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5 4 = 3 | & 3 3 ps) 3 s g 3 2 iy 2 g cy a & 5 escent Uae See uerida Liicia, levei o seu trabatho comigo e comecei a 1é-lo logo que cheguei ao Rio. Confesso que essa lei- ‘ura me deu muito prazer e reencontrei a minha amiga bem Proxima, parecia falar comigo, ler e expiicar o seu texto, Lembro de vocé ter falado que afinda faltava uma introdugdo nos originais que me entregou. No avancar da leitura, senti Jalia de uma referéncia bibliogréfica, a meu ver estratégica para 0 seu tema: o livro de Roberto DaMatte, A casa ¢ a rua. Sempre estava com a expectativa de que voeé ainda faria uma referéncia, Mas nao achei no manuscrito qualquer mencio a ele. Voc ndo teria de rever isso? Claro, amiga, que bom que vocé é uma leitora atenta. Penso que a introdugao, que vocé nao leu, fez falta para que vocé entendesse melhor os limites deste er saio. Nas paginas introdutérias, deixo clero que este texto é apenas uma leitura, muito pessoal, portanto, de Sobrados e Mucambos, feita a partir de um cam- po disciplinar especifico: a arquitetura ¢ sua versio ampliada, que ¢ o urbanismo, como queria Argan. O que me move todo o tempo.¢ a arquitetura que dé forma ao ambiente construido no Brasil. Por isso, a ‘obra de Roberto DaMatta — um olhar antropolégico Convers com arbre ety 3 mais amplo sobre a cultura brasileira, abrangendo a a ira, abrangen nossa casa de Tiradentes, que corresponde exatamente — em cidadania, a mulher e a morte —, no foi menciona- sua estrutura arquitet6nica — & descrigdo das casas do peri. 10 da. Penso que correria 0 risco de fazer alguma “con- fusio” para o leitor nfo especialista — a quem se destinam fandamentalmente estas reflexdes — num, ensaio tio breve quanto este. Assim, se a minha de- finig20 de espago piiblico & urbanistica, referindo-se, portanto, 4 rua, 4 praca, ao patio, etc., tides como ambientes fisicos, ainda que definidos socialmente, DaMatta trata da mesma questiio, 0 espago publico, numa vertente socioantropoldgica ou mesmo politica quando diz, por exemplo: “[...] como cidadio eu per tengo 2 um espago eminentemente piiblico ¢ defino ‘© meu ser em termos de um conjunto de direitos deveres para com outra entidade também universal chamada de “nagiio"(1985, p. 57, aspas no original). Percebe como eu precisaria dar outro foco a leitura & qual me propus? Mas muito obrigada por me lembrar, noblesse oblige, claro, fazer justa referéncia ao trabalho tio conhecido e sempre citado de DaMatta, em especial ao primeiro capitulo do livro, quando ele se detém especificamen- te sobre o espago, sobre a casa ¢ a rua, ainda que sob outro corte disciplinar, conforme assinalei antes. Sei que vocé esta fazendo wma leitura intrinsecamente freyria~ na do tema. Mas, por isso mesmo, vocé corre o risco de gene- ralizar para todo o Brasil (e todos os tempos) uma estrutura patriarcal muito localizada no Nordeste brasileiro, do periodo colonial. Eu, que vivi em Sao Paulo, Porto Alegre e Minas Ge- rais, nem sempre encontrei essas estruturas e modos de vida “privados” e voltados para o interior das casas (a néio ser em odo colonial). ‘Mais uma vez, vocé tem razio quando fala do ris- co de generalizagdo. Eu mesma saliento, no capitulo dois, que a generalizagao que fago refere-se to so- mente Aquela de que trata Freyre quando identifica a existéncia de uma mesma casa patriarcal, quer no Sul, quer no Norte, seja em Pernambuco, seja em ter- ras paulistas ou ainda em antigas zones fluminenses. Um certo modo de edificar coerente com a paisagem social que se erguia nos trépicos, como queria Freyre. Com isso, no queto dizer que se encontre um mo- delo igual, repetido, em’ todos os edificios, mas, sim, um mesmo modo de’coneeber € vivenciar 0 espago edificado no Brasil. Um ambiente segregador, exclu- sivo, vip em tempos atuais. E também nao me refiro apenas a casa. O gosto “brasilei:inho da silva” pe- los shoppings, isto ¢, 0 prazer no vivenciar a vida no abrigo do espago privado, em detrimento do ambien- te piblico, aparentemente preseme de norte a sul do Pafs, permitiria essa “generalizacio” E nesse ponto que me apoio na teoria freudiana para construir 0 argumento de que mediante o proceso psiquico de idemtficagao, reproduzimos, inconscien- temente, na maneira como constraimos a cidade bra- sileira que hoje edificamgs, valores, caracteristicas, marcas identitarias herdadas da nossa historia. Desse modo, a generalizagiio dar-se-ia nao como do- mindncia, mas como ocorréncia de um fendmeno que se repete ainda que de modo diverso aqui ¢ alhures. Afinal, como vocé mesma diz, mesmo tendo viven- ciado espagos diferentes, em Tiradentes, a sua casa corresponde, exatamente, & descriga0 das casas do periodo colonial. E esse 0 sentido da generalizagao feita aqui Senti falta da incluso da observagéo de outros viajantes, além de Vauthier (sempre “apud Freyre”). A meu ver seria interes- sante ouvir o proprio falar, ¢ néo sempre a partir da dtica e com o filtro freyriano. Sei que seu foco tem origem em Freyre, mas como, no final, no tiltimo capitulo, vacé abre a discussaio para os edificios verticalizados, os shoppings, inclusive citan- do Schorske e Mitscherlich, essa diversificagdo poderia ter en- riquecido (e engrossado) seu texto. Assim, St. Hillaire, Spix e Martius, Ender e tantos outros fizeram observaces semelhan- tes ou expressam surpresas sobre esse modo bem brasileiro da “recluso das mulheres” na alcova sem janelas... E Vauthier quem fala. A questo & que vocé também no tinha as referéncias bibliogréficas em maos. Lem- bra que o subtitulo deste ensaio é wma leitura urba- nistica da violéncia & luz de Sobrados e Mucambos ¢ outros ensaios gilbertianos? Pois bem, os textos ci- tados so, sim, as famosas cartas de Vauthier sobre as casas de residéncia no Brasil, reproduzidas por Gilber- to Freyre em Um engenheiro francés no Brasil, dat a referéncia de pé de pagina ser gilbertiana. E essa tam- bém a razio pela qual ele ¢ frequentemente citado, ¢ nao outros viajantes, a exemplo dos autores que vacé Jembrou com tanta pertinéncia, J4 Schorske aparece en passant apenas para dar um exemplo em particular, € Mitscherlich me permite fazer a ponte entre urbanismo Conversa com Barbara Freitag BE € psicandlise, ajudando, portanto, a construir 0 argu- mento desenvolvido ao longo do texto, Yocé caracteriza bem a “negagéo da rua", mas ela ndo se dé em todo 0 territério brasileiro nem em todos os bairros de uma cidade e muito menos em todas as ruas. Pensa somente no Carnaval, E verdade. Alguém poderia inclusive argumentar que muitas cidades brasileiras vivenciaram 0 prazer das cadeiras nas calgadas para 0 bate-papo dos vizinhos, como canta Manuel Bandeira em sua t&o conheci da Evocagao do Recife. Mas, se a minha hipétese se confirma, esses encontros na rua se dariam entre iguais, socialmente falandé, 0 que tirazia dessas ruas a caracteristica de espago piiblico, necessariamente aberto 2 todos. Em outras palavras, nao seriam aque- les vizinhos os mesmos dos condominios fechados atuais? Isto é, pessoas do mesmo grupo social cuja convivéncia reproduz a domesticidade que caracteri- zou a vida nas casas-grandes? Lembro de uma dissertago de mestrado, defendida no Programa de Pés-graduago em Desenvolvimento Urbano ~ MDU/UFPE, em que a autora, Livia Melo de Lima, mostra que moradores de conjuntos popu- lares em Maceié estéo erguendo murcs, de modo a transformar esses ambientes em “condominios fecha- dos”. Na visto desses moradoies, esse afastamento da rua Jhes daria mais prestigio na medida em que os. separa do espago comum, onde habita una populagao pobre. Nao reproduzem também esses condo- populares a segregacdo, a vida entre iguais, 0 13 14 morar de portas adentro, ou seja, os valores préprios do Brasil patriarcal, de que me ocupo aqui? Quanto ao Carnaval, 0 que dizer dos camarotes vips onde os brasileiros assentados no topo da nossa pi- amide social assistem 4 passagem do Galo da Ma- drugada, o famoso bloco camavalesco do Recife? E dos abadés, que distinguem os baianos de fina estirpe enquanio desfilam em espagos protegidos dos demais folides? Nao se repete, nesses exemplos, a negagio da vida na rua em sua fungdo publica, isto é, aberta a todos indistintamente? Gostei muito do terceiro capitulo em que voe’ discute a “ver ticalizagao”, 0 “falso novo”, os shoppings ¢ 0 medo da vio~ Iéncia da rua. Uma continuagéo da auséncia dos espacos pri- blicos e das ruas abertas para a fidnerie, E uma pena e uma redugdio de nossa qualidade de vida. Gostei muito de ler seu texto. Ele me entreteve e deu muito prazer. Mas, como socidloga, vejo nisso mais 0 passado colo- nial da escravidao, da nao solucao da questo abolicionisia e essa heranga fatal que se institucionalizou nas favelas de to- das as megaldpoles do Brasil (e do mundo). Procuro as causas em fatores socioeconémicos, desigualdades de classe cor € atribuo a essas mais “poder” que a vida de domicilio no es- paco privado da casa-grande, em que a proporcdo de senhor e escravos devia ser de 1:10, 100, por vezes mil Fico feliz que o texto Ihe tenha dado prazer. A gente es- creve também por isso, no? A mim, também agradou muito escrevé-lo. E, outra vez, voeé tem razao nos seus comentirios. Concordo que fatores socioecond- micos so decisivos. Mas de novo lembro que 0 meu Conversa com Barbara Freitag foco é a arquitetura. Assim, penso que, 2ela arquite- tura, esses fatores se materializam. E pela identifice- Gio, razio para buscar o apoio da teoria psicanalitica, eles perduram indefinidamente. Beijos e parabéns pelo seu trabalho fasciname que busca inte- grar as diversas bticas: da arquitetura ao urbanismo, da vida social d psiquica, da casa-grande é cidade contempordnea. Barbara Freitag Professora Emérita da UnB SUMARIO Palavras Introdutorias 1. Da Casa-grande & Cidade Contemporinea Anotagbes preliminares 2.0 Reinado da Casa ‘Acasa como obra coletiva Acasa como centro social ‘Uma easa brasileira 3. ANegagdo da Rua O sobrado diz nao 4 rua Um espago plebeu 4. Brasileirinha da Silva ‘Um espago rejeitado Mostra-me teu espago 5. Um Trago Identitario Anotagdes Finais, Da hostilidade Para o acolhimento Referéncias Bil a 29 31 37 45 3 6 B 84 98 113 130 140 149 151 156 158 161 ee eM ed eee ee cee a ee tem sido criada sem sahir 4 rua {...] para todo o servico de Pe eee | Antincio publicado no Diario do Rio de Janci- peo Rtn FREYRE, G. 1990, p. 47, destaques meus, ae Lae Ae a ed ‘como poctas {.... Num, sobrevive principalmente um me- eee a ee ee eee Cee karen a ee ee ee ne ee Cee eR a ae ag ee eee ee eee eee ee salas, de alcovas, de alpendres, de restos de senzalas. Tudo See ee Coe ee ea sobrado de pai rico, comissério de acticar, residente na Ma- Cee een eRe Cee ee ee On ea eee ea eee FREYRE, G, 1979, p. 68, destaques meus, PALAVRAS INTRODUTORIAS '@ introdugio de Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre explica as razdes que o levaram a debrugar-se sobre 0 tema que o envolveu durante toda a sua vida, Anecessidade de melhor entender a civilizagio que nascia nos trépicos foi o mote que o fez empreender a aventura intelectual a qual deriva sua obra. Seguindo-Ihe os passes, nesse sentido em particular, chama-se a atengdo do leitor, logo de partida, para as razdes que fizeram surgir 0 texto que ora se apresenta, Tal como em Freyre, tam- bém uma inquietagao esta na origem das notas aqui esbocadas. © mote, no entanto, foi dado por uma pergunta feita a queima- roupa a um candidato a prefeito, durante uma das tiltimas cam panhas eleitorais realizadas no Brasil: Por que ndo hé parques Piiblicos na cidade?, quis saber 0 entrevistador. 24 A indagagao ficou mais instigante quando se atentou para 0 fato de que a cidade em questo dispde de diversos parques, mais de duas centenas de areas oficialmente reconhecidas ‘como espacos publicos’, além do sistema vidrio, naturalmente, A questo era outra, portanto. Na verdade, a pergunta apontava para um nio reconhecimento, como tal, do espaco piblico que a cidade apresenta. Nasciam, desse modo, naquele momento, as primeiras ideias que dariam origem a este ensaio. A dificuldade do entrevistado, assim como a propria pergunta formulada, apontava para o fato de que a escrita gilbertiana ainda nao se havia esgotado, como, alids, convém aos textos que se tornam clissicos. Tanto é assim que representantes do grupo que se assenta no topo da nossa piramide social desco- nheciam, aparentemente, elementos basicos da cultura que nos faz brasileirinhos da silva, Como consequéncia, ignoravam, em particular — como indica tanto a pergunta quanto a tenta- tiva de resposta —, as implicagdes espaciais do modo como se deu 0 desenvolvimento do urbano na vida brasileira, Este texto decorre, pois, da questo anotada sumariamente a ma, Com ele, pretende-se oferecer — a luz. da escrita gilber na, sob 0 foco do urbanismo ¢ com apoio em alguns conceito: chave da teoria psicanalitica — uma contribuigdo para que se possam melhor compreender as razes que talvez estejam na origem do ambiente claramente hostil que muitas cidades bra- sileiras apresentam, Erguida privilegiando o espago privado, tido como nobre, dis- tinto, vip, a cidade brasileira nao pode ainda consolidar o seu espago plblico, ou mesmo edificd-lo — hipétese a partir da 1 SA CARNEIRO, A. e MESQUITA, L. Espagos livres do Recife. Recife: Pre- feitura do Recife/UFPE, 2000. Patavees introdutvias BE qual se constréi o argumento central deste texto. Ao contri Tio, edificou um ambiente que segrega, que exclui, que separa, com todas as consequéncias sociourbanisticas decorrentes des~ se modo de edificar. Elaborado como uma escrita livre, destinado a0 piblico em geral, este ensaio é um texto eminentemente opinativo. Nao se trata, portanto, de uma tese produzida com o rigor conceitual metodolégico que caracteriza esse tipo de produgdo académi- ca. Aqui ndo se verd a angiistia da prova — essa palavra carre~ gada de ansiedade, segundo assertiva feliz de Richard Sennet ~~ mas, sim, uma ideia a compartilhar. E nesse sentido que ele deve ser lido. As referéncias tedricas vém not#damente de Gilberto Freyre e, em menor medida, da teoria psicanalitica. A escolha por Freyre se justifica pela riqueza de detalhes sobre a arquitetura eo ur- banismo do Brasil patriarcal ao longo da sua obra, ¢ no por se minimizar a importancia de outros autores que se debrugaram, com muito brilho, sobre a formagio da sociedade brasileira. Com relagio & teoria freudiana, alguns conceitos psicanaliti- cos ajudam a compreender que motivagdes subjetivas podem ditar 0 modo como produzimos o ambiente construido. Cinco capitulos compiem o texto. No primeiro deles, estio as anotagdes preliminares redigidas com o cbjetivo de indicar as questées principais que estiveram na origem das reficxdes que ora se apresentam 20 leitor, as primeiras definigdes con- ccituais, bem como os objetivos ¢ limites disciplinares deste ensaio. No segundo capitulo, apresentam-se trés ideias da obra de Gil- berto Freyre consideradas fundamentais para que se tenha uma 25 melhor compreenstio do modo como se deu 0 reinaddo da casa no Brasil patriareal, ponto de partida para o argumento que se desenvolve neste texto. Em outras palavras, apontam-se as ra- Z6es que fizeram a sociedade brasileira organizar-se no abrigo do espago privado — da colénia aos nossos dias —, conforme se quer mostrar aqui No terceiro, tem-se como objetivo mostrar como ¢ em que me- dida a paisagem social existente durante o tempo em que se deu 0 desenvolvimento do urbano — como se refere Freyre aquele momento da histéria nacional — definiu um ambiente urbano usufiuido um tanto a contragosto pela sociedade brasileira de entéio. Um espago edificado onde essa sociedade expressou, claramente, uma profunda negago da rua, com repercussbes importantes na configurago espacial que definiria a cidade brasileira desde entao, Em brasileirinha da silva, expresso gilbertiana que nomeia 0 quarto capitulo, pretende-se mostrar como as raz6es que defi- niram ¢ consolidaram o reinado da casa e, consequentemente, a negagdo da rua, perduram na sociedade brasileira assim como no espago que essa sociedade edifica. E como essas mesmas raz6es, revistas e atualizadas, continuam a determinar, ainda nos dias que correm, o papel menor, secundario, desprestigia- do, que o espago piblico desempenha — quer na forma, quer no uso, quer nas fuungGes — nestas terras tropicais, independen- temente dos custos sociais e urbanisticos que se paga por isso. Em Um trago identitério, apresentam-se as anotagSes finais, onde esto esbogadas as conclusdes a que se chegou com as questées que nortearam o processo refiexivo. A segunda razto a justificar a publicagdo que ora vem as mios do leitor é que as ideias aqui apresentadas na forma de Patavras introdutsrins BE um breve ensaio obteve, em 2006, o prémio Anténio Carlos Escobar - Construindo alternativas em seguranga ptiblica, promovido pelo Instituto Anténio Carlos Escobar —Tace, com sede no Recife. Com sua publicagio, em versio ampliada em telagdo ao texto premiado, cumpre-se 0 ccmpromisso de di- vulgagao do texto assumido com aquela instituigao. Por fim, uma outra informagao relevante 6 que as ideias ora apresentadas deram origem a uma pesquisa académica, atu- almente em curso, aprovada e financiada pelo Conselho Na- cional de Desenvolvimento Cientifico e Teonoldgico - CNPq, com a qual se pretende aprofundar a investigagio das hipéte- ses formuladas. Essa pesquisa, denominade Da casa & cida- de: expressao da subjetividade e configuracdo espacial, vem sendo desenvolvida no Miicleo de studos da Subjetividade na Arquitetura ~ Nusdrg, grupo de-pesquisa in:egrante do Labo- rat6rio de Estudos Avancados em Arquitetura—1A2, vinculado a0 Programa de Pés-graduacfio em Desenvolvimento Urbano, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pemambuco. 27 Pye Cech) CIDADE CONTEMPORANEA PANE ooee sto Tati Cc licereada especialmente em Sobrados e Mucambos, A= como premissa neste texto a ideia largamente defendida por Gilberto Freyre, ao longo da sua obra, segundo a qual a vida brasileira se constituiu em torno da casa~ grande, sintese material da sociedade ento nascente. Da casa- grande num primeiro momento e do sobrado, que, no momen- to seguinte, Ihe herda nfo apenas as fungdes, mas, sobretudo, o significado socioespacial, Coerente com essa circunstAncia, 0 ambiente construido que essa organizaco social gera também se dé a partir do espaco privado, num processo de negacao da rua, do espago piblico; consequentemente, de acordo com 0 argumento que se desenvolve ao longo deste ensaio. Se assim 6, quais seriam as implicagdes desse fato ne configu. Tag&o espacial que define a cidade brasileira contemporinea? Em que ponto ¢ em que medida essa circunstincia sécio-his- ‘orica influiu na conformagio espacial da cidade contempo- ranea? Seriam os shopping centers, por exemplo, na forma que apresentam ¢ na fungo que desempenham no Brasil, um efeito da negacdo da rua espago fundamental da vida urbana, seja em seu sentido urbanistico, séja em seu papel na definigo da paisagem social — para usar aqui uma feliz expresstio da escrita gilbertiana —-na cidade brasileira? 32 Excessivamente presentes no Brasil atuel, esses centros de ‘compra mostram-se, em muitos casos, no que diz respeito a forma arquiteténica, em franca dissociagao com 0 entorno — ou seja, sem nenhum compromisso aparente com a rua —, a0 contrério do que ocorre em diversas cidades curopcias, por exemplo, onde hi uma integragdo muito mais evidente. No que se refere fungao social que aparentemente desem- penham junto a uma parcela expressiva da sociedade brasi- leira, também neles se pode ver um deslocamento importante das fungSes sociais do ambiente que se quer puiblico. Tanto ¢ em tal medida que muitos se tém apressado em proclamé-los como 0s novos espagos puiblicos. E o que dizer do hébito, cada vex mais gritante, de dar as costas, Arua, de negar sua existéncia, de fechar-se de portas adentro em condominios horizontais ¢ verticais, sob a racionalidade da se- guranga, naturalmente? Seriam esses espagos —marcos impor- tantes no desenho urbanistico das chamadas areas “nobres” da cidade brasileira contempordinea — origindrios do modo como se deu o reinado da casa brasileira em tempos patriarcais? Enfim, quais seriam as implicagdes atuais do modo como se organizou 0 ambiente consiruido — a face visivel da cidade — tendo como pano de fundo o patriarcalismo que caracteri- zou a organizagao social em um tempo marcante da vida bra- sileira? De que fala esse espago? E 0 que ele expressa do que e do que pode vir a ser a cidade brasileira? Esse é, seguramente, um aspecto to importante quanto pouco explorado pelos leitores de Freyre: a repercussio sociourbanis- tica da negagao do espaga piiblico, gragas & primazia da casa, na configuracdio espacial da cidade brasileira contempordnea. E 0 que se busca trazer tona com as reflexes que este texto venha a sugerir € provocar. bs casa-grande & citade comtemporines 3S Convém sublinhar que a expresso espaco piiblico deve ser aqui compreendida em sua expresso urbanistica, € no no sentido mais amplo que a expresso adquire quando tratada por disciplinas cujo estatuto epistemol6gico as diferencia do urbanismo, a exemplo da antropologia urbana de Goffman (1983), da sociologia de Simmel (1976) ou de Joseph (1998), Por exemplo, ou mesmo da filosofia de Habermas (1978)', dentre outros. : E urbanismo, por sua vez, é definido aqui como a organizacao das massas sobre um determinado territério fisicamente defi- nido ¢ delimitado.? Refere-se, portanto, a produgdo fisica da cidade, isto 6, a sua arquitetura, ainda que o espaco edificado se nfo tenha produzido pelo engenho de alguém formalmente autorizado para projetélo! Em se tratando de definicses, considerando-se que estas refle- xes destinam-se a um piblico amplo, e ndo a especialistas de uuma ou outra disciplina especifica, convém distinguir, ainda, urbano de urbanistico, de modo a evitar possiveis equivocos na apreensiio do argumento, Embora seja frequentemente utilizado como sinénimo de ur- bano, o termo urbanistico é aqui utilizado referindo-se, exclu- * GOFFMAN, E. La ville en scéne. In HANNERZ, U. (Org.). Explorer a ville élé- sows antrpologi arbi: ass ex batons Ge Mau 1965 SMM, A metrpalea vide meal tn Otdvio Velo (Ong) foramen wobanaBo S Jeo: Zaha, 1976 JOSEPH Inc Za vil son gales Aube tions fe Aube, 1996; HABERMAS, 1 espace publi, drchasloge dela publ ela espace public Arohdclogie dela publics ? BARDET, G. Ourbanismo. Campinas: Papirus,-1990. 3 Do ponto de vista da tera da aeittu, divers ators iversos ators pensaram a cidae, gm fo eres thin, como seo tds la un 36 agitSerm, ulus £ Ent ented ono fideo gue concer consturao"IARGAN: stra are cone sr da dade S30 Fal: Maris one, 92, 2) em apenas em relagio aos espaos forulmcst projets por arquivios. Sobre 9 iusto ey alin de ARCAN, ROSS Alo (196), dents os. Os eee fc Freye to etanhardo a icia de una produgdo igs ds argue ass importncia que ele dou as constugdesnatvas. ts meus eravas 8 33 34 sivamente, & expressiio material da cidade, & sua configuragao fisica, material, arquitet6nica, nao se confundindo, pois, com ‘0 modo de vida urbano definido como aquele que se diferencia radicalmente do viver no campo. E nesse sentido, por exemplo, que o adjetivo urbano aparece em Sobrados e Mucambos, obra na qual o autor se dedica, em especial, aos novos modos que o Pais via nascer e que iriam matcar os primeiros passos do Brasil em diregdo ao que hoje se conhece como cidade brasileira, inclusive em sua expressao metropolitana. Um tempo em que novos ventos sopravam e [J comecaram a ir diminuindo de tamanho as casas- grandes dos particulares: dos capitées, dos brigadei- ros, dos senhores de escravos [... como] a anunciar 0 novo poder aristocrdtico que se levantava (...], una nova nobreza: a dos doutores e bacharéis, talvez mais do que a dos negociantes ou industriais. De uma nova casta: a de senhores de escravos e mesmo de terras, excessivamente sofisticados para tolerarem a vida ru- ral na sua pureza rude Lm tempo em que o desenvolvimento do urbano e a decadén- cia do patriarcado rural deram lugar 4s transformagées que marcaram 0 modo de viver da sociedade brasileira, com im- portantes repercussdes na produgao do espaco fisico sobre 0 qual se assentava a paisagem social do Brasil. E sob essa perspectiva — da repercussao urbanistica daquela paisagem social — que se organizam as ideias centrais deste texto. Para tanto, trabalha-se com a hipétese de que ha uma relagdo entre o modo hostil como o ambiente construido foi “ FREYRE, G. 1990, pp. 5§2 © 574. a cass-orance & cidade contemporines 3S socialmente produzido e experienciado naquele momento es- pecifico da realidade brasileira e a forma e fang que ele de- sempenha atualmente, Essa hipétese talvez sugira uma explicagao, ainda que parcial se nfo se perde de vista a complexidade da questio, para a violéncia urbana que 0 Pais vivencia, notadamente em tempos mais recentes. A luz dessa hipétese, a primazia da casa-grande € do sobrado urbano que the sucedeu como espago nobre de moradia, em detrimento da construgio de um espago pibli- co efetivo, expressa uma hostilidade, para os excluidos desses ambientes, que 0 tempo s6 parece ter acirrado, Sob esse ponto de vista, a sociedade brasileiza talvez no seja apenas vitima da violéncia que assombra o Pais, mas também corresponsavel por parte dessa violencia, E isso porque a casa- grande e a primazia do espago privado que ela simbolizou néo foram apenas um modo de morar, mas antes, um modo de vi- ver marcado pela segregagio, pela exclusdo, pela busca de dis- tingZo e fidalguia. E quando o ambiente construido, a cidade em particular, se faz. hostil, uma vez que, além do abrigo gue oferece as muitas atividades humanas, também expressa, em sua materialidade, os valores mais caros da sociedade, ainda que estes pouco tenham de nobreza e urbanidade, como se as- sinala ao longo deste breve ensaio. Sto, pois, questdes como as esbogadas acima que sf trazidas a luz e & discussdo daqueles que vem a cidade brasileira nfo apenas como dever de oficio, a exemplo de gedgrafos, arquite- tos, historiadores, dentre outros, mas, sobretudo, como o lugar onde experienciam a sua humanidade. 35 O REINADO DA CASA uito se tem escrito sobre a casa-grande, “o antigo bloco partido em muitas especializagées — resi- éncia, igreja, colégio, botica, hospital, hotel, ban- co [...",' como simboto do sistema patriarcal sob 0 qual se organizou a paisagem social do Brasil, da coldnia aos nossos dias. Menos comum é vé-la como unidade socioespacial basi- lar no urbanismo brasileiro, isto é, como elemento gerador do ambiente construfdo que caracterizaria as cidades no Brasil Como consequéncia, pouco se tém discutido as implicagdes daquele espago tanto na forma espacial que as cidades apre- sentam quanto na fungdo urbanistica que 0 espago piiblico pa- rece desempenhar na sociedade brasileira contemporiinea. FREYRE, G. 1936, p. XLV Desse modo, pretende-se chamar a atengfo para a intima rela~ 40 existente entre a casa patriarcal e a rua que surge a partir dela, assim como entre a organizacao social brasileira e o am- biente constrafdo que dela emerge. Com isso, busce-se destacar a ideia de que a paisagem social brasileira ¢ a forma espacial que dela deriva ainda se organizam em tomo dos valores que deram origem a casa-grande patriarcal. Afinal, aquela edifica- ‘¢40 no apenas expressou valores sociais como também os ra- tificou. E isso porque “criava nos homens costumes, métodos de trabalho e habitos de conforto muito peculiares”? Tanto ¢ em tal medida que deles ainda nao se péde livrar a cidade atu- al, conforme se quer fazer ver. Mas quais seriam esses costumes, métodos e hdbitos t80 pro- fandamente arraigados na sociedade brasileira? O mais impor- {ante dentre esses costumes e habitos, para os objetivos deste ensaio, é que essa sociedade se organizou de portas adentro, sugerindo, desse modo, a negagio da rua —~ 0 espaco piblico por exceléncia, conforme definig&o feliz de Merlin e Choay? — com todas as implicagées urbanisticas decorrentes desse fato sécio-histérico, Assim, as anotagdes de Freyre nesse sentido, registradas como epigrafes neste texto, Henry Koster, referindo-se ao Recife das duas primeiras décadas do século XIX, acrescenta: Nao se véem mulheres além das escravas negras [.}. As mulheres portuguesas e as brasileiras, e mesmo as mulatas de classe média, no chegam 4 porta da casa durante 0 dia. Ouvem a missa pela madrugada, ? SCHMOLLER, G. Citado por FREYRE, G. sbidem. * MERLIN, Pe CHOAY, F. 2000, O reinade de casa @ ndo saem senio em palanguins, ou a tarde, a pé. quando, ocasionalmente, a familia faz um passeio.* Que no se conclua, apressadamente, a partir do que se regis- trou acima, que a vida de portas adentro devia-se apenas a0 papel da mulher na sociedade de entio, Freyre encarrega-se de afastar essa ideia quando, citando os Consellios Hygienicos do médico Lima Santos, publicados pelo Diario de Pernambuco de 18 de agosto de 1855, anota: De fato: os brasileiros, quer sejam ror natureza, quer pelo clima, é de observagdo, que nao fazem exercicio suficiente ao desenvolvimento de sua ener- gia fisica e espiritual; metidos em casa, e sentados a ‘maior parte do tempo, ¢ entregues a uma vida intek- ramente sedentéria, nao tarda que ndo caiam em um estado de preguica mortal. Verdade é que 0 grande luxo da terra — um dos sinais de fidalguia, de gran- deza e de grande distingdo —é 0 sair Arua o menos possivel, ser o menos visto possivel e se confundir 0 menos possivel com essa parte da populagdo que os grandes [em itilico na versio consultada] chamam. ovo, ¢ que tanto abominam (..)5 Como se vé, nfo apenas por inércia, mas também por pretensa fidalguia ou, melhor dizendo, em portugués mais claro, por Preconceito ou por pura arrogncia, herdada, naturalmente, da casa patriarcal, “os grandes” nfo se queriam misturar 4 “plebe”, encontro inevitivel se se vai a rua, se se vivencia 0 espago piiblico, * KOSTER, H. Citado por MARINS, P. 2001, p. 203, S FREYRE, G. 1936, p. 39, destaques meus. 4a 42 Aliés, abrigar a todos, inclusive o diferente, o forasteiro 6, pre- cisamente, o cere da definigao de espago publico, um conceito ainda recente em urbanismo*: um espago em que nao ha limite ao encontro, um ambiente fisico permanentemente acessivel a qualquer habitante da cidade assim como 20 visitante que eventualmente hospeda, sem nenhum tipo de restrigao. Her- deira, pois, dos costumes, métodos e habitos que definiram a casa-grande, a cidade brasileira parece no ter ainda construf- do o seu espago piblico. F esse o ponto-chave sobre 0 qual se desenvolve este texto, Nascido jeio, pobre, fétido, higubre, destinado 20 escravo, ini- migo da “nobreza”, 0 espago piblico brasileiro, em seus pri- meiros momentos, surgiu como um espago plebeu, marginal, bastardo, conforme registra, exaustivamente, Freyre Nao faltam evidéncias desse fato como se veré adiante. Por ora, basta registrar aqui a distingdo da casa frente ao despres- tigio da rua, destacada pelo proprio Freyre, em Sobrados e Mucambos. Assim, os meninos filhos de pai rico, habitantes do sobrado, a versio urbana da casa-grande, como se sabe, “viviam @ sombra da casa, protegidos dos perigos da rua, das vulgaridades da rua.” A rua era entio o espago do moleque, criatura sem eira nem beira. A expresstio sem eira nem beira, por sinal, explicita como poucas a (in)dissociagao entre es- ago construido ¢ sociedade — entre arquitetura ¢ paisagem social, portanto —- de que se trata aqui. Afinal, a eira ¢ a beira cram elementos arquitetOnicos cuja presenga, ou auséncia, na casa edificada anunciava precisa ¢ publicamente o lugar social da familia que a habitava. ° Vera propésito, Merlin e Choay, op. elt, verbere espace publi 7 FREYRE, G. 1979, p. 68 Oreinada en caan BR De igual modo, a dona da casa e suas filles viviam dentro de salas, dentro de aleovas, dentro de alpendres, enquanto arta era o espago da eserava, da meretriz, da mulher socialmente menosprezade. Uma indicagdo de como os valores da casa-grande, inculeados na vida brasileira, se perpetuam, isto é, de como a paisagem social brasileira ainda se organiza em torno da casa-grande, aparece, por exemplo, nas expresses meninos de rua, mora- dores de rua, etc., largamente empregada no Brasil contem- pordineo. A rua é, nesse sentido, o espago que resia, que sobra, para aqueles que so marginalizados pela sociedade brasileira. E, pois, 0 espaco do desprestigio, do que no tem Iigar, dos gue nascem e vivem socialmente bastardos. Como consequéncia desse nascedouro pobre, vulgar, quer so- cial, quer urbanisticamente falando, espago piblico, no Brasil, aparentemente, munca assumiu sua fungio mais nobre. Nunca foi, portanto, o cspago da convivéncia, da plaralidade, o espago do encontro com 0 outro, com o diferente de si, no sentido socio- égico do termo. Nunca se confundiu com 0 espago da palavra, da expressiio e discussio de ideias, do exercicio da democracia, tal como se deu na pélis grega clissica, por exemplo. Talvez por isso nao se veja, na vida brasileira, a utilizagtio da ua, do espago piblico, como paleo de grandes ¢ consistentes reivindicagses sociais, tal como ocorrem em outros pafses, in- clusive na América Latina, Os eventos que t2m lugar na Praga de Maio, em Buenos Aires, ou nas grandes avenidas parisienses, por exemplo, evidenciam um uso e uma fungo do espago pibli co.em tudo diferentes do que se vé no Brasil. No caso brasileiro, os movimentos de rua, parecem'se limitar as procissBes religio- sas ¢ s festas profianas, Fora disso, resumem-se quase sempre a 43 ‘eventos esparsos demais, se se tém em conta os quinhentos anos de vida brasileira. Construido por uma sociedade cuja vida se orgenizou no abri- g0 do espaco privado, o espaco piiblico, em sua expressfo ur- banistica, parece anunciar, entre nés, 0 papel secundério, des- prestigiado, que marea o seu nascedouro. Assim, surgido como lugar do escravo, do mascate, do socialmente marginalizado, consequentemente, o espago piiblico no Brasil, a rua, em par- ticular, tornou-se o lugar de circulagio de 4guas servidas, de mercadorias trazidas a casa pelos mascates. Mais recentemen- te, tornou-se 0 espago do carro — ao qual a cidade e a socieda- de brasileira deram primazia absoluta nas titimas décadas —, para se mostrar, nos dias que correm, como o espago do perigo, da inseguranga fisica e psiquica que assola ¢ assombra o Pais. A questio que se traz luz e A discussto € que, na verdade, 0 uso € a fungao da rua na cidade brasileira niio surgem ao acaso, mas, sim, como produto de uma construgo social centrada na casa, no espago privado, portanto, tecida ao longo dos anos que contam a vida brasileira. Uma tessitura manifesta ¢ rati- ficada, materialmente, pelo espago arquiteténico inclusive em sua configuracao urbanistica. Em outras palavras, surgem como consequéncia direta do modo como se organizou a paisagem social no Brasil patriar- cal, valorizando o habitante da casa-grande e excluindo da cena social o que se abrigava fora dela, Nesse sentido, tanto a forma que 0 espaco piblico materializa quanto a fungaio que ele desempenha expressam claramente, quer consciente, quer inconscientemente, valores, crengas, atitudes, comportamen- tos, etc., em tudo compativeis com a estrutura social que os fizeram surgir. O reinedo dacasa BE Trés ideias da escrita gilbertiana alicergam o argumento esbo- gado acima, uma vez que permitem, exemplarmente, compre- ender melhor o que foi o reinado da casa na sociedade brasilei- ra. E o que se aponta a seguir. Acasa como obra coletiva A primeira idcia a sublinhar aqui ¢ que a casa é vista, de modo surpreendente, como obra coletiva, como expressao cultural, portanto. Peter Burke chama a atengdo para o carter excep- cional desse modo gilbertiano de ver ao anotar que, a0 lado “da comida, das roupas, ¢ dos méveis, Freyre trouxe a casa para dentro do mapa da histérie”, para o universo da cultura, por conseguinte. De fato, pensar a casa como obfa coletiva nio € uma ideia co- mum. Afinal, o espago de morar, especialrrente quando visto como arquitetura, é mais facilmente percebico como o lugar do individuo, do fntimo, do singular, E ela, a casa, a unidade espa- basica que o fazer arquitet6nico produz, assim como a rua 0 na configuraggo do espago urbanisticamente produzido. Mas nfo apenas para a arquifetura a casa se confunde com o gue é individual. Também no imaginétio social ela costuma aparecer como algo singular, marcadamente pessoal. E essa ideia que o proprio Freyre registra quando fala do folclore por- tugués herdado pelo Brasil colénia. Diz ele: “A minha casa, a minha casinha, no ha casa como a minha”S O carater marcadamente pessoal do espago-casa aparece na én- fase expressa pela repetigaio do pronome minha, enquanto a " BURKE, P. 2000, ° FREYRE, G. 1979, p16, aspas to original 45 6 natureza insubstituivel desse espago na existéncia individual se evidencia na expresso ndo hd casa como a minka. Ou ainda, por exemplo, “{na] filosofia sobre o assunto, desenvolvida por certo tipo machista [...] de brasileiro médio: posso ter varios casos, mas, case, uma s6”"°, continua Freyre, Na literatura, também é extremamente comum a percepedo da casa como algo privado, particular, fortemente atada a experiéneias pessoas inaliendveis. Bandeira, por exemplo, cantando a sua infincia, poetou assim: “[...] A casa do meu avé... / Nunca pensei que ela acabasse! / Tudo ld parecia im- pregnado de eternidade”." Para além do imaginario popular ¢ da literatura, também do ponto de vista teérico, a casa aparece como algo pessoal. Freud, por exemplo, em que pese o fato de que ele se no tenha detido, em absoluto, em questées relativas ao espago habitado — esse niio era, como se sabe, 0 seu objeto de estudo ou de reflexiio—, escreveu que “a casa é um sucedineo do ‘itero”™, isto 6, um lugar marcadamente pessoal. E, pois, por sair do lugar comum que a escrita gilbertiana se mostra pertinente para a construgio do argumento que aqui se esboca. Freyre apresenta a casa, a casa patriarcal brasileira em especial, como obra coletiva e, com isso, oferece um novo ponto de vista para se pensar esse objeto fundamental da arte de edificar, E isso ndo apenas no que se refere ao objeto casa em si mesmo, mas também quanto as motivagdes sociais que estdio na sua origem. °° Fbidem, sspes no original 11 BANDEIRA, M, 1993, p. 133, ” FREUD, 8. 1929.30/1973,p. 3034, Oreinade dacasa A luz do pensamento gilbertiano, a casa , pois, uma projegao cultural da sociedade que a edifica. F ndo 0 ¢ apenas na forme, como também na fungio que desempenha num determinado uni- verso social. E se, como forma, ela pode ser contemporanea de quem a edifica, como ideia, como nogo", a casa seré, sempre ¢ necessariamente, anterior 20 individuo que a constr6i, uma vez que materializa acordos sociais preestabelecidos pelo universo cultural onde ambos, casa e individuo, esto inseridos. Nesse sentido, longe de expressar a autonomia formal tao cara 0S arquitetos, a casa que se ergue em qualquer ambiente é a expresso manifesta, clara, explicita, material de um conjunto enorme de valores, desejos, opcdes socialmente definidos. Foj assim que Freyre enxergou e apresentou a casa-grande pa- triarcal brasileira, e no como utia deciso puramente pessoal de quem a edificava, ainda que disso 0 seu construtor nao se desse conta. E foi por essa raziio, isto ¢, por ser obra colctiva, por expressar acordos sociais que iam muito além da arquite- tura que nela se manifestava, que a casa brasileira se ergueu de portas adentro, mesmo nos trdpicos, onde 0 calor; a belo clima um céu sereno"* favoreciam em {udo a vida na rua, no espago aberto, no acolhimento do espago puiblico, E como obra coletiva, ainda, que a casa se trensforma em algo que excede em muito a fungdo de abrigo — de pessoas, de ati- vidades, etc. —, sua face mais conhecida. E nesse sentido que * A ideia de casa, nflo como uma edificaglo, mas como wna nogao, aparece em, RYKWERT J. On dam's house m paradise.» cf, Camondge Masts MIT Press, 1997 4 O registro é de VAUTHIER, L. na primeira das cartas ‘que redigiu © nas quais tra- tou das Casas de residénca no Brasil. Literaiment:"O cle, um belo cla € tum ofe sereno fazem apiar po cidade de runs espayoses argamente aes sombreadas por arborizaposbundante, bem 0 contra do que os seus olhos vim ea sa escritaregistava, In FREVRE, G. 1960, pp. 813-814 47 48 Freyre vé esse espago especial como (J ponto de confluéncia de impactos culturais de origens diversas (européia, amerindia, africana); valores religiosos, praticas higiénicas, dancas, mii- sicas, usos recreativos e hitdicas, técnicas de caca, ‘pesca, lavoura agraria; centro de irradiagdo de cul- tura européia e principalmente crista (catequese, educagdo, moralizagéo), laboratério de experimen- tos, nas cozinhas, com animais, ervas, frutos tropi- ais [...].° Pensar a casa desse modo implica, portanto, dar-lhe um papel social e um lugar na cultura que extrapolam, claramente, a sua fungo mais evidente de espago fisico arquitetonicamente pro- duzido" com o objetivo de acolher e abrigar o individuo e sua familia em suas miltiplas necessidades. Dois pontos importantes vém & tona como consequéncia desse modo de ver a casa, em especial a casa patriarcal brasileira. O primeiro é que tira dela a nogdo de algo estritamente particular, fruto de aspiragdes © desejos puramente pessoais, familiares. O segundo € que, sendo obra coletiva, expresso da cultura, ‘consequentemente, a casa é também elemento privilegiado de transmissao de valores socialmente partilhados. Valores esses que se querem permanentes e que devem, portanto, ser trans- mitidos de geragio a geragao. 15 FREYRE, G. 1971, p. 17, 6 A anotacko espago fisico arguitetonicamente producido justitice-se, uma vee ‘que, como se sabe, o espapo fisico como objet de estudo é comuma virios cam os disciplinares, dat s nocessidade de distingui-o, Diferentemente ds geografia, ‘por exemplo, onde o espago fisico € algo dado, apropriado da natureza ¢nisso, ro ato de apropriarto, modificado, na arguitetura 0 espao é algo prodizido ‘pelo priprio fazer arguiteténico, endo, inclusive, esse 0 seu objeto especifico fenquarto campo disciplinar, O reinade da casa 3B E como expresso de valores que permanecem, pois que deri- vam de costumes, métodos e hébitos profundamente inculca- dos no universo social de um povo, que se pode melhor com- preender aqui como e por que o antigo bloco — aqui entendido como 0 espago privado — mantém sua influéncia social de forma poderosa — a expressio ¢ de Freyre — na configurago espacial da cidade contemporiinea, hipdtese bisica do argu- mento que aqui se desenvolve. Como obra coletiva, a casa é vista como algo que transcende 0 particularismo que move um cli, ou uma associago limitada de pessoas. Desse modo, a forma que ela expressa atende @ reclamos e desejos que extrapolam, em muito, as necessidades pessoais objetivamente definidas. De modo semelhante, tam- bém a funedo que 0 espaco-casa desempenha anuncia acordos sociais previamente estabelecidos. E por isso que 0 espaco de dormir, por exemplo, na casa-gran- de, era, na verdade, uma alcova, isto é, um quarto de mulher, conforme definigao dicionarizada — de todas as mulheres que vivenciaram aquele tipo de organizagio social, ¢ nfo de uma sinhazinha em particular apenas —, com todas as implicagdes espaciais do lugar da mulher na sociedade patriarcal brasileira. Assim sendo, aquele espago nao deveria atender tio somente a necessidade objetiva de um lugar adequado para o repouso, para 0 sono. Muito mais que isso. Em sua fungdo social, cole- tiva, deveria afastar a mulher de qualquer tipo de contato com o ambicnte extero — é nesse sentido que Vauthier assinala 0 fato de a alcova patriarcal ter-se tornado uma verdadeira insti- tuicdo e, mais,-uma instituig%0 sagrada.” Deveria, principalmente, anular a possibilidade de qualquer ex- pressio da sexualidade feminina, uma ver. que a sexualidade "7 VAUTHIER, L. In FREYRE, G. $960, p78, 49 da mulher era algo que pertencia aos que se faziam patriarcas —“donos das terras, donos dos homens, donos das mulheres”* sendo esse o valor socialmente partilhado ¢ a perpetuar, qualquer que fosse a casa patriarcal Desse modo, coerente com o fato de que a mulher de entéo era negado qualquer direito e, mais que isso, qualquer expresso de desejo, a alcova — aos lacanianos nao passaria despercebi- da a presenga da palavra cova no vocébulo alcova, ainda que etimologicamente tenham origens distintas — era construf- a no interior da casa, sem qualquer abertura para o exterior, como convém, alids, & sepultura. Destarte, considerar a casa como obra coletiva implica compre- endé-la também como elemento de enunciagdo de valores cultu- rais estabelecidos — quer consciente, quer inconscientemente. ‘Nessa circunstincia, a casa se faz simbolo material de uma rea- lidade maior e muito mais complexa do que o ato de arquitetar e de construir uma edificagao. Ato em si mesmo jé bastante com- plexo, tanto intelectual quanto materialmente falando. Nesse sentido, o espago a que se chama casa passa a materializar, qualquer que seja o tipo de organizagao social do qual ele provém —na forma, no programa, nos materiais e técnicas construtivas, no uso € na apropriagio desses espagos, assim como na valora- fo simbélica que se dé a ele —, os valores que a sociedade par- tilha. E quando se tornam simbolos e, em assim sendo, assumem, como é préprio do simbolo, um sentido pessoal e coletivo muito além da fungaio que sua materialidade expressa. O modo como se da essa enunciagao de valores produzidos so- cialmente e manifestos por meio da arquitetura pode ser mais facilmente compreendido aqui quando se tem em mente, por 'S FREYRE, G. 1933, p. XX © reinado da caso exemplo, a casa da pélis grega classica — uma cidade, aliés, gue, ao contrario da cidade brasileira, era “caracterizada pelo desenvolvimento de dentro para fora”? Nela,'a casa como ob- jeto arquitet6nico nao tinha importancia, uma vez que a vida social grega se organizava, como se sabe, em torno da Acr6po- le, 0 espago do Sagrado, e da Agora, o espago piblico, marca da sociedade grega de entio. Assim, coerentes com essa caracteristica do povo grego naquele momento especifico, as casas eram simples espagos de abrigo, Como arquitetura, nfo se diferenciavam, ndo se distinguiam uumas das outras, uma vez. que essa distingao nfo era bem-vinda a uma sociedade que tinha na igualdade quento aos direitos de cidadania um de seus valores mais perseguidos, Em outras pala- ‘ras, ndo era um valor a ser partilhado e transmitido. Goitia assinala essa caracteristica do espaco edificado como elemento de enunciagao de valores coletivos chamando a aten- io para 0 fato de que Com o desenvolvimento da democracia nas cidades- Estado da Grécia |...) a moderagdo des grandes na vida privada [da qual a casa era simbolo] era tao exemplar, ...] que, se alguém descobrisse a casa de Aristides ow de Milciades, ou de qualquer dos ho- ‘mens ilustres daqueles tempos, verificaria que nem o mais pequeno luxo a distinguia das ouiras.” Ouso do vocébulo exemplar 44 bem a medida do caréter enuncie- tivo de um valor a preserva — no caso, 2 mocerago —, ou seja, de algo que se quer, por uma pritica, reproduzir sempre e mais, * ROSSI, A. 1995, p.203 2° GOITIA, F. 1982, pp. 48-49 52. A casa grega nfio se distinguia porque os valores sociais dos quais ela provinha eram representados no espago piblico, no espaco da fala, da expressio de ideias que se discutiam coleti- vamente. Tanto ¢ em tal medida que Benevolo nao se esqueceu de anotar que a cidade grega clissica — considerada até hoje como a perfeigdo em urbanismo —, nfo deveria ultrapassar um determinado nimero de habitantes. Diz cle: “[Na cidade grega ideal] a populagao deve ser suficientemente numerosa para formar um exército na guerra, mas ndo tanto que impeca 0 funcionamento da assembléia, isto é, que permita aos cida- dios conhecerem-se entre si [..}”"!, de modo a nao impedit 0 funcionamento e a manifestagao daquilo que era mais caro a0 povo grego de entio, a experiéncia do espago publico social- mente valorado e arquitetonicamente delimitado. O cardter de elemento de enunciagao de valores culturais que 4 arquitetura pode manifestar € to forte e fo claro em qual- quer sociedade que Vauthicr, referindo-se a esse aspecto da casa-grande brasileira, nfio deixou de observar que a edifica- 40 anunciava, por si mesma, a existéncia de um senhor, de um dono de terras ¢ de pessoas. E registrou: Se, afastando os olhos da beira-mar, {0 viajan- te] estender a vista ainda além, {...] verd em breve destacarem-se duas partes essenciais: uma, extenso telheiro, mal coberto, rasgado por intimeras por- tas estreitas, em torno das quais se comprime uma populacao malirapilha; outra, uma casa branca, erguendo-se d altura de muitos degraus acima do nivel do chiio ¢ situada de modo a permitir a obser- vaciio facil de tudo quanto se passa no interior do vasto piitio de usina. Essas construgdes tGo diversas 31 BENEVOLO, L. 1983, p,77, desiaques meus. © reinado da casa ndo sao evidentemente de seres da mesma espécie. Ele [0 viajante] leré nos tragos dessa arquitetura que existem ali senhores ¢ escravos.” Figuras 1 ¢ 2: Acima, a senzala do Engenho Moreno e, cbaixo, a casa-grande do Engenlo Sapucagi (PE). Afastando os olhos, se lend nos ‘ragas dessa arpultetura {que eristiam ali senhores¢ escravos. Colesao Gileno De Ca. Fotos: Julien Mandel. Fonte: Acervo da Fundacio Jozquim Nabuco. E nesse sentido que a ideia de casa como obra coletiva oferece uma contribuigdo importante para se refletir sobre o ambiente que a cidade brasileira edificou 0 longo do tempo. A casa no ® FREYRE, G. 1960, p. $07, destaques meus. 53 se ergue por si mesma. Tampouco o fez. no Brasil patriarcal e es- cravocrata. Muito ao contrério, expressou, 4 exaustio, tanto na forma como na fungi, aquilo que definia a sociedade da época, E, pois, como obra coletiva, como expresstio de valores que transcendem a vontade individual, reafirme-se, que se torna relevante pensar a casa-grande como elemento importante na organizagao espacial da cidade brasileira. Hi dela que emergem 8 valores sociais que se materializam na configuragaio urba- nistica da cidade atual se se tem como validas as ideias aqui esbogadas. Acasa como centro social Essa é a segunda das trés ideias gilbertianas mencionadas an- teriormente que se (ém como fundamentais para o argumento central deste texto. Gilberto Freyre no abre espago para a divida quanto ao papel absolutamente central da casa-grande dos patriarcas na socie- dade brasileira. Assim, diz ele: Admitida a interpretacao patriarcalista da formagao brasileira, segundo a qual essa formagao teria tido por centro a familia patriarcal proprietéria de ter- ras e de escravos, dominadora de agregados, e mais forte que governos ou bispos em sua influéncia sobre populagies — a principio as pré-nacionais, depois as nacionais — tem-se que reconhecer nas casas- grandes, residéncias desses senhores rurais, casas simbolos de wm poder que foi o decisivo na organi- zacao, nos Brasis, nao s6 de uma economia, como de uma sociedade: de uma sociedade com qualidades de permanéncia e condicdes de subsisténcia. Portanto, © reinado da casa casas que, como casas simbolos, cedo passaram a caracterizar, em suas formas arguiteténicas, essas qualidades e a corresponder a essas condicées. Com efeito, nfio hé dimensto da vida social brasileira que tenha tido lugar ou expresso fora dos raios de influéncia da casa-grande do Brasil colonia, do Brasil império e, quigé, do Brasil republicano. No que diz respeito a fungdo propria do objeto arquiteténico, {sto é, a sua fungdo primeira, de prover abrigo para as malt plas atividades humanas, a casa brasileira era surpreendente- mente abrangente. Do nascimento & morte, tudo, literalmente, que dizia respeito & organizagao social se passava dentro da casa patriarcal ou em torno dela.‘Uma vez mais, registra Gil- berto Freyre: A propésito de remédio caseiro, lembre-se que du- rante anos esteve ligada a casa a figura do médico de familia, No seu cabriolé, vinha ds casas ver doen- tes, sendo muitas vezes compadre ou morador. Uma relagdo 1&0 intima a que prendia 0 médico de fami- lia & casa do cliente. [...]. Além do que, quase todo menino nascia em casa. A parteira de familia quase sempre era, como o médico, compadre, comadre. Também vinha & casa 0 cabeleireiro corar 0 cabelo e fazer a barba de ioiés e comodistas. A professora ow 0 professor particular de piano. A de canto. A de Jrancés. A de inglés. A costureita. Em dias remotos, a chamada boceteira que vendia doces em bocetas. A vendedora de renda ow bico. O vendecor de bugi- gangas: sabonetes, logdes, perfumes. O de galinhas. ® FREYRE, G.1971, p.35. 55 36 O de verduras. O de vassouras. O de espanadores. Ode mitho verde. O de melaco. O italiano da maca- ca: que ao portao facia dangar a sua macaca.* Como se vé, 0 comércio, os servigos médicos e educacionais, 6 lazer, tudo se passava no interior da casa patriarcal brasile- ira, Muito mais, porém, do que palco para as atividades do cotidiano familiar, a casa brasileira cra também 0 espago que abrigava o centro do comando, o exercicio do poder, essa, sim, a real expressio do papel da casa patriarcal como ponte nucle- ar da vida social brasileira, Evidenciam esse fato, dentre outros, o lugar modesto ocupado pela Igreja de entio — uma das instituigdes mais prestigiadas no mundo ocidental 4 época —, frente 20 poderio sem limites do patriarca, O fato chama a atengo num pais que até hoje se proclama oficiaimente catélico. Assim, tratando precisamente do poder nuclear da familia patriarcal, da qual a casa-grande era a representagdo material por exceléncia, observou Freyre: Mais do que a ago da Coroa ou do que a da Igreja, a Familia Patriarcal plasmou, no Brasil —ndo s6 no Brasil tradicional da cama-de-agticar, como noutras regides do Brasil —o tipo de sociedade, de econo- mia e de cultura que aqui se desenvolveu. Dai ter esse tipo de sociedade resultado diferente, em varios aspectos, do espanol, que se desenvolveu, noutras partes da América, através de vice-reis poderosos € de bispos igualmente cheios de efetivo poder. No Brasil, vice-reis e bispos tiveram nos patriarcas das ccasas-grandes de engenhos ¢ de fazendas alguns dos guais com capelas e capelaes particulares listo €, * ERBYRE, G, 1979, pp. 14-15. Oreinado da case SE sob 0 controle ¢ sustento do patriarcal, rivais do seu poderio e da sua influéncia sobre os demais elemen- tos da populago2* Essa circunstiineia de supremacia do senhor de terras frente a figura do padre, ¢ mesmo do bispo, fica mais acentuada quan- do se atenta para as condigdes sob as quais se dava, entio, 0 exercicio sacerdotal. © Auto da Compadecida, levado as telas do cinema pelas mios do cineasta Guel Arraes, deixa bem claro, ainda que pela ficgao, 0 desprestigio do clero e, consequentemente, da Igreja em determinados momentos da vida brasileira. Basea- dona obra célebre de Ariano Suassuna, o filme obteve enorme sucesso de bilheteria, fato que sugere uma certa identificagao do piblico brasileiro com a histéria narrada,” ‘Nera mesmo na pritica do confessionério, espaco privativo do sacerdote catdlico ¢ posto privilegiado para influenciar pes- soas — gracas a fragilidade de quem tem algo a confessar e a evidente superioridade de quem pode perdoar, ainda mais em nome de Deus —, 0 padre conseguia uma posigdo solida de comando, e de poder como se poderia imaginar. Em mui- tos momentos, 0 médico roubou-lhe a cena ¢ assumiu esse li gar privilegiado, ocupando, também, por vezes, 0 coragao das sinbés e sinhazinhas. Carentes de tudo, em: especial, “de voz grossa de homem que Ihe[s] acariciasse os ouvidos””” as mo- ‘gas e senhoras da casa-grande a ele dedicavam o suspiro que 0 peito sufocava. Assim diz Freyre: 25 FREYRE, G. 1979, p.59, destaques meus. 2° Nao se minimizam aqui os ecursos de marketing capazes de impulsionar 0 suc- ¢esv0 de eventos como esse. No entant, mantéa-se a assertiva acima, uma vez ue também ¢ fato que zpenas instrumentos publictércs nfo explicam a grande aceitagdo popular de alguns desses empreendimentos. *7 FREYRE, G. 1936, p.34 ST A mulher do sobrado foi encontrando no doutor uma ‘figura prestigiosa de homem em quem repousar do ‘marido e do padre, a confissao das doengas, de do- res de intimidade do corpo, oferecendo-thes um meio agradével de desafogar-se da opressao patriarcal e da clerical® E, desse modo, “as casas-grandes foram reunindo e figura mais independente do médico de familia & do capelo ou confessor, mais acomodado & vontade do pater familias” Nao surpre- ende que assim fosse. Afinal, tratava-se de uma sociedade na qual reis e imperadores conciliavam 0 poder com a aristocracia ristica, conforme se registra adiante. Além disso, convém lembrar, o exercicio sacerdotal era entao praticado menos por uma identificagao do candidato a padre com a é e coma pritica do ministério cristo, por uma vocagg0 sacerdotal, portanto, do que pela determinagao do patriarca. Era 0 dono das terras, dono dos homens, donos das mulheres quem escolhia, entre a sua prole, aquele que deveria fazer-se padre. E dificil imaginar que esse filho, em tudo subjugado pela forga do pai — nao apenas a forga simbélica inerente a paternidade, mas, sobretudo, a fisica, ditatorial, mondrquica tantas vezes —, pudesse, uma vez padre, exercer adequada- mente as fungdes eclesidsticas quando essas se mostrassem em desacordo com o poder, por vezes tirano, do patriarca. Coerente com esse papel aparentemente secundério, a capela, a expresso arquiteténica do lugar da Igreja na estrutura arquite- t6nica da casa-grande e sempre presente nos arranjos espaciais, existentes — “com rarissimas excegGes, todos os engenhos ti- nham uma capela para o culto da religido catélica professada 28 EREYRE, G. 1936, p. 121 ? Ioidem. Oreinado dacecs pelos proprietérios ¢ seus familiares, pelos trabalhadores livres € pelos escravos" —, aparece, por vezes, localizada no seu in- terior, totalmente envolvida pelo espago da casi. Nessas situa- ges, “nada a distinguia da casa, a ndo ser una porta um pouco maior”, conforme registrou Vauthier,”' embora essa fosse uma situagdo considerada pouco comum por alguns autores, uma ‘vez que quase sempre a capela era construida como extenséio da casa, em uma das suas extremidades.? Em alguns engenhos, era possivel observé-la um pouco recuada com relagao a fachada da casa-grande. Tanto esse recuo como a nio diferenciagao do espago da casa sugerem o lugar secundé- rio da Igreja em relagao & forga e ao poder da casa-grande. Esse era, pois, um espaco diferencigdo do lugar da Igreja nas Vilas © cidades brasileiras em dados momentos histéricos, Seguindo as determinagdes das ordenagdes do reino, as igiojas deveriam sor erguidas sempre no mais alto lugar do sitio, como diriam os por tugueses, destacando-se, portanto, de modo inoquivoco na paise- gem edificada. Assim, se se comparam esses fatos socioespaciais, fica visivel o lugar acessOrio da Igreja na vida petriarcal brasileira, frente a0 reinado da casa, mesmo numa sociedade profundamente religiosa, como era a do Brasil de entio, Entender as razSes que engendraram esse fato fica mais fécil quando se tem em mente o lugar central da casa-grande. Um lugar tdo marcante que “mais do que a Coroa ou do que a Iereja [...], plasmou, no Brasil, o tipo de sociedade, de eco- nomia ¢ de cultura que aqui se desenvolveu”, conforme se ‘mencionou anteriormente 3 GOMES, G. 1998, p.23, in FREYRE, G. 1960, p. 771 ® GOMES, G.,op.cit, pp. 92-93, 59 60 De fato, era a partir dela que 0 poder era exercido, seja ele econémico, politico, juridico, etc. Mais forte do que governos e bispos, 0 poder patriarcal nao tinha limites, e isso no apenas em relago aos escravos, mas também no que dizia respeito A familia e aos seus agregados, ¢ mais, diante das leis que ndo egavam — qualquer semelhanga com 0 Brasil atual nfo é mera coincidéncia — quando contrariavam os interesses, sempre par- ticulares, privados, dos donos da vida. No que diz respeito as quest0es politicas, Freyre nfo se esque- ceu de anotar que “tanto Dom Joaio VI como os imperadores Pe- dro I e Pedro II souberam conciliar o prestigio do governo ou do poder politico com o da aristocracia ristica das casas-grandes patriarcais”.® Essa assertiva dé bem a medida da extensio do poder patriarcal centrado, espacialmente, na casa-grande. ‘Também do ponto de vista da lei, o patriarca tudo podia, in- clusive esfolar escravos para usar seu sangue nas fundagées da casa-grande, assassinar filhos e genros que 0 contrariavam, como nos casos de crimes horrendos narrados por Freyre.* Po- diam mais: podiam ainda encerrar filhas nos conventos, “onde fica[va]m reclusas mulheres e mogas, nao precisamente de ma vida [seja lé 0 que isso pudesse significar], mas que deram al- gum grave motivo de descontentamento aos pais ¢ maridos”*, isto é, ousaram expressar qualquer migalha de desejo, de von- tade propria, atreveram-se a pronunciar o advérbio nao, Na clausura, muitas enlouqueceram, naturalmente. A forga do poder advindo da casa-grande, transformada em tribunal, em local de execugao ou em prisio, era tamanha, ¢ °° FREYRE, G.1971, p. 38. > 4 emparedada dia Rua Nova, de Carneiro Vilela (1846-1913), & uma narrativa exemplar deste poder som limites de que se fala aqui * Citado por FREYRE, G. 1936, p.126, aspas originals O vcinade dacars em muitas ocasides to perversa, que escandalizou a muitos estrangeiros acostumados a outros ares ou, melhor dizendo, a ‘uma outra paisagem social em tudo diferente daquela imposta pela casa patriarcal. ‘Nesse sentido, aturdido, Hermann Burmeister, um viajante alemo, citado por Freyre em Sobradas e Mucambos, escreveu: “Sabe-se até que muitos brasileiros intermam suas mulheres, sem plansivel razo, durante anos num claustro, simplesmente a fim de viverem tanto mais a seu gosto na sua casa com uma amante [..]”* E tudo isso ao abrigo da lei. Continua o perplexo Burmeister: “A lei se presta a este abuso; quem se quer livrar da prépria esposa, vai a policia e faz. levé-la ao convento pelos funcionérios, desde que pague o custo das despesas [{..]"2" Assim, simples e facil, monstruoso ¢ tolerado. Ao que Freyre ajunta: “[...] ndo resta di- vida de que, durante toda a época de patriarcalismo, ¢ mesmo durante sua primeira fase de declinio, a lei favoreceu por todos 08 modos a subordinagio da mulher 20 homer no Brasil” * Mas a subordinacdo da lei a casa-grande estava longe de se limitar & questo da mulher, do escravo ou dos filhos, todos, quase sempre, econémica e socialmente dependentes do pa- triarca, Nas questdes coletivas, também erem 0s donos dos ‘homens quem determinava se ¢ quando a lei deveria ser cum- prida. Assim, no nascimento do urbano no Brasil, quando 0 patriarcalismo rural jé estava em decadéneie, as posturas de- finidas pelas Camaras Municipais também eram atropeladas pelos interesses privados da casa-grande ou solenemente ig- norados por ela, % sidem, aspas origina * Ibidem, aspas originsis % ibidem. 61 62 E mesmo elas, as Camaras, a quem competia zelar pelos inte- resses coletivos, “[...] mais de uma vez estiveram do lado dos interesses particulares e contra os gerais” e, por vezes — tal- vez sem conta, se se considera a configurac&o urbanistica da cidade atual — , “cruzavam os bragos diante da comercializa- Go criminosa da arquitetura pela economia privada. Como se vé, também no que diz respeito as disposig&es juridi- cas, a casa patriarcal reinou absoluta, Tampouco era diferente do ponto de vista econdmico. Nesse sentido, a casa-grande era no apenas a sede administrativa do engenho, e consequente- mente da produgéo, como também a sede financeira, 0 banco onde se guardavam os valores produzidos. Em muitas paredes e solos patriareais guardaram-se expressivas fortunas, algumas perdidas para sempre, uma vez que os valores escondidos nun- a seriam achados. Do ponto de vista da arquitetura, essa fungio de controle, nao apenas da produto econdmica, mas também de tudo 0 que se passava a volta da casa-grande, aparece registrada por Vauthier quando se refere & localizagao estratégica da casa patriarcal no terreno em que era implantada, Assim, narrando uma visita a um dos muitos engenhos brasilei- 10s, o engenheiro francés assinalou: Tal como acontece a este que ora temos & vista, € quase sempre a meia encosta que fica situado o En- genho. A casa do proprietério, a casa-grande como dizem respeitosamente os escravos € os assalaria- dos, ocupa o lado mais alto do recinto {tal como a igreja sob as ordenagdes do reino de que se falou % PREYRE, G.1936, pp. 171 e211, respectivamente. roinado da casa SE anteriormente]. [..]. Dirigimo-nas [...] para a habi- tagio principal, onde nossa presenca foi hé muito assinalada, pois a casa domina ao longe a planicie e dois cavaleiros néio passam despercebidos.” Destarte, em que pesem as raz6es objetivas de implantagdo desse edificio no terreno, questées de topografia, de orienta- G40, ete., convém néo desconsiderar a d:mensio simbélica dessa localizagdo da casa-grande, ocupando o lado mais alto do recinto, Como a Cétedra do lente — num tempo em que a docéncia no Brasil gozava de maior prestigio, naturalmente —, como © Piilpito do sacerdote, como a Tribuna do politico, como 0 Estrado do juiz, também a Casa dos donos das terras, donos dos homens, donos das mulheres localizava-se num patamar acima do espago dos demais, enunciando a distingo do seu lugar social, E, pois, por se ter casa-grande constitui¢o como centro da paisagem social do Brasil, como queria Freyre, por um tempo demasiado longo, que o espago pablico brasileiro ainda no se pOde efetivamente consolidar na cena urbanistica brasileira, conforme a hipotese basica deste texto. Uma casa brasileira A casa de que se ocupou Gilberto Freyre se mostra brasileira, isto é, peculiar, identitéria, com caracteristicas e atributos pré- prios de uma sociedade muito particular. Esse é 0 terceiroe der- radeiro ponto dos trés mencionados antes, fundamentais para a compreensio do argumento que, aqui se deseavolve. “'FREYRE, G, 1960, pp, 872-873, 875-876 destaque no original 63 Trata-se, pois, de um espago construido imagem e semethan- a da sociedade brasileira. E esse o sentido da palavra identi- tdria empregada acima. E precisamente por essa razdo, isto é, por refletir, como num espelho, valores ¢ caracteristicas que definem essa sociedade, que a casa-grande patriarcal se tornou poderosa, capaz de estabelecer habitos, posturas, modos de ser espalhando sua influéncia por geragdes sucessivas de brasilei- ros. E isso no apenas no que diz respeito organizagéo ¢ pro- dugao do ambiente construido, mas também e em igual medida, na maneita de compreender e vivenciar esse ambiente, Produzida do barro social do qual se formou a sociedade no Brasil, da colonia aos nossos dias, a casa brasileira espelha seu povo, Em outras palavras, ao se olhar o ambiente construido, vé- se, também, 0 tipo de arranjo social que o fez surgir. Desse fato, deriva sua forga, seu poderio e, sobretudo, sua permanéncia, E por ser genuinamente brasileira que a casa — aqui entendida como elemento simbolo do espago privado, qualquer que seja a sua forma ou fungio arquitetniea —, socialmente produ- zida, reafirme-se, transforma-se em elemento de transmiss40 dos valores que constituiram e que continuam a constituir a sociedade brasileira, E nesse sentido que Freyre dé a cla, a casa, um sentido antropo- Jogico. Por ser genuinamente brasileira, essa casa explicita [...] nossa originalidade, ou seja, nossa identidade [agora no sentido daquilo que a diferencia, do que a tora tinica], 0 nosso existir [e permite...] uma and lise do que somos e temos sido ¢ também reflexiio do que nos tornamos e estamos a ser:*! 4 FREYRE, G. 1979,p. 19. Tanto e em tal medida que O arquiteto Lucio Costa, diante das casas vethas de Sabaré, Sao Jodo del Rei, Ouro Preto, Mariana, das velhas casas-grandes de Minas ...testemunhou}: “A gente como que se encontra... E se lembra de cow- Sas que a gente nunca soube®, mas que estavam lé dentro de nds; nao sei — Proust devia explicar isso direito”® E nesse sentido ainda que Freyre da & arquitetura a condigéio de sujeito%, isto é, de protagonista na histéria da hamanidade, e n&0 de mero objeto de usuftuto humano. Embora nio se alongue so- Dre essa questo, Freyre inova tarhbém aqui, & semelhanga do que fez ao compreender e apresentar a casa coro obra coletiva, A importincia desse outro modo de ver a arte de edificar pode ser apreendida quando se considera que, por ele, a arquitetura ganha uma outra caracteristica — a dinamicidade —, que a faz capaz de influir na vida das pessoas, quer individual, quer socialmente, de provocar emogoes, ete. E mais: capaz de anunciar valores, de gerar comportamentos, de transmitir acordos socialmente estabelecidos, conforme se registrou algumas paginas tras. E quando a arquitetura assu- me um papel fundamental na histéria humara, até hé pouco sequer suspeitado. Afinal, 0 objeto arquiteténico tem sido vis- 2 Sobre aida de que oexpago da arguicior produz ecahecimentosbjetivo capaz de dies a sso "no sentido feuiano do temo — quem cle, ver TEITAG, 1. Os movinenas deserts de cidade: uma imeaigegbo sobre pro Cee inclement hide, Ree Tana CaN, i # FREYRE, G. 1933, p. XXX, aspas no original “1 FREYRE, G. 1979, p.35. 65 66 to, frequentemente, com a estaticidade que a pedra e a cal lhe conferem.** Trés pontos merecem especial atengo quando se reflete sobre a expressio de brasilidade manifesta na casa brasileira. O pri- meiro remete ao fato de que ela nasce das entranhas do povo, que a sua imagem ¢ semethanca deu forma a paisagem brasi- Ieira, agora em sua dimensfo construtiva. Assim essa casa foi [..] muito menos criagdo de arquitetos eruditos ou de artistas individuais do que expressdo coletiva, anénima, de um ajustamento, a principio portugués, colonial; depois, brasileiro, pré nacional e nacio~ nal, de wm sistema familial de organizacdo social ao seu ambiente e ds suas funcées. Por conseguinte: a uma ecologia e a um conjunto de atividades socio- culturais ecologicamente condicionadas.** Acondigio de casa brasileira the é dada, pois, por se ter torna- do fruto de um ajustamento — e nfo mera assimilagdo de um modelo qualquer —, por expressar 0 modo brasileiro de ser, ainda que em seus primérdios. Freyre deixa clara essa ideia logo na introdugdo de Casa-grande & senzala, quando chama atengfo para o fato de que, ao se comparar a casa brasileira do século XVI com o solar portugués do século anterior, jd se podia perceber esse ajustamento, Assim, apenas um século depois da presenga portuguesa em ter- ras brasileiras, 0 Brasil j6 era “quase uma raga, exprimindo-se * ‘to recentes os estudos produzidos que dio & azquitetura um papel importante ‘a produgo da subjetividade. Ver # propésit, SALIGNON, B. Questce que architecture? In Rythme etars. Lecques: Théetéte Editions, 2001; MITSCHER- LICH, A. Paychanalyse et urbanisme, Paris: Gallimard, 1970, 4 FREYRE, G. 1971, p.19. © reinado da cosa noutro tipo de casa”, isto é, a casa-grande niio foi de modo algum algo imposto. Muito pelo contrério, nela se expressou muito rapidamente a capacidade de adaptagio, to familiar 20 povo brasileiro, 0 jeitinko que nos caracteriza e diferencia. Eo que assinala, por exemplo, Silva Filho, quando, referindo- se A arquitetura luso-brasileira no Maranhao, escreveu: A mistura de pesados paramentos de pedra azuleja- dos com as leves caizitharias de madeira determi- nava a medida exata da convivéncia do formalismo europeu com o meio tropical. Uma arauitetura for- jada nas relagdes Metrépole-Col6nia, desde a seto- rizagao de uso & implantagdo do lote e as solugdes construtivas. As frentes, expostas ao pitblico, sdo ‘fechadas, formais, ¢ exibem respeito e austeridade: a Metrépole {...]. Os fundos, ajustados ao rigor da frontaria européia e recolhides aos quintais, sao leves, assimétricos, abertos e despojaios: a Colé- nia® Foi durante esse processo de ajustamento que 0 brasileiro se foi “afirmando um criador nada insigni‘icante de valores € simbolos arquiteténicos capazes de defin:rem um estilo de cultura e de civilizagaio”. E foi também durante esse processo que a casa patriarcal se mostrou obra coletiva capaz de criar e de transmitir valores que expressam brasilidade, disseminados muito além das fronteiras de cada engenho em particular, ¢ mesmo de cada regiao. 47 FREYRE, G. 1933, p. XIX ¥ SILVA FILHO, 0, 1998, destaques no original. © PREYRE, G. 1971,p. 19. or Um outro aspecto a considerar é que a casa brasileira pode ser assim compreendida definida por sua presenga constan- te no territério nacional — pelo menos no que se tinha dele apropriado neste pais continental durante o tempo em que teve lugar 0 ajustamento do espago de morar a realidade nacional. A generalizagdo que aqui se faz exige cuidados, naturalmente, Nesse sentido, convém assinalar, refere-se to somente aquela de que trata Freyre quando identifica a existéneia de uma mes- ma casa patriarcal, quer no Sul, quer no Norte, seja em Per- nambuco, seja em terras paulistas ou ainda em antigas zonas fluminenses. Em suas palavras: A casa-grande, embora associada particularmente ao engenho de cana, ao patriarcalismo nortista, no se deve considerar expressdo exclusiva do acticar, mas da monocultura escravocrata e latifundiéria em geral: criow-a no Sul o café téo brasileira como no Norte 0 agticar. Percorrendo-se a antiga zona flu- minense e paulista dos cafezais, sento-se, nos casa~ Bes em ruinas, nas terras ainda sangrando das der- rubadas e dos processos de lavoura latifundidria, a expresso do mesmo impulso econémico que em Pernambuco criou as casas-grandes de Magaype, de Anjos, de Noruega, de Manjope, de Gaypid, de Moreno {...)° Ou seja, um certo modo de edificar e de habitar tanto social quan- to arquitetonicamente falando, disseminado no territ6rio nacional pont de gerar o testemunho de Vauthier, segundo o qual “quem viu uma casa brasileira, viu quase todas” ou seja, um modelo 8 PREVRE, G. 1933, p. XIX, 5! FREYRE, G. 1971, p. 819. Oreinado de cova BE que se reproduzia quase ad infinitum, gerando edificagées moné- tonas, conforme ajuntou Pires de Almeida em texto de 1886: ‘Vauthier assinala a forga de um modelo que se reproduzia sem cessar quando, num misto de surpresa e de decepgao, refere-se A construgao de uma casa erguida por um ricaco bem educado Com isso, © engenheiro francés aponta para 0 fato de que a reprodugiio de um modelo predefinido — ro caso, 0 modelo patriarcal de habitar de que se trata aqui —, devia-se muito menos ao gosto pessoal, a boa educagio € mesmo & posse de recursos financeiros do que aos valores socisis profundamente inculeados na vida brasileira. Diz ele: A casa aonde iremos agora é a de um -icago. E um homem bem-educado, que conhece a Europa, fala um pouco de francés, um pouco de italiano, leu Bal- zac, Eugene Sue e Paul de Kock ¢ que, sacudindo um pouco os preconceitos nacionais, recebe em casa a sociedade. Essa casa, cle a mandou construir para seu uso, no local que escolheu. Vamos, eniretanto, encontrar novamente o mesmo tipo geral, sem mo- dificagao alguma.® Desse modo, a casa brasileira pode ser assira definida por ex- ppressar os mesmos objetivos e fungdes e, por vezes sem conta, repetir 0 mesmo partido, os mesmos materiais ou o mesmo proceso construtivo, os mesmos costumes, métodos e hibitos que caracterizariam esse espago ¢ o povo que o edificou, onde quer que ele tenha sido erguido. Um outro ponto a merecer especial destaque € que a casa bra- sileira se distinguiu por sua domesticidade. Essa é mais uma ® FREYRE, G. 1960, p. 819. S FREYRE, G. 1960, p. 819, destagues meus 6 10 questo importante quando se busca compreender a especifi- cidade da casa brasileira, uma vez que, como se anotou antes, a casa patriarcal foi um espago-bloco, “um antigo bloco parti- do em muitas especializacdes” para usar aqui, literalmente, a expressio gilbertiana. Uma edificag%o onde se abrigavam as mais diferentes fungdes arquitetonicas — casa-hospital, casa- banco, casa-empresa, casa-igreja, etc. — conforme foi anotado anteriormente. Essa circunstancia poderia levar a uma leitura precipitada de um espaco coletivo em suas fungdes e ambien- tes, Muito ao contrario da ideia de coletividade que esse bloco edificado poderia sugerir, a casa patriarcal era fundamental- mente doméstica, E isso porque todas as atividades que nela tinham lugar visavam a atender a interesses privados, fami res, principalmente os interesses do patriarca, uma vez. que to- dos os demais membros da familia 2 ele deveriam curver-se. Provavelmente, foi essa marca de domesticidade, genuinamen- te brasileira, que fez da casa-grande o centro da vida social no Brasil. E talvez tenha sido essa marca, ainda, que impediu 0 surgimento do espago pitblico em suas fungdes plenas, o respei- to ao interesse coletivo, o reconhecimento de limites & vontade senhoril, essencialmente privada. Se se tem como valida essa hipétese, a edificagao da casa-grande, assentada na dome: dade, dificultou a construgao de um espago piblico. Nao foi, portanto, & toa, ou ao acaso, que a vida brasileira se organizou de portas adentro, em tomno da casa patriarcal. Abrir as portas, sair & rua, implicava, necessariamente, reconhecer o coletivo, © interesse plural, ¢, com isso, aceitar o estabelecimento de limites ao que era privado, particular, familiar. E estabelecer limites era, precisamente, o que o patriarcado brasileira jamais admitiria senfo a contragosto, quando a decadéncia daquele mundo rural, excessivamente privado, fez nascer 0 modo de vida urbano com ares do que vem para ficar, conforme se vera adiante, oretnace on ese BE Em outras palavras, o cardter de domesticidade, proprio da casq patriarcal, criou um estilo de vida a ser vivenciado no recolhi mento do espago interior, em tudo incompativel com a vida ng espaco publico, nas ruas espagosas, cuja inexisténcia chamoy a atengdo de Vauthier, no espago cotidiano da festa, do riso, dg fala, do encontro, do namoro, da celebragao da vida, enfim. Gilberto Freyre registra que esse estilo de vida sob o dominio da vida doméstica gerou um ambiente sombrio, tristonho, prdpric do convento, da clausura. Um estilo excessivamente abrangen. te que chegou a romper os limites da alcova, sem ar e sem luz, tanto real quanto metaforicamente falando, e se estendeu a0 que era 0 arremedo de um espago piiblico, a rua de entio, conforme o testemunho de Henry Koster, mencionado antes. Um outro ponto a destacar, quando se quer melhor compreendey a casa em sua brasilidade, esté diretamente associado ao cardtey de domesticidade abordado acima, Trata-se da natureza privati, vista desse espago, de acordo com a expressto gilbertiana, istg é,a casa brasileira, em sua especificidade, nic apenas se organi. zou em toro da familia, em seu cotidiano doméstico, portanta, ‘como também se definiu em fungdo de interesses excessivamen. te pessoais, particulares, proprios do universo familiar. Também essa caracteristica do espago edificado no Brasil pa, ttiarcal nao passou despercebida ao arguto observador que fo} Vauthier. E dele, uma vez mais, uma anotac&io que langa lug sobre essa questo. Diz Vauthier: A familia tem ali um asilo sagrado, um pequeno mun- do a parte, ¢ a escravatura veio ainda acrescentar sua influéncia a essa tendéncia primitiva. (..] Cada familia, portanto, tem sua casa & parte [...). ndio se pode esperar encontrar agui uma dessas vastas 1 2 construgées que retinem sob um mesmo teto tantas existéncias diversas, tantas familias estranhas umas as outras [...J.# Diferentemente, portanto, de outros possiveis arranjos espa- ciais, a casa brasileira se fez particular, privada. Nao se viam por aqui edificagdes que reunissem sob um mesmo teto exis- téncias diversas, familias estranhas, com interesses coletivos, evidentemente. Nesse sentido, a casa-grande foi também um instrumento utilizado para reforgar ¢ resguardar, é claro, os teresses muito particulares que caracterizaram — e, quem sabe?, ainda caracterizam —a sociedade brasileira. Associados, esses trés aspectos relevantes da escrita gilbertiana a casa como obra coletiva, como centro da paisagem social brasileira e como expressio de brasilidade — constituem-se em pontos importantes a considerar quando se investigam as dificuldades para a produco de um espago piiblico na configu- rago espacial da cidade brasileira contemporanea, 5 PREYRE, G. 1960, pp. 40-811. A NEGAGAO DA RUA mentos da sua obra. Referindo-se 20 caso do Bardo de Goiana, por exemplo, sugere que interesses politicos — em especial a carreira do genro, Joao Alfredo — teriam pro- vocado a mudanga da familia da casa-grande de Goiana, no interior pernambucano, para o sobrado revifense. “Tempos depois”, escreveu 0 autor de Sobrados e IMucambos, “Joto Alfredo lamentaria ter deixado a sombra da casa-grande de engenho pelo sobrado de azulejo que ainda hoje brilha ao sol do Recife [...”.! modo de viver urbano parece surgir a contragosto no Brasil. Freyre aponta para esse fato em diversos mo- Outros autores também assinalaram essa ocupagdo a contra- gosto de um espago que os novos tempos faziam surgir. Reis Filho, por exemplo, registra que, em muitos moradores das cidades, especialmente das menores, 0s vinculos rurais eram ‘80 fortes que esses ambientes eram frequentemente preter dos. Diz ele: Construidas para acomodar apenas nos dias de festas ‘05 moradores das fazendas, as vilas e cidades menores tinham vida urbana intermitente, apresentando nor- malmente um terrivel aspecto de desolagio. Terd sido e814, por certo, a impressao de Saint-Hilaire sobre Taubaté, quando comenta, ao chegar aquela cidade, em 1882, que “como toda cidade do interior do Bra sil, a maioria das casas fica fechada durante a sema- na, sé sendo habitada aos domingos e dias de festa"? FREYRE, G. 1936, p. 384 ? REIS FILHO, N.2004, pp. 30-32, aspas origins, 78 Esse apego a vida rural e essa aparente mé vontade para com a cidade nfo chega a surpreender, uma vez. que se tenha em men- te as caracteristicas que definiram a organizagdo da sociedade patriarcal brasileira. Para esse tipo de organizagiio, o espago rural parecia muito mais adequado, especialmente no que diz respeito & permanéncia do modelo instalado ¢ reproduzido & exaustao. Afinal, tanto 0 anonimato caraeteristico da vida urbana quanto a nogao de limites, indispensdvel a vida social, em especial na cidade, um ambiente coletivo por definiggo, eram em muitos sentidos incompativeis com os interesses dos senhores patriar- cais do Brasil colénia. Para esses, cujos interesses se mantive- ram durante 0 império — quigé ainda no Brasil republicano —, 0 exercicio do poder literalmente sem limites, conforme se anotow antes, assentava-se na figura do patriarca e no seu papel na sociedade. Assim, esse outro modo de vida e de organizagao social que © Pais vé surgir —notadamente durante a segunda metade do século XVIII e as primeiras cinco décadas do século seguinte -, em que a cidade, ¢ nzo mais o campo, comeca a se tornar 0 principal ponto de atraco, nfo decorre da vontade do senhor de engenho. Ao contrario, foge-Ihe ao controle, uma vez que deriva de novos arranjos, especialmente socioeconémicos, in- teiramente alheios ao seu dominio. Acostumado ao mando ilimitado, o patriarcalismo brasileiro nio se deu conta de que no poderia deter o rumo da Hist6ria. ‘Nao péde, portanto, prever, e quem sabe nem mesmo compre- ender, a repercussao sobre a estrutura social entao vigente dos novos acontecimentos politicos, econdmicos, etc., que diante dele se descortinavam. Anegacto da rua BB Eventos como a chegada da familia real portuguesa ao Rio de Janeiro, na primeira década dos oitocentos, e a descoberta ¢ exploragio das minas, por exemplo — fatos que, segundo Freyre, assinalam 0 comego do fim da majestade da casa-gran- de —, constituiram-se em acontecimentos que modificariam significativamente a organizagao social do Pais. A presenga da Corte portuguesa em territério nacional repercuti- ria, e muito, naturalmente, na sociedade brasileira. Em especial, produziria um campo social propicio 20 surgimento do antago- nismo, a que se refere Freyre, entre os senhores de engenho ¢ os moradores dos sobrados urbanos, esses integrantes da nascente bburguesia, a quem o rei prestigiava, ainda segundo 0 autor citado, Decadente social e economicamente,? o patriarcalismo brasileiro surpreende-se ao ver surgir diante,de si uma nova paisagem social construida inteiramente a sua revelia e, com ela, um novo modo de viver, de produzir —e de habitar, consequentemente. Desse modo, do ponto de vista dos senhores de engenho, Brasil urbano surge associado a um proceso de perdas, ¢ per- das importantes: perda de controle, perda de prestigio, perda de dinheiro, perda de poder, enfim. Esse conjunto de perdas talvez oferega uma explicacdo plausivel para a mudanga da relagdo entre a aristocracia brasileira, se é que ela existiu al- guma vez, ¢ a populagdo que a servia. Freyre aponta para essa mudanga ao lembrar que a relacao simbiética existente entre a casa-grande e a senzala transformou-se, na cidade, numa rela- ‘so nitidamente antinémica entre 0 sobrado e o mocambo. Na verdade, esse fato nao surpreende se se considera que a sen- zala era uma extens&o da casa-grande, Como tal, no ameacava © poder do patriarca, uma vez que 0 medo—~ e nao o respeito, > Embora evidentemente relevante, a questi da decadéneia econmica do patrarca {do nesse periodo ds historia nacional extrapola, claramente, os objetivese limes este breve ensuo, 79 ‘como pensam alguns — constituia-se no eixo que dava susten- tagdo a essa relagdo. Entre o sobrado e o mocambo, no entanto, a relagao era bem outra, Abrigo do trabalhador livre e depois do escravo também liber- to, 0 mocambo surge fora do controle patriarcal, num espago que ele no edifica e muito menos controla. Assinalava, por- tanto, na vida urbana, 0 esfacelamento do mundo patriarcal, testemunhando, dessa forma, a perda de poder que os novos tempos impunham, ‘Tem-se, pois, sugerido 0 que poderia ser aqui considerado como as razes primeiras da inimizade entre a casa e a rua, mais uma expressio gilbertiana, e da sua negag&o, consequentemente, sen- do a rua agora entendida como o simbolo espacial maior de um novo e irreversivel arranjo social que entio se instalava. Um efeito claro desse novo arranjo social — que, por sinal, assinala mais uma perda importante — diz respeito & presenga dos bacharéis na vida nacional. Filhos dos senhores de enge- no ou por cles apadrinhados, mas educados longe do Brasil, especialmente em Coimbra, esses jovens doutores, como apa- recem denominados no texto gilbertiano, recém-chegados a0 Pais, nfio mais se adaptariam a vida rural. Na verdade, identi- ficavam-se com a vida nas cidades, onde viam despontar scu prestigio pessoal e, muitas vezes, a possibilidade concreta de ascensio na escala social, quando o bergo nao Ihes havia pro piciado uma posi¢ao confortavel. Respondiam, desse modo, a caracteristica de imi,‘ que distin- gue a cidade em todos os lugares e em qualquer tempo da his- tria, Assim, Sobre a cidade como im, ver MUNFORD, L. A cidade na bistria: suas origens, tansformagdes perspectivas. Sao Pavlo: Martine Fontes, 1982. Anegestoda rus 3B Com sew talento e sua ciéncia, foram enriquecendo a Corte, abrilhantando as cidades, abandonando a roca. A diplomacia, a politica, as profissaes liberais, 4s veies a alta indiistria, absorveram-nos. Empol- garam-nos. As cidades tomaram das fazendas e dos engenhos esses filhos mais ilustres [...J Arrepercusstio da chegada desses novos doutores a cena urbana nio deve ser minimizada. Para os donos das terras, donos dos homens, donos das mulheres, nada mais seria como dantes. Como se nao bastasse a perda de poder politico que os novos tempos impunham, havie agora também instalado o poder que decorre do saber, saber esse que a maioria dos patriareas nao poderia disputar. Além disso, falidos economicamente, muitos dos senhores de engeaho passaram a depender dos filhos ou, pior ainda, dos genros que se tinhami feito dowores. ‘Assim, além de um antagonismo talvez difuso, pois que se diluia socialmente, o patriarcado brasileiro teria de lidar com ‘uma outra dificuldade para a assimilago do nascimento do ur- bano no Brasil, desta feita de natureza psiquica: 0 abalo emo- cional decorrente das muitas perdas que a partir de entio se acumulavam, Mas havia mais. Os novos tempos também viriam destruir, € para sempre, a instituigdo sagrada da casa-grande, a alcova, com tudo o que cla representava socialmente. A partir de en- Wo, os donos das mulheres seriam forgados a dividir 0 poder, especialmente sobre a sexualidade feminina, com outras figu- ras masculinas. Era chegado o tempo, enfim, em que as sinhés e sinhazinhas tinham outras vozes grossas de homens a thes acariciar os ouvidos, 0 tempo em que, § FREYRE, G. 1936, p18 81 2 absolutismo do pater familias na vida brasileira foi se dissolvendo & medida que outras figuras de ho- ‘mem criaram prestigio na sociedade escravocriitica: © meédico, por exemplo; 0 mesire-régio; 0 diretor de colégio; 0 presidente da provincia; o chefe de policia; o juiz [J Um tempo em que as alcovas comegariam a refletir 0 proces- so de mudanga que as transformaria em quartos de dormir. Um tempo em que os donas das terras, donos dos homens, donos das mulheres se viram transformados em adocados dindinhos, como a eles se refere 0 celebrado mestre de Santo Anténio de Apipucos. Para o patriarcado, era chegado, portanto, um tempo de da- nos irreparaveis. A perda de poder ¢ de prestigio econémico € politico, associava-se — suprema humilhagéio — a perda de controle sobre 0 universo familiar sobre o qual se havia erigido © pater poder. Agora, nem mesmo sobre as mulheres ¢ filhas era mais posstvel exercer a tirania patriarcal, pelo menos ndo tanto quanto tinha sido 4 sombra da casa-grande, Nao surpreende, pois, a ma vontade desses senhores para com a cidade entao nascente, isto é, do sobrado — a expresso ur- bana da casa-grande, como se sabe — com a rua, vista, sob as circunstincias acima apontadas, como lugar atemorizante, como 0 espago do anonimato, da perda do mando, do despres- tigio, enfim. Associado a ideia de perda imposta pelos ventos sécio-hist6- ricos que sopravam de fora para dentro, o espago piiblico em sua face urbanistica foi visto, pois, como algo desprezivel, © FREYRE, G. 1936, p. 192. A nagacto 6s rua 3 marginal, ameagador, em muitos sentidos, e nunca como 0 espago do pulsar da vida em sua expressdo coletiva, citadina, Como se vé, a negagao da rua — aqui compreendida como simbolo do espago piblico em sua expressio urbanistica — tem raizes remotas e deriva de conviogdes profundemente ar- raigadas na sociedade brasileira. Assim, em que pese o fato de que mudangas estruturais importantes estavam sendo levadas a cabo no Brasil de entéio, velhas conviegdes nao se modifica- iam na mesma velocidade. ‘Um exemplo desse descompasso entre mudangas sociais comportamentos individuais aparece, por exemplo, no episédio narrado por Vauthier, nas suas jd citadas certas, sobre a arran- cada, a forga, bem ao modo patriarcal de sesolver problemas, portanto, das esteiras no municipio pemambucano de Goiana. Segundo o relato, apés a rebelidio de 1817, > entiio governador de Pernambuco, Luis do Rego, resolveu fazer uma inspeg&o militar. Fssa circunstancia o faz chegar & pequena cidade situ- ada ao norte da capital pemambucana, onde o governador en- controu o sistema de esteiras em plena voga, em substituigo as rétulas de que se falar adiante, Contrariado, uma vex que esse sistema indicava que 0s novos tempos ainda no haviam chegado a cidade, o general, “um es- pirito despoticamente inovador”, nas palavras do famoso viajante francés, deu ordens imperiais para a retirada desses elementos. Assim, “Uma bela tarde, por suas ordens, os soldados se espalham pela cidade e a um sinal convencionado arrancam as esteiras, das quais se fez uma fogueira magnifica na praga principal. Depois dessa execugo, nao apareceram mais, sendio 2 medo”,? ? VAUTHIER. L, Carta n®. 3. In FREYRE, G, 1960, pp, 885-856 83 Ree, Figura 3: Rua da Cruz (Recife, 1863). No detathe, as esteras, Fonte: Acervo de Fundago Joaquim Nabuco, Desse modo, se a casa-grande perdia prestigio ¢ sofria mu- dangas advindas do processo de perdas de que se falou ante- riormente, a sua sombra continuava a pairar sobre a vida das pessoas em decorréncia dos costumes, métodos ¢ habitos que ela espelhara e, desse modo, difundira. Em outras palavras, se os bacharéis — agora citados como simbolo de um novo tempo, de um outro modo de viver — deixavam as casas-grandes fascinados pelo novo modo de vida espacializado nas cidades, a casa-grande continuava dentro deles. Desse modo, também o sobrado se organizou de portas adentro, € isso tanto na arquitetura quanto na enunciag&o de valores culturais que por meio dele se fazia. Como consequéncia, nega-se & rua o reconhecimento da sua famgdo de espaco piiblico, de lugar privilegiado & construso Anegacio ds cus TE a sociabilidade, a realizagao do encontro com o outro em suas miiltiplas facetas. A rua brasileira surge, assim, quase & forga, uum mal necessdrio, tendo em vista que por ela se dava 0 cami- nhar e as condigdes minimas de acessibilicade a cada uma das edificagdes que the definiam o tragado fisico. Esse fato evidencia-se pela repetiga0, no modo de viver cita- dino, de comportamentos e atitudes préprios da vida na casa- grande patriarcal. Assim, velhos habitos tentaram manter-se na Vida da cidade. Também nela se buscoa deixar o estranho longe do universo familiar, em especial, procurou-se afastar as sinhazinhas “do olhar pegajento dos donjuans 80 mais afoitos nas cidades do que no interi O autoritarismo do mando sem limites na» se havia afastado das relagdes sociais, tampouco da administrag&o da cidade en- to nascente. Na cidade brasileira, em seus primérdios, esse autoritarismo aparecia quase to forte quanto o fora na vida do engenho. Assim, do mesmo modo que a Igreja ¢ a Corte haviam conciliado 0 poder com o senbor de engenho, 0 Po- der Pablico via-se impotente diante da forga de um poder que, mesmo enfraquecido, nao havia desaparecido. Assim, “por muito tempo, as Camaras, os juizes, as Ordens Reais, quase nada puderam contra patriarcas tio poderosos. A sombra feu- dal da casa-grande do rico ou do jesuita caia em cheio sobre as cidades”? Em especial, mantinha-se ainda, quase intocével, a forga da do- mesticidade — marca da casa brasileira, conforme se viu antes —, contra 0 que nao era familiar. Em outras palavras, 0 reinado da casa, desta feita frente & rua que diante dela se descortinava, FREYRE, G. 1936, p. 199 9 FREYRE, G. 1936, p. XLIV. 85 ainda se mantinha, ¢ a domesticidade continuava um valor a ser preservado, tanto ¢ cm tal medida que “a prépria arquitetura do sobrado se desenvolvera fazendo da rua uma serva”.!¢ A arquitetura, campo disciplinar a partir do qual se Ié Freyre neste texto, é, pois, uma outra evidéncia de como a casa, 0 es- ago privado e privarivista, continuava a se impor, mesmo na vida urbana. Esse fato torna-se perceptivel pela forma arqui tet6nica — planta baixa, volume, composigao das fachadas, elementos construtivos, etc. — que o sobrado adquire ¢ pela qual expressa, claramente, a forga e a permanéncia de antigos costumes. Em sua dimensio urbanistica, essa arquitetura reflete — no uso, na fungdo, e também no desenho — a maneira acanhada, © lugar menor, pouco prestigiado, que a sociedade brasileira deu ao sou espago pablico, entio embrionério. Desse modo, 8 luz da arquitctura, ¢ possivel entender mais claramente a linha de continuidade que se mantém entre o passado e o pre- sente no ambiente que dé forma construida a cidade do Brasil contemporaneo. O sobrado diz. nfo A rua A forma espacial do sobrado é um ponto importante a exa- minar quando se trata de melhor compreender o desprestigio da rua no nascedouro da vida urbana no Brasil. Nela, a planta baixa tem especial relevancia, Coerente com a marca de do- mesticidade caracteristica da casa brasileira, essa planta apare- ce totalmente voltada para o interior da habitagao, Denuncia, assim, uma perfeita harmonia entre 0 espago edificado e a na~ tureza privativista da casa de residéncia no Brasil, quer em sua aparéncia rural, quer em sua face urbana. °° FREYRE, G. 1936, p. XLIfl Anegacao da rua 3 Logo de partida, chama a atenglo a aparente contradigo entre a localizacao da sala de visitas, voltada para a rua, para 0 que seria o espago piblico, portanto, ¢ o papel restrito, segregado, que Ihe cabia no cotidiano da vida familiar, Ao observador mais, apressado, essa localizaglo poderia sugerir ume aproximago do cespago doméstico frente ao espago piiblico, uma vez que para ele se abria a sala de visitas em suas miltiplas janelas e aberturas, ‘No entanto, a fungo que essa sala devia desempenhar no espago doméstico € 0 uso que The era efetivamente cado no universo casciro contradizem essa possivel interpretagac. Asala de visitas, no sobrado, nfo se destinava 20 estar da fa- milia. Muito pelo contrario, era esse 0 espaco dedicado 20 es- tranho, ao visitante, a0 ndo familiar, Nele, néo se encontrava qualquer expresso de intimidadg propria da casa. A caracte- ristica nfio familiar da sala de visitas fica clara quando se sabe que a ela tinha acesso quase to somente 0 dono da casa no momento em que recebia seus visitantes. Vedada as mulheres, inclusive & dona da casa, e as criangas, essas salas funciona- vam como um elemento a mais a afastar a vida doméstica do espago piblico, ‘Vauthier, uma vez ainda, deixa bem claras as fumgbes desse es- ago no Brasil oitocentista, a sua marca de ndo intimidade que aqui se sublinha, ao descrever com preciso uma visita pessoal a um sobrado brasileiro do século XIX. Diz.ele: No vestibulo, por onde se entra, encontra-se um ne- gro velho, trancando um chapéu de palha Queremos falar ao dono da casa. Ele nos conduz a uma escada reta, iluminada pelo alto, e nos precede. Em cima, a escada é fechada por uma porta vazadea...] Uma figura de mulher negra ou fortemente bronzeada em 87 88 breve aparece entre as grades. (..] Passos de crian- Gas atravessam 0 corredor; ouve-se o farfalhar de um vestido de mulher; e, depois de uma espera mais ou menos longa, a porta se abre, enfim. Conduzem- nos a sala da frente, onde o dono da casa nos esper com todo 0 cerimonial." A interdigo da sala de visitas 4 dona da casa, ds suas filhas 4s criangas, a vida familiar em seu conjunto, portanto, sugere ‘um primeiro indicativo da negagao da rua na organizacio so- cial entéio vigente. Assim sendo, a localizac&o dessa sala, bem como 0 uso que Ihe era destinado no contexto social em que esse espaco estava inserido, contribufam para manter a vida familiar afastada da rua-E como se um muro simbélico tivesse sido erguido entre a cena doméstica que a sala de visitas limi- tava ¢ a vida no espago piiblico que se daria além dela, Em outras palavras, é como se em seu nascedouro 0 ambiente construido, definido a partir da edificagio assobradada, pre- nunciasse o lugar desprestigiado do espago piiblico, apesar da sua imprescindibilidade & vida nas cidades, Desse modo, 0 tinico espago da casa aberto a nia, ao outro, a0 visitante, a0 piblico, enfim, era um espago desvinculado da vida da casa, da vide que contava, portanto, uma vez. que se trata de uma sociedade organizada em tomo da unidade fa- miliar, Nesse sentido, a sala de visitas menos mediava uma relagdo, que se mostrava dificil entre a casa ¢ a rua, do que consolidava espacialmente a separagiio entre o que era familiar © 0 que Ihe era estranho, aquele ou aquilo cuja proximidade deveria ser evitada a todo custo. +" FREYRE, G.1960, pp. 819-820, destaques meus. vo Amegacie Coerente com essa fungao de afastamento entre a vida da fa- miflia ¢ © espago piblico, em algumas salas de visitas havia janelas que ndo se abriam: eram falsas, nfo tinbam a fung&0 de abertura para 0 exterior que as define como elemento arquite- tOnico. Compunham fachadas, é verdade, mas no tinham, elas ‘mesmas, nenhuma serventia social ou mesmo funcional. ‘Também 0 modo como era ambientada a sala de visitas merece tengo, Vauthier destaca 0 fascinio dos brasileiros de entiio pela simetria, e Gilberto Freyre comenta 0 modo como eram dispos- tos os méveis nesse espago em particular, Esse era um ambiente que em nada favorecia a intimidade, a proximidade. Nele tudo era excessivamente formal. A disposigo des cadeiras, umas em frente as outras, paralelamente, criava exatanente 0 contririo do ambiente onde se quer proximidade, aconchego. Assim, a vida em seu cotidiano tinha lugar mesmo em dois outros espagos, cuja localizacao espacial também se constitui em um dado importante, quando se trata de compreender como € em que medida 0 sobrado se erguen de portas adentro num processo de claro repiidio 4 rua, conforme se quer mostrar. Es- ses outros espagos residenciais —a sala ce viver e a cozinha —atestam, exemplarmente, a domesticidade que caracterizou a casa brasileira, conforme foi anotado anteriormente, Impedidas de sair — e de, sequer, chegar perto do espago que no 0 doméstico, inclusive a sala de visitas que, a rigor, nao Ihes pertencia, como se viu antes —, a dona da casa e suas filhas passavam boa parte do seu tempo nas salas de viver. Lo- calizadas no interior da edificagdo, coerentemente, portanto, com a ideia de espagos que “se fechavam contra a rua”,! essas salas cram mais confortaveis do que outros espagos da casa, ° FREYRE, G. 1936, p. 155, grifo meu 89 porque tinham aberturas que permitiam a entrada de luz e de ar, uma vez que se abriam para os espagos livres existentes na parte posterior da edificagdo ou mesmo no seu interior. Diferentemente das alcovas, por exemplo, fechadas, escuras, quenies ¢ insalubres, as salas de viver favoreciam o estar, tor- nando assim o dia a dia mais agradével. Gragas a ventilagio ¢ 08 raios solares que recebiam diretamente, esses espagos eram muito mais saudaveis € muito mais adequados & vida, portanto, Essas salas localizavam-se, precisamente, no lado oposto 20 da sala de visitas. Eram abertas, voltadas para 0s espacos li- res, para os quintais, da{ sua condigdo mais apropriada & per- manéncia, quer pela ventilacdo, quer pela paisagem que essa localizagao privilegiada propiciava, A denominagao sala de viver merece atengao especial, uma vez que sugere, por oposi¢ao, que os outros espagos eram re- almente muito mais adequados a quietude da morte do que a pulsagao da vida. E, pois, interessante observar que os espacos destinados a vida, nos sobrados, eram, precisamente, 0s es- pagos que se localizavam no interior da habitagtio. Eram re- cintos absolutamente inacessiveis a qualquer coisa, pessoa ou circunsténcia que lembrasse o que era piiblico, 0 que se nao mostrava familiar. Ainda no que diz respeito expresstio de domesticidade que 0 sobrado ratifica, um outro espago a merecer especial destaque gragas a sua importéncia na casa brasileira é a cozinha. Rubem Alves atesta bem a importancia desse espaco no dia a dia da fa- milia brasileira até bem pouco tempo, assim como o papel se- cundério da sala de visitas, mesmo que em tempos relativamente recentes, Além disso, permite que se veja como antigos costumes ¢ habitos se perpetuam apesar das mudangas que o tempo impde a qualquer organizago social, Alves detém-se sobre 0 papel de acolhimento e de aconchego gue a cozinha desempenhou ac longo do tempo ¢ se ressente da perda dessa fungo nos dias que correm. Diz ele: Nas Minas Gerais, onde nasci, 0 lugar mais impor- tante era acozinha, Ndo era o mais chique nemo mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibel6s, retratos ovals nas paredes, espe- thos e tapetes no chao. Nas salas de visitas [...] todos usavam mascaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegrié, [..] Minha alma tem saudade dessas cozinhas antigas..."° As cozinhas brasilciras eram espagoses, acolhedoras, criativas, sendo mesmo responséveis por uma das mais caras expresses de brasilidade. Freyre atribui A vida na cozitha, & pritiea do cozinhar, parte importante da identidade que caracterizaria “a civilizago luso-tropical”. Como as sales de viver, as cozinhas aparecem com frequéncia localizadas também do lado con- twario ao da sala de visitas, — “ficavam no fim nao por serem menos importantes, mas para serem protegidas da presenga de intrusos”* — isto é, bem ao modo brasileiro de coneeber a vida social ¢ de construir seu espaco no abrigo do ambiente privado. Um outro elemento trazido & luz ainda pela planta baixa € 0 patio intemo. Em muitas composicdes espaciais, os sobrados voltavam-se para 0 patio interno e para 0 quintal, ¢ assim se Jfechavam contra a rua, ratificando a ideia de antagonismo en- tre esses dois espagos fundamentais da cidade. '9 ALVES, R. 2000, Toidem, destaques meus. 91 92 s jardins intemos, “Iugares-tabus, lugares de maior intimida- de, onde as mulheres podiam tomar ar fresco sem serem vistas da rua ou por estranhos”,!* assumem, pois, um papel importan- te no espaso edificado, muito além da composi¢ao arquiteténi- ca da qual faziam parte, Seria preciso que os ventos dos novos tempos soprassem mais fortes para que a sociedade brasileira, especialmente as mulheres, viesse a se aproximar da rua Na arquitetura, esse processo lento de transformagao deu lugar as varandas, as sacadas, aos balcdes, as conversadeiras's, as Janelas abertas por inteiro, isto 6, do piso a0 teto, ainda que severamente fechadas, nas palavras de Vauthier, a que Freyre faz eco. Embora esses elementos permitissem apenas uma aproximagao parcial da rua — através das rétulas, das gelo- sias” em irelicas, ete. —, indicavam, seguramente, um avango importante em relago ao momento anterior. Assim, do patio interno onde apenas 0 ar fresco poderia ser usufruido, as sinhés ¢ sinhazinhas dio um passo a frente e con- quistam, 4 forga das mudangas sociais que comegavam a se mostrar irreversiveis, o direito de ver a rua, mesmo que ainda no pudessem ser vistas, para desespero de muitos que por elas ansiavam, como atesta 0 texto a segu As curiosas filhas de Eva podiam, assim, pelos in- tersticios das treligas, ou entreabrindo ligeiramen- te uma das folhas, examinar o transeunte, sem que este pudesse, através da estreita abertura, admirar 1S EREYRE, G. 1936, p38, * Conversadeiza:“assento consti ao lado da jane, rasgudla por dentro logo absixo 4 peitoral” de avordo com AVILA, A's GONTUO, 1: MACHADO, R. 1980, "7 Rotula: “tipo ou folha de janela que se articula em tomo de um eixo horizontal”; ‘i ag sere re atc: eens oe, EO aN gaint oe Anegasio de rua senio em imaginagao, os belos alhos negros atenta- mente fixados sobre ele e as espléndidas espaduas, cuja rica carnagéo a camisa ousadamente decotada deixa expandir-se no ar:"* ssa ideia de ver sem ser vista a que estiveram submetidas as mu- heres brasileiras por um tempo demasiado longo — foi preciso esperar a chegada do século XIX para que germinasse o espirito de inovagdo e esses elementos arquitet6nicos fossem abolidos —, tem sido explorada por diversos autores e scb enfoques disci- plinares também distintos. Para os objetivos deste texto, importa considerar dois aspectos que essa questo traz a tona. O primeiro deles consiste em melhor compreender por gue 0 espago doméstion deveria ser mantido fora do alcance do olhar externo, longe de intrusos. Uma das razdes era, como se sabe, a questio do controle da sexualidade feminina, obsesso patriarcal j& mencionada. Essa obsesso também indica uma das razdes para « negacdo da rua, como se vé no texto abaixo: O patriarcalismo brasileiro ¢ a rua [foram] por muito tempo quase inimigos {por causa] da mulher por quem aruaansiava, mas a quem o pater familias do sobrado procurou conservar 0 mais possivel trancada na ca- ‘marinha [..] como nos engenhos sem que saissem nem para fazer compras. Sé para as missas. Sé nas quatro festas dos ano —e mesmo dentro de palanguins [..].? Na arquitetura, essa ideia de ver sem ser vista, imposta as si- has e sinhazinhas bem como as suas escravas mais valoriza- "8 VAUTHIER, L. In FREYRE, G. 1960, p. 854 PREYRE, G. 1936, p. 34 94 das — as de pele mais clara, as que se tinham criado sem sair & rua, etc. —, materializou-se nos elementos arquiteténicos que as edificagdes exibiam. As gelosias, as venezianas, as urupemas™, os muxarabis ¢ suas treligas, esses de heranga moura como se sabe, 0 uso das rétu- Jas, além de alguma protegao quanto as caracteristicas climati- cas do Pais —o controle da entrada dos raios solares ¢ da tumi- nosidade excessiva, por exemplo —, prestavam-se, também, pera esconder a mulher no interior da habitago, mantendo-a desse modo convenientemente afastada da rua, ou, em outras palavras, permitiam que o sobrado continuasse a desempenhar uma fungao que havia sido tdo cara & casa-grande, a fungdo de “guardar dinheiro, guardar valores, guardar mulheres” 2! Coerente coma sua fungao social de transmissfio de valores cul- turalmente partilhados, a arquitetura produziu, portanto, com © sobrado, um conjunto de elementos ¢ solugdes formais em tudo adequado a fungao do espaco de morar daquele momento, quer se tratasse da planta baixa, do volume ou das fachadas que compunham e mesmo definiam o espago edificado, Mas, além dessa questio, hé um outro aspecto essencial para a compreensio de por que ver sem ser visto era fundamental naguele momento especifico: a perda do controle sobre a do- mesticidade, lastro fundamental do poder patriarcal, ocasio- nada pela intrusao do olhar extemo. Era esse controle que a rua, no desempenho da sua fung%o publica, ameagava, ou seja, a perda de um controle muito mais amplo, de natureza muito mais sociologica ¢ politica do que simplesmente em relagdo a a Vruperna ‘edagao de teto, paredes, janelas, sacadas, etc., feita com gstcire semelasiesduripera, ito capude penis em tna Veta” Deacons com AVILA, Ay GONTHJO, 1; MACHADO, Ropcit. 71 FREYRE, G.1936, p. 154, destaques meus. Anegasto de we SE vida sexual ¢ afetiva de uma ou outra sinkazinha em particu- lar, ainda que disso ndo descuidassem “waridos ciumentos ¢ brutais”", a exemplo de Jaime Favais, o personagem cruel de Cameiro Vilela, j& mencionado, cujo cite desvairado leva a mulher a loucura e, a filha, & morte. Deixar entrar esse olhar, permitindo que 0 espago domésti- co fosse visto, significava aceitar a visto do estranho sobre 0 familiar e, com isso, favorecer o esfacelamento de um valor sobre 0 qual se erigia a prépria organizagao social. Nesse con- texto, produzir elementos construtivos a partir dos quais fosse possivel ver sem ser visto pode ser compreendido como mais uum ato de negagio da rua por parte da casa — uma vez que 0 ato de ver ainda se dava sob o controle da casa —, ainda que cesses elementos jé indicassem ynta mudanga social importante e, nesse sentido, pudessem sef tidos como elementos de me- diagdo entre a casa e a rua.” Como se vé, a arquitetura do sobrado — planta, volume, ma- teriais, elementos construtivos — era em tudo compativel com a fungio de separaco, de exclusao que 0 espago de morar, herdado da casa-grande, deveria desempenbar na sociedade que via nascer 0 urbano no Brasil, Nesse sentido, 2 “norma” estabelecida pela casa-grande, segundo a qual 0 encontro com estranhos deveria ser evitado a todo custe, transposta para a vida na cidade, sugere a dificuldade da casa patriarcal, agora transformada em sobrado, em conviver, bam como em fazer surgir 0 espago piblico. Assim, também nas cidades, a organizacfo da sociedade bra- sileira continuava a ter lugar no abrigo do ambiente privado e, ® FREYRE, 6.1936, p. 154, destaques meus. ® A proptsito dessa mediacdo entre casa ¢ a rus que os elementes constrtivas possibiltaram, ver MARINS, P. 2001, 95 36 até, em pior medida do que no engenho. Freyre registra esse fato 20 assinalar que “nas cidades ¢ nos subirbios, a vida era, em certo sentido, mais retraida ¢ menos exposta aos hospedes que nos engenhos”, gerando um ambiente tio fechado ¢ som- brio que o autor citado a ele se refere como quase conventos.* Nessas circunstncias, a forma espacial que 0 sobrado materia- lizou ratificava, nitidamente, a intengdo patriarcal de manter a vida familiar fechada contra a rua — e no apenas no que diz, respeito as mulheres —, inteiramente afastada de tudo 0 que pudesse significar contato com o mundo exterior. Mas além da forma espacial e de elementos construtivos, 0 s0- ‘rado também herdou da casa-grande a sua marca de distingo € de pretensa nobreza. Habitar um sobrado era simbolo ine- quivoco de prestigio social. Como consequéncia, a arquitetura que comega a definir 0 espago edificado nas cidades brasileiras vai refletir, naturalmente, o lugar social de cada morador, nao apenas na forma, no emprego de materiais nobres, como a ma- deira de lei, 0 uso das telhas, a grade de ferro, a pedra, como também no volume edificado. Edificagées com varios pavimentos constituiam, assim como anunciavam, a habitagdo dos senhores de engenho quando es- ses se transformaram em moradores da cidade. Hierarquiza- vam, portanto, por si mesmas, a posi¢o social do morador, enunciando nitidamente os valores sociais inerentes aquela sociedade. “Definiam-se com isso as relagdes entre os tipos de habitagdo ¢ os estratos sociais: habitar um sobrado signi- ficava riqueza e habitar casa de “cho batido” caracterizava a pobreza”. 24 FREYRE, G.1936, p, 154, ° REIS FILHO, N. 2004, p28 Anegacie darua BE A forga dessa hierarquizagao explicita no desprezo pelo rés-do- chao ¢ pela rua, consequentemente, era tamanha que 0 uso dado a cada nivel de piso do sobrado denunciava desprestigio que marcava 8 edificagao térrea, Desse modo, “[..] os pavimentos térreas dos sobrados, quando nfo eram utilizados como loja, Geixavam-se para acomodagdo de escravos ¢ animais ou fica- vam quase vazios, mas no eram uiilizados pelas familias dos proprietérios” 2% Figura 4; Rus do Bor Jesus, no Recife (PE). No detalhe, 0 uso servil do espago ‘reo. Fonte: Ferrez, 1984, Acervo Fundagio Joaquim Nabuco. Sobre 0 assunto, citando 0 médico Lassance Cunha ¢ o seu tra- balho intivulado A prostituigdo, em particular na cidade do Rio de Janeiro, escrito em 1845, Freyre registra a forga da distin- eo social que se fazia pela arquitetura, Anota o autor citado: ] 4 capital do Império possuia entéio trés classes de meretrizes, que eram: a) as “aristocrdticas” (ou 7 idem, destaques meus. 97 98, do sobrado); b) as de “sobradinho” e as de “rotula” (ic); ©) a escéria. A escéria, formayam-na mulhe- es de cascbres ou de mucambos [...]7 A construgao verticalizada erguida bem acima do nivel da rua &, pois, um outro ponto a considerar quando sc aponta para 0 desprestigio da rua, para a sua negagfio, num tempo que assi- nala 0 surgimento da cidade brasileira. A verticalizagdo — e, com ela, 0 distanciamento da rua — era, em si mesma, um modo de distingao social, & medida que afastava os moradores assobradados do espaco desprestigiado da rua. ‘Uma outra forma de edificar, a casa de porto alto, embora represente, jd no século XIX, “uma transigo entre os ve- Ihos sobrados ¢ as casas térreas”,2* mantém a velha ideia de se erguer acima do nivel da rua onde ficavam precisamente 0s pordes. Assim, essa nova forma que a habitagdo urbana assume reflete 0 sopro dos novos tempos, mas ainda aponta para a hicrarquia existente entre a casa e a rua, na medida em que construir ao rés do cho, no nivel da rua, continuava a se mostrar inapropriado, E interessante observar a marca de brasilidade — decorrente da casa-grande, isto é, a forga de antigos costumes e de velhos hé- bitos, conforme o argumento que aqui se desenvolve — expres- sa nesse modo de construir a paisagem edificada na cidade brasileira. Afinal, também a casa-grande se erguia acima do rés-do-chao, ainda que numa escala menor que a do so- brado. Ao fazé-lo, anunciava distingao e pretensa fidalguia. Anunciava principalmente que ali existiam senhores que se queriam distinguir da “plebe” que habitava 0 rés-do-chao, conforme foi anotado anteriormente, 27 FREYRE, G. 1936, p. 159, aspes no original, destaques meus. % REIS FILHO. N.,op. cit. p. 33. Anogasto de rue BE A ideia de que o afastamento do nivel do cho pode ser vista, também, como uma marca da casa brasileira em seu afi de distingao fica mais nitida quando se sabe que, em outros ar- ranjos sociais, a casa, por mais nobre que seja, se abre a rua sem nenhum problema aparente, Um exemplo desse outro modo de edificar é a residéncia oficial do primeira ministro britfnico, um dos enderegos mais prestigiados do mundo oci- dental, edificada no nivel da rua, diretamente aberta para 0 espago piblico. Figura 5:10, Downing tect Londres. Acasa do prineito minis briaico. Fonte: Site oficial do govern brténico (www ramter0,0¥:. Compreender as razdes dessa diferenga entre a sociedade bra- sileira e a britinica no que diz respeito a relagio entre a casa e arua fica mais facil quando se tem em mente que, na sociedade inglesa, o lugar social de cada um nao tem relago alguma com © espago fisico ocupado. Nesse sentido, registra Hall: “Um lord continua a ser um Jord qualquer que seja o seu lugar de residén- cia. [..] para os ingleses, as relagdes sociais ndo so fungo das estruturas espaciais, mas do estatuto social”. ° HALL, E. op. cit, pp. 157¢ 161, destaques meus. 99 00 Esse exemplo permite considerar que 0 afastamento da rua, na realidade brasileira, mais do que expressar uma possivel escassez de terras, como no caso do Recife, ou 2 superacio dos problemas gerados por uma topografia acidentada, a exemplo de Salvador, indica, sambém, a permanéncia dos valores pa- ttriarcais na producao da paisagem edificada da cidade brasilei- ra. A opgiio pela moradia nobre alijada do contato direto com a Tua sugere, pois, que razBes ndo apenas técnicas, mas também de natureza cultural, definiram essa escolha. A construgio verticalizada e a distincdo que o sobrado asso- ciou a essa opcao construtiva so, pois, dois outros pontos a merecer destaque quando se considera o modo desprestigiado ue marcou 0 nascimento do espago publico no Brasil Um espago plebeu Do ponto de vista urbanistico, o desprestigio da rua brasileira €m seu nascedouro — e ainda em nossos dias, conforme se pretende mostrar adiante —, isto é, o seu no reconhecimento como espaco fundamental da cidade, pode ser apreendido a partir de trés pontos principais. O primeiro deles vem a tona quando se observa o uso plebeu que Ihe foi dado. O segundo evidencia-se na fungdo de circulagéo que marcou 0 seu surgimento e, finalmente, 0 derradeiro dos pontos cima indicados pode ser percebido pela forma residual, quase 20 acaso, sugerida em muitos arranjos espaciais que as cidades brasileiras manifestam, O uso plebeu consolida-se na recusa demonstrada pela “eli- te” brasileira em frequentar, e desse modo usufruir, 0 espaco iblico em sua plenitude, em dele fazer algo importante da er Anegacto darua BE vida social. Assim, “o /ugar do menino brincar era o sitio, ou quintal; a Tua, do muleque (sic). O lugar de iaid, a camarinha; quando muito, a janela”.*° B interessante observar a distingao. clara, precisa, entre o espago fisico do “nobre” e 0 do “ple~ eu”, que essa citagdio expressa, e como esse espaco se confun- de com o lugar social de cada um, Afinal, conforme se registrou no capftulo anterior, para os bra~ sileitos “o grande huxo da terra — um dos sinais de fidalguia, de grandeza e de grande disting’io — é 0 sair a rua o menos possivel, ser 0 menos visto possivel e se confuundir 0 menos ossivel com essa parte da populagdo que 0: grandes chamam (povo, & que tanto aborninam”. ‘Nesse ponto, vale a pena abrir jim paréntes> aqui em atengio Aqueles que talvez pensem que esse modo de agir perdeu-se no tempo. Em versio atualizada, a aversfo 2 rua, uma vez. ain- da tida como lugar do “plebeu” e 0 desejo de se confiundir 0 ‘menos possivel com essa parte da populagdo que os grandes chamam povo, e que tanto abominam, aperecem, por exemplo, na nota publicada no jornal Folha de S. Paulo,*' reproduzida a seguir: Chiques topam suar a camisa em corridas exclusi- vas {nas ruas paulistanas], que esto na moda em SP = desde que a camisa seja “thermodry” € o rimel, “waterproof”. “E um tipo de corrida para quem corre em esteira ou com o personal trainer no clu- be do qual é sécio. E pata quem tem medo de ser atropelado pela multidao ou quer correr com gente 3 FREYRE, G. 1936, p 152, destagues mens, 3! Comma, vip, conra, 0 tialo da nota. Fotka de S, Parle, 09 jul. 2006, tastreda. ‘spas onginals, destaques meus. 101 102 mais parecida com o scu meio”, explica o personal Mario Sérgio Andrade Silva [...)."Uma Séio Silvestre é estressante. Gente classe “A” nilo quer ficar no sol [isto ¢, na rua) por trés horas esperando a largada e vendo gente cuspir no chao ou “mexer” com as mu- Iheres bonitas”, diz Mario Sérgio. As tais “corridas vip” esto na moda na cidade.|...].”By the way”, nds vamos Ié para correr, né? (sic}”, brinca 0 consultor de luxo Carlos Ferreirinha|...], Ferreirinka estédis- posto asuar acamisa? “Olha, no é uma corrida de performance. E uma corrida de luxo, com atributos emocionais, sociais. E para encontrar pessoas baca- nas que associam esporte a produtos de Inxo, como €0 shopping”, diz ele [...]. “O gostoso vai ser ver um povo legal, da sua classe social”, relata Birman (...}. A idealizadora da Fashion Run, Andrea Gusmio, ndo gosta que sua corrida seja chamada de vip. “E uum evento para pessoas bacanas que priorizam o bem-estar, so engajadas com a satide”, diz. “Nao é ostentatério, Tem charme, & diferenciado. Nao é excludente. E exclusive”, explica. Fechado 0 paréntese, que dispensa comentarios, ainda no que diz respeito ao uso pouco prestigiado da rua, ou ao seu absolu- to desprestigio na escala de valores sociais ent&o vigente, uma outra anotagdo de Freyre, pingada do Diario do Rio de Janeiro de 3 de margo de 1825, dé a exata medida da questio: Jé hc tempos que se roga aos vizinhos que ficam da Igreja de 8. Jorge, da parte da rua da Moeda, que houvessem (sic) de néo deitar na rua é noite, dguas imundas e urinas chocas, e que ainda continuam; Portanto por este antincio se torna a rogar, preve- nindo de que se tornarem a continuar se represen- Anegacto ca wa 3 taré: ao Juiz competente pois que basta a estagéio em que estamos de grande calor e ainda sofrer os mais vizinhos semelhante mal pestifero a saiide dos mesmos.* Se se tem em mente que esse amincio foi feito na cidade que abrigava a Corte Imperial, é possivel fazer uma ideia do que se passava nas demais cidades brasileiras. No Recife e em Sal vador, por exemplo, o desprezo para com a tua tampouco era ‘menor. ‘Assim, na primeira metade do século XIX, a Camara da capital pernambucana, bem como a de Salvador, legislando “contra os desmandos patriarcais das casas assobradadas”, nas palavras de Freyre, decretava o seguinte ex'suas Posturas: Ninguém poderé lancar dguas limpas da varanda de dia e 86 0 poderd fazer das 9 horas da noite em diante{...). O despejo imundo das casas serd leva- do ao mar é noite em vasilhas cobertas: os que fo rem encontrados fazendo tal despefo nas ruas [.] incorrerdo [...] na pena de 28000 ou 24 horas de prisio™ Como se vé, era preciso L.-J defender a rua dos abusos da casa-grande que, sob a forma de sobrado, se instalara nas cidades com os mesmos modos derramados, quase com as 3% FREYRE, G.1936, p. 198. eee = 1936, p. 200, Freyre refere-se e cita as Posturas: imara (Recife), 1S Diet te Pemetsbaco de 12 de derombra e 1831 € ansem as Petras de Camara de Setveder da primera metadedoseulo XIX, confome nota expica em pe e pagina 103 toa mesmas arrogdncias, da casa de engenho ou de fa- zenda: fazendo da calgada, picadeiro de lenha, ati- rando para o meio da rua 0 bicho morto, o resto de comida, a agua servida |... as biqueiras des- carregando com toda a forca sobre o meio da rua as dguas da chuva; as janelas — quando as janelas substituiram as gelosias — servindo para os homens escarrarem na rua Desprezada, portanto, como espago privilegiado do convivio social, func mais nobre do espaco piblico em qualquer cida- dee em qualquer tempo, a rua brasileira nasce feia, suja, escu- 12, desprezivel, destinada ao escravo num primeiro’ momento — € a0 escravo menos prestigiado, convém ressaltar, uma vez que, como registra Freyre em diversos momentos, os que fre- quentavam a rua exerciam fungdes ainda menos valorizadas do que 0 escravo que permanecia no interior do sobrado. No momento seguinte, quando a figura do escravo comega a escassear ¢ mesmo a desaparecer, felizmente, a rua toma-se © espago do mascate, O espago piiblico brasileiro passa entiio a acolher diversos tipos de trabalhadores de rua, inclusive 0 escravo livre, que comega a viver do comércio ambulante. Li- (ografias produzidas na época mostram, claramente, 0 uso do espago ptiblico como lugar de troca e venda, de mercado, rati- ficando desse modo a destinago menor que lhe era atribuida. Els aqui o que talvez venha a ser considerada uma outra marea brasileira na produgdo do espaco piiblico, ¢ da sua negagao, na cidade brasileira. Em outras formas de organizagao social, @ praga, ou 0 espaco piiblico que acolhia o mercado, transfor. mava-se também num espago para a discussto de ideias, num * FREYRE, G, 1936, p. XLUL Anegasto ds rua BE paico para o exercicio da cidadania, No Brasil, como parte im- portante da sociedade se recuseva a frequenti-la, a rua no po- dia desempenhar esse papel. Nessas circunstncias, 0 espago piiblico entéio embrionério era o espago do escravo, fato que Ibe conferia inferioridade ¢ evidente desprestigio, devido ao preconceito racial earacteristico da escravidio ¢ do qual ndo se livrou ainda, desgragadamente, a sociedade brasileira, ‘Nao surpreende, portanto, que, com esse uso desvalorizado essa destinagao plebeia, a rua brasileira teaha surgido pouco iluminada, imunda, desprezivel, em tudo o oposto da casa, 0 espago nobre por exceléncia, Assim, se néo se devem mini- mizar as limitagdes técnicas da época pare a implantagio de uma infraestrutura urbanistica adequada, nZo se pode também perder de vista que a rua materializava, em sua pobreza, feiura € sujeira, as fungdes pouco nobres a que estava socialmente destinada.** Nesse contexto, a rua brasileira surge como mero espaco de cireulagdo, fungao que no século XX 0 movimento moder- no em sua expresso urbanistica viria ratificar, infelizmen- te, transformando a rua em espaco de circulago de veiculos Conceber 0 espago piblico como mero espago de circulagao é dat-Ihe um papel menor na configurago urbanistica de uma cidade. E isso porque circular é muito diferente de estar, essa, sim, a fungdo nobilissima de um espago que se faz. ptiblico. 8 580 na saide ptbica, Problems sunitirios de higiene, com important repersu pi no sto porsi mesmos uma particlaridade brasileira, ccmo atestam diverios au lores que se debrugaram sobre essa questo, notadamente quando esse problema se tomou grtante durante o processo de tansformagio econémsica conhecido coro Reval fndustal. No entanto, na Europ, one exes quostes foram sais bem trafadas e documentadas, a.razdo desses problemas era o aumento

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