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A Experiência do Brincar no Psicodiagnóstico Infantil

Carolina Ruiz Longato


Fernanda Kimie Tavares Mishima
Valéria Barbieri (orientação)
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – Universidade de São
Paulo (FFCLRP-USP)

Introdução

Winnicott enfatiza a importância do contexto familiar para que o indivíduo atinja


a maturidade emocional e atribui um peso grande à família como formadora e
propiciadora de um desenvolvimento afetivo saudável ao ser humano (Winnicott,
1965/1997).
Nesse sentido, a dinâmica relacional familiar pode ser vista como espaço para o
desenvolvimento das potencialidades dos filhos. Se a relação conjugal fica sujeita a
distúrbios que podem gerar a desintegração da família, pode-se pensar nos prejuízos que
essa situação acarretará para as crianças (Cicco, Paiva & Gomes, 2005).
Quando há desenvolvimento emocional saudável, o self tem sua origem como
potencial do recém-nascido, a partir de um ambiente suficientemente bom. É importante
fazer a distinção entre um self verdadeiro, de onde surge a espontaneidade, a
criatividade e as idéias propriamente pessoais e um falso self, defensivo, organizado
para atender demandas do social, artificial (Franco, 2003).
O gesto espontâneo e criatividade são considerados primordiais para o
desenvolvimento emocional do indivíduo, permitindo, assim, que haja expressão do self
verdadeiro. Para a criança, eles podem ser percebidos por meio do brincar, na maneira
como ela interage, relaciona e faz uso dos objetos externos (Winnicott, 1965/1993;
Franco, 2003).
Outro conceito importante na teoria winnicottiana, relacionado ao
amadurecimento emocional, é o de holding, associado aos cuidados maternos básicos e
a um ambiente acolhedor. Este conceito refere-se ao provimento e sustentação

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emocional dados pela figura materna, que permitem que o bebê sinta-se seguro e
confiante para viver em um mundo compartilhado (Winnicott, 1957/1982).
Nesse sentido, destaca-se a importância da mãe e da família como modelos de
transição para a entrada do indivíduo nos círculos sociais (Gomes & Paiva2003).
Levando em consideração a relevância do suporte do ambiente desde o início da
vida do bebê, é possível pensar que, quando o ambiente familiar não é capaz de atender
às necessidades da criança e lhe oferecer um provimento suficientemente bom, por meio
do holding, a criança dá sinais de que algo não vai bem. Assim, podem aparecer
sintomas e queixas relatadas pelos pais quando buscam atendimento psicológico aos
seus filhos.
Desse modo, o psicodiagnóstico infantil é um processo complexo e de difícil
realização, particularmente pela patologia da criança estar relacionada à vivência e
dinâmica familiar. Deste fato decorre a importância de haver um contato com toda a
família.
A fim de exemplificar a relevância do conhecimento da dinâmica familiar para
compreensão da patologia infantil, este trabalho apresenta o caso de Mateus1 (11 anos),
atendido pelo Serviço de Triagem e Atendimento Infantil e Familiar da clínica da
Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto.

Método

Participantes

Paticiparam da triagem Mateus (11 anos); sua mãe (41 anos); seu pai (41 anos) e
seu irmão (8 anos).

Material

Foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada e uma caixa lúdica com


brinquedos variados.

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Todos os nomes usados neste trabalho são fictícios, a fim de preservar a identidade dos participantes.

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Procedimentos

Os pais buscaram atendimento na clínica psicológica da universidade para


Mateus, com as queixas de agressividade intensa e desobediência. Foram chamados a
participar do processo de triagem, que foi realizado em cinco sessões: entrevista com os
pais da criança, sessão lúdica com a criança, entrevista familiar diagnóstica (em que
todos os membros da família foram convidados a participar), devolutiva com a criança e
devolutiva com os pais. Cada etapa do processo foi analisada segundo o método da livre
inspeção, desenvolvido por Trinca (1984), de acordo com o referencial psicanalítico
winnicottiano.
A seguir, serão apresentados os principais aspectos observados em cada uma das
sessões, e depois uma síntese final do caso.

Resultados

Entrevista com os pais

Ambos os pais participaram da entrevista inicial e mostraram-se colaboradores


durante todo o processo, respondendo as perguntas de maneira clara e fornecendo o
máximo de informações possível. A mãe falou a maior parte do tempo, mas o pai
também se mostrou participativo, respondendo espontaneamente a algumas questões
sobre o filho.
Sobre o motivo do atendimento, disseram que Mateus é muito agressivo,
desobediente, apresenta explosões de raiva e que já chegara a ter até mesmo gastrite
nervosa. Relataram que ele já se mostrou muito maldoso, um pouco perverso,
dissimulado e que às vezes agrede o irmão.
De acordo com os pais, ele tem uma afinidade maior com o pai e com a família do
pai, e apresenta um relacionamento difícil com a mãe e com a família da mãe. Os pais
relataram que os comportamentos agressivos começaram quanto ele tinha 8 ou 9 anos e
que, antes disso, era carinhoso. Hoje ele não gosta de receber abraços e beijo dos pais.
O pai disse que ele parece ter “mudado de personalidade”. Disseram não saber o
motivo ou fatores pelos quais levaram a modificação de tais comportamentos. O pai
tentou amenizar, dizendo que acreditava que era pela “própria evolução e início da
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adolescência”. Esses comportamentos apresentavam-se somente em casa, já que o
garoto tinha um comportamento bem diferente na escola.
A mãe relatou que teve uma gravidez muito difícil, com uma mistura de
sentimentos, pois eles planejaram e queriam muito o filho, mas, na época da gravidez,
descobriu que o marido estava tendo um caso e a outra mulher ficava “atormentando”
em casa e no trabalho.
No momento do parto, precisou fazer uma cesariana de urgência, pois o bebê
estava com o cordão enrolado no pescoço e ela não teve dilatação, mas a criança nasceu
normal.
Disse também que quando o irmão nasceu, Mateus “regrediu”, pois quando ela
estava amamentando o bebê, Mateus parava na frente dela e urinava na calça. Disse que
urinava na cama frequentemente até uns 7 anos de idade.
A mãe relatou que uma vez conversou com Mateus sobre o período da sua
gravidez, que disse ter sido muito difícil. Ela disse que nesse momento expôs para o
garoto “uma parte da situação” que havia ocorrido (“uma moça gostava muito do papai
e queria namorar com ele, e a mamãe ficou muito triste”). A mãe contou que depois
dessa conversa o filho começou a demonstrar mais carinho por ela.
Contou também de uma vez em que o garoto falou que ela gostava mais do irmão
e não gostava dele (o irmão tem mais demonstrações de afeto, abraça, beija). Quando
ela explicou que gosta dos dois da mesma maneira e que planejou sua gravidez e o
desejava muito, ele também pareceu mais carinhoso com ela.
Os pais também relataram que ele dorme “dobrado”, quase sentado, e que se
movimenta muito a noite, apresentando o sono agitado.
A mãe se emocionou ao falar dos primeiros dias de Mateus na escola. Ele chorava
muito para entrar, e teve dificuldade em fazer amigos. Contaram que na escola ele é
bem quieto, obedece a professora, mas é muito desatento.
Devido à queixa de falta de atenção, os pais buscaram acompanhamento médico.
A criança faz uso de ritalina há aproximadamente dois anos.
Quanto aos relacionamentos interpessoais, os pais relataram que Mateus é uma
criança que tem poucos amigos. Ele estuda de manhã e durante o período da tarde
permanece em casa, brincando e cuidando do irmão. Os pais disseram que Mateus briga
muito com o irmão por “coisas fúteis”, chegando a machucá-lo.

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Mateus já passou por atendimento psicológico. Nesse período, os pais contaram
que ele deu muito “trabalho”, pois não queria entrar na sala da psicóloga e, quando
entrava, permanecia de costas para ela, às vezes ficava nervoso e chorava. Ele fez oito
sessões nesse atendimento e, segundo os pais, não houve “melhora” dos sintomas.

Sessão Lúdica

Mateus não fez objeções para entrar na sala com a terapeuta. Durante toda a
sessão lúdica, pareceu bem tímido. A maior parte do tempo brincou sozinho e quando
escolheu um jogo que precisava de duas pessoas (jogo do “mico”), teve dificuldade para
convidar a terapeuta para jogar.
Contou que em casa tentava jogar com o irmão, mas ele só atrapalhava a
brincadeira, acrescentou dizendo que o irmão lhe atrapalhava em várias coisas.
De maneira geral, Mateus se mostrou bastante desconfiado, defensivo e inseguro.
Parecia não querer desagradar a terapeuta, não fazer “bagunça” e nem se mostrar
desobediente, guardando os jogos logo que terminava de brincar.
Em uma de suas brincadeiras, colocou blocos um ao lado do outro, formando algo
parecido com uma muralha, com telhados em toda sua extensão. A construção ia de uma
ponta a outra da mesa, estava toda virada para ele e separava-o da terapeuta, como se
fosse protegê-lo de algo que lhe causava muita angústia, vindo do ambiente externo.
Houve expressão da criatividade, mas as brincadeiras mostraram-se rígidas e
controladas, como se não houvesse espaço para relaxar.

Entrevista Familiar Diagnóstica

Toda a família compareceu à sessão familiar. Na primeira metade da sessão eles


ficaram divididos, Mateus e a mãe de um lado e o pai e o imão de outro. O irmão mais
novo começou a desenhar e o pai ficou observando-o enquanto Mateus e sua mãe
jogavam dominó. Durante este tempo, as crianças ficavam olhando o que a outra dupla
fazia, com sinais de insegurança e certa competitividade.
Na outra metade da sessão o pai, a mãe e Mateus brincaram juntos com o dominó
e o irmão continuou desenhando, sozinho. O irmão tentava, a todo momento, chamar a

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atenção, mostrando o desenho, perguntando se estava bonito e dizendo que seria um
presente para a terapeuta.
Enquanto estavam brincando juntos, o pai e a mãe de Mateus brigaram bastante,
discordando quanto às regras dos jogos, cada um querendo impor sua opinião de
maneira autoritária e sem ouvir o outro. Tal aspecto demonstra a existência de conflitos
e dificuldades entre o casal.
Mateus quase não falou durante toda a sessão, parecendo retraído para expor sua
opinião, seus pensamentos e sentimentos, o que corrobora a hipótese de sua falta de
confiança e insegurança quanto ao ambiente em que vive.

Devolutiva para os Pais

Na sessão de devolutiva ambos os pais compareceram. A terapeuta lhes disse que


Mateus é um menino muito inteligente e bem educado, mas que parecia bastante tímido
e inseguro.
Disse também que a queixa que os pais trouxeram inicialmente, de que ele era
agressivo e às vezes violento, não foi observada durante o processo de triagem e que
esse fato pode ser devido à observação de que o menino mostra-se muito introvertido,
não se sente seguro o suficiente para expor suas opiniões e, assim, não conversa muito.
Com isso, é possível que ele sinta algumas preocupações e que acabe as guardando só
para ele, o que pode atrapalhá-lo no processo de aprendizagem na escola ao dificultar
sua concentração. Além disso, como guarda muito o que pensa e o que sente, pode
haver momentos em que isso fica insustentável, o que faz com que Mateus se expresse
com raiva e atitudes agressivas e impulsivas.
Também foi dito que até o momento não havia sido possível notar desatenção
(que os pais haviam relatado), já que Mateus se interessava pelos jogos, começava,
empenhava-se e seguia até o fim, por tempo prolongado. Com isso, foi sugerido que os
pais voltassem a falar com o médico sobre sua medicação, para o controle adequado, e
que além disso, o atendimento psicológico poderia ser de grande valia nessa questão.
Destacou-se a importância de um trabalho conjunto com os pais, pois eles
poderiam agir em casa de uma maneira que a criança pudesse se sentir acolhida e
segura, o que seria de grande auxílio para a compreensão e tratamento terapêutico da
criança.
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Discutiu-se a importância de incentivar as brincadeiras em casa, além dos horários
para fazer a lição de casa e ajudar nas atividades domésticas. Também foi salientado
que os pais poderiam brincar com os filhos em alguns momentos, e que isso poderia
aproximá-los. Foi sugerido que os pais incentivassem que Mateus contasse sobre o seu
dia, e se mostrassem curiosos sobre a vida dele, dando-lhe atenção e carinho, elogiando
o que ele faz de bom, para que se sinta mais confiante.
Foi exaltada a importância de os pais não esperarem as mesmas coisas dos dois
filhos, já que são crianças diferentes, com idades variadas. Nesse momento, o pai disse
que ele não cobrava as mesmas coisas do outro filho, porque achava que ele ainda era
muito criança, mas que talvez estivesse errado.

Devolutiva para a Criança

No momento da devolutiva, Mateus parecia ainda um pouco tímido. Nesta sessão,


a terapeuta contou para ele uma história sobre um garoto que tinha muitas obrigações e
estava confuso, pois às vezes achava que era adulto e às vezes achava que era criança.
Ao final, este garoto descobria que ainda era uma criança e que poderia agir como tal,
brincando mais livremente. Mateus disse que havia gostado do desfecho desta história.
Foi perguntado se ele faria alguma coisa diferente do personagem da história. Ele
respondeu que ele poderia ajudar os pais nas atividades de casa. Neste momento, a
terapeuta interviu, dizendo que as crianças poderiam ajudar em casa de várias maneiras,
fazendo coisas que as crianças conseguem fazer. Ele concordou.
Mateus levou a história para casa e foi sugerido que ele poderia ler para o irmão
ou para os pais, como preferisse.

Discussão

Após a realização do processo de triagem, de posse das informações relatadas


pelos pais durante a entrevista inicial, a sessão lúdica e entrevista familiar diagnóstica, é
possível pensar que Mateus é uma criança insegura, desconfiada e temerosa em relação
ao ambiente, por não saber o que ele é capaz de lhe oferecer e qual a mensagem que ele
irá transmitir. A criança parece viver um conflito: cuidar de seu irmão e ser um adulto

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responsável ou viver como uma criança, que tem necessidades a serem satisfeitas e que
pode brincar.
Mateus pareceu não se sentir completamente acolhido nessa família, sentindo-se
sozinho e com grandes responsabilidades. Sua agressividade aparece, então, como uma
reação às situações em que sente muitas cobranças.
Na sessão lúdica Mateus mostrou-se introvertido, desconfiado em relação ao
novo, com receio de pedir ajuda e, para não fazê-lo, isolava-se. Parecia não querer
desagradar e não fazer bagunça, guardando os jogos logo que terminava de brincar. Tais
indícios sugerem desconfiança e receio em relação ao outro, o que prejudica sua
vivência no mundo compartilhado.
Os pais parecem sobrecarregar Mateus, transmitindo-lhe mensagens ambíguas,
ora é tido como uma criança agressiva e desobediente, ora é tido como um menino mais
velho cheio de responsabilidades.
Além disso, Mateus pode ser visto como a figura viva e representante do período
em que o casal vivenciou conflitos em sua relação conjugal, já que foi concebido e
gerado em um momento em que houve a traição do pai, acarretando desconfiança e
sofrimento por parte da mãe.
Na entrevista familiar diagnóstica foi possível observar que a família não tem
diálogo, as crianças não brincam juntas e não conversam entre si e a comunicação entre
os pais é conflituosa. A dinâmica familiar oferece sinais importantes de como a criança
se sente: sozinha, sem possibilidades de comunicação, com conflitos que não podem ser
expressos.
Por meio da compreensão da dinâmica familiar, torna-se relevante destacar a
presença de pouco acolhimento das necessidades infantis por parte da família, ou seja,
os pais não oferecem suporte afetivo, mas ficam restritos ao provimento material e
concreto. Com isso, enfatiza-se o fazer e ter responsabilidades ao invés de ser e brincar,
com prejuízos no desenvolvimento emocional. Consequentemente, a criança expressa
sentimento de vazio e desconfiança em relação ao ambiente em que vive, aspectos que
prejudicam o gesto espontâneo, impeditivos para expressão do self verdadeiro.
O sintoma relatado pelos pais de agressividade da criança pode ser entendida
como a forma que Mateus possui para se relacionar com o outro: como não é
compreendido nem acolhido em suas necessidades reais, acaba exigindo do ambiente a
contenção de sua impulsividade, expressa por meio de atitudes agressivas. Deste fato
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decorre o sentimento de impotência diante do mundo, a insegurança que não permite a
ação, o medo de desagradar o outro e, com isso, perder o seu afeto. Todos esses
aspectos sugerem prejuízo no desenvolvimento emocional de Mateus.

Referências

Cicco, M. F., Paiva, M. L. S. C., & Gomes, I. C. (2005). Família e Conjugalidade: o


Sintoma dos Filhos Frente à Imaturidade do Casal Parental. Psicologia Clínica, 17 (2),
53-63.

Franco, S. G. (2003). O brincar e a experiência analítica. Ágora, 6(1), 45-59.

Gomes, I. C., & Paiva, M. L. S. C. (2003). Casamento e Família no século XXI:


Possibilidade de Holding? Psicologia em Estudo, 8(1), 3-9.

Winnicott, D. W. (1982). A criança e o seu mundo. (A. Cabral, Trad.). Rio de Janeiro:
Livros Técnicos e Científicos. (Trabalho original publicado em 1957)

Winnicott, D. W. (1993). O ambiente e os processos de maturação. (I. C. S. Ortiz,


Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1965)

Winnicott, D. W. (1997). A Família e o desenvolvimento individual. (M. B. Cipolla,


Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1965)

Trinca, W. (1984). Diagnóstico psicológico: a prática clínica. São Paulo: EPU.

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