdade. A liberdade pode ser um fardo muito grande. O paciente cobra do profissional que ele o cure de alguma forma, mesmo que essa cura implique perdas tio terriveis como quando ele pede que sua liberdade the seja tirada. A pressa em eliminar um problema pode eliminar também uma oportunida: de de crescimento. De modo geral, a clinica psicolégica, algo tio concreto € presente nos tempos atuais, tem se ancorado em uma teoria do conhecimento que estabelece o logos categorizador como 0 modo privilegiado de conhecer e em alguns pressupostos meta- fisicos sobre o homem, o mundo, a realidade. © dualismo carte- siano ainda é tacitamente aceito, com tudo que decorre dele. Mas, a partir da fenomenologi mento de Heidegger, esse dualismo € superado e temos um novo paradigma, o ser-no-mundo, que modifica totalmente a nossa especialmente do pensa compreensao do homem, do mundo e do que significa conhecer, ¢ isso repercute no modo como concebemos a clinica. Como terapeutas ligados ao pensamento da Daseinanalyse, a0 pensarmos a respeito da clinica psicol6gica, nés nos situamos de uma maneira diferente tanto diante do logos como da psique, tal como aparecem na palavra psicologia, e, consequentemente, diante da chamada clinica psicolégica. Quanto ao logas, a Dasei- analyse faz uma critica daquele conhecimento que, como logos, se assume como modelo universal e absoluto. E, quanto a psique, com o significado de uma estrutura interna, tal conceito, para nés, torna-se esvaziado de sentido, pois concebemos 0 ser humano como Dasein, ser-ai, originariamente sempre ja ser-no-mundo. Nao consideramos 0 logos, conhecimento racional que se distancia do seu objeto para chegar ao geral, ao universal, como 0 modelo iinico ou privilegiado do conhecer. Pensamos que esse conhecimento, tao bem representado pelas metéforas que falam do olhar sob a luz — a luz da razdo —, de certa forma rejeita 0 saber. Pois 0 saber se realiza em outras dimensées também. E, nesse caso, hé outras metiforas que podem ser lembradas, aque las que se referem a outros érgios dos sentidos. No enxergar sob 4 luz da razao pode haver clareza, mas nao hé intimidade com 0 que é visto. E 0 saber se faz na intimidade. O saber é sempre um sabor, e o sabor & 0 gosto do que ingerimos, do que incorpora- mos é algo que sentimos na boca. O saber se faz.na proximidade. 3 como 0 tato aproxima! O olho nao conhece no escuro, mas 0 tato, sim. O olho trabalha na distancia; o tato, na proximidade, como quando podemos sentir algo com as maos. Pelo olfato co- ahecemos 0 que nos rodeia e, metaforicamente, dizemos algu- mas vezes — isso ndo me cheira bem —. E também dizemos que 4s situagbes ¢ as coisas falam para quem sabe ouvi-las. saber aproxima, pode chegar perto da manifestagao das coisas, Esse saber permite que tenhamos com elas uma relagio de intimidade, que tenhamos com as coisas a liberdade de quem se sente na familiaridade e em casa com elas. E é exatamente esse 0 modo de conhecimento ou de saber que vem hé muito tempo sendo posto de lado em nosso mundo. O fato de esse saber ter sido posto de lado e de o logos ter sido privilegiado no decorrer da histéria da metafisica aparece junto com aquilo que Heidegger chama de “o esquecimento do ser’: Penso que 0 esquecimento do “ser” comega com a recusa da intimidade. A proposta de se relacianar de longe com as coisas talver seja a marca daquilo que se desdobra nas implicages do desenvolvimento da metafisica. Eno que se refere a psique, com a concep¢ao de existéncia humana como Dasein, set-no-mundo, conceitos relativos a uma estrutura psiquica interna e a um mundo externo deixam de fa- zer sentido para nds. Isso representa uma mudanga radical em ‘nossa compreensio a respeito de quem é aquele que nos procura em nossa clinica. Ao propor o conceito de Dasein, ser-ai, que é ser-no-mun do, Heidegger mostra que hi de mais peculiar av homem, aquilo que o distingue de todos os outros entes, mesmo dos ou: ‘ros animais. O Dasein é aquele que carrega consigo 0 vazio do seu proprio ser, esse vazio que é 0 espago de tudo aquilo que ainda nio é, que ainda nao aconteceu, que ainda no se tornou real, mas pode ser, pode se tornar real. O existir humano tem 0 cardter de ser sempre nao-acabado, e, por isso, sempre vindo-a- ser. Dizermos isso implica algo surpreendente: o fundamento do homem como Dasein é um ndo-ser, pois s6 aquilo que, desde o fundamento, se apresenta como nio-ser pode ter a caracteristica do vir-a-ser. Ao considerarmos a existéncia, ou seja, 0 Dasein, como esse que vem-a-ser, desdobra-se para nés a perspectiva do tem- Po: tempo que suporta, que instaura, que abre a possibilidade de que esse ente, cujo fundamento € ndo-ser, se dedique & tarefa de vir-a-ser. Existir é temporalizar. O Dasein temporaliza. O existir implica tempo — o dar-se de tempo para o Dasein e 0 ser aberto. de Dasein para tempo. Dasein, sendo fundamentado em um nio-ser, & aquele ente ‘Cujo existirtraz consigo a falta. Mas é igualmente aquele que, ten- do como caracteristica o vir-a-ser, tem o seu existir como encargo; € isso significa precisar cuidar dos desdobramentos de sua exis- téncia, ter de desenvolver-se para realizar sua vida. E a vida do homem se movimenta em dire¢io ao que é sentido como capaz de Preencher a falta. E aqui que aparece o sonhar, é aqui que surge 0 desejo. £ curiosa a nogio de desejo, pois o fundamento do desejo é © vazio da falta. Se nada falta, o desejo nao se configura. Mas 0 de- sejo ndo & meramente falta. Ele busca algo, anseia por algo. O an- seio, que brota da falta, busca um propésito, isto é, algo colocado adiante. Hé no futuro alguma coisa que se anuncia como capaz de preencher a falta, ¢, no momento em que a falta encontra a forma que pode preenché-la, configura-se 0 desejo por algo. Existindo, ‘o homem deseja, faz planos, sonha com o futuro. Seu movimento de temporalizagio inicia-se na aspiracao a algo que toma forma de alguma maneira no futuro e que assim se torna um apelo. Esse € 0 primeiro momento da temporalizacio, isto é, os homens sonham com 0 que ainda nao €. O sonhar refere-se a0 modo como o ho- mem de fato existe: ee, 0 tempo todo, lanca para adiante de sia configuracao de propésitos, objetivos, intengdes, motivos, desejos ¢, nisso que ainda nao existe ele se apoia para se relacionar com aquilo que existe. O jeito como ele age concretamente com as coi sas que existem brota, nasce, justifica-se e se fundamenta naquilo que ainda nao existe. © homem esta sempre querendo chegar a algum lugar. Esse lugar, mesmo que ele nao chegue la, ja esta sem- pre presente no momento em que, nesta realidade concreta, ele dé © primeiro paso naquela direcao. £ a isso que me refiro quando ‘uso a expressio: o homem é o animal que sonha. Mas 0 homem é jogado também em diego ao pasado, a0 que jé nao é, mas jé foi. Ele nao s6 projeta e abre a perspec tiva do vazio daquilo que orienta sua acdo, como abre também a perspectiva daquilo que nao existe mais, mas que, de certo modo, continua existindo nesse espaco vazio em que as coisas que foram podem retornar, pois 0 homem recorda. Ele traz de volta, porque 0 passado passa do ponto de vista concreto, mas 0 homem resgata isso que passa e traz.o passado para a presenca daquilo que se apresenta no presente. E é olhando para o passado que ele se depara com as relagdes existentes entre causa e efeito, © estabelecimento dessas conexées instrumentaliza-o para ir em busca daquilo que deseja. Ele pode se orientar em diresao ao seu propésito com base no que ja sabe do passado, Esse volt © passado constitui o segundo momento da temporalizagio. O terceiro momento, talvez o mais valorizado para a mo- dernidade, ¢ aquele em que a temporalizagao se efetiva como presente, Uma vez aberto para 0 futuro na referéncia do pro- pésito, voltado para o passado em que, podendo considerar 0 ja sido, os recursos po iveis se mostram para ele, 0 homem langa-se na tarefa de, no presente, realizar-se e ser a oportuni- dade para que se manifestem, tornando-se reais, as possibilida- des dos outros entes no mundo, Nesse sentido, o presente nao € apenas o momento que est passando, um ponto na linha do tempo cronolégico, Chronos; ele é a oportunidade, a ocasiio, € kairos, Ele € 0 Ambito, o espaco ou o “lugar” em que Dasein Ee ‘0 que deve realizar e se realiza enquanto ente que esté Dasein é, entio, esse ente aberto para as possibilidades nas, dimensdes do futuro, do passado e do presente; esse que, fatica- mente tendo de ser, realiza sua existéncia; esse, cujo modo de ser € ser-ai, é ser-no-mundo. E mundo ¢ mais do que a totalidade de tudo o que existe. Mundo é, antes de tudo, o horizonte das possibilidades no qual tudo 0 que existe, toda a realidade, todo o universo pode aparecer, pode se manifestar; e é para o Dasein que os tes do mundo se manifestam em seu ser. Dasein é 0 “ai” do ser, ¢, nesse sentido, Dasein é lugar; € 0 lugar onde mundo se faz mundo. E Dasein desdobra-se também. em histéria; histéria em que a multiplicidade de todas as coisas, de todos os acontecimentos, ou seja, de tudo 0 que para ele se manifesta, se retine como sendo manifestagio do ser, isto é, se realiza, Além disso, Dasein é também o lugar do abrigo, o lugar do cuidado, da realizagio de todo o real. E no cuidado, 0 carter essencial do ser-no-mundo, que o mundo se faz historia e que Dasein se faz si mesmo, faz a histéria que ele &. O cuidado pode se realizar concretamente dos mais variados modos, incluindo os modos do descuidar, do cuidar mal Esse lugar, que é tanto espaco como tempo, onde futuro, passado e presente se alcancam reciprocamente, é 0 Dasein, Dissemos antes que é no presente que o Dasein se realiza em seu vir-a-ser, de acordo com seu propésito, levando em con- ta 0 jd sido. Mas 0 modo como ele compreende e avalia esse pre~ sente inclui mais do que isso; ele compreende 0 que est sendo como uma possibilidade que poderia ser outra diferente dessa que esta sendo. Tomemos um exemplo, Voce esta assistindo & aula e, ao ver o sol Ié fora pela janela, pensa: “Hoje eu poderia ter viajado, poderia estar na praia; amanha, que é feriado, pode estar chovendo, ¢ justo hoje estou aqui. Que pena!” Mas voce poderia também estar pensando: “Nossa, ainda bem que hoje pude vir assistir A aula! Do jeito que eu estava doente ontem, achei que hoje nao pudesse nem sair de casa.” Voce poderia e tar na praia, poderia estar doente e muitas outras coisas “pode- riam” estar acontecendo. Mas vocé sabe que isso nao pode mais, acontecer porque, se essas outras coisas tivessem acontecido, até este momento, isto que esté acontecendo agora nio poderia es- tar acontecendo, pois s6 uma possibilidade pode se realizar a cada vez, todas as outras sio de certo modo “jogadas fora’: No centanto, essas possibilidades que nao mais podem ser, que tam- bém nunca foram, esse dia de hoje que podia ter sido e nao foi, tudo 0 que nao foi nem sera e, portanto, é puro nada, constitui um nada prenhe, um vazio pleno de possibilidades. O Dasein se caracteriza por ser essa abertura para o vazio das possibili- dades, E essa condigao de cheio de possibilidades permite que cle, apoiado nas possibilidades que so nao-ser, ainda-nao-ser € er, olhe 0 que ndo-mais-ser, ou seja, a partir disso que é 0 ni esti sendo e avalie. Avaliar significa inscrever 0 real no contex- to do possivel. O bom e o ruim naquilo que esta acontecendo 6 dado quando colocamos 0 que esta acontecendo, o real, no conjunto do possivel Dependendo das possibilidades com as quais comparamos a realidade que se efetivou. nés nos sentimos felizes ou infelizes, satisfeitos ou arrependidos. No arrependimento diante de uma determinada situacdo penso: “Eu podia ter feito de outra forma naquela hora” E 36 .. podia, pois aquela hora jé passou ¢ aquela outra forma de ser nao se realizou. Mas esse saber que “podia” faz com que isto que esti realmente sendo agora fique colorido de um certo modo. Aquele vazio pleno de possibilidades s6 pode se apresentar 0 homem, porque o homem fala. A palavra é principalmente 0 recurso que permite 20 homem configurar 0 possivel. Pela pa- lavra posso fazer aparecer na comunidade dos homens o que € apenas possivel ¢ nao real. A palavra é 0 recurso que de algu- ma forma confere uma certa realidade para tudo aquilo que nao existe, que € mera possibilidade. E confere esta certa realidade Porque permite que nao sé eu configure, imagine, perceba de certo modo essas possibilidades que nao existem, como também que compartilhe com outros homens um conhecimento a respei to dessas possibilidades. O fazer humano ¢ ligado ao posstvel. O homem transcende vai além, porque, pelo fato de ser capaz da linguagem, por ser possuidor da palavra, ele & arrancado do interior da realidade e projetado no espaco das infinitas possibilidades futuras, passa- das, presentes, Ao ser jogado nesse plano das possibilidades pela fala, ele prova desse plano como cho, como fundamento, ¢ € a Partir desse plano que ele retorna ao real, qualificando esse real em termos de significados. Retomando o que estavamos dizendo a respeito da clinica Psicol6gica, depois de, ainda que rapidamente, termos nos de tido em alguns pontos que caracterizam 0 pensamento da Da. seinanalyse, torna-se claro que a nossa visio do trabalho clinico deve apresentar caracteristicas peculiares, coerentes com essa compreensio de homem, de mundo, de existéncia; coerentes com a superagio dos dualismos sujeito-objeto, interno-externo: coerentes com 0 modo fenomenolégico de abordagem das ques- (Wes trazidas pelos que nos procuram para terapia. 156 Uma caracteristica da clinica sob 0 enfoque da Dasein: nalyse consiste no fato de enfatizarmos ndo 0 curar, com o signi ficado de eliminar um mal, mas o tratar, embora essas palavras guardem um sentido semelhante, pois tratar € cuidar, e cuidar tem a mesma etimologia de curat. ‘Tratar € compreendido como o exercicio do cuidado. Com- preendemos o paciente como alguém que precisa ser cuidado, que precisa de abrigo porque, por alguma razav, a existéncia dele se viu solicitada por algo ao mesmo tempo delicado, dificil ¢ importante. Tudo que é delicado demanda cuidado, pede que seja bem tratado, pois o que é delicado se destréi com facilida: de se for maltratado. O que € dificil precisa de cuidado, pede {que a pessoa se detenha, pare para olhar melhor, pense bem, e, ai, cuidado quer dizer “tome cuidado’ E todo cuidado é pouco em relacao aquilo que é importante, que é valioso. Quando uma situacio se apresenta com essas trés caracteristicas, ou seja, deli- cadeza, dificuldade e importincia, ela surge como um problema que solicita cuidado. Curioso é que a palavra problema, que pertencia primei- ramente a matemitica, passou a ser usada no sentido de pro- blema psicolgico. E comum, porém, que paciente encare a expressio “problema psicolégico” como uma coisa negativa e prefira dizer que tem um “problema existencial”, Para a maioria das pessoas, ter um problema psicolégico parece uma incom: peténcia, uma vergonha, mas ter um problema existencial pode parecer coisa de gente profunda; lembra Sartre, angustia, fild- sofos, pensadores, artistas. Engracado é que ainda nao inventa- ram remédio para um problema existencial, s6 ha remédio para problemas psicologicos. Para mim, a palavra problema tem um sentido precioso. Descobrir seu significado me ajudou a compreender que hi um valor moral de hem e de mal ligado a ideia de problema psicolé. gico ou existencial. Em nossa época e cultura, problema é visto como impedimento, barreira. Tendemos a perceber no problema 157 86 0 mal e esquecemos que ele carrega em si também a dimensio essencial do bem. Lembro-me de uma brincadeira de moleque que consistia em dizer: “Eu sei a solucio para qualquer problema.” Quando a pessoa perguntava qual era a solucio, a gente respondia: “Dar uum tiro na cabega. Morto néo tem problema.” Pensando depois nessa brincadeira, vejo que s6 os vivos tém problemas. (© termo problema indica que ha uma barreira. Quando di zemos que temos um problema, indicamos, com isso, que esbar- ramos num obstéculo, numa barreira que impede nosso objeti- vo, Mas sé ha barteira para quem tem vida, tem forga, tem pulso, tem propésito, Para quem nao tem nada disso, nao ha problema. Uma parede diante de mim s6 ¢ uma barreira se eu quiser passar para 0 outro lado e ndo dispuser de outra passagem. A barreira 6 € barreira diante do meu propésito, do meu desejo, do meu projeto, da minha necessidade de movimento. A palavra problema vem do grego problema, atos, derivado de proballo, em que o radical ballo tem o significado de lancar. Assim, essa palavra esté em conexo com algo que é langado, que se movimenta, Isso nos sugere que o problema surge carregando uuma energia que faz com que alguma coisa se apresente como barreira, como algo que resiste. $6 quando hé algo existindo pode haver algo resistindo. Sendo o homem, como Dasein, aquele ente que se caracteriza pelo seu existir, que € um ek-sistir, ou seja, um ser jé fora, no mundo, tendo de realizar seu projeto existencial, tudo o que se apresenta como obsticulo a sua realizacio aparece para ele como barreira, como problema. £ a tensio da vida entre a forga que ek-siste ea barreira que re-siste. De uma certa maneira, ter problemas é uma expressio do vigor da vida. E como quando o pediatra diz que a febre alta da ctianga precisa ser controlada. Isso que é um problema é tam- bém sinal de que 0 corpo esta reagindo. Na perspectiva contemporanea, o ter de manter tudo sob controle ¢ eliminar rapidamente qualquer sofrimento faz com 158 que o lidar com um problema se reduza, frequentemente, a mera idéia de luta, de busca de dominagdo, o que leva a pressa de que rer dominar o problema, sem levar em conta que é preciso antes de tudo que nos aproximemos dele, que ougamos o que ele esti contando sobre nés. Nos problemas que fazem parte da vida, o que ha é uma tensio que solicita atengio, Tudo aquilo que esté tenso tem algo a dizet, expressa alguma coisa, fala de uma existéncia, conta algo de uma relagao que articula esses dois elementos, existén- cia e resisténcia, num jogo que pode ser uma verdadeira paixio. A tensio que ai aparece pede um cuidado, e esse cuidado tem © carater do abrigo, Enfim, compreender 0 ser humano como Dasein, isto é ‘como ser-ai, como ser-no-mundo, como o ente que se abre para ‘© nao-ser, para 0 vazio das possibilidades, aquele que é a sua historia, historia constituida nao s6 pelo passado, pelo presente, mas também pelo futuro, aquele cujo carater essencial consiste no cuidado com a prépria existéncia, e isso inclui si mesmo, os outros, as coisas .., bem, compreender e aceitar 0 que tudo isso significa certamente confere uma marca bem definida ao traba- Iho do terapeuta daseinsanalista A tarefa da terapia daseinsanalitica consiste em tratar 0 pa- ciente com o propésito de ampliar sua liberdade, para que ele possa se aproximar da sua historia e fazer dela, propriamente, a “sua” hist6ria, na qual so acolhidos os fatos que jé se deram, 0 que esta acontecendo agora, e que se abre para o que pode vir a ser; em que cabern sua realidade, suas perdas, seus sonhos. As. sim, nao o passado, nao o presente, nao o futuro, nao a conduta, ndo 0 sintoma, mas a totalidade da sua histéria: € essa a nossa referéncia na clinica Sabemos da dinamica de dominagio que opera em nossa cultura que enfatiza a luta, o poder. A palavra poder é vista pre 159 valentemente como substantivo. Mas lembremos que ela tam. bem pode ser pensada como verbo; ai, entio, poder significa possibilidade. E com esta conotacao que o psicélogo daseinsana- lista prefere pensar o poder em seu trabalho clinico. Ele sabe que nao tem poder, mas acredita na possibilidade de que seu cuidado seja ocasido para que aquele que o procura possa prestar mais. atengao as suas proprias dificuldades e as suas proprias possibili- dades, possa cuidar melhor da realizagio de sua existéncia. TONALIDADES AFETIVAS NA TERAPIA 160 ‘Temos como ponto de partida a concepgao heideggeriana de homem como Dasein, ser-ai, que j4 & originariamente ser- no-mundo. Sendo no mundo, ele é a abertura que compreende mundo, ou seja, é para o homem que todos os entes se manifes- tam. Ser essa abertura compreensiva é 0 que nomeamos com 0 termo compreensio. A compreensio nio é tomada aqui no sen- tido comum de uma faculdade tedrica de conhecer ou entender, mas sim como um caréter constitutivo fundamental do Dasein, ou seja, como um existencial. A compreensdo articula-se com o carater de poder-ser do Dasein. Ela projeta o campo existen: cidrio em que ele pode realizar o poder-ser que ele é. Mas além de ser a abertura compreensiva de mundo, o Dasein, sendo no mundo, ai ele ja sempre “se encontra” disposto de algum modo. A esse modo de encontrar-se na abertura é dado o nome de dis: posicao, também um existencial, visto ser um caréter constituti vo do existir do Dasein. E, por ser a disposigdo um existencial, ‘ou seja, algo que ontologicamente caracteriza seu ser enquanto cexisténcia, ea esta presente junto a toda compreensio e a todo 161

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