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Konrad Hesse: uma Nova Crenca na Constituic¢ado Twocfncio MArtines CozLs10 Professor Titular da UnB “Esta Constituigdo é a minha biblia jurtdica; seu plano de governo, 0 meu plano de governo; seu destino, o meu destino” (HUGO LAFAYETTE BLACK — Crenga na Constituigao). SUMARIO — Colocagdo do tema: por que uma nova crenga na Constttuigo? 11 — Condiclonamento reciproco entre a Constituigéo € @ reatidade politico-social. II — Limites € posstbilidades de atuagéo da Constitui- eda furidiea. IV — Pressupostos de eficdcia da Constituicio. V — Conclusdo. Acabo de ler, em cuidadosa tradugdo de Gilmar Ferreira Mendes, texto em portugués do Escrito de Konrad Hesse, “A fora normativa da Constituiggo”, para publicasio no Brasil, A divulgagio dese estudo, a ocorrer brevemente, dar-se-4 num mento singularmente oportuno, porque a nossa atual Carta Politica acaba de completar apenas dois anos de vigéncia, mas j4 se ouve, nos mais diversos setores da sociedade, e com intensidade crescente, » perniciosa pre- gacdo de que se faz necesstrio reformar o seu texto, para ajustélo a uma imprecisa e mal definida realidade nacional. Pot isso, mas — como se veré adiante — nfo apenas por isso, € que 8 publicagao desse precioso Escrito de Konrad Hesse parece-nos extrema- mente importante, porque a sua idéia central é, precisamente, a de que, embora nao disponha de existéncia auténoma, em relago a realidade, da qual, aliés, niio pode estar desvinculada, a Constituicdo nfo € imposta, simplesmente, por essa mesma realidade; em outros termos, embora con- R. Inf, legish, Brasilia 2. 28 mn. 110 abr./jun. 1997 51 dicionada pela realidade polftico-social, a Constituigéo no € determinada por essa mesma realidade. Daf, desde logo, Hesse nos advertir de que a forga vital e eficacial da Constituiggo assenta-se na sua vinculago is forgas espontineas ¢ a8 tendéncias dominantes do seu tempo — 0 que possibilita o seu desenvol- vimento ¢ a sua ordenasao objetiva —, mas sua forga normativa no deriva dessa adaptagio a uma dada realidade, antes se devendo a um fator de natureza espiritual e cultural, que ele sugestivamente denomina vontade de Constituigao. Acentuando a natureza espiritual dessa atitude perante a Constituicéio, dessa crenga de que a Constituigéo ndo € e nao deve ser um subproduto mecanicamente derivado das relagbes de poder dominantes, Hesse nos diz que essa vontade de Constituigio —- “que indubitayelmente constitui a maior garantia de sua forga normativa” — se origina de trés vertentes diversas, embora ontologicamente semelhantes, a saber: da compreenséo da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantével, que proteja o Estado contra o arbitrio desmedido e disforme; da compreensiio de que essa ordem é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos, jé que possui legitimidade prépria; ¢, finalmente, da consciéncia de que, a0 con- trétio do que se d& com as leis do pensamento, essa ordem no ser eficaz sem o concurso da vontade humana, pela qual adquire ¢ preserva a sua validade. Trata-se, bem se vé, de um auténtico discurso de conversio, vis do qual o ilustre constitucionalista alemao, sem abendonar a necesséria analitica, nos conduz a ver a verdade naguilo que, até eni@o, nada nos dizia, para usarmos a feliz expresso com que Joao Baptista Machado expée a moderna teoria da argumentagao, em Nota & 1.* edigéo portuguesa da Introdugdo ao Pensamento furidico, de Katl Engisch. Diante dessa sua pregac&io quase catequética — também por isso dizemos que ela encarna uma nova crenga na Constituigao — é facil com- pteender por que Hesse inicia seu estudo evocando, para criticarthe 0 unilateralismo de perspectiva, a célebre conferéncia de Fernando Lasalle, “Que é uma Constituigéo?”, pronunciada em Berlim, no més de abril de 1862, Nessa conferéneia, que virou texto classico da doutrina constitucional, Fernando Lassalle levou ao extremo o discurso da submissio dos textos constitucionais aos chamados fatores reais de poder existentes nas socieda- des, os quais, pata ele, informam todas as leis ¢ instituigdes juridicas, fazen- do com que, em esséncia, nao possam ser mais do que so e como sao (), Exptimindo esse sociologismo exagerado, Lassalle chega a dizer que aqucles fatores reais de poder — referindo-se & Prisssia de seu tempo, ele os identificava na monarquia, na aristocracia, na grande burguesia, nos G@) Que es una Constitucién? Buenos Aires. Siglo Velnte, 1957, pég. 15, 32 R. Inf, legisl, Brasilia a, 28 n. 110 abr/jun. W991 banqueiros, na pequena burguesia ¢ na classe oper4ria — eram verdadeiros fragmentos de Constituigao que, somados, corresponderiam & Constituigio real e, transladados para uma folha de papel, se convertetiam na Consti- tuigdo escrita, na Constituiggo juridica propriamente dita, Por isso, para ele, ¢ neste ponto € frontal o choque entre a sua concepeao ¢ o pensamento de Konrad Hesse, a Constituigdo escrita, para ser boa e duradoura, deve refletir, necessariamente, os fatores reais de poder existentes na sociedade, pois’ um eventual descompasso — cle usa a 8 expres conflito — entre © texto escrito e a Constituigéo real faré com que, mais cedo ou mais tarde, a Constituigaéo folha de papel seja rasgada arrastada pelas verdadeiras forgas vigentes no pais, num deter- minado momento da sua hist6ria; noutras palavras, a Constituigio reat “revogaria” a Constituigao formal, substituindo-a por outra, atualizada ou. ‘em dia” com aqueles fatores reais de poder. Se fosse verdade, como afirmava Lussalle, que, para se fazer uma Constituico escrita, bastaria simplesmente recolher os fatores reais de poder, estendé-los sobre uma folha de papel e darthes expresso juridica, efetivamente © texto afinal produzido nao teria nenhuma autonomia, sendo a sua forga normativa meramente aparente, como expresso subalterna daqueles fatores reais de poder. A essa concepgfio mecanicista das relagdes entre a Constituigio e as forgas sociais, Konrad Hesse opde, para nés com inegével vantagem, uma visio do problema que até certo ponto se poderia considerar dialética, na medida em que, sem desprezar a importincia das forgas sécio-politicas para a criago e a sustentagdo da Constituigao juridica, nos sugere admitir, como ponto de partida pata a andlise do fenémeno, a existéncia de um condicionamento reciproco entre a Lei Fundamental ¢ a realidade politico- social subjacente. Trata-se de algo que, de resto, € ndo s6 admitido, mas até mesmo enfatizado por ninguém menos que o velho Engels, quando, em critica mordaz aos idedlogos, observa que eles padecem de uma ignordncia abso- luta sobre a ago reciproca existente entre as normas juridicas e os fatores econémicos, que as engendram ou, pelo menos, condicionam (*). Do contrério — adverte Hesse — até mesmo o Direito Constitucional, como ciéncia normativa, deixaria de estar a servigo de uma ordem estatal justa, para cumprir tio-somente a miseravel funcéo — indigna de qualquer ciéncia — de justificar as relagdes de poder dominantes. Neste passo cabe relembrar, por sua pertinéacia para a compreensio do problema, os ensinamentos dé Hans Keloen, quando, ao tragar as linhas distintivas entre a Jurisprudéncia Normative e a Jurisprudéncia Sociolé- 2) Carta a Franz Mehring, in Marx e Engels — Cartas Filoséficas. 80 Paulo, ‘Ed, Moraes, 1987, pig. 51. R. inf, legis. Brasilia a. 28 nm. 110 abr./fun, 1991 58 gica — para, como disse, evitar sincretismos metodolégicos —, nos adverte de que esses dois saberes possuem objetos distintos, pois a primeira estu- da a validade do Direito, enquanto a segunda discorre sobre a sua efi- cécia (*). ‘Se perdermos de vista essa distingfio metodolégica, alids correlata da diversidade dos objetos formais ou pontos de vista sob os quais um mesmo objeto material — no caso, o Direito — pode ser encarado, confundire- mos os planos e Ambitos de seu conhecimento, retirando, como fez Las- salle, da Ciéncia do Direito Constitucional, 0 cardter normativo, que The 6 préprio, para lhe emprestar um cardter socioldgico, que, em absoluto, ela nao possui, Entio, vale insistir, para sermos coerentes, do ponto de vista meto- doldgico, ¢, assim, podermos “construir” uma Ciéncia do Direito Consti- tucional que seja, como deve ser, efetivamente normativa, devemos ter presente que a Constituicio € uma norma, expressio de um dever ser. & no um subproduto ou precipitado natural, ainda que enunciado em for- ma notmativa, das relegdes de poder existentes em certa sociedade, num dado momento da sua histéria. Se recusarmos 8 Constitui¢do esse cardter deontolégico ¢ essa forga normativa, reduzindo-a a um simples reflexo dos chamados fatores reais de poder, Ihe retiraremos, também, por via de conseqiiéncia, a dimensio reformadora que indiscutivelmente possui, enquanto instrumento de trans- formagao social. Por isso, Konrad Hesse insiste na necessidade de se admitir que a Constituigao contém, ainda que de forma limitada, uma forca normativa propria, motivadora e ordenadora, néo apenas da vida do Estado, como também da vida ndo-statal. Para usar as suas proprias palevras e, assim, melhor traduzir-the as idéias, vale relembrar, neste ponto, o que ele nos diz sobre as fungdes da Lei Fundamental: “por intermédio de suas pres- crigdes materiais, das relativas 4 estrutura estatal e & regulamentagio cons- titucional do processo de formagio de unidade politica © da atuagao esta- tal, a Constitui¢do origina unidade estatal, confere forma & vida da Co- munidade, assegura continuidade suprapessoal, com o conseqiiente efeito estabilizador; por outro lado, permite entender e compreender a formacio de unidade politica e a stuago estatal, torna possivel a participago cons- ciente, protege contra recafdas no informe ¢ indiferenciado, com a conse- qiiente eficdcia estabilizadora; pela ordenago do procedimento de forma 0 de unidade politica, da fundagéio sempre Himitada de atribuigées de poderes estatais, da regulamentacao processual do exercicio dessas atri- buigdes e do controle dos poderes estatais, a Constituigo pretende limitar © poder estatal e impedir o abuso desse poder; enfim, nessa sua funcao de possibilitar ¢ garantir um processo politico livre, de instituir, de esta- (3) Jurisprudéncia Normativa e Sociolégica, in O Direito e a vida social — Letturas disieas de soctologia furidica: colet&nea organtzada por A. L. Machado Nelo e Zahidé Machado Neto. So Paulo, Cis. Bd: Nacional. 1066. péq. 17. a R inf, lagisl. Brasilia a. 28 nm, 110 obr./jun. 1997 bilizar, de racionalizar, de limitar o poder e, com tudo isso, assegurar a liberdade individual, € que reside a qualidade da Constituigio” (*). Neste passo, ele nos faz lembrar as reflexdes de Georges Burdeau sobre o papel deserapenhado pela Constituiggo na configuragéo do Estado de Direito, porque, segundo aquele notével jurista e pensador polftico — pela forma como atua sobre 0 Poder — a Constituigdo deve ser consi- derada verdadeiramente criadora do Estado de Direito, pois, se antes dela, © Poder é um mero fato, resultado das circunstancias histéricas, produto de um equilfbrio frégil entre as diversas forgas politicas, com a Consti- tuigdo ele muda de natureza e se juridiciza, para se converter em Poder de direito, desencarnado e despersonalizado (°). Vista assim, em correta perspectiva jurfdico-normativa, a Constituigio, por sua energia conformadora da realidade social, converte-se, também ela, num auténtico fator real de poder, na medida em que, vigente ¢ efi- caz, interage com os demais fatos sociais, sobre eles influindo e deles recebendo influéncia, dentro do processo dialético de ago reciproca entre # infra-estrutura € @ superestrutura, que é proprio das sociedades humanas. Destarte, como fato normative, a Constituigao deixa de ser um sim ples subproduto das tensbes fatico-axiolégicas, para, com energia propria, inserir-se ¢ atuar na reatidade politica ¢ social, a que dé um especifico sentido — 0 de reslizar, em dado momento, numa sociedede concreta, a idéia do direiio (*). Retomnando ao texto de Hesse, impde-se, agora, seguir-lhe a seqtiéncia do raciocinio, para compreender como ele tenta fundar a sua crenca na forga normativa da Constituigéo ¢, assim, conferir dignidade propria & Lei Fundamentel, em que pese reconhecer e afirmar — aliés com certa freqiiéncia — que nenhum poder do mundo, nem mesmo a Constituicao, pode alterar as condicionantes naturais, do que resulta nfo dispar, a aor- ma constitucional, de existéncia auténoma em relagdo & realidade social, da qual emerge e na qual se insere. Como passo inicial para a fundagio dessa crenga, ele formula uma pergunta que, respondida corretamente, nos oferece a chave para deslindar todo o seu discurso: “existiré, ao Indo do poder determinante das rela- gies féticas, expressas pelas forgas politicas ¢ sociais, também uma forga determinante do Direito Constitucional? Cauteloso, Konrad Hesse nos apresenta o que denomina uma simples “tentativa” de resposta a sua propria indagagZo, resposta que ele desdo- bra em frés etapas ou aspectos: a) existe um condicionamento reciproco 4) Concelto e Qualidade da Constitulcfio, in Escritos de Derecho Constitucional. Madrid, Centro de Estudios Constituclonales, 1963, pags. 21/22. ) Traité de Science Politique. Paris, LGDJ, 1964, tomo TV, pags. 44/45. (6) Gustavo Radbruch, Filosofia do Direito. Coimbra, A. 1961, vol. I, Amado, ég. 50; Georges Burdesu, in Tratté, cit, pig. 46 € in EI Estado, Madrid, y Ediclones, 1975, pags. 54/58, R Inf logiel. Brasilia 9, 28 nn. 110 ahe./jun. 1997 35 entre a Constituigio juridica e a realidade politico-social; b) a atuagio da Constituigo juridica tem limites ¢ possibilidades; c) a eficécia da Cons- tituigdo esté sujeita a satisfagdo de determinados pressupostos. Examinemos, ainda que sumariamente, essas trés proposigSes. 1 — Quanto 20 primeiro aspecto, 0 do condicionamento reciproco entre a lei ¢ a realidade, entre a Constituicio juridica e os fatos sociais, HESSE comeca 2 sua andlise lembrando que esse ponto de partida exige particular realce, uma vez que o pensamento constitucional do passado recente esté marcado pelo isolamento entre fato e norma, entre direito ¢ realidade, em razao do que jutistas ¢ sociélogos do direito, de costas volta- das uns para os outros, acabaram por se encastelar em posigdes extremedas, mas igualmente estéreis, levados que foram em diregdo a uma norma des- pida de qualquer elemento da realidade, ou a uma realidade esvaziada de qualquer contetido normativo. Comentando esse divéreio, e apontando o caminho que, a seu ver, su- peraria as referidas divergéncias entre o normativismo ¢ o sociologismo exagerados, Hermann Heller, um dos mais notéveis publicistas germinicos deste século, nos brinda com esta preciosa sintese: “A doutrina dominante, sob a direpio de Georg Jelinek, contenta-se em colocar a Constituiggo como ser #0 lado da Constituicfo jurfdica, como dever ser, sem conexfio cientifica de nenhuma classe entre si. Os propésitos de superar este insus- tentével dualismo nfo tém levado, até hoje, mais que & absolutizagio de uma ou outra de ambas as posicdes. Kelsen faz constituir o Estado ¢ a Constituigéo em um dever ser, exclusivamente; O. Schmitt pretende eli- minar da Constituig#o toda normatividade. A teoria do Estado 56 poderé evitar estas unilateralidades se conseguir descobrir a conexio real a partir da qual possam ser explicadas e compreendidas tanto a Constituigiio, en- quanto ser, como a Constituicao jurfdica normativa e 0 método dogmitico- juridico a ela correspondente” (7). ‘Trata-se de uma crise que se instaurou néo apenas no ambito do Di- teito Péblico ou do Direito Constitucional, como, & primeira vista, se poderia imaginar, mas que atingiu todos os quadrantes do pensamento ju- ridico, segundo observeu Miguel Reale, em reflexGes sobre a necesséria e inelimindvel conexdo entre a vigéncia, a eficécia e o fundamento dos modelos normativos, conexio que para ele s6 se revela, com nitidez, na propria experiéncia jurfdica (*), Para superar esse impasse, Konrad Hesse nos prope buscar um ca- minho que, de um lado, evite o abandono da normatividade em favor do dominio das relagdes faticas e, de outro, no leve a criago de uma norma- tividade despida de qualquer elemento da realidade. Entéo, parece evidente que esse caminho s6 poderd ser encontrado se conseguirmos rejeitar as opgdes, inconciliéveis ou mutuamente exclu- Teoria do Estado. S80 Paullo, Mestre Jou, 1968, pags. 806/907. (8) Teoria Tridimensionat do Direito. S80 Paulo, Sareiva, 1986, pées. 28/34, ae R, Inf. legicl. Brasifia a, 28 nm. 110 abr/jun. W997 dentes, entre os normativismos abstratos ¢ os sociologismos rasteiros, repre- sentativos, ambos, de concepgtes unilaterais ou setorizadas da experiéncia juridica. Como toda regra de Direito vige com pretensio de eficécia, assim como néo the pode faltar, também, a pretensdo de ser jusfa — consoante opor- tunamente observado pelo mesmo Miguel Reale (*) — e como a Constitui- 40, porque é regra juridica, também vige com essa mesma pretensiio de eficécia, que é insepardvel das condig6es histéricas de sua realizagao, Hesse ressalta que ambos os elementos, a pretensdo de eficdcia e as condigdes de sus realizacio, interagem reciprocamente, embora se mantenham distintos na especificidade de suas fungdes; por isso, podem e devem ser diferen- ciados, embora néo possam e néo devam ser separados, nem confundidos. Trata-se de uma relagéo dialética em tudo semelhante & que existe entre Estado e Direito, e que s6 se poderd compreender se considerarmos © Direito como a condig&o necessfria do Estado atual e, do mesmo modo, © Estado como a necesséria condicio do Direito presente, pois sem o carster de criador de poder, que o Direito acarreta, no existe nem validez jurfdica normativa, nem poder estatal, assim como, sem o caréter de criador de direito, que tem o poder do Estado, nfo existe nem Estado, nem positividade jurfdica. A propésito — como acentua Hermann Heller —- “a relagdo entre 0 Estado e 0 Direito nfo consiste nem em uma unidade indiferenciada, nem em uma irredutfvel oposigao, antes devendo considerarse como relagio dialética, como relagdo necesséria das esferas separadas e admissio de cada pélo no seu oposto” (!), IL — Quanto as possibilidades ¢ aos limites da pretensiio de eficécia da Constituiggo, Hesse inicia suas consideragées afirmando que, embora eon termos relativos, a Constituiggo jurfdica possui significado proprio; que sua pretensio de eficécia se como elemento aut6nomo, no campo de forgas do qual resulta a do Estado; e, finalmente, que sua forga normativa é adquirida na medida em que ela consegue tornar efetiva aquela mesma pretensio de eficécia. Também nesta parte, observa-se em Konrad Hesse a preocupaciio de advertir que néo podemos isolar, em campos fechados, a Constituigao reat € 8 Constituigio juridica porque, a despeito de serem distintas, elas se cor- relacionam e se co-implicam mutuamente. Daf que a normatividade da Cons- tituiggo juridica, embora dependa de sua adequacio 4 Constituigéo real, para se transformar em fia_normalizadora, ainda assim procure imprimir ordem e conformaggo & realidade politica e social: noutras pala- ‘ras, por sua peculiar natureza e qualidade, a Constituigfo juridica nado se limita a sancionar 0 existente — como teria afirmado Lenine acerca do Direito —, antes pretende e consegue juridiciz4-lo, de tal sorte que, a partir dela, 0 poder se torna jutidicamente qualificado, inclusive, ou sobretudo, como poder legitimo. @) Filosofia do Direito. Sio Paulo, Saraiva, 1969, vol. II, pag. 530. 0) Teoria do Estado, cit., pig. 231. R. Inf, fogisl. Brasilia a. 28 n. 110. abr.fjun. 1991 7 Nessa mesma linha de pensamento, o citado Hermann Heller observa, com proptiedade, que, ao tado do normal fético, tem também grande im- portiincia a forga normalizadora do normativo, sendo certo, ademais, que nenhuma deciséo pode, sem normatividade, produzir normalidade e, por- tanto, continuidade de conduta: disso decotre que a propria continuidade hist6rica da Constituiggo real depende, em larga medida, da Constituigg0 juridica, que dé forma & ocasionalidade das relagdes de poder sempre mu- téveis, estruturando-as em unidade de poder permanente, pois “‘se as decisies adotadas para esta ou aquela forma de Estado ou de Governo nao possus- sem validez normativa para o futuro, diffcil seria explicar como puderam constituir, enquanto decisdes, tanto hoje como amanha, o suposto bdsico de todas as normagées ulteriores” (""). Noutras palavras, somente mediante o elemento normative se norma- Tiza uma situago de dominagao atual e plenamente imprevistvel, conver- tendo-se numa situagao de dominaggo continua e previsivel; entéo, até mes- mo a Constituicao rea! precisa normatizarse para durar além do momento presente, pois somente formalizada juridicamente é que uma situacio tran- sit6ria de dominacgo se converte em uma situagio de dominacao relativa- mente duradoura (#4), Especificamente quanto 20s limites da jorga normativa da Constituigio, e para explicitélos, Konrad Hesse relembra alguns trechos de um dos pri- meitos escsitos de Wilhelm Humboldt, onde este afirma que nenhuma Cons- tituigdo exclusivamente fundada num plano racionalmente elaborado pode lograr éxito, © que somente consegue desenvolver.se aquela Constituicao resultante da luta do acaso poderoso com a racionalidade, que se the opse. Esta remissao esté a evidenciar, mais uma vez, a preocupagao de Hesse em nos mostrar que a forca normativa da Constitwigiio nfo € algo que possua existéncia auténoma, até porque a Constituigéo, por si s6, nfo pode yealizar nada, embora possa, isso sim, impor farefas que, acaso efetivamente realizadss, emprestam-the forga ative, assente na incompardvel qualidade jo presente. Por isso, como lembramos anteriormente, Konrad Hesse nos diz que “a Constituicio converter-se-4 em forga ativa se se fizer presente, na cons- cigncia dos principais responséveis pela ordem constitucional, nfo s6 a von- tade de poder, mas também a vontade de Constituigao”, julzo esse que se pode completar lembrando, ainda uma vez com Heller, que “o contetdo € 0 modo de validez de uma norma nao se determinam nunca somente por sua letra, nem mesmo pelos propSsitos e qualidades de quem a dita, mas sobretudo pelas qualidades daqueles a quem a norma se dirige e que a observam” (*). Gn Teoria do Estado, cit., pigs. 283, 298, $12 @ 313. 2) Hermann Heller, op. cit, pigs. 283 e 301. (13) Teoria do Estado, cit., pig. 902, 58 R. Inf, legial. Brosflia a. 28 n. 110 abr./jun. 1997 De fato, se tivermos presente a idéia de que a energia normalizadora (= forga normativa) da Constituicfo, conquanto potencialmente apta a atuar sobre a sociedade ¢ conformé-la aos seus ditames, depende de sujeitos coneretizadores para se tornar eficaz, se tivermos presente essa idéia, facil- Mente compreenderemos porque Hesse condiciona existéncia de uma von- tade de Constituigo 0 éxito de qualquer programa normativo. Como toda Constituicao s6 se torna juridicamente eficaz (= ter efeti- vada a respectiva pretensio de eficdcia) através de sua realizagio, e como essa reslizagio € farefa de todos os rgdos constitucionais, da qual partici- pam, ademais, os cidadéos que fundamentam na Constituigéo, de forma direta e imediata, os seus direitos ¢ os seus deveres — consoante observa Canotilho (**) —-, conclui-se que onde nfo houver essa vontade de Consti- tui¢do jamais a sua normatividade conseguiré criar ¢ manter qualquer espé- cie de normalidade; por outras palavras, onde e quando as tarefas cometi- das pela Constituiggéo néo forem cumpridas, onde nfo se professar uma verdadeira crenga no valor intrinseco da Constituigo, ter-se-4 tudo, menos vida e condutas em conformidade com os preceitos constitucionais. E pre- ciso, portanto, que haja fidelidade & Constituigdo, como condigao indispen- savel & sua eficdcia ¢ & sua realizagio. Em contrapartida — prossegue Hesse, em Jinguagem simples, porém densamente comunicativa —, quanto mais intensa for a vontade de Consti- tuisd0, menos significativas hao de ser as restrigdes ¢ as fronteiras impostas & sua forga normativa, do mesmo modo que essa forga serd maior onde € quando se mostrarem dispostos a homenagear a Constituiggo precisamente aqueles que tenham condig6es de violar os seus mandamentos. IIT — Quanto aos pressupostos da eficdcia da Constituicgo, Hesse comega anotando que tais pressupostes se referem tanto a0 seu contedido, quanto a prdxis constitucional, Preliminarmente, neste ponto, a seu yer, quanto mais o conteddo de uma Constituiggio lograr corresponder a singular natureza do presente, tanto mais seguro hf de ser o desenvolvimento de sua forga nosmativa. Noutro ensaio (Conceito ¢ Qualidade da Constituigdo), Konrad Hesse também enfrentou a problemética relativa A possibilidade de realizagao do contetido da Constitii¢ao, insistindo em que, quanto mais intensa for a conexao de seus preceitos com as circunstincias da situagio bistérica — PI conservar ¢ desenvolver o que jd se acha esbogado na indivi- dualidade do presente —, tanto maior seré a capacidade da Constituigao para expandir a sua forca normativa; em caso contrério, isto 6, se ignorar © estégio do desenvolvimento espiritual, social, politico’ ou econémico do seu tempo, a Constituicdo nfo conseguir realizar o que projeta o seu texto, Porque a sua forga normativa estaré em descompasso com a realidade sobre 4) Direito Constitucional. Coimbra, Almedina, 4° ed, 1986, pég. 143. R. Inf. legist. Brasilia a. 28 nm. 110 abr/jun, 1991 Ey a qual pretende atuar. Noutras palavras, um modelo nommstivo constitu- cional néo fundado na experiéncia jamais realizaré o tipo de comporta- mento considerado necessério pelo constituinte que o elaborou. Por isso, Miguel Reale, em precioso ensaio sobre as estruturas € mo- delos da experiéncia juridica, nos adverte de que a tipificagio normativa — e essa adverténcia, obviamente, se aplica & macrotipificago normativa em que consiste a elaboragio dos textos constitucionais — nfo é uma obra cerebrina ou imaginosa, mas o resultado de uma anilise positiva dos dados empiricos, pois nada é mais contrério a idéia de modelo do que a de uma abstraco nao fundada no real conereto (4), Prosseguindo em suas consideragdes sobre os pressupostos da eficécia da Constituicao, Hesse afirma que, para durar (= permanecer com forca normativa), a Constituiggo deve poder adaptarse as eventuais mudangas na realidade sécio-politica, 0 que s6 conseguiré, e com mais facilidade, se © seu texto limitar-se ao estabelecimento de uns poucos principios funda- meniais, suscetiveis de receber sempre novos desenvolvimentos, de parte dos sujeitos concretizadores, desde que, obviamente, tais desenvolvimen- tos nfo representem mutagdes constitucionais conflitantes com a propria Constituigao, Ao contrério — adverte Hesse — se a Lei Maior “constitucionalizar” interesses momentineos ou passageiros, o tecido constitucional perderé a necesséria ductilidade, do que resultaré seu rompimento e » consegiiente necessidade de se refazer a tecedura (= emenda; reforms; reviséo), com © inevitével comprometimento da forca normativa da Constituigio. Sob esse ponto de vista, exemplo que todos lembram da Constituigao ideal & 0 da Constituicgo dos Estados Unidos da América, que, redigida em 1787 ¢ logo complementada, em 1791, pelas dez emendas conhecidas como Bill of Rights, por desenvolvimentos jurisprudenciais sempre renovados — sobretudo pela mediagio criadora da Suprema Corte — teve preservado seu texto fundamental por mais de duzentos anos e, no obstante, conse- guiu operar o milagre da “contemporaneidade dos no contemporneos”, na fee crprensfo de Orlando Bitar, tomada de empréstimo a Karl Man- nheim (**) Pela estrutara ampla e aberta de seus enunciados normativos, a Cons- tituig&o dos Estados Unidos, como supremo direito da terra, tem permitido a seu. povo encontrar solugdes para todas as crises dos negécios humanos. A partir do seu texto, mas na ambiéncia do contexto, ali se produziram as mais radicais mutagdes constitucionais de que se tem conhecimento — sugestivamente chamadas pela doutrina de processos obliquos, process informais, processos de fato ou mudangas constitucionais materiais —, que, para tanto, tenha sido alterado o documento original da Carta, ‘qual. a0 lado da Declarago de Independéncia dos Estados Unidos, “encontra-se (15) © Direito como Eaperitncia. Séo Paulo, Saraiva, 1968, pags. 165 © 167. (16) Orlando Bitar, A Lei ¢ a Constituiggo, Belém, 1951, pig. 182, cy R inf, legis, Bresilia a. 28 n. 110. abr./jun. 1991 exposto ao ptiblico no Edificio dos Arquivos Nacionis em uma vitrina que oferece a maior protecao possivel contra a acao do tempo...”. Essa é, fundamentalmente, a tazao pela quai os juristas e cientistas polfticos norte-americanos costumam dizer, com fina ironia — que mais Ssugere um acentuado sentimento de orgulho mativo, do que eventual, crt tica a biblia da sua cidadania — que a sociedade ¢ a economia mais dina micas da Terra coexistem com a estrutura constitucional mais antiga ¢ subde- senvolvida encontrada em qualquer pais ocidental (17). Finalmente — prossegue Hesse — pata lograr plena eficécia norma- tiva, niio deve a Constinuigao assentar-se numa estrutura unilateral, antes precisa incorporar, mediante meticulosa ponderagiio, parte da estrutura con- tréria, Por isso, sentencia o notfvel professor de Friburgo e juiz do Tribunal de Karlsruhe: “direitos fundamentais nao podem existir sem a correspectiva vinculagio; # divisfio de poderes hé de pressupor a possibilidade de con- Gentragio de poder; o federalismo néo pode subsistir sem ume certa dose itarismo”. A fim de melhor compreender essa adverténcia, convém ter presente que, para Konrad, a Constituigo tem por objetivos precipuos ou essenciais Produit ‘8 unidade politica ¢ criar uma ordem jurtdica, entendendo-se por unidade politica uma unidade de atuagdo que, ao mesmo tempo, possibilite condicione as tomadas de decisao, harmonizando 0 inevitvel ‘entrechogue dos interesses ¢ aspiragGes inerentes 4 convivéncia human: Como, por outro lado, a producdo ¢ a continuagio dessa unidade po- Mtica ocorrem num processo permanente, para que tal processo nao se dis- solva no jogo daqueles interesses e daquelas aspirages — que € necessaria- mente um jogo conflitivo — impde-se estabelecer um minimo de regras Wgundo praus aigces que dev sev democracamente comperide segundo pautas icas que devem ser ti por todot’-~ ou, 20 menos, pela maloria —- como condigéo de legitimidade da propria organizaggo politica. Particularmente ilustrativa dessa sta visio dialética do processo de produgao da unidade politica, levada a efeito pela Constituigéo, é a sagem em que Hesse ressalta a importincia dos conflitos sociais como fato- tes determinantes das mudangas e da evolucao hist6rica. Essa unidade — afirma Hesse — ¢ inimagindvel sem a presenga dos conilitos, que so préprios da convivéncia humana; so os conflitos que impedem a rigidez © o estancamento em formas superadas; representam, embora nfo apenas eles, a forca motriz sem a qual nao se produziria a mu: danga hist6rica; sua auséncia ou sua repressdo podem conduzir ao imobilis- ‘mo; mas 08 conflites, por si, nfo possibititam o viver e o conviver humanos; an GD A Consutuieso, 0 Capitalismo e a Necessidade de Regulamentacio Raciona- lizada, tn A Constituigso Norte-Americana, Rio, Forense, 1986, pégs. 122/123, R Inf, legiel. Brasilia a. 28 n. 110 abr/jun. 1997 a Por isso, a questo no se coloca em termos de possibilitar os conflitos ou ‘os seus efeitos, mas em termos que garantam a formagio e a continuagao da unidade politica, sem ignorar ou reprimir os conflitos em nome dessa unidade ¢ sem sacrificar a unidade politica em nome daqueles conflitos ("*). Prosseguindo na sua exposiso, Hesse aponta, logo a seguir, a préxis constitucional como fator igualmente condicionante de um étimo desen- volvimento da forga normativa da Constituigio. Nesse contexto, ganha particular relevo e importincia 0 respeito devo- tado & Lei Maior por todos os participes da vida constitucional, sobretudo naquelas situagdes de crise, em que a observancia da Constituicéo parece revelar-se politicamente incémoda, porque posta em conflito como as sem- pre invocadas, mas nunca bem definidas razdes de Estado, argumento de que se utilizam os tiranos de todos os tempos, e dos mais diversos matizes ideolégicos, para impor aos homens livres a insuportdvel obrigagéo de tro- car suas camisas de cidadaos por tinicas de stditos. Por isso, invocando e transcrevendo consideragdes de Walter Burck- hardt, Konrad Hesse nos diz que aquele sentimento, por ele identificado como vontade de Constituigao, deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns beneficios ou até a algumas vantagens justas, pois quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservacéo de um principio constitucional, fortalece o respeito & Constituigao ¢ garante um bem da vida indispensével a esséncia do Es- tado, mormente do Estado Democritico. Diversamente, aquele que nao se dispde a esse sacrificio, pouco a pouco vai malbaratando um capital precioso, muito mais significativo do que todas as vantagens angariadas e que, desperdigado, nunca mais se recupera. Neste ponto, vale insistir nas reflexes com que iniciamos esta intro- dugao ao estudo de Hesse, no sentido de que a sua publicagio, nesta hora, se nos apresenta extremamente oportuna, como adverténcia e apelo a todos quantos, de uma forma gu de outra, enquanto atores da cena politica, devem lutar antes pela realizagao do que pela reforma da nova Constituigao, favor a mais avancada e a mais democritica de quantas jé tivemos nestes quase 170 anos de vida politica independente. Como iiltimo — mas, nem por isso, como fator menos importante para a consolidagio ¢ a preservagao da forga normativa da Constituigio — Hesse aponta a interpretagao, que logo afirma estar submetida ao principio her- menéutico da concretizagdo excelente da norma, principio que ele adverte no se poder aplicar com base em construgdes meramente légico-formais, do tipo subsungao fato/norma, sobretudo porque, estando a eficécia da Constituigao condicionada pelos eventos concretos da vida, o sentido de suas proposig6es normativas deve ser efetivado dentro das condigées reais domi- nantes numa determinada situagao. (48) Concelto © Qualldade da Constituigso, in Escritos, cit., pig. 9. a@ R. Inf, legisl. Brasilia a. 28 nm. 110 abr./jun. 1997 Disso decorre, para o intérprete-aplicador do texto constitucional, o dever de se manter em permanente sintonia com a realidade social ou, como diz o préprio Hesse, com aqueles eventos concretos da vida, sob pena de, nao © fazendo, colaborar para o enfraquecimento da forga normativa da Constituigéo, que s6 permanece operativa enquanto estiver ajustada as mu- dangas fiticas e axiolégicas ocorridas no seio da sociedade. Neste ponto, cabe refletir, criticamente, sobre a posigiio de Hesse, para ver se, em esséncia, apesar do seu esforgo em demonstrar uma postuta supe- radora do sociologismo mecanicista de Fernando Lassalle — que tio enfa- ticamente verberou —, nao acaba, ele mesmo, por cometer o mesmo pecado, colocando # normatividade (= forga normativa) da Constituigao a reboque das alteragées ocorridas na realidade social, ainda que esse atrelamento esteja escondido por trés de um sofisticado discurso aparentemente, mas 86 aparentemente, dialético. Por isso, certamente, € que, logo apés afirmar que uma mudanga das relagbes faticas pode — ou deve — provocar mudangas na interpretagdo da Constituigdo, ele tem 0 cuidado de dizer que 0 sentido das proposigées juridicas estabelece 0 limife da sua interpretagdo e, por conseguinte, tam- bem o limite de qualquer mutagéo normativa; que o sentido de uma pro- posigao ¢ sua nitide vontade normatiya néo devem ser sacrificados pelas mudangas de situag&o; que, finalmente, se aquele sentido normativo nao mais pode ser realizado, a revisio constitucional afigura-se inevitdvel. Nas palavras de Lasalle, terse-ia, af, uma revogagio da Constituiggo jurldica pela Constituiggo real, 36 que, civilizadamente, pela via juridica da revisaio constitucional... Diante das liges da experiéncia hist6rica, rica em exemplos da cha- mada “revolta dos fatos contra os cédigos”, expresso afortunada com que 0s juristas modernos explicaram as transformagSes ocorridas na passagem do Estado liberal ao Estado social, diante dessas ligdes, tanto Hesse como os demais constitucionalistas, que se viram a bragos com o problema da alteragio do sentido dos preceitos constitucionais, como conseqiiéncia das mudangas yerificadas na realidade social, todos eles tiveram que “conviver” com aquelas j4 referidas mutagdes constitucionais, eufemicamente conside- radas simples processos adaptativos, que permite alterar a concretizagio do contetido das normas constitucionais, sem a correspondente necessidade de modificar-lhe 0 texto, Por outras palavras, gracas ao que esses e outros constitucionalistas chamam de amplitude e abertura das normas constitucionais — Canotilho fala em caréter aberto, indeterminado ¢ polissémico ('*) — gragas a isso podem tais normas conduzir a resultados distintos, em decorréncia das mu- tagbes verificadas nos respectivos supostos féticos, sem necessidade de pré- vias alteragbes em sua estrutura proposicional, o que se obtém, sem trau- matismos, pela mediagao construtiva dos sujeitas concretizadores, nos diver- ‘808 nfveis em que se opera a reelizagio constitucional. GS) Diretto Constituetonal, ott, pag. 160, R Inf. fogiel. Brecilia 2. 28 2. 110 abr./jun. 1991 a Em face dessa realidade, ¢ para “racionalizé-la” — até porque o real € racional e o racional é real... — os juristas cuidaram de conceber méto- dos capazes de explicar/compreender o fendmeno e assimilé-lo pela dogmé- tica jurfdica, Assim nesceram, 0 fmbito da hermentutica juridica, embora sob diferentes denominagGes, todos os métodos de leitura atualizadora das nor- rmaas legais, bem como, simultaneamente, as diversas teorias que passaram a legitimar @ jurisprudéncia como fonte criadora do direito ¢ a exaltar o papel dos juizes como agentes desse desenvolvimento do direito para além das formatizagdes normativas ). Paralelamente, desenvolveu-se, também, um novo campo de estudos, a chamada Semdntica Juridica, que inicialmente concebida como teoria das mudangas dos contetidos significatives das normes de Direito, inde- pendentemente da inalterabilidade de seu enunciado formal, nos dias atuais vem sendo explicada ndo apenas em fungio do carfter aberto, expansivo ou elstico, que é proprio dos modelos juridicos, mas sobretudo em virtude das variagdes operadas ao nivel do “mundo da vida”, no qual 0 Direito afunda as suas raizes ("). No campo especifico da hermenéutica constitucional, sob © ponto de vista da lingiifstica e da Filosofia da linguagem, registra-se, como atestado de cidadania, um princfpio metodolégico que proclama ser a interpretagio uma atividade condicionada pelo context, pois se cfetua em condigSes sociais historicamente caracterizadas, que produzem determinados “usos” Jingiitsticos, decisivamente operantes na attibuiggo do significado as pro- posigGes normativas; disso resultaria, para os sujeitos concretizadores do texto constitucional, a obrigagio de considerar 0 espago seméntico dos conceitos ou palavras como suscetivel de se alterar em fungao do proprio contexto (*), ‘A essa altura, ¢ & vista das consideragdes de Hesse sobre o que ele chama a polaridade dos caracteres de ahertura/amplitude dos preceitos constitucionais, de um lado e, de outro, a sua finalidade vinculante — do que decorre a necessidade de se levar em conta, no ato de interpretagaio- aplicagio da Lei Maior, simultaneamente, tanto os elementos permanentes quanto os cambiantes, inerentes, ambos, a todas as normas constitucio- nais —, tendo em vista essa colocacdo, achamos que Hesse, em verdade, acaba se rendendo a forca normativa dos fatos, embora mascare essa rendi- ao com a afirmativa de que a problemética (= necessidade) da revisio somente se coloca — melhor seria ter dito que'necessariamente se coloca — quando terminam as possibilidades da mutagio constitucional. (2) Karl Laren, in Metodolopin do Cincia do Diveito, Lisboa, Gulbenkian, 2+ ed, 1988, pags. 443 ¢ ss. @ ‘Miguel Resle. Direito Natural/Direito Positive. Séo Paulo, Sarnive, 1984, . 56, (22) Gomes Canotitho, op. elt., pég. 148, o R. Inf, legist, Brasilia a. 28 9. 10 abr./jun. 1997 No particular, pensamos que nio Ihe socorrem nem mesmo os elogios que faz a rebuscada construgdo de F. Muller, via da qual se as mutag6es constitucionais com o argumento de que a realizaciio do direito constitucional s6 se verifica, efetivamente, quando o conteddo das normas que o integram se incorpora a conduta humana, mediante aplicacio ¢ observancia difrias, o que faz a realidade se converter em parte integrante constitutiva da normatividade juridica (*), Trata-se, impoe-se registrar, de uma aceitago que nfo é apenas de Hesse, mas da grande maioria dos doutrinadores, todos acordes em reco- nhecet que, & luz da experiéncia — sobretudo da experiéncia recolhida junto aos Tribunais Constitucionais —, é cada vez mais relevante o papel da jurisprudéncia como fator de desenvolvimento (= readequagio) dos textos constitucionais, os quais, por essa via e em razio das alteragdes ocorridas na sociedade, podem receber sentidos sempre tenovados, sem necessidade de se alterar a sua configuragio literal *). Admitidas as mutagées constitucionais — sobretudo aquelas reconhe- cidas como decorrentes de fatos de natureza politico-social **) —, admi- tidas tais mutagdes como processos legitimos de readequagdo dos textos constitucionais a realidade social, do que resulta postergarem-se a0 maximo as alteragées da letra da Constituicio, tem-se, como conseqiiéncia légica, no essencial, a aceitagaio das teses sociologizantes, porque tais processos de “‘atualizacao” normativa so muito mais dinamicos e eficazes do que os procedimentos, sempre morosos ¢ complicados, de alteracio formal das Constituicdes (= emenda; reforma; revisdo). Considerando que o reconhecimento dessa forge normative dos fats & 0 que sempre pretenderam os socidlogos do direito, ficam eles muito mais felizes ao verem aquela forga normativa lograr eficécia exclusivamen- te pela atuacao da jurisprudéncia, sem a prévia e, até certo ponto, dispen- sdvel mediagio legislativa. Entdo, sob um discurso aparentemente exaltador da forga normativa da Constituigao, o que se tem, em verdade, 6 uma capitulagao realista, pelo reconhecimento de que a pretensio de eficdcia das normas constitu- cionais somente seré operosa enquanto se contiver nos limites de realizag3o impostos pelo contexto social. Além desses limites — todos reconhecem — a forga normativa da Constituigfo nao consegue transformar-se em energia normalizadora, embora, obviamente, ainda conserve valida a pretensio de produzir normalidade de conduta de acordo com ela (*). (3) Limites da MutneSo Constitucional, in Eteritos, cit., pag. 107. (24) Paolo Biscaretti di Ruffia e Stefan Roamaryn, La Constitution comme lol Jondamentale dans lee états de PEurope Occidentale et dans les états Socialites. Torino/Paris, 1968, pigs. 60/68. 3) ntradeccii, at Derecho Conatitacionss Comperato, ‘México, FCE, 1915, (26) Hermann Heller, op, cit., pag. 308, TR, Int, logiol. Brasilig 2. 28 n, 110 obedivn. 1991 oo E tanto isso é verdadeiro que no se encontra nenhum constitucio- nalista — nem mesmo entre os de formagio idealista — que considere juridico um ordenamento “globalmente ineficaz’. Ao contrério, embora ‘anunciando repiidio ao sociologismo exagerado, todos se curvam A reali- dade, admitindo, ainda que a contragosto, nfo faltar razio a um Kelsen quando reconhece — também ele contrafeito — que, embora uma norma fariica, isoladamente considerada, possa continuar valendo (= valida) mesmo nos casos particulares em que néo se mostre eficaz (= desobede- cida), perder sua validade quando o sistema normativo a que pertenga se tomar, globalmente, ineficaz C"). Assim, em termos de ordem juridica — lembremos que, 20 lado da unidade politica, Hesse aponta como objetivo precipuo da Constituigio a ctiagio de uma ordem juridica, sendo a Constituigo a propria ordem juridica fundamental da comunidade (*) — nesses termos, por implicagao do seu raciocinio, poderse-4 reconhecer certa autonomia’a forga norma- tiva da Constituigao, até porque, como acentuado pelo proprio Hesse, se as leis culturais, sociais, politicas ¢ econémicas imperantes forem ignoradas pela Constituicao, esta careceré do imprescindivel germe de sua forga vital. Dai, sinteticamente, com sua linguagem sempre precisa, a sentenga de Kelsen, o mais normativista dos normativistas: “logo que a Constituigao e, portanto, a ordem juridica que sobre ela se apéia, como um todo, perde a sua eficécia, a ordem juridica ¢ com ela cada uma das suas normas perdem a sua validede (= vigéncia)” (). Condicionada, ou quase determinada, pela natureza das coisas; pelos fatores naturais, técnicos, econdmicos e sociais; pela situago hist6rica con- creta; pela incompardvel qualidade ou singular natureza do presente; pelas forgas espontaneas ¢ pelas tendéncias dominantes do seu tempo; pelos even- tos coneretos da vida, etc. — essas e muitas outras expressbes equivalentes so empregadas ao longo do texto de Hesse —, dificilmente se poderé com- preender como possa a Constituigdio ter forga normativa propria, embora possua, af sim com indiscutivel autonomia, aquela pretensio de eficdcia que Ihe é inerente, e que se mantém vélida independentemente de serem ‘ou nfo observados os comportamentos nela abstratamente tipificados. Destarte, ao limite, e diante da forca inexordvel da realidade, como que se esvai a energia normativa da Constituigao e, conseqiientemente, também a de todas as normas infraconstitucionais, que extraem da Lei Maior — instauradora e unificadora do ordenamento juridico — os pressupostos para a sua criagdo, vigéncia e execusio. (2) Hans Kelsen, Teoria General det Derecho y det Estado, México, Imprenta, Universitéria, 1950, ‘pigs. 51/43; Teorla Pura do Direito, Coimbra, A. Amado, 1962, vol. If, pag. 48. (28) Eseritos, clt., pigs. 8 € 17. 9) Teoria Pura do Direito, clt., pég. 48. ery R. inf. legls!, Brasilia a, 28 nm. 110 abr./jun. 1991

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