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Perspectivas, S ã o Paulo,

3: 165-168, 1980

RESENHAS
REVIEWS

Maria Teresa Micheli Kerbauy (*)

RESENHA/8

SANTOS, Wanderley Guilherme dos, Cidadania e J u s t i ç a : a política social na


ordem brasileira, Rio de Janeiro, E d . Campos, 1979, 138 p.

O livro de Wanderley Guilherme somente com a diferença de atentar, com


dos Santos se constitui numa contribui- maior cuidado, para a necessidade de
ção extremamente significativa para o demonstrar, ao contrário de apenas pre-
estudo de políticas públicas, dado não sumir ou imputar, a plausibilidade de
apenas ao crescente interesse entre os suas hipóteses" (p.13, 14).
cientistas políticos pelo tema, como tam- Segundo o autor, os problemas
bém ao incipiente desenvolvimento do enfrentados no decorrer da pesquisa,
mesmo no Brasil. É certo que não existe
foram muitos, desde as dificuldades em
no texto uma teoria explicitamente ela-
diagnosticar o estado social de um país
borada a resepito da política social bra-
e de avaliar as medidas cujo alvo era a
sileira, mas o próprio autor reconhece ser
maximização da justiça social; "ausência
este um trabalho exploratório onde as
de informações pertinentes, precisas e
questões referentes à política social bra-
sileira são perpassadas por um exercício confiáveis, inexistência de instrumental
metodológico a respeito da cientificidade de análise capaz de decidir questões im-
da política. "Em realidade, a análise de portantes" (p. 49), passando pela pre-
políticas públicas não consiste em nada cisão do arcabouço conceituai, conside-
mais do que um rótulo novo para o ve- rando ainda o problema das dimensões
tusto exercício de investigação e formu- a serem selecionadas para compor no
lação de teorias sociais. Melhor dizendo, caso brasileiro o agregado "justiça so-
a análise contemporânea de políticas pú- cial" e o sistema classificatório a ser uti-
blicas trata, precisamente, da temática lizado.
clássica das teorias sociais — a distribui- A proposta básica da pesquisa gira
ção do poder, o papel do conflito, os em torno da explicação de quando e
processos de decisão, a repartição de porque se modifica a política pública
custos e benefícios sociais por exemplo, com relação à política social, admitidos

(*) Professora Assistente do Departamento de Ciências e Filosofia do Instituto de


Letras, Ciências Sociais e Educação — Campus de Araraquara, UNESP.

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SANTOS, Wanderley Guilherme dos, Cidadania e Justiça: a política social na
ordem brasileira, Rio de Janeiro, E d . Campus, 1979, 138 p. R E S E N H A S . Pers-
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os parâmetros da acumulação e da social ao induzir a emergência de orga-


eqüidade. Buscando respostas a esta nizações que têm por objetivo alterar
questão o autor envereda pela teoria a posição na estratificação social dos
das elites passando por Mosca, Pareto grupos que representam. A multiplici-
e chegando a Michels, em quem se dade de organizações gera demandas
apoia para relacionar a tomada de de- constituindo-se em nova fonte de pres-
cisões com a circulação de elites: "são são para mudança na percepção e no
as organizações e instituições de poder comportamento das elites decisórias.
que convertem seus ocupantes em uma
elite destacando-os da base social ou O autor, além de analisar as de-
do público a que teoricamente deve- cisões políticas como variáveis depen-
riam obediência, e não o inverso. As dentes, explorando as ligações com as
instituições de poder se transformam mudanças no comportamento das elites
em instituições de elite não porque vêm decisórias, as analisa como variáveis
a ser ocupadas por seres particular- independentes, pois mudanças na estru-
mente distinguidos, mas porque os dis- tura da escassez e na complexificação
tiguem... É pela imposição de seus social podem ser conseqüência de deci-
planos à coletividade, sancionados pela sões políticas prévias.
legitimidade das instituições que con-
trolam, e freqüentemente, também jus- "Simultaneamente, contudo, enor-
tificados por critérios que elas própriasme quantidade de decisões está sendo
formulam que as elites se convertem em tomada por pessoas que não estão ime-
variável estratégica na determinação das diatamente interessadas nas conseqüên-
políticas públicas" (p. 59, 60). cias públicas do que fazem. Chamar-
se-ão aqui de processos naturais as se-
No entanto, as modificações na melhantes variações, politicamente in-
orientação de políticas específicas não controláveis a nível micro, e muito pre-
estão na dependência de maior ou me- cariamente controláveis a nível macro",
nor freqüência em que haja substituição (p. 65). Entre estes processos, três são
nas elites decisórias. Outra variável extremamente relevantes: o crescimen-
induz estas modificações: a estrutura to populacional, os processos de urba-
da escassez que na análise de políticas nização e a divisão social do trabalho.
públicas aparece sob a forma dos cons- São eles processos não controláveis que
trangimentos que limitam os graus de geram variações na estrutura da escas-
liberdade das decisões "À medida em sez e na complexificação social.
que a estrutura da escassez se modifica,
o mundo aparece diferentemente para É a partir deste quadro de refe-
os tomadores de decisão, especialmente rencias que o autor procura analisar
em relação ao tipo e quantidade dos a política social brasileira, cujos mar-
recursos disponíveis, permitindo-lhes, cos históricos mais importantes foram:
assim, mudanças de orientação em po- 1930 a 1943, quando tem início a re-
líticas específicas, que não são neces- gulação social e é promulgada a Con-
sariamente acompanhadas por mudanças solidação das Leis do Trabalho (1943);
na composição das elites" (p. 63). e 1966 a 1971, quando é criado o INPS
(1966). No entanto, o texto não se
Por outro lado, a estrutura da es- prende única e exclusivamente a estes
cassez pode promover a diferenciação períodos. Aliados a uma breve exposi-

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ção histórica a respeito da legislação profissional que se torna, em realidade,


social no Brasil, existem referências sig- mais do que uma evidência trabalhista,
nificativas ao período que antecede a uma certidão de nascimento cívico"
década de 30, ao que medeia o fim do (p. 76).
Estado Novo e à fase contemporânea
Após 1945, modificações signifi-
da história brasileira.
cativas ocorrem na estrutura ocupacio-
O período da República Velha se nal, na estrutura da escassez, assim
caracteriza por um "laissez-faire" re- como no processo de urbanização. Ape-
pressivo que vai ser substituído pela sar das objeções às práticas e institui-
cidadania regulada de após 30, carac- ções herdados do Estado Novo, pouca
terística de um longo período da his- coisa será alterada até 1964. " A vazão
tória republicana no Brasil. A cidada- dos conflitos sociais para fora das ins-
nia regulada é entendida no texto como tituições herdadas do Estado Novo, não
um conceito "cujas raízes encontram-se encontrou resposta institucional à altura
não em código de valores políticos, mas tendo por resultado líquido a radicaliza-
em um sistema de estratificação ocupa- ção das demandas e a intolerância po-
cional, e que, ademais, tal sistema de lítica crescente dos diferentes atores so-
estratificação ocupacional é definido ciais, as quais associadas à capacidade
como norma legal. Em outras palavras, cadente do Estado de produzir e de alo-
são cidadãos todos aqueles membros da car terminaram por produzir o con-
comunidade que se encontram localiza- texto de paralisia governamental e ad-
dos em qualquer uma das ocupações ministrativa de fins de 1963 e princípios
reconhecidas e definidas em leis. A ex- de 1964, que, em parte, ajudam a ex-
tensão da cidadania se faz, pois, via plicar o movimento militar de 1964"
regulamentação de novas profissões (p. 81, 82).
e/ou ocupações, em primeiro lugar, e A dimensão política da cidadania
mediante ampliação do escopo dos di- brasileira entra em recesso, com a vio-
reitos associados a estas profissões, an- lação da ordem democrática de 1964.
tes que por expansão dos valores ine- "De acordo com a retórica da nova
rentes ao conceito de membro da co- elite governamental, tratava-se com o
munidade. A cidadania está embutida movimento de 1964, de criar condições
na profissão e os direitos do cidadão para um desenvolvimento mais balan-
restringem-se aos direitos do lugar que ceado e justo da economia de merca-
ocupa no processo produtivo, tal como do, afastados aqueles grupos que, de
reconhecido por lei" (p. 75). acordo com a versão oficial, buscavam
substituir a ordem econômica e social
" A regulamentação das profissões, prevalecente no Brasil" (p. 102). E de
a carteira profissional e o sindicato pú- acordo com os sucessivos governos re-
blico definem, assim, os três parâmetros volucionários, primeiro era preciso fazer
no interior dos quais passa a definir a o bolo crescer (acumular) para depois
cidadania. Os direitos dos cidadãos são pensar em dividí-lo (reduzir desequilí-
decorrência dos direitos das profissões brios), ou seja, acumular estoques de
e as profissões só existem via regula- bens disponíveis, para só depois de cer-
menatção estatal. O instrumento jurídico to nível de acumulação tornar-se legí-
comprovante do contrato entre o Esta- timo discutir a participação em seu
do e a cidadania regulada é a carteira usufruto.

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ordem brasileira, Rio de Janeiro,

Se a cidadania regulada foi a ca- de injustiça, em favor da acumulação


racterística, do período pré-64, "poder- que será socialmente tolerada, ou, con-
se-ia, agora, considerar a perspectiva versamente, a magnitude dos recursos
vigente como a de patamares de cida- que se podem subtrair à acumalação,
dania, aquém dos quais o debate sobre em favor da eqüidade, sem prejuízo ca-
justiça social seria ocioso" (p. 104). A tastrófico para o processo ampliado de
noção de cidadania permanece destituí- reprodução" (p. 125).
da de "qualquer conotação pública e
universal. Grande parte da população é O que de marcante existe na aná-
pré-cívica e nela não se encontra ins- lise da evolução da política social bra-
drito nenhuma pauta fundamental de sileira é o fato de que "os períodos em
direitos" (p. 104). que se pode observar efetivos progres-
Tendo sempre presente a questão sos na legislação social coincidem com
da acumulação e da eqüidade, o autor a existência de governos autoritários.
chama atenção para o fato de que "as Nesta conexão, a experiência brasileira
imposições da dinâmica dos conflitos, se aproximaria da estratégia bismar-
por um lado, e as necessidades de ga- ckiana de tentar obter a aquiescência
rantir a reprodução ampliada (acumu- política do operariado industrial em
lação) da riqueza social, por outro, in- troca do reconhecimenao de alguns de
duzem os governos a exercitar perma- seus direitos civis" (p. 123), pagando
nentemente o que se poderia chamar a sociedade em seu conjunto um preço
de "cálculo do dissenso", isto é, a taxa político bastante elevado.

Recebido para publicação em 4/04/80.

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