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Tradugaéo PODER E DESVELO NA SALA DE AULA Belmira Oliveira BUENO” APRESENTACAO E NOTAS SOBRE A TRADUGAO © texto, cuja tradugao esta sendo apresentada neste niimero da REVISTA DA FA- CULDADE DE EDUCAGAO, traz 0 relato de um estude etnografico realizado em uma sala de aula de uma escola elementar nos Estadas Unidos. De autoria do Dr. George Noblit, da Uni- versily of North Carolina at Chapel Hill, esse trabatho foi pubticado criginalmente no American Educational Research Journal (Spring 1993, Vol.30, N° 1, pp.23-38) sob o titulo Power and Caring. Sua tradugio para o portugués foi considerada relevante, entre outras razdes, pelas contribuigdes que pode trazer aos pesquisadores interessados em fazer etnografia na escola ¢ na sala de aula Gostaria de chamar a ateng&o para dois aspectos. O primeiro diz respeito ao relato que 0 autor faz das mutangas que ele teve que operar sobre suas pressuposicées tedricas durante o percurso do trabalho de campo. Embora os etnégrafos tenham sempre se preocupa- do em ressaltar que este aspecto constitui, justamente, uma das forgas da etnografia, € curio- * professora Dautora do Departamento de Metodologia do Ensine e Educagao Comparada da Faculdade de Educagio da USP R.Fac, Educ., S20 Paulo, v.24, 1.2, p.119-137, julddez, 1995. v8 $0 observar que poucos autores tém se dedicado a exposi¢ao dos embates teéricos enfrenta- dos pela pesquisador quando ele vai a campo. Menos comum ainda é encontrar trabalhos nos quais os autores confessam estar abrindo mao de idgias que eles construiram durante todo 0 trajeto de sua vida intelectual. Independentemente de concordarmos ou no com as idéias e concepgdes expressas pelo autor, penso que esta € uma das notaveis ligdes que se pode aprender com este texto. ‘Alem disto, chamo a atengo para o estilo pouco usual empregado pelo autor - 0 ‘auto- testemunho' ou género confessional - cuja escolha deveu-se, segundo ele, ao fato de 0 pes- quisador ter tomade parte da cena da sala de aula e ter sido “dramaticamente afetado pelo estudo”. Este aspecto explicita ao leitor uma ordem de envolvimentos emocionais e afetivos a que © pesquisador se vé exposta no trabalho de campo, muitas vezes de modo inevitavel, mas que nem sempre 6 incorporada 4 descri¢do. Penso que essa caracteristica do texto também enseja reflexdes a respeito da etnografia quanda aplicada & pesquisa educacional, A propésito da tradugao propriamente dita, cumpre observar em primeiro lugar que a Palavra caring foi traduzida aqui por desvelo, por entender-se que este vocabulo traduz methor © Seu sentido no contexto da teoria em que este artigo se fundamenta, A sugestao foi da pro- fessora Denice Catani, a quem agradeco. Em segundo lugar, é importante esclarecer que para @ expressao African American foi mantida a tradugao literal - americano(s) afficano(s) - par exigéncia da American Educational Research Association. Espero que uma possivel estranhe- Za que 0 uso dessa expressao venha causar possa ser compensada pela reflexdo que sua presenga neste texto nos instiga a fazer sobre questées de natureza politico-culturais e suas repercuss6es no contexta escolar. Belmira Oliveira Bueno 120 R.Fac, Educ., Sao Paulo, v.21, n.2, p.119-197, julidez, 1985 PODER E DESVELO NA SALA DE AULA George W. NOBLIT University of North Carolina at Chapel Hill 0 desvelo com respeito a professores e alunos 6 geralmente definido como uma rela- 40 de recipracidade. O poder do professor nem sempre esta evidente nessa definigéio. Este artigo examina como o poder, na perspectiva do desvelo, pode ser visto como uma autoridade, moral, O estudo etnogréfico aqui relatado examina a sala de aula de uma professora tradicio- nal - de estilo centrado no professor - ea maneira com que ela construiu 0 desvelo usando seu poder. Sua construgéio contém uma critica as nosses maneiras usuais de pensar a respeito do poder. A medida que nesta etnografia o pesquisador fez parte da cena social da sala de aula € foi dramaticamente afetado pelo estudo, este artigo esta escrito no “auto-testemunho" ou género “confessional "Vocés me amardo mais depois que me deixarem." Pam Knight (um pseudénimo) es- tava me explicando o que ela sempre dizia a seus alunos de segunda série a respeito de seu relacionamento com eles durante suas aulas. Pam tinha mé convidado para passar um dia por semana em sua classe, como parte de nosso estudo sobre 0 desvelo em Cedar Grove School (um pseudénimo) e estava tentando fazer com que eu compreendesse sua relagéo com as criangas. Hoje, considero que sua afirmacdo dizia respeilo néo somente as suas criangas mas também a mim. Existe muita coisa nessa afirmacSo, Em primeiro lugar, indica que existe amor enire Pam e seus alunos (entre os quais me incluia). Ha a promessa de que este amor viria a crescer e a modificar-se ao longo do tempo. Ha a promessa de que este amor iria durar por muito tempo apés termos deixado de estar sob seus cuidados. Hé também uma mensagem de que 0s alunos teriam algo a aprender a respeito de amor, aprendizagem que viria ao longo do tempo e através da comparagao com outros professores. Mas, como tentarei explicar neste R.Fac, Educ, $80 Paulo, v.21, n.2, p.119-137, julidez, 1995, 121 artigo, essa aprendizagem também tem relagdo com a compreensao do que o poder e a res- ponsabilidade tem a ver com amar. Hoje, 20 pensar em Pam, vejo-a como uma pessoa que compreendeu a diferenga entre poder e autoridade moral. Ela compreendeu 0 que eu nao pude ver quando participei de sua classe de segunda série pela primeira vez: 0 desvelo em sala de aula ndo diz respeito a democracia - trata-se antes do uso ético do poder. Também devo admitir que este artigo € minha forma - um mado académico - de tentar examinar 0 que ela me ensinou. Por isso, meu texto, aqui, de muitas maneiras, é mais sobre mim mesmo do que sabre Pam ou sua turma. Clifford Geertz denominaria minha abordagem de “auto-testemunho", John Van Maanen a chamaria de um "conto confessional’. Tenho tentado analisar ¢ interpretar minhas copiosas notas de campo do ano que passei com ela com 0 objetivo de compreender como as relacdes de desvelo e afeto dos alunos esto ou nao ligados. © que tem mais me atrapaihado sou eu mesmo, Pam conseguiu desmontar minhas visdes “aprendidas" a respeito de educagdio e, agora, preciso colocar meus novos entendimen- tes em alguma ordem antes que eu possa continuar com outras tentativas na andlise dos dados. Essa tarefa acabou se tomando ainda mais dificil por eu ter descoberto em minhas notas de campo algo mais que Pam tinha me contado quando Ihe perguntei a respeito da telagao entre desvelo e 0 afeto do alune. Ela disse: "E nao séo a mesma coisa?" Hoje tenho certeza de que ela esta certa mas, como todos os alunos intrataveis, tenho que chegar a essa conclusao por mim mesmo, procurando primeiro compreender a que ela me ensinou antes de poder usar 0 que aprendi ALICAO ESTA NO APRENDIZ Pam realmente me atingiu, Ela fez com que eu reconsiderasse todas as minhas visdes a respeito de poder e de desvelo, os dois conceitos que provavelmente permeiam toda a mi- nha histéria intelectual. O poder, e a invariavel ligago que dele faco com a apressao, tem sido ‘© assunto sobre o qual tenho pensado, ensinado, pesquisado e escrito durante toda a minha carreira, Conhega 0 poder concebide como trago dos individuos, poder concebido como rela- cdo entre as pessoas, € o poder institucionalizado em ideolegias e estruturas.* Conhego o poder que alguns chamam de poder “informal” das redes sociais: 0 poder de patrées sobre empregados e os jogos de poder de facgdes e grupos.* Considerei a concepgae de Michel Foucault, na qual o poder esté indelevelmente articulado com conhecimento, ("Nao é possivel ‘ Ciiford Geertz, Works and Lives (Slanfard: Stanford University Press, 1988), 73. ? John Van Maanen, Tales of the Field (Chicago: University of Chicago Press, 1988),73. * Nicholas Burbules, "A Theory of Power in Education", Educational Theory 36,n.2 (1986): 96-114. * Steffan W. Schmidt et al., eds., Friends, Followers, and Factions (Bekerley: Univ.of California, Press . 1977 122 R.Fac. Edue., S80 Paulo, v.21, n.2, p.119-187, julidez, 1995 exercer o poder sem conhecimento, é impossivel 9 conhecimento n&o engendrar o poder") € sua afirmagao de que a "genealogia do conhecimento precisa ser analisada néo em termos de lipos de consciéncia, modos de percep¢éo e formas de ideologia, mas em termos de taticas & estratégias do poder", o que Foucault chamou “os mecanismos da represséo".* Usei o poder para analisar género, raga e questdes organizacionais. Este tem sido meu principal foco. desvelo faz parte de minha histéria intelectual mais recente, tendo comegado com minha leitura de Carol Gilligan e Nel Noddings, seguido pela minha ajuda na formagao de um grupo de estudos de professores e alunos de pés-graduacao, em nossa Faculdade de Educa- do, para estudar a idéia de desvelo.® Levamos em conta relacionamento, estimulo, satisfa- cho, dependéncia e moralidade. Nossos estudes, por sua vez, nos conduziram 4 pesquisa etnografica sobre o desvelo em Cedar Grove Schoa! e ac meu ano com Pam. Pam me fez ver como © poder e © desvelo estéo ligados e, por conseguinte, me fez refletir sobre como eu vinha pensando, ensinando, pesquisando e escrevendo ao longo de toda a minha carreira Vocé ja deve ter concluido que Pam ¢ uma mulher poderasa: essa conclusdo 6 o tema central do que se segue. © QUE PROFESSORES PODEROSOS PODEM ENSINAR A TEO- RICOS DA EDUCAGAO. © pensamento educacional ainda ndo esta preparado para mulheres poderosas. Neste pais temos uma tradi¢ao de pensamento ligando escolas e democracia: o argumento comum € que as escolas devem ser locais onde as criangas aprendam os valores. dernocraticos, Esta linha de pensamenta tem uma longa histéria, Ao contrario da promogao de valores republica- nos feita por Horace Mann, John Dewey propds que as escolas deveriam ser estruturadas para promover valores democraticos.’ De fata, a crenga de Dewey num método cientifico de resolu- a0 de problemas estava figada a sua crenga de que esse processo permitia tomadas de decisao mais democraticas e o desenvolvimento de uma interdependéncia na vida social e na sociedade.® Apesar de partirem de pressupostos muito diferentes a respeito da natureza do conhecimento cientifico, os tedricos criticas também participaram dessa crenga, propondo que 0s professores precisam utilizar sua autoridade de forma criteriosa para néo reprimirem a juventude.? Percebemos um raciocinio semelhante no nivel da pratica do ensino por parte * Michel Foucault, Power and Knowledge, ed. Colin Gordon (New York:Pantheon Books, 1$80),52,77,90 © Carol Giligan, in a Different Voice (Cambridge: Harvard University Press, 1982), Neil Noddings, Caring (Bekerlay: University of California Press, 1984), ? Joha Dewey, Democracy and Education (New York Macmillan, 1918), * Chet A Bowers, Elements of a Post-Liberal Theory of Education (New York: Teachers College Press, 1987) * Henry Giroux, Ideology, Culture and the Process of Schooling (Philadelphia: Temple University Press, 1981).. R.Fac, Edue., S40 Paulo, v.21, n.2, p.119-137, julidez, 1998, 123 daqueles que promovem o ensino centrado no aluno em nome da democracia. Philip Cusick possivelmente levou a um extremo a analise do investimento da educagdo em nogdes de democracia e igualitarismo.'° Baseado em seus estudos de trés escolas secundarias publicas, ele afirma que “...o elemento dominante nas escolas... era sua abrigagdo de promover o ideal igualitario"."! Eu sabia de tuda isso quando comecei a freqdentar a sala de aula de Pam: pois, Na verdade, constituia a base de minha suposigao principal, Para mim, uma_boa sala,de_aula , © # era aquela que minimizava as diferengas de poder entre professores e alunos. Agora, também compreendo uma outra concepgao que level para a sala de aula de Pam: eu entendia 0 desvelo como sendo_relacional_e reciproco."* Entendia que as pessoas entravam numa relagéo de desvelo para serem satisfeitas e sustentadas e também para da- rem apoio e satisfagao, Cada uma beneficiando e se comprometendo com a outra.’® Eu tinha lido Noddings sobre a "solidez do desvelo" e Gilligan sobre a dependéncia como relacionamen- to e essas leituras me ajudacam a formar minhas suposigdes."* Embora eu nao fosse to ingénuo 2 ponte de presumir que uma relagdo de desvelo fosse uma relacdo de igualdade, eu n&o percebi o quanto eu vinha investindo no conceito de desvelo, Eu, que via o poder ligado & ~: opresstio em tudo, nao queria que 0 desvelo estivesse ligado ao poder e, assim, & opressao. Fisher @ Tronto Sem querer me ajudaram nesse ponto, argumentando que o poder freqiente- mente esta localizado em papéis distantes do verdadeiro desvelo. Mas € importante lembrar que minha interpretagdo de sua obra pravavelmente foge dos padrées."° Eu desejava que a “ética do desvelo" fosse original, que estivesse de algum modo além das questées de poder, as quais eu considerava tao essencialmente hegeménicas e masculinas As minhas pressuposigées a respeito de democtacia na educagao e a natureza do desvelo como sendo apolitica - formavam ambas um poderoso conjunto de crengas que levei para a sala de Pam, Como etndarafo de alguma experiéncia, eu estava mental e intelectual- mente preparado, quando fui a campo, para rever minhas crencas, mas eu nao estava prepa- rado para té-las destruidas com minha experiéncia na sala de aula de Pam. Eu ndo estava preparado para uma mulher poderosa, Eu nao estava preparado para sua definigao de desyelo como autoridade moral.__ Pam desenvoiveu seu poder naturalmente. Como pude perceber, alguns professores americanos africanos tém idéias atipicas a respeito de criangas e do ensino, Como explica Shirley Brice Heath, pode ser que adultos americanos africanos con: iderem as ° 1; Philip A. Cusick, The Egalitarian Ideal and the American High School (New York: Longman, 1983). "Ibid, 106 e 12 Gilligan, In a Different Voice; Noddings, Caring. ™ Nodaings, Caring. %Noddings, Caring, 108, Gitigan, Mapping the Moral Domain (Cambridge: Harvard University Press, 1988), 14. * Berenice Fisher and Joan Tronto, "Toward a Feminist Theoty of Caring’, in Circles of Care, ed. Emil Abel and Margaret Nelson (Albany, NY: Suny Press, 1950) “* Michelle Foster, “Caring of African American Teachers". Manuscript, University of California- Davis. 1991. 124 ReFac. Educ., $80 Paulo, v.21, n.2, p.119-197, julddez, 1995 & 2écriangas e nao como adultos em miniatura.” Para eles, as criangas ndo s40 parceiros conver sacionais iguais - elas precisam ser socializadas para esse fim e espera-se que os professores *. 5 sejarm agentes significativos de socializagao. Esta n3o ¢ uma crenga apenas dos americanos africanos. E uma crenca compartihada também por professores e pais brancos em Cedar Grove School. Certa vez, Pam explicou que ela via a si mesma e a outra professora branca, Christine (um pseudénimo), como exemplos de uma postura mais generalizada - professores responsaveis pelo que seus alunos fazem. Em Cedar Grave School esse modelo de ensino é profundamente marcante. Acredita-se que a pessoa mais significativa na histéria dessa escola tenha sido a rigida e severa professora descrita por Francis Gray Patton no romance "Good Morning Miss Dove”."® Quem se lembra do romance, da pega ou do filme, compreendera que o ensino centrado no professor em Cedar Grove School significa assumir a responsabilidade pela educacao das criangas.;, ~ _ ~ Acho que voce também precisa saber que 0 poder de Pam se estendia muito além de sua sala de aula, Ela era uma das formadoras de opinides no prédio, era reverenciada tanto por pais brancos como pelos americanos africanos, e era a professora que assumia a escola sempre que diretor se ausentava. Era considerada como a professora mais eficiente da escola, a mais habil com os alunos “dificeis" e (como conclui mais tarde) com pais “dificeis". Ela jamais perdia a chance de conversar com os pais @ freqilentemente era chamada pela secretaria da escola para lidar com suas queixas. Seu poder era tal que foi ela, de varias formas, quem me escolheu para estar em sua classe para o Estudo do Desvelo, @ nao 0 con- trario. Eu era seu convidado, estava la por sua vontade, e mesmo se minha presenga, as vezes, fosse mais perturbadora ou tivesse se imposto mais do que a principio ela imaginara, ainda assim pareceu suporta-la bem. Isto era uma forte evidéncia do senso de si mesma que ela possuia. Era sua responsabilidade fazer com que sua classe funcionasse e ela, de boa vontade, estendeu essa responsabilidade também para minha pesquisa. Em geral eu passava um dia todo por semana fazendo observagées em sua sala durante o ano letivo de 1989-1990. No decurso do ano, finalmente, fui percebende o quanto Pam realmente era poderosa. Eu, que sou um professor titular de uma universidade importante, acabei me tornando seu “aluno mais velho". Ela assumiu a tesponsabilidade pelo meu aprendizado e apesar de eu chegar a respei- tala ama-la como minha professora, ao escrever este artigo fica claro para mim que também eu" a amo mais depois de té-la deixado". Pam, de fato, também possuia o pader de profetizar! Y Shitley Brice Heath, Ways with Words (New York:Cambridge University Press, 1983) ™ Francis Gray Patton, Good Morning Miss Dove (New York: Dodd. Mead, 1947) R Fac. Edus., S40 Paulo, v.21, n.2, p.119-137, juildez, 1996 = 125 AO TOQUE DO SINAL DA ENTRADA Como alunos da classe de Pam, nosso dia comegava com todos indo para seus juga. res para fazer um pouco de leitura silenciosa até que tedos os 24 alunos (70% de americanos africanos e 30% de brancos) chegassem e ¢ sinal tocasse, Pam e sua assistente, Sharon, nao se escusavam desse ritual. Normalmente, elas passavam esse pequeno espaco de tempo reverdo seus planos e materiais para 0 dia, bern como cuidavam de quaisquer comunicagses da escola ou do distrito escolar. Eu costumava me sentar no canto do funde, bem defronte & mesa de Pam, Deste local, eu podia tranquilamente observar ¢ tomar notas. Acabei justi do isso como sendo "o escrever a ler" (em contraponto ao “aprender a ler"), Depois que o sinal tocava, Pam ia para a lousa e revisava o plano para o dia. Em Ca- rolina do Norte iste € considerado uma boa pratica como instrumento de avatiagao do ensino, mas Pam utilizava essa oportunidade para rever o que tinha sido estudado nos dias anteriores para discutir 0 que fariam naquele dia © para programar o que estava planejado para os préxi- mos dias para cada matéria. Ela também comentava a respeito das ligées feitas nos dias, anteriores, elogiando os alunos e relembranido os episodios nos quais eles tinham se destaca- do. No meu primeiro dia em sua sala, observei que ela possuia senso humanitario ao assumir_ a responsabilidade sobre um erro comum dos alunos no dia anterior, "Ah, €, ontem eu devo ter_ Soletrade mal a palavra “lagarta’, pois todos vocés a erraram em suas tarefas", Senso de humor era uma constante em sua sala. Pam curtia seus alunos bem como o fato de dar aula, e ela demonstrava este seu prazer. Como me contou mais tarde, foi somente apés estar lecio- nando por vinte anos (naquele momento j4 estava ensinando hd 25 anos) que ela percebeu que" amava dar aula”. Ela concebeu essa transi¢e como uma superacdo de suas diividas a respeito de estar fazendo as coisas acertadamente. Hoje, compreendo que ela venceu suas duvidas a0 se tomar confiante de sua autoridade moral. Ela conseguia ric. muito-das_atribula- cées da sata de aula porque nem os acontecimentos e nem seu prazer com os alunos amea- gavam sua autoridade, De muitas maneiras eles é que constituiam sua autoridade. A classe de Pam tinha muitos rituais coletives. Na maior parte dos dias, a primeira aula comegava com as criangas fazendo alguma coisa junto com ela. Na primeira semana de aula, a0 ensinar as consoantes, Pam comegava dizendo: "Vamos rever a nossa musiguinha, 0 nosso canto!" Af, as criangas recitavam as consoantes numa sequéncia aprendida com ela, e isto provocava elogios: "Esta ¢ a primeira vez que tenho uma classe de segunda série que entra © ja sabe todos os sons.” Ela no atribuia o conhecimento deles a si mesma, mas as ctiangas, muito embora o canto fosse claramente uma rotina dela Pratica comum em muitas salas de aula de escoias elementares, a leilura na sala de Pam também era amplamente ensinada e praticada em grupos de leitura. Havia quatro grupos homogéness, permitindo que Pam e Sharon pegassem um grupo cada uma, enquanto os outros dois grupos permaneciam nas carteiras fazendo tarefas de leitura e escrila. Este tam- 126 RFac. Educ., Sao Paulo, v.21, 0.2, p.119-137, julfdez, 1995 bém era o momento em que os alunos superdotados ¢ os lentos saiam da sala para fazerem trabalho com professores especiais. Os grupos de leilura néo eram permanentes e certo ni- mero de criangas mudava de grupo durante o ano, Pam e Sharon faziam com que as criangas lessem, ajudavam-nas na pronuncia e terminavam cada sesso de leitura com uma série de perguntas sobre 0 que a crianga tinha lide, como os eventos aconteceram e pedindo que as criangas contassem coisas semelhantes que livessem acontecido em suas vidas. As ativida- des daqueies que permaneceram nas carteiras, em geral, se relacionavam com exercicios de linguagem: pedia-se 4s criangas que completassem sentengas, dividissem palavras em sila- bas e assim por diante, Quando essas atividades eram completadas, as criangas tinham per- misso para ir as estantes e escolher um livro, dentre uma grande variedade que havia, para fazerem “leltura livre" Pam e Sharon com frequéncia ensinavam cutros assuntos na lousa, chamando criangas para responderem ou virem a fousa para que mostrassem camo resolver um proalema, fazer a divisdo sildbica ou escrever uma sentenga. Isso era acompanhado por toda a classe resolvendo 0 problemas ou cutra coisa de forma recitativa. A recitagdo, por sua vez, era acompanhada pelos alunos individualmente ou em grupo, resolvendo exercicios praticos do livra ou nas folhas de trabalho que Pam ou Sharon haviam preparado. Essa ratina, frequientemente, era complementada com materiais ativos, especialmente durante 0 ensino de ciéncias e matematica ou, entdo, substi- tuida por estratégias de aprendizagem cooperativa, De fato, observel ambas as praticas sendo utlizadas quase que todos os dias em que estive na sala de aula. Nosso dia era interrompido pelo intervalo da manha, almogo, descanso da tarde e pe- riodos de recesso (normalmente passados ao ar livre). As aulas de misica, educagao fisica, artes e lingua estrangeira eram dadas por outros professores, e geraimente eram oferecidas duas ou trés vezes por semana. Nos dias em que eu estava na sala, 0 perioda do almogo era seguido pela hora da histéria, durante a qual eu lia historias para as crlangas e repetidas vezes mostrava minhadnépcia como professor. Minha falta de habilidade era motivo de diversao para a criangada que imediatamente se aproveitava do fato de forma bem humorada. Elas chega-, Yam a me ensinar como eu deveria proceder nessa atividade. Acredito que a hora da historia acabou também se tomando fonte de diverséo para Pam e Sharon que, apos me ajudarem durante algumas vezes, me deixaram por minha prdpria conta com as criangas. Isso era algo que eu tinha pedido a elas, para que eu pudesse conversar com as criangas a respeito da escola e sobre coisas selativas ao desvelo? Pam e Sharon valtavam sorrindo e balancando a cabega devido a grande confusdo que eu era capaz de criar, que para elas era um minuto & para mim uma vida toda. Eu causei essas confusées em muitas outras ocasiées e, com bom humor, repetidas vezes fui salvo dos resultados do meu trabalho. Hoje percedo que a hora da histéria foi a maneira que Pam encontrou para me incluir em outro dos rituais de sua classe. Apesar dos alunos obviamente estarem ali para trabalhar, eles também estavam la para servir ao bem comum. Pam tinha criado uma sérig de rotinas e serviges que davam as criancas a chance de realizar tarefas didrias de ajuda. As criancas Rac. Educ, S80 Paulo, v.21, 9.2, p.119-137, julidez, 1995. 127 faziam rodizio com as responsabilidades de ler o calendério, fazer o relate do tempo, distribuir € recolher os lapis, papéis ¢ livros (diferentes pares de criangas para cada uma dessas ativi- dades); apagar a lousa, apontar os ldpis e assim por diante. A hora da historia era minha responsabilidade e descobri que na classe de Pam a inépcia nao levava vocé a perder sua responsabilidade. Ao contrario, acabava conseguindo muita orientagdo para realizar as tarefas acertadamente e muito espago para descobrir de que modo fazé-las a sua propria maneira A disciplina na classe de Pam era promovida de diversos modos. Primeiro, havia as rolinas ajudando as criangas e a mim mesmo de forma que soubéssemos 0 que se esperava de nés e que de muitas maneiras nos mantinham a salvo de confusées. Segundo, bem rapi- damente aprendi que a instrugdo na classe de Pam tinha um significado duplo. Por um lado, a instrugéo era sobre o ensina de um assunto objetive. Por outro lado, era a tespeito d pidcesso meticuloso de assegurar que todos soubessem o que @ coma fazer qualquer c que fosse pedida. © processo fregiientemente terminava com o que os etnégrafos chamam dé 'verificagao de membro""® , em que Pam pedia a um dos alunos para repetir as instrugbes para a classe e, caso 0 aluno no conseguisse fazé-lo, ela pedia: “Alguém pode ajudar Clinton (ou qualquer outro)?” Em terceiro lugar, o discurso da professora estava carregado de lembretes & conselhos para os alunos, numa tentativa de evitar infrag6es mais sérias. Finalmente, quando tudo o mais falhava, Pam tinha uma forma de "disciplina asgertiva” de modo que se um aluno violasse desafiadoramente uma das regras escritas da sala ce aula (cooperagdo, considera 30, comunicagao, concentragao), ele ou ela tinha que escrever seu nome na lousa e, por conseguinte, perdia 0 direito ao tempo livre durante o dia. Mas havia aquilo que acabei por considerar a pior infragdo na sala de aula. Se vocé a praticasse, vocé nao tinha que escrever seu nome na lousa. Nao era uma regra escrita mas todas as criangas a conheciam. Essa violagae fazia com que todas as criangas, inclusive eu mesmo, abaixassemos nossas cabegas em sinal de vergonha. A pior infragdo de todas era after ‘quando alguém nao sabia a respos-_ ta correta para uma questio. Na verdade, disciplina nao era um problema na classe de Pam; pelo contrario, era aceita simplesmente. As criangas sabiam que ela esperava que elas se comportassem e, na maioria das vezes, o faziam. Isso era verdade mesmo que, provavelmente, tivessem sido destinadas a Pam as criangas de segunda série com os maiores problemas de disciplina Hdentifiquei quatro de seus vinte © quatro alunos (dois meninos e duas garotas, ambas as ragas para cada sexo) dentro dessa categoria. As vezes ela reclamava pela injustiga de tais designagdes mas também, penso eu, isso era um testemunho de suas habilidades com as criangas. Posso atestar as dificuldades que esses jovens apresentavam e, também, que esses alunos respandiam ao que Pam solicitava, se comportavam e faziam suas tarefas. Tudo isso contrastava marcadamente com o que os professores e o diretor afirmavam que tinha acante- cido no ano anterior com esses alunos quando estavam em classes de outros professores. A estratégia fundamental de Pam com todas as criangas (0 que anotei em minhas observagdes © Sharan Merriam, Case Study Research in Education (San Francisco: Jossey-Bass, 1988) 128 R Fac. Educ., $80 Paulo, v.24, n.2, p.119-137, juldez, 1995 de campo) era a de dirigir as criangas para as respostas corretas, a sortir, a elogiar seus es- forgos. Ela mostrava que tinha orgulho deles € parece que era isso que eles mais desejavam. Claro que havia muito mais na sala de aula a cada dia, mas eu acho que vocé esta comegande a ter uma idéia de como era nossa classe. No jagao educacional. a classe era mais centrada ne professor do gue no aluno ¢ Pam achava isso apropriado, Ela sentia que era sua responsabilidade estabelecer o pragrama para as, criangas aplenderem.e ensind-las. As cfiangas eram responsdveis pela realizagao de suas tarefas e por no interferirem quando os outros estivessem fazendo as suas, Eu era resoonsavel por fazer minhas observagées e tomar notas e, acidentalmente, percebi que minhas tentalivas de "ajudar" eram quase sempre interfe- réncias. Todos éramos responsaveis pela susca do bem comum coletivo da classe e eu tive que aprender a patticipar adequadamente disso A OTICA DO APRENDIZ Estou convencido de que Pam sabia que ev nao estava preparado para sua classe. Minha barba e cabeio meio compridos, minhas tendéncias esquerdistas, minha falta de experi- @ncia com criangas e meu trabalho como professor universitario. tudo isso o atestava. Ainda assim, ela me aceitov. Mostrou-me e contou-me 9 que sabia - e testemunhou @ estremecimen- toe a queda do meu mundo. Essa minha derrocada nao foi faci para ela, pois ela sabia que eu nao estava a vontade em sua classe e acredito que durante certo tempo Pam considerou isso como uma avaliagéo sobre sua maneira de ensinar. Hoje, sei que a principio eu n3o aceitava seu estilo € 0 que tornava tudo ainda mais dificil para mim era o fato de que ela gerava eyi- déncia_a_cada dia, de que seu estilo funcionava em sua sala, Isso me leyou a.voltar meus olnos criticos para mim mesmo e para minhas to acalentadas crencas a respeito do ensino. tsso foi dificil e ainda é dificil - como este artigo o demonstra. Observei minha mudanga de visdo numa reuniao de pesquisa do grupo de Estudos sobre Desvelo, realizada durante o fina do outono do ano que fiquei na escola. Os seis pesquisadores estavam discutindo o que acha- vamos que estévamos descobiinds a respeito do desvelo e eu comecei a defender o estilo de Pam. Enquanto eu a defendia, meus olhos se abriram. Em primeiro lugar, mostrou-me que minha ética sobre o ensino estava mudando e era Pam quem a estava mudando. Em segundo, mostrou-me que o grupo ia ter que lidar com a questao do estilo preferide de ensino como parle crucial de nossa pesquisa. Em terceiro, mostrou-me que eu ainda ndo conhecia o sufici- ente para poder lidar com essa mudanga de perspectiva. Eu estava assumindo a defesa de Pam onde, com certeza, ela nao veria necessidade de ser defendida e eu ndo conseguia colocar tudo isso em palavras. Tomei-me professor titular em educagao de modo indireto. Eu nao fui professor prima- rio nem secundario. Meu PhD foi em Sociologia e meu primeira trabalho na universidade dizia R Fac, Educ., S40 Paulo, v.21, m2, p.118-197, julisez, 1995 123 Ae ‘classes sdo defi respeito, originalmente, ao ensino de questées sobre marginalidade e delinquéncia juvenil e teoria das organizages, com um curso ocasional de socislogia da educagao. Comecei a estudar escolas quando recebi uma bolsa para realizar um estudo etnogrifico sobre uma escola secundaria dessegregada em Memphis. Meu primeiro interesse concentrava-se nas relag6es raciais, mas ao longo do tempo isso cedeu espaco para um interesse pela educagao enquanto instituigéo e pelas escolas como organizagées, Dirigi-me ao Instituto Nacional de Educagao junto com a Equipe de Estudos de Oessegregagao. La, finalmente, decidi que dese- java trocar minha disciplina de Sociologia pela de Educagao eo fiz. Minha formagdo indicava que meu conhecimento sobre o ensina era fortemente influenciado pela literatura a respeito de como melhor ensinar nas entéo denominadas classes interraciais. Resultou, contuda, que acabei achando que essa fiteratura é melhor entendida no sentido de como os brancos pensa- vam que seria melhor ensinar em turmas interraciais. Nessa literatura esta implicita, camo afirma Foster, uma postura de denegrir a maneira de ensinar dos professores americanos africanos, pois sua capacidade de ensinar estava associada com as escolas segregadas, estigmatizadas par James S. Coleman e outros,” © "conhecimento’ que eu tinha a respeito do ensino em salas multiculturais pressupu- nha muitas coisas, porém, mais que tudo pressupunha que a diferenca era o problema. Pelo fato de as criangas serem racialmente diferentes, ‘bons" métodos de ensine evitavam competi 540, demonstrages em publico avaliagdes de conhecimento. Eles deveriam favorecer a aprendizagem coletiva € as avaliacdes privativas. Se o professor chamasse apenas aqueles que tivessem levantade a mao, algumas criangas nao chegariam a participar e isso se deveria, em parte, aos viéses do professor.*' Havia muito mais nisso tudo, mas agora vejo pouca utili- dade em elaborar esse “conhecimento’. Pam ensinou-me que essas praticas no seriam necessdrias se 0 context da classe fosse definido ndo em termos de realizagdo individual mas, ao invés, em termos de "relacionamento e solidariedade”.” Houve muitas situagées na sala de Pam que mostravam o que é possivel quando as jas como coletividade, com os individuos relacionados por lagos de respan- \Sabilidade.e oorigagao em celagao ao todo. O que se destacava nesses casos eram as defin G6es da situagao feitas pelas criangas, envelvendo a participagao no proceso de aprendizado © a oportunidade de relago pessoal com Pam. Deixe-me contar 0 evento que demonstrou para mim 0 poder de Pam, Apds testemunhé-lo, tudo © que eu sabia tornou-se obsolete * Foster, "Caring of Alrican American Teachers" James $ Coleman et al Equality of Educational Oppor- (Washington, D.C.“ U.S." Natonal Institute of Education, 1976) *! Thomas Collins and George Nobid, “The Process of Interracial Schooling’. in The Desegregation Literatu- | f2:A Critical Appraisal (Washington, OC. National Insitute of Education, 1876) ® Foster, "Gating of African Amencan Teachers" 130 R Fac. Educ. S80 Paulo, v 21.1.2, p 119-197, julidez, 1995 O PODER DE PAM Como tantas outras estratégias de ensino usadas na sala de Pam, a estratégia para a quai chamo agora a atengao tinha caracteristicas ritualizadas. Isto quer dizer que a estratégia abarcava mais do que a instrugdo e a aprendizagem. Ela simbolizava uma vis8o de mundo e um @istema de crengas compartilhados.”* Deixe-me tentar reproduzir a perspectiva em que me encon- trava quando observei essa estralégia pela primeira vez. O evento, do meu ponto de vista, era um. evento de "avaiiacao publica’. Eu vi o evento da seguinte maneira: envolvia a professora em pé diante da classe, pedindo respostas que as criangas deviem dar a pergunlas @ problemas, para que fossem aveliadas publica e imediatamente. As criangas estavam competindo para conseguir a resposta correta para qualquer pergunta, e aquele que consequisse 0 maior numeto de respos- tas cerias podia ir retirar um brinde da "caixa de surpresas" que Pam e Sharon mantinham cheia de quinquilharias. Uma pergunta era feita e Pam geralmente chamnava alguém que tivesse levan- tado a mo. Respostas erradas eram acolhidas com a resposta: ‘Alguém pode ajudar (0 nome do aluno)?" As criangas em geral levantavam a mao logo que reconheciam a resposta errada e Pam chamava uma delas. Apesar dessa descrigdo conseguir captar a agao € revelar minha visao na &poca, ela nao evidencia inteiramente o significade do ritual. Ao fixar a atencdo mais detidamente, observei um evento completamente diferente. 0 evento se iniciava com Pam pontuando 0 ritual: "Faremos isto aqui juntos.” Ela dizia isso en- quanto se dirigia para a frente da classe e as criangas imediatamente mudavam de postura - sentavam-se mais eretas, se entrealnavam cam olhos arregalados e focalizavam a figura de Pam rapidamente. Na verdade, nao importava qual o contetido das perguntas: matematica, estudos sociais, ortografia, cu qualquer outra. Tambem nao importava como as perguntas exam feitas. As vezes ela usava cartées, oulras escrevia na lousa @ noutras ocasiées sim- plesmente fazia perguntas oralmente. Quando Pam fazia a primeira pergunta, algumas macs cram levantadas. Neste ponto ocorreu meu primeiro chogue, Parecia que todas as mos eram levantadas. Depois de um exame mais detido, percebi que isso nao era completamente verda- de. Havia perguntas que resukavam em mais mos levantadas que outras ¢ algumas criangas levantavam a mao menos do que outras. Apenas uma crianga, Tim (um_pseudénimo) nao participava. Tim era um garoto americano africano que, literalmente. tentava passar desperce- ido, independentemente de qual fosse a atividade de instrugao. Posso recordar dele se es- gueirando entre os outros alunos para ndo ser notado, abaixanda a cabega sobre a carteira na esperanca de que deste modo nao fosse vislo pelos autres e assim por diante, Ele conseguia pasSar "despercebido" até mesmo nos grupos de aprendizagem coletiva. Ele ndo se compor- tava diferente neste ritual, mas de slgum modo se sobressaia neste por sua nao participacao. ® Judith L. Kapferer, “Socialization and the Symbolic Order of the School", Anthropology and Education Quarterly 7, n.4 (1981) 258-274; Nathalie Jean Gehrke, "Rituals of the Hidden Curriculum", in Children in Time and Space, ed. Kaoru Yamamoto (New York:Teachers College Press, 1979), 103-27 R Fac. Educ., $0 Paulo, v.21, 1.2, 9.119-137, julidez, 1985. 131 ten edinaAs eh eee Ale k & % Pam chamava-o mesmo que ele nao tivesse levantado a mo e tentava guid-lo em diregdo a resposta correta. Na verdade, ela regularmente chamava os alunos que ndo tinham levantado a mo e regularmente se vollava para os alunos que tinham respondido errado ou que ndo tinham respostas a uma questo anterior. Mais dificil de traduzir em palavas € 2 maneira pela qual as criangas levantavam as m&os. Elas o faziam levantando-se levemente de seus lugares (apesar de estar estabelecido que deveriam permanecer sentados) agitando as macs e fazendo contato com Pam pelo olhar. Elas ievantavam a mao mesmo que tivessem_uma resposta_incorreta ou que nao tivessem respesta_alguma_ Nesses cases, Pam respondia can com, yin, ps hose: "Por. favat_n§o. ja resposta.” As criangas levantavam a mao até mesmo antes que qualquer pergunta fosse ‘eita! Na verdade, algumas criancas estavam tentando ter uma chance de tirar algo da caixa de surpresas, mas a maioria queria apenas participar. E levantar a mao era uma forma de participar. Repetidas vezes as criancas olhavam para os coleguinhas com um sorrise estampado no rast quando eram chamadas, independentemente de darem ou nao uma resposta certa, Era um momento ao sol Pam, obviamente, era o soi mais brilhante de todos, muito embora as criangas também olhassem umas para as outras em busca de reconhecimento. Quando Pam o chamava era como se voot fosse 0 escolhide e que aqueie era o seu momento, mesmo que breve. Como é que uma avaliagao piblica podia se tornar um momento ao sol? Em meio a uma infinidade de pequenas coisas, Ao chamar um aluno, Pam deixava as mos se agitarem por algum tempo - 0 suficiente para permitir 0 maximo de maos serem levantadas. Nesse momento ela sottia ¢ fazia um contato pelo olhar com tantos quantos pudesse. Ela deixava 0 evento ir crescendo até um ponto muito fervilhante e ai, ent8o, escolhia, Apos a escolha, sua atencdo se focalizava na crianga escothida. Ela sorria, freqtientemente fazia um comentario breve, as vezes um elogio, mas na maioria das vezes apenas um comentario sobre coisas que ndo tinham relacéo com @ assunto. De vez em quando, até mesmo compartilhava um comentario com Sharon @ comigo a respeito da crianga. Mesmo que a crianca no tivesse ura resposta, ela se alinha a crianga por um breve momento através de seus olhos, de palavras, de humor e de atengo, De certo modo, essa era a hora mais triste da vida na sala de aula. HA uma demanda insacidvel por atengao e relacionamento e, isso, cada decisdo de atender a uma crianga é também uma decisdo de no se relacionar com outta, Pam tentava minimizar isso com sua maneira de lidar com a coletividade através de rituais como esse. Os alunos adoravam isso. Diversas vezes interpretei tais episédios carno uma das horas predilets dos alunos em sala de aula. O carisma de Pam tornava a coletividade mais forte @, como conseqliéncia, mais forte cada crianga, ‘Também comecei a notar em que ocasides ela passou a usar esse ritual e logo desco- bri que nao tinha sido por acaso ou simplesmente corno uma rotina diaria, Pam freqdentemen- te utiizava esse ritual quando 9 grupo como um todo estava se enfraquecendo, quando as criangas estavam se tomando inquietas, quando estava se tomando dificil assegurar 9 ensino dos conteidos, ou quando ela mesma estava se sentindo um tanto quanto desanimada. Todos 132 R Fac. Educ, $80 Paulo, v.21, 12, p.119-137, julldez, 1995 esses eram fatores ameacadores para o senso de responsabilidade e obrigacdo para com a colelividade e a fungdo de Pam era nao deixar que isso ocorresse. Era sua responsabilidade moral manter-nos unides e todos a amavam por isso, inclusive @u - depois que consegui rea valiar 0 que achava do ensino centrado no professor QUE RELAGAO EXISTE ENTRE CONTROLE E CONTINUIDADE? witas coisas: para manter a ordem, para estabele- cer as tarefas, para avaliar o desempenho € assim por diante, Nem todas essas fungées ti- nham 0 significado do ritual previamente mencionado. Algumas s8o apenas coisas que os professores precisam fazer. Ainda assim. o ritual anteriormente descrito nos ajuda a ver que certos padrées dao, ndo apenas consisténcia, mas continuidade. Reconheci no final do ano que passei com Pam que ela, freqdentemente, usava seu poder e seu controle a servigo da continuidade. Como afirma Noddings, 0 que mais falta nas escolas 6 uma preacupagao no sentido de oferecer “continuidade de lugar, de pessoas, cbjetivos @ curriculo”.”* Hoje vejo isso presente no estilo centralzado de ensino de Pam. O que narrei anteriormente demonstra como a rotina € o ritual estabelecem uma continuidade para o curriculo @ para a instrugdo e como os objetivos da responsabilidade e do trabaiho coletivos eram continuos. Ela também usava seu poder para nos assegurar de que tinhamos um espaca seguro. Pessoas de fora s6 padiam entrar na sala de aula a convite dela. Os pais, ela os recebia na porta e depois os acompanhava até a saida do prédio. Testemunhei um incidente em que as criangas estavam formando fila perto da porta para ir para a aula de musica. O diretor tinha entrado na sala para lembrar que as criancas deviam fazer suas ligdes de casa, coisa que os professores, inclusive Pam, tinham pedido a ele para fazer. Ele perguntou a Pam: "Eles tem feito as ligdes de casa?” Pam, Sharon, as criangas ¢ eu sabiamos que nem todas elas as vinham fazendo, Pam olhou para as criangas e depois para o diretor e respondeu: "Eles esto se saindo bem!" Literaimente ela nao tinha respondido 4 pergunta do diretor. O diretor, de certa forma, disse as criangas algo assim como: "Mantenham esse ritmo!” Ele saiu « Pam reorgani- zou @ fila de alunos para a aula de musica, ¢ a fila se quebrou em uma série de criangas que vinham e a abragavam, Ela os tinha protegido, Em sua sala estavam seguros - eles eram os alunos dela. Continuidade em relagao as pessoas era algo que Pam e Sharon consequiam pelo fato de fatarem muito raramente ao trabalho e pelo reiato continuo daquilo que a turma havia realizada, Como mencicnei anteriormente, mesmo os pais eram mantides, na maior parte da “4 Nel Noddings, The Challenge to Care in Schools. Forhcoming. R Fac. Educ, S80 Paulo, v 21, n 2, 9.418-137, julidez, 1995, 133 vezes, fora da sala: Eles nao eram parte da coletividade. Mesmo quando Pam tinha que faltar um dia e um substituto viesse em seu lugar como exige a lei, Sharon tomava conta da classe, deixando muito pouco para 0 substituto fazer. Até mesmo eu era melhor do que qualquer outra pessoa quando ambas tinham que se ausentar por uns minutos. Pam colocou isto para mim da seguinte forma: "Vocé conhece as criancas e elas 0 connhecem.” ” Durante tais momentos tam- bém eu sabia que eu pertencia a algum lugar. Minha identidade estava ligada a classe: as criangas, Pam e Sharon. PODER E MORALIDADE Hoje reconhego como minha compreensdo do poder era limitada antes que eu come- gasse a explorar uma ética baseada no desvelo, Eu estava bem familiarizado com a literatura sobre 0 poder e ainda assim nao conseguia distingilir entre Sider e opiesso: eram uma e a mesma coisa. Acho que eu entendia que uma ética do desvelo iria exigir que eu distinguisse entre poder utilizado simplesmente em si mesmo € 0 poder usado a servigo moral dos outros. © que eu nao era capaz de entender eram as implicagées dramaticas disso para a minha compreens&o da educacao e de meu caminha intelectual. Como se tem escrito, 0 desvelo & dependente do contexte e reciproco.”* Entretanto, conhecer o desvelo através de leituras é um substituto pobre para a experiéncia com o mesmo, quer como participante quer como observador participante Agora sei que os conceitos de poder que utilize para compreender a educagdo consti- tuem apenas um lado da questéo. Como diz Borbules, ¢ eu teria concordade em outras epo- ‘bas, 0 poder se baseia num conflito de interesses e esta latente em nossas ideologias e estru- turas.”* De acordo com essa conceggao, sem que haja conflito de interesses, ha pouca razéo para se falar em poder. Superficialmente, portanto, poderiamos acreditar que o desvelo segue ess¢ critério. Pelo fato de ser reciproco e em beneficio das duas partes, poderia parecer que o desvelo nao tem relagéo com o poder. Contudo, na sala de Pam havia conflito de interesses, especialmente a curte prazo. Com relagao a muitas coisas os alunos simplesmente obedeci- am. Para muitas das atividades, Pam estabelecia rituais e estruturas que controlavam nosso comportamento. Para mim fica claro, agora, que temos que falar de poder e desvelo. Como argumenta Noddings a respeito do educador:"...seu poder é impressionante. De algum modo a crianga deve ser levada a escolher por si mesma ... por seu eu ético".”* Noddings argumenta que num relacionamento de desvelo, o poder nao transforma o outro ® Gilligan, in a Different Voice; Noddings, Caring * Burbules, "A Theory of Power in Education’. * Noddings, Caring, 64 134 R.Fac, Edue., $40 Paulo, v.21, 1.2, p.119-137, julidez, 1995

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