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1.1 Da Antiguidade aos primeiros séculos do Cristianismo Nao existem_praticamente estudos relacionados com a miisica durante-a Antiguidade no territério que mais tarde viria a ser Portugal. Tentaremos resumir-aqui alguns aspectos da tnica sintese de que dispomos sobre o assunto, da autoria do musicélogo espanhol Ismael Fernandez de la Cuesta’, que é relativa a toda a Peninsula [bériea, oo - Na época pré-romana a Peninsula foi colonizada por povos semitas, nomes damente os fenicios € os cartagineses. As referéncias literdrias a pratiea mus‘ cal destes povos so escassas, enquanto que os vestigios da presenga musical grega estilo primariamente relacionados com a actividade mercantil dos habi- tantes das ilhas do mar Egeu. Por esse motivo, as representagdes musicais que aparecem em vasos gregos encontrados na Peninsula nao traduzem neces riamente uma pratica local. Pelo que diz respeito aos diversos povos e culturas autéctones, tém para nds especial interesse as referéncias A Lusitania, territério cuja zona costeira rica e fértil, habitada por mercadores ¢ ricos proprietarios, contrastava com o interior pobre, povoado por pastores, cagadores e salteadores. O historiador grego|Diodoro de Sicilia menciona as dancas pacifias dos lusitanos, em ritmo rapido, e 0 seus Cantos e dancas de guerra, cujo ritmo era semelhante ao do. pedn® greg. Diodoro de Sicilia ¢ Apiano deserevem-nos também o funeral de Viriato, que foi incinerado com os seus melhores trajes numa pira al em redor da qual os soldados dangavam dangas guerreiras e cantavam os seus feitos, o que indicia a existéncia de uma tadigao épica. issima, A romanizaco da Peninsula Ibérica deu-se apés as guerras celtibéricas (154- 7133 A.C.) ¢ lusitanas (147-137 A.C.). A informagao directa que possuimos sobre a miisica na Hispania romana é escassa, para além da representagio iconografica de instrumentos e de cenas musicais que nos surge nas esculturas, na cermica, nos frescos ¢ sobretudo nos mosaicos, Mais uma vez ndo é possivel sabermos em que medida é que essas representagdes documentam a pritica local ow se limitam a reflectir a imagem importada da vida musical noutros locais do Império, mas devemos mencionar por outro lado os vest gios da existéncia de uns|vinte teatros em toda a Peninsula] uma vez que a ica, tanto Vocal como instrumental, ocupava um lugar importante no teatro romano. Em Portugal destacam-se os restos arqueoldgicos de um teatro em Olisipo. a moderna Lisboa. E também muito limitada a informagao de que dispomos sobre a misica crist em Portugal ou na Peninsula Ibérica nos primeiros séculos da nossa era. Uma rara inscrigdo datada de $25 faz o elogio de um tal André, princeps cantorum ou principe dos cantores da Tgreja de Mértola, o qual, segundo 0 musicdlogo american Robert Stevenson € 0 primeiro niisico de Igreja em toda a Europa cujonome conhecemos'. A partir do séeulo VI aparecem igualmente referéneias 2 organizagio dos servigos littirgicos e da isica. Contudo, como refere " Hisnivia de ta mision expae hola. 1. Desde ls origenes hasta el ars novas. Parte Primera, Del Paleoltico a la romanizacin. pp. 3184, # Tris motas broves «um long Robert Stevenson, proficio 14 Anoogia de Pottfonta Por gues, 1499-1680, Lisboa. FundagiiCalouste Gulben ian, 1982, p. V 20 " tsmact Fernindes de Cuesta op "aI b * tidy. “E. Solange Corbin, Fise! sar la musique religieuse por- Igoe au Moyen Age, Pais, Les Belles Lettres, 1952, p 207 * Histnie da Misia (Stmtex set da Caltura Portaguera), Lisboa, Comissariado para a Europilia 91-Portugal/ Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991, pp. 18-19. Ismael Ferndndez de 1a Cuesta, os documentos que descrevem de algum modo a xtos litiirgicos pertencem aos esoanterintes ap euloX. Existe deste modo crista_anterior ao ato visigético, assim como a i mao da propria liturgia ¢ repertério musical hispanicos' Quanto a prética musical profana durante os primeiros séculos do Cristia- nnismo, a informagio que dela temos resume-s¢ praticamente as referencias que Ihe sfio feitas pelas autoridades religiosas. Os concilios e as cartas pastorais dos dltima, pela sua obscenidade e por representarem um vestigio da cultura paga. Uma carta do bispo de Cartagena para o bispo de Ibiza, de 595, diz por exempl lio povo cristdo, se é que ndo vai i igreja ao domingo, pelo menos fizesse algo de proveitoso ¢ nio se dedicasse a bailes. Seria melhor que 0 homem fizesse alguma coisa, ou entio fosse de viagem; as mulheres, por sua vez, melhor seria que fizessem traballios manuais, e que nao passassem odomingo em bailes ¢ dangas, fazendo com que 0 seu corpo, criado por Deus, sirva para excitar as paixdes mis. 1.2 A Idade Média 1.2.1 A musica religiosa e as suas fontes De acordo com o que atestam os documentos portugueses ¢ espanhdis, nos séculos IX ¢ X os ten s do Norte da Peninsula estavam _cobertos de de Pequenos mosteiros. Otestamento da fundadora do Mosteiro de S. Salvador e 'S-Maria em Guimardes, condessa Mumadona Dias, que data de 959, inelui o legado ao mesmo Mosteiro de diversos livros littirgicos que poderao ter incluido notagdo musical, tais como antiphonarios tres, organum. comitum, manuale, ordinum, psalterios duos, passionum et precum'. Diversos autores tém interpretado 0 orgamum constante desta lista, nfio no sentido de um tratado teolégico ou de outra natureza, mas sim como desig- nando um livro de organum, ou seja de polifonia primitiva, embora tal hipd- tese tenha vindo recentemente a ser contestada, nomeadamente por Ri Nery, que considera ser pouco provavel que, numa altura em que a influ dos primeiros manuais de organum nao tinha ainda aparentemente ultrapas- sado 0 Norte da Franga, ela tivesse chegado jé & regiio do futuro Condado Portucalense* wv} Durante os séculos XI e inicios do XII, a influéncia da abadia beneditina francesa de Cluny ira ser muito grande na Peninsula Ibérica. Pelo espago de quase um Século foram bispos cluniacenses que estiveram a frente das Sés de Braga, Porto, e Coimbra, seguidas logo no primeiro reinado pelas de Lisboa, Lamego, Viseu e Evora, ¢ tero sido eles em grande parte os responsaveis pela aplicagdo em Portugal da unificagao litérgica sob o signo do rito ¢ do canto franco-romano, vulgarmente designado por gregoriano ou cantochao. Essa unifi “Cagio, que havia sido realizada na corte de Carlos Magna no inicio do século “TX, tinha vindo progressivamente a sobrepor-se A diversidade litirgica exis- tente na Igreja Ocidental, do Norte de Itélia A Galia, & Inglaterra ou a Peninsula [bérica, entre o século V ¢ o século VIII. O rito em uso na Peninsula antes da adop¢ao do rito franco-romano decretada pelo Concilio de Burgos de 1080" € conhecido por rito hispanico, visigético ou mozdrabe, Se bem que 0 Antifondrio de Leon, o tinico manuscrito completo da liturgia hisp: conserva, contendo os textos e a miisica para os oficios e as missas de todo o ano liturgico, tenha sido aparentemente copiado no século X a partir de um original existente em Beja’, so muito reduzidos em Portugal os vestigios do repertério musical hispanico. A maior parte dos livros hispanicos ter-se-4 “perdido pela mesma altura em que os manuscritos oriundos de Franga e contendo a liturgia e 0 canto franco-romano, escrito em notacao aquitana, eram copiados cuidadosamenie. Réfira-se a propésito que o famoso uso bracarense € uma simples variante local da liturgia franco-romana, constituida somente em 1130-40, os monges de Cluny viriam a ri ‘der 0$ apoios de que tinham disfrutado em favor dos monges de S. Agosti- ho €dos de Citeaux, ou Cister.A influéncia da reforma cisterciense, tal como a de Cluny origindria da ordeme da regra beneditinas, e caracterizada pelo seu ascetismo e austeridade litirgica, estendeu-se aparentemente a todo o territé- tio. A mais importante das abadias cistercienses era a de Alcobaga, tendo o convento de L aderido também 4 reforma de Cister, ¢ uma grande parte ‘dos manuscritos musicais portugueses medievais é aparentada com os manuscri-_} {tos de Alcobaca e Lorvao pelas caracteristicas da sua escrita e pelas rubricas ¢ iciais muito simples, que traduzem a influéncia do Capitulo de austeridade cisterciense de 1134. No entanto, o mais antigo e mais importante fundo de manuscritos litirgicos com notagio musical o mais ricamente decorado que se conhece em Portugal provém do convento de Arouca. Trata-se de uma série de livros de coro cistercienses que se conservam hoje no Museu dessa localidade e que consti- tuem provavelmente modelos importados ou copiados em Portugal no rei- nado de D. Afonso Henriques (1139-1185). Uma pagina de misica rasurada no final de um destes livros parece ter contido uma peca a duas vozes, 0 que é caso Ainico em fontes medievais portuguesas, as quais contém somente cantos litrgi: cos monédicos, ou a uma s6 voz. E de crer que pelo menos um desses manuscritos seja anterior ao Capitulo de austeridade, ou ent&o as suas prescrigdes nao foram observadas em Arouca, CE, José Augusto Alegeis OFnsinoe Praticada Mica nas Sés de Portugal, Lisboa, Instituto de Cultura e Line agua Portuguesa, 1985, p. 18 °C Robert Stevenson, «Por tuguese Musical Contacts Abroad (10 1500)> in Ibe rian Musical Outreach Before Encounter with the New World» /nersdmerican Music Review WIM, 2 (Los Angeles, Spring-Summer 1987), p89. Ey 2 He * Op cit. pp. 193-96 * Relacionado com a teoria musical € 0 fato, cutioso para nds, de no tratado do italiano Uzolino Orvieto Declararo musice dscphn {1430 a fisiea ea meta sica medieval ds. misica procedentesdeBogcioserem ‘em pate Fevistas com base nas obras do portugues Pedro Hispano, que nasceu fem Lisboa em 1208, foi aluno da Universidade de Pars e professor de medic «ina em Siena, Deo da Se de Lisboa, -Arcebispo de Braga, ¢ Papa com 0 nome de Joao XXI (et: Robert Stevenson, op ct p- 26). * Sobre este assunto¥, José Augusto Alegria. op cit Wether Tobe claustraisfeducavam-se |os mocos de capela, ou meninos cantores) que nelas 20 contririo do que sucedeu em Lorvao. Lorvao possui, mesmo assim, varios livros de grande beleza, mas tanto este convento como o de Arouca eram ambos retiros de damas, ignorando-se hoje em dia onde foram originalmente copiados esses manuscritos. De facto, foi antes nos mosteiros masculinos, de que se destacam Alcobaga e Santa Cruz de Coimbra, casa-mae dos Cénegos Regrantes de. Agostinho, que existiram ao mesmo tempo escolas, seriptoria, ow oficinas de copistas, ¢ bibliotecas. Por sua vez no Sul do pais, onde dominavam as Ordens Militares dos Templirios, dos Hospitalirios, de San- tiago de Espada ¢ de Aviz, ocupadas com as tarefas da Reconquista, os manuseritos musicais parecem ter sido mais raros. Chegaram até nés muitos manuscritos ou fragmentos posteriores a 1150 que se podem atribuir aos cistercienses ou copistas formados nos scriptoria cister- cienses, poucos manuscritos do periodo.cluniacense (1080-1150) ¢ quase nenhuns como vimos do periodo hispinico (antes de 1080). O interesse princi- pal dos manuscritos posteriores a 1150 esta relacionado com uma variante introduzida na notagao francesa ou aquitana, em que as notas eram escritas sobre uma tnica linha a seco ou a encarnado. Essa variante, conhecida como notagio ou sistema portugués, que surge desde o fins do século XI no chamado Pontifical de-AlCObAGA, consiste essencialmente na indicago do mi-fa, ou meio-tom, por meio de um losango, € 0 seu uso parece ter-se generalizado a partir de 1260. — Tal como os livros do rito hispanico, os novos livros de origem francesa estayam destinados também eles a serem destruidos. Parecem ter-se conser- vado até aos finais do século XIV ou inicio do XV, tendo o seu pergaminho sido utilizado posteriormente para a encadernagiio ou para as folhas de guarda de novos livros. Ao mesmo tempo a pauta musical de quatro ou cinco linhas foi sendo progressivamente adoptada em Portugal para a escrita do cantochio. Exceptuando o estudo fundamental da medievalista francesa Solange Corbin Essai sur la musique religicuse portugaise au moyen age, publicado em 1952, no qual nos bascémos essencialmente ao longo dos parégrafos anteriores, 0 repertério litdrgico medieval do cantochdo mereceu até hoje muito pouca atengio por parte dos nossos historiadores musicais. Quanto 4 teoria musical, parecem ter-se conservado em Portugal poucos tratados musicais da Idade Média, o que levou a mesma especialista' a crer na exist@ncia de um ensino um ouco empirico e bastante fechado a influéncias estrangeiras, opinizio que é de certo modo confirmada pelo aparecimento do sistema de notagdo auténomo acima referido” Pelo que se refere as [Sés Catedrais,|a sua organizago musical comeca a delinear-se progressivamente ao longo dos séculos XII e XIII’. No cabido de uma Sé, logo a seguir ao deo, aparecia ofhantre ou cantor} responsivel pela organizagio do canto Eitirgico © pelo seu ensino, comegando este dilkimo a partir de certa altura a ser delegado no subchantre. Naslescolas capitulares ou ‘davam entrada a partir dos oito anos € ai se mantinham até & altura da mudanga de voz. A sua formagio musical incluia a teoria musical, a educagdo da voz, a memorizagio das melodias eo conhecimento das ceriménias litirgi- cas a que elas pertenciam. Alguns deles prosseguiam depois os seus estudos a fim de seguirem a carreira eclesidstica, ¢ tornavam-se capeldes cantores a0 chegarem & idade adulta. ]A escola capitularimais antiga que nos surge apés a Reconquista é a da Sé de Braga, que existia j4 em 1072, contando com quatro mocos. Em Coimbra 0 testamento de D. Paterno, datado de 1086, afirma que o bispo D. Sesnando pueros nutrivit et eos docuit in sede episcopali («alimentou os mogos ¢ ensinou- os na prépria Sé»)'. Ha contudo investigadores que consideram ser este documento apécrifo. A informag&o de que dispomos permite-nos também detectar a existéncia de escolas capitulares, ou pelo menos de chantres, na de Lisboa de 1150, na do Porto em 1186 ¢ na de Evora em 1200. De 1229 €o primeiro regimento de uma capela portuguesa que conhecemos, sob a forma de uma carta de D. Joao, bispo Sabinense e legado papal, entregue ao Prior e cabido de S. Maria de Oliveira em Guimaraes. 1.22 0 problema da musica trovadoresca Esti bem documentada a presenca em Espanha, tanto na Catalunha como em Castela, de um ntimero significativo dtrovadores provengais, comegando por aquele que € considerado o primeiro de entre eles,[Guillaume de Poitiers, ss) | duque de Aquitania, e incluindo Marcabru, Peire Vidal, Giraud de Bornelhle outros ainda. Conhece-se também o nome de um certo numero de trovadores catales que escreveram na tradigio provengal. Houve igualmente/irowvéres _ _do Norte de Franca que viveram em Espanha, embora a sua influéncia tenha sido decerto menor. Destes o mais importante é Thibaut de Champagne, rei de Navarra, a cujo nome andam associados mais de quinhentos poemas e de quatrocentas melodias (se bem que nem todas elas originais), o que faz dele 0 mais fecundo autor medieval’. pes iste contudo uma tradigao trovadoresca propria ao espaco ibéricolque tem, pelo menos em parte, uma raiz local, se bem que tenha sido também influen- ciada pela lirica provencal. Essa tradigio esté toda ela vertida em galaico- portugués, a lingua do Noroeste da Peninsula, cujo centro cultural mais “importante, além de primeiro polo de assimilagio ¢ difusio da tradig&o provengal nesta zona da Peninsula, foi Santiago de Compostela. [O mais antigo trovador galaico-portugués Soar cerca de 1140, € 0 tiltimo D. Pedro, Conde de Barcelos (c. 1285-1354), filho do rei D. Dinis. O apogeu da cantiga trovadoresca em Portugal deu-se na corte de D. Afonso IIT (1248-1279), o qual havia estado em Franga, tendo sido igual- mente trovadores os reis D, Sancho I (1154-1211) e D. Dinis (1262-1352), que nos legou o maior niimero de cantigas, para algumas das quais ter4 ele proprio feito a misica. Do que fica dito nao devemos deduzir que todos, ou sequer a Brea * Ch Ismael Ferndinder dela Cuesta, op. ci, pp. 279-88. 2 ——— eR LP EET RLETEE ACE maior parte dos poetas que compuseram em galaico-portugués, estiveram associados & corte portuguesa. Muitos deles, tanto galegos como portugueses, leoneses e castelhanos, viveram nas cortes de Fernando Ile de Afonso X, 0 Sibio, de Ledio ¢ Castela (1226-1284). Existem cerca de dois mil ¢ cem poemas eseritos em galaico-portugués, qua- trocentos dos quais pertencem ao corpus de tematica religiosa das chamadas who. [Cantigas de Santa Maria Os restantes, de caricter profano, conservam-se em . trés manuscritos principais, nenhum dos quais possui notago musical: 0 pope ( ae fa Ajuda\finais do século XIII ou inicio do XIV), o da Biblioteca atic odalBiblioteca Nacional de Lisbod (antigo Colocci-Brancuti), que Sti eépias do século XVI. No Cancioneiro da Ajuda chegaram a ser tracadas as pautas destinadas a receber posteriormente as melodias dos poemas, 0 que ‘nunca chegoua ser feito, mas o sew interesse principal para a hist6ria da msi reside nas suas iluminuras, que representam cantores, bailarinas ou jogralesas, e tocadores de viola de arco, viola dedilhada, saltério, sonalhas, pandeiro ou adufe, dirigidos por um nobre trovador sentado num escabelo, com um roto de pergami- nho na mao que contém a letra das cantigas. ‘Até ha bem pouco tempo, a tinica fonte musical conhecida do repertério profano galaico-portugués era uma folha de pergaminho, encontrada no inicio deste século pelo livreiro madrileno Pedro Vindel a servir de encaderna- ‘cdoa uma cépia medieval do De Offfciis de Cicero e que pertence desde 1977 & Pierpont Morgan Library de Nova lorque, a qual contém sete cantigas do jogral de Vigo Martin Codax, seis das quais com miisica. Recentemente 0 Professor Harvey Sharrer, da Universidade da California em Santa Barbara, descobriu no Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa um pergami- nho contendo varias cantigas com a respectiva misica compostas pelo r D. Dinis, de cujo estudo literdrio e musical se aguarda ainda a publicagao. © clevado mimero de cantigas trovadorescas que chegaram até nés sem notagdo musical levanta a questo do seu proceso compositivo. Sabe-se que alguns trovadores compunham o texto ea matisica (0 som), outros compunham 86 0 texto e davam-no aos jograis para cantarem, fosse com musica original, fosse sobre uma melodia ja conhecida, profana ou litirgica. Os poemas/ | compostos imitando a métrica e até a rima de uma outra cantiga ou de um canto! ittirgico pré-existente, cuja melodia utilizavam, tomam 0 nome de contrafact! Salvo os raros casos em que os préprios cédices indicam a fonte que foi usada, é dificil e arriscado tentar identificar os possiveis modelos de uma determinada * Bid, p. 293. cantiga', Inspirando-se no processo utilizado por H. Spanke’, José Augusto Alegria, em A problemdtica musical das Cantigas de Amigo’, experimentou 2 Shonedlrn Ses Blin criar diversos contrafacta para cantigas trovadorescas a partir de algumas ‘gen, 1940. melodias litirgicas medievais mais conhecidas. A arbitrariedade desse tipo de tentativas, que tem sido repetidamente denunciada pelos principais especialis- * Lisboa, Fundago Calouste tas na matéria, prende-se especialmente com o facto de que, ao lado da Gulbenkian, 1968 influéncia litirgica, existem outras influéncias postico-musicais que foram pelo menos to importantes para a formagiio do repertério trovadoresco, tais como a tradigiio medieval da poesia latina e a influéneia arabe. 4 Sonne EMER AARNE a Ra OES TS A ENT Mesmo que as melodias que aparecem nos cancioneiros provengais sejam composicdes originais dos préprios trovadores — o que é dificil de saber, jé que esses cancioneiros sao de um modo geral muito posteriores aos autores dos poemas — saber eram interpretadas ¢ ornamentadas de modo improvisado e com acompanhamento de instrumentos, da maneira que apa- rece ilustrada nas iluminuras do Cancioneiro da Ajuda. Este facto, aliado aos problemas de interpretacdo ritmica levantados pela sua notacdo musical, que é basicamente semelhante & notacao do cantochao, nao apresentando por isso indicagées de natureza ritmica, tornam a sua reconstituigéo moderna alta- mente problematica Se bem que as cantigas de Martin Codax, do mesmo modo que as fontes das | Cantigas de Santa Maria, utilizem um sistema de notagao ou sistemas de | notagao que incluem ja elementos de natureza ritmica, fazem-no de um modo demasiado ambiguo para tornar igualmente possivel uma transcrigio moderna ritmicamente satisfatéria das mesmas. O especialista da musica ibérica medieval Ismael Fernandez de la Cuesta sugere que os copistas terao, tentado fixar por escrito ritmos que nas versdes orais c originais deste repert6- rio eram bastante livres, utilizando para o efeito sistemas de notagio que estavam ainda numa fase de evolugio ¢ relativa instabilidade'. A primeira e mais conhecida ¢ tigas de Martin Codax, Ondas do Vigo, tem muitas semelhangas de texto com uma cantiga provengal de Raim- baut de Vaqueiras, Altas undas que venez suz la mar. Do ponto de vista melédico, as seis cantigas de Martin Codax sao muito simples, apresentando uma espécie de concatenagio de pequenas células melédicas que passam de lum verso para outro da estrofe, e da estrofe para o estribilho, num proceso aparentado como da centonizagio na miisica litirgica (organizagao melédica baseada na combinacio e alternancia de curtas células melédicas)’. Estas cantigas foram jé objecto de diversas tentativas de transcrigéo, a ultima das quais, da autoria de Manuel Pedro Ferreira, é acompanhada de reprodugdes facsimiladas do pergaminho e de um estudo aprofundado do mesmo, assim como de um extenso ensaio sobre a problematica musical deste tipo de repertério’. Os géneros poéticos cultivados na lirica galaico-portuguesa sto a cantiga de _amor, semelhante a canso provengal, ac de amigo — de que se conservam cerca de quatrocentas — a cantiga de esedrnio e maldizer, de caracter satirico, semelhante ao sirventés provengal, ¢ ainda a pastorela, o pranto, o elogio ea tengo. Como se sabe, no contexto geral da lirica trovadoresca igas de ortuguesas ay am a particularidade muito prépria de Tiélas ser a amada que se dirige 20 amigo ou que fala dele. Essa particularidade tem sido interpretada como reflectindo a seu modo a situagdo social existente no Norte da Peninsula durante a época da Reconquista, em que as mulheres permaneciam longos perfodos sozinhas, ocupando-se nio sé das tarefas domésticas como também do trabalho agricola, enquanto os homens anda- vam no fossado, isto é, realizavam incursdes ou campanhas militares em territério arabe. " Ch Ismael Ferninder de a Cuesta, op. ct, pp. 2023. * bid, p. 293 "0 Som de Martim Codex: Sobrea dimensdo musical da lirica galego-portuguese(sé- culos XIT-XV), Lisboa Unisys/Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1986. 25 26 cua teNnersusEENRR ERTIES "Ismael Fernindes del Cuesta, op ci p29 ty. & q SS A SG SITET Esta circunstineia terd contribuido para dar uma voz & mulher que no encontramos na restante lirica trovadoresca, ¢ esta possivelmente também associada ao facto de que muitas vezes na cantiga de amigo parece ser uma rapariga do povo quem fala, ou pelo menos o ambiente é mais espontanea- mente rural ou campestre, € nio propriamente cortés, ao contrario do que sucede na cantiga de amor. Sao estes aspectos, associados por outro lado & maior simplicidade formal deste género, em comparagzio com a cantiga de amor, que tém levado a admitir a existéncia de uma possivel origem popular para a cantiga de amigo. Segundo Ismael Fernandez de la Cuesta, esta hipo- ieseCreforcada pelo facto de que a cantiga de amigo nao foi ao que parece praticada pelos poetas cultos antes de bem avangado o século XIII. Osautores de cantigas de amigo que aparecem nos cancioneiros so normalmente jograis ‘ou segreis, personagens que cram socialmente inferiores aos trovadores'. Do ponto de vista formal distinguem-se dois tipos — as cantigas de maestria e as cantigas de refrio. As cantigas de amigo so cantigas de refro com parale- lismo ¢ leixaprén — esquema formal que consiste num numero par de estrofes, cada uma das quais é constituida por um distico e um refrao monéstico (de um s6 verso); a mesma ideia é repetida em cada par de estrofes, com ligeiras variantes nas palavras ou express6es finais; 0 processo de leixaprén consisteem que 0 segundo verso da primeira estrofe ¢ igual ao primeiro da terceira,eassim sucessivamente, Esta estrutura sugere, pelo menos na origem, uma realizagio coral e coreogrsfica Pela sua estrutura,as cantigas de amigo, assim como o repertério das Cantigas de Santa Maria, parecem aparentadas com a poesia arabe medieval. Contudo, a questo do peso relativo que na sua formagao teri tido diferentes tipos de influéncias poéticas € musicais, sejam elas érabes ou europeias, litirgicas ou profanas, cultas ou populares, encontra-se ainda por esclarecer convenien- temente. Embora as Cantigas de Santa Maria tenhiam sido compostas no ambiente da corte de Afonso X 0 Sabio, av6 do rei D. Dinis como este tltimo também poeta, ‘podemos considerar que elas pertencem ao repertério galaico- -portugués comum a Portugal ea Espanha. A tematica poética de muitas das Cantigas é de louvor a Nossa Senhora ou refere-se a milagres a ela atribuidos, alguns deles sucedidos em diversas localidades portuguesas, tais como Alen- quer, Evora ou Santarém, ¢ nao é de excluir a hipdtese de estes iiltimos terem sido compostos por trovadores portugueses. As fontes das Cantigas € a pro- pria tradig&io dao o rei Afonso X como o seu autor e compositor, mas é mais provavel que ele tenha composto algumas delas € que as outras tenham sido compostas, a seu mando, por diversos trovadores e jograis que sabemos terem estado ao seu servigo. Existem quatro fontes para as Cantigas de Santa Maria: duas na Biblioteca do Escorial, uma na Biblioteca Nacional de Madrid e uma na Biblioteca Nacional de Florenga. Destas, 0 Cédice E2 do Escorial, considerado pelo musicélogo cataltio Higinio Anglés como a fonte princeps ow original, é caracterizado pela 0 da sua notagHo musical e pela riqueza das 1.264 iluminuras, muitas quais representam jograis instrumentistas ¢ cantores, do mesmo modo que as iluminuras do Cancioneiro da Ajuda. Por sua vez, 0 Cédice El do Escorial possuii o maior ntimero de cantigas e tem também numerosas iluminuras, 0s virios c6dices transmitem-nos 0 corpus das cantigas de maneira compacta e unitiria, néio dando assim a impressio de terem sido compilados a partir de folhas soltas, como acontece no repertério trovadoresco provengal. O testa- mento de Afonso X, de 1284, manda que todos os livros dos Cantares de loor de Sancia Maria sejam reunidos na igreja onde 0 seu corpo for enterrado ¢ que sejam cantados nas festas de Nossa Senhora, ¢ que no caso do seu herdeiro os pretender para si dever compensar a dita igreja por tal facto. Um dos poemas indica ainda que o livro das cantigas curou o rei de uma doenga quando este se encontrava em Vitoria, demonstrando assim que Afonso X o fazia transportar consigo nas suas viagens. O cerimonial dos reis de Castela refere que durantea missa da coroagiio, depois do Alleluia ¢ antes do Evangelho, donzelas deve- riam cantar uma cantiga e dangar. Para Ismael Ferndndez de la Cuesta, a estrutura intervalica da melodia das Cantigas e a sua amplitude nao sugerem uma origem popular mas antes uma origem culta. A existirem elementos populares, eles terdio sido perfeitamente integrados na arquitectura sonora das diferentes pegas'. Pelo que diz respeito aos criadores e aos intérpretes do repert6rio trovado- resco peninsular, importa referir que nem sempre é facil estabelecera distingio entre trovador/é jogral. Se 0 primeiro & em principio de origem nobre, 0 segundo € um profissional que ganha a sua vida actuando em piblico e é de origem humilde. Ha, contudo, jograis que actuavam para as classes baixas, outros que actuavam nos pakicios para os reis e os nobres, outros ainda que actuavam perante qualquer piblico. Existe ainda na Peninsula um tipo espe- cial de jogral, o segrer, segriel, ou segrel, escudeiro que pede dom (recom- pensa), a meio caminho entre o jogral e 0 trovador. A partir do século XIV surge também na Peninsula Ibérica o termo menestrel, importado de além- -Pirinéus, para designar os jograis instrumentistas ao servico das capelas reais ou catedralicias. Em 1193 D. Sancho I doou um casal a dois jograis irmaos, Bonamis ¢ Acompaniado, os quais reconheceram a sua divida para com o rei nos seguin- tes termos: «nos, mimi supra nominati, debemus nostro regi pro roborationi unum arremedillum». Como nota Joto de Freitas Branco, a divida de um arremedilho, pequena Fepresentagio teatral semi-improvisada, ¢ 0 préprio termo de mimos com que a si préprios os jograis se designam, demonstram a associagao histérica que existia ainda entre estes e os actores ambulantes dos finais do Império Romano’. Entre nés as Ordenacdes Afonsinas registam algumas determinages respeitan- tes a jograis. Assim, em 1258 0 regulamento da casa real de D. Afonso III estabelece que o monarca mantenha na sua corte somente trés jograis e fixaem ¥ 4 ” "bid, pp. 295-308, J. och Hissérta de misica porte. quesa, Lisboa, Publicagdes Europa-América, 23 1959, p. abe: cem maravedis 0 maximo que se poderia dar ao jogral ou segrel que viesse a cavalo de outras terras, Nao devia haver nenhuma jogralesa ou soldadeira permanente no pakicio e as que estivessem de passagem no poderiam demo- rar mais do que trés dias. Outra disposigiio de 1261 determinava que, quando uma soldadeira fosse convidada a comer em casa do rei, nao levasse consigo * Ibid, pp. 23-24. sua manceba ou criada ou qualquer homem que a acompanhasse'. 1.2.3 A vida musical nos séculos XIV e XV Um problema de fundo com que nos deparamos ao pretendermos estudar a vida musical em Portugal nos séculos XIV e XV € 0 da inexisténcia de fontes _musicais — para além dos livros de eantochao, os quais contém fundamental- mente o repertério internacional que provinha da Idade Média — que nos possam indicar claramente que tipo de miisica se praticava e se ela era de origem nacional ou estrangeira, Esta caréncia absoluta de fontes musicais profanas ou de polifonia religiosa deste periodo leva-nos a supor que elas teraio sido entre nds extremamente escassas e se tero irremediavelmente perdido. Pelo que se refere & polifonia religiosa, Jodo de Freitas Branco sugeriu que a sua escassez estaria relacionada mais uma vez com a influéncia da austeridade ° Ibid, p. 16. cisterciense’, embora haja por outro lado investigadores que nfo perderam ainda a esperanga de virem a encontrar nos nossos arquivos e bibliotecas fontes polifénicas desta época. Por ora, no entanto, temos de nos apoiar unicamente nas referéncias dispersas dos documentos histéricos, que nao parecem alids ter sido ainda sistematicamente explorados deste ponto de vista, para tentar reconstituir 0 que tera sido a nossa miisica nos finais da Idade Média e inicios da Renascenga. Os primeiros indicios que encontramos do conhecimento da pratica polifénica em Portugal surgem-nos somente nos fins do século XIV. Numa altura em que a Franga era ainda 0 grande polo difusor da cultura e da musica europeia, reveste-se de especial interesse a informagao de que cerca de 1378 ters estado ao ey servico do rei D. Fernando um compositor da escola de Avignon, Jehan Simon de Haspres, ou Hasprois (ff 1378-1428), para o qual nesse mesmo ano o rei * Ch. Robert Stevenson, op. solicitou ao Papa Clemente VII 0 beneficio de Sao Martinho de Sintra’. O sere conhecimento da Ars Nova francesa do século XIV e do seu mais notavel representante, o compositor e poeta Guillaume Machault, esta patente por outro lado na referéncia que a ele faz D. Joao I, no seu Livro da Montaria, escrito depois de 1415. Ao falar dos latidos dos seus c&es de caca, 0 rei comenta que «Guilherme de Machado nom fez tam formosa concordanca de melo- dias», Devemos entender provavelmente esta comparagio como simples figura de retérica, uma vez que noutro passo do mesmo livro D. Joo I nos dé « cia in tno de ronan conta do seu gosto pela musica, ao afirmar que quando estava cansado sentia Bante esis pp an, Fazer em «ouvir os mui doces tangeres que faziam os instrumentos» ou em 33:34 «tomar uma formosa dona ou donzela pela mao ¢ dangar com ela»" ra O casamento da princesa Isabel de Portugal, filha de D-Joio I, com o duque _Filipe, o Bom, de Borgonha em 1430ter ido ocasiao de algum intercambio musical entre a corte de Dijon — na altura o nico centro cultural que alizava em importancia coma corte de Franga — ea corte portuguesa, mas tal intercambio nao se encontra no entanto claramente documentado. Parece mais provavel que fossem castelhanos ¢ nao portugueses os dois tocadores de viola cegos Jehan de Cordouval e Jehan Fernandes, origindrios da Peninsula, que entraram para o servigo da princesa Isabel em 1434 e, segundo o poeta Martin le Franc, envergonharam os dois maiores compositores da época, Guillaume Dufay ¢ Gilles Binchois. © mesmo Dufay tera escrito a chanson intitulada Portugaler (da qual existem outras versdes anénimas, incluindo ‘ina versio para Srgio) em homenagem a princesa Isabel. A melodia original na parte de tenor sobre a qual estio escritas as diversas versdes desta chanson J apresenta por sua vez semelhangas com uma basse dance intitulada La Portin- _galoise que aparece numa das mais importantes colecgBes de musica de danca desta época' interesse que a mésica profana franco-flamenga ter despertado em Portugal * pela mesma altura € demonstrado pelo facto de D. Afonso V (1432-81) ter ordenado ao seu mestre de capela, o espanhol Tristano de Silva, que reunisse uma coleceo de cangdes franco-flamengas. Se essa colecgao chegou de facto a ser organizada, no sobreviveu contudo até aos nossos dias. Anote-se que a fama do préprio Tristano de Silva, cantor, instrumentista e compositor nascido em Tarazona, € testemunhada pela citagdo do seu tratado, hoje perdido, Los amables de la muisica por diversos tebricos espanhéis, italianos e portugueses dos séculos XVI € XVIL. De D. Afonso V nos diz o cronista Rui de Pina que «folgou muito de ouvir misica, e de seu natural, sem algum artificio, teve para ela bom sentimento»”. O investigador Sousa Viterbo conseguiu reunir os nomes dos seguintes miisi- cos ao seu servigo: uns vinte cantores, quinze trombetas, quatro charameleiros, 0 rei dos quais «mandaria em todos eles ¢ os ordenaria tanto nas salas reais como nos campos de batalha, ou outra qualquer parte onde se achassem», um tamborileiro, um alaudista (Lopo de Condeixa), um citaleiro ¢ um menestrel. Em 1463 foi nomeado para rei dos charamelas ou charameleiros um tal Johan _de Reste, cujo nome indica ter sido flamengo. Entre as suas obrigagdes contayam-se as de ensinar e adestrar os mogos na charamela, na viola de arco em todos os demais instrumentos. Também sabemos por carta régia que os tangedores deveriam trabalhar «para serdes bos e destros a tanger pelo livro»’, De acordo com a pratica musical da época, esta recomendagao esta decerto relacionada sobretudo com a execugdo de pegas vocais-instrumentais escritas € no de pegas exclusivamente instrumentais. Os mesmos factores que contribuem para explicar a auséncia de uma produ go poética em Portugal de meados do século XIV até meados do século XV poderio ajudar a explicar igualmente a auséncia de fontes musicais profanas. pews donet ~ dares of Lpnee:- tobene je mis “fincnis om > frat * Cf. Rober cit, pp. 91-6 (nel crigho da pega de Dufay). * Rui de Pina, Crdnica de D. Afonso V, por Jodo de Freitas Branco, (op. ct pS. otele « adore "Cf. Francisco Marques de Sousa Viterbo, «O Rei dos charamela eos charamelas mores» A Arte Musical 14 (1912), pp. 65-6, 86, 8, 103, 11 12, 74.77, 85+ 7. 29 30 REESE A EEA REI ST POLE LETT RSL LSE "Livre dos Consethos de E ‘ei D. Duatte(Lisroda Care tuna), ed. dipiomatiea de odo José Alves Dias, Lis boa, Editorial Estampa, 1982, pp. 90-92 © Chronica D'el-Rei D. Mamie, Lisboa, Biblioteca de Clisicos Portugueses, 1909-11, Vol. XI, p.27 * Gerhard Doderes, *As smanifestagdes musicais em tormo de um easamento real (Evora, 1490)» Congresso Internacional. Bartolomen Dias € a su0 époce. Actas, Vol. IV, Porto, Univesi- dade do. Porto, Comissio [Nacional para as Comemo= ragBes dos Descobrimentos Portugueses, 1989, pp. 225+ 2 reais, enquanto que out Exses factores so nomeadamente as guerras com Espanha ea crise de 383-85, com a emigragao de parte da nobreza para Castela, a ascensio de uma nova classe, a burguesia, que a tradigdo palaciana, e ainda a austeridade dacortede D. Jodo, que terd conduzidoa literaturaa virar-sesobretuda part aalhe ssuntos priticos e morais. Sabemos no entanto gue os filhos deste Fei apren- deram a tocar instrumentos musieais. Assim D, Fernando aprendeu harpa. samento de D. Duarte, celebradas em Coimbra em 1428, a noiva, princesa Leonor de Aragio, cantou aocmpanhando-se ‘manicérdio ou claviedrdio. Em carta nessa altura enviada a D. Joao 1. Afonso, © Magninimo, de Aragio recomendava-lhe dois mtisicos que vinham na comitiva de sua irma, Perr Met, organista, e Micholet de Netauvila. harpist Anos mais tarde, em 1434, seria o rei D. Duarte quem eserevia a Joao I de Castela a reclamar por este pretender reter no seu servigo o misico da corte de Lisboa Alvaro Fernandes, «uyisto como ele he criado ¢ natural nose. ¢ todo 0 mais que sabe de Cantar ¢ tanger auer aprendido em nosa casa»! jam por iniclativa propria, d origem a disputas entre os seus amos. Jii no século XVI sabemos por exemplo sta Damidio de Géis que no séquito da infanta D. Beatriz. filha de D. Manuel, que desposou o duque de Sabdia em 1521, iam seis mogos de Nas crénicas e outros documentos historicos surgem-nos diversas noticias de festas, ceriménias, banquetes ¢ bailes na corte, com mtisica de menestréis. que incluem por vezes a enumeracio dos instrumentos utilizados, embora pare- gam predominar as referéncias dulieas 4 chamada misiea alta: soadas¢ lant s de trombetas, tambores, sacabuxas, ete., associada! “puiblicas. Dos finais do século XV sHo as interessantes descrigdes das fests realizadas em Evora em 1490, por ocasido do projectado casamento do fitho de D, Jodo II, 0 infante D. Afonso, coma filha dos Reis Catélicos’, onde nos aparece entre outros aspectos a distingao renascentista entre miisica alta/e baixa/ significando a primeira a masica de ar livre, cerimonial ou militar, que fazia uso de instrumentos mais sonoros/e a segunda a misica de corte, particu- larmente a masica de danga, executada por instrumentos mais suaves. Diz-nos o cronista Garcia de Resende que para esta ocasiao D. Joao Il mandou vir em navios da Alemanha, Flandres, Inglaterra e Irlanda muitos menestréis altos € baixos, ¢ ordenou que de todas as mourarias do reino viessem todos os mouros ¢ mouras que soubessem bailar, tanger € cantar, € « José Augusto Alegria, op it, p72 CE. Robert Stevenson, op it, p. 96, nota 200. at "Gf. Pe. Manuel Valenga, 07. et 9-8. Ihidem, ef. tambim José Augusto Alegia, Histéria da Capeta e Colégio dos San- tos Reis de Vila Vigos, Lis boa, Fundagio Calouste Gulbenkian, 1983, p. 4 Esta recomendagio mostra-nos que desde esta altura os cantores da Capela Real eram também empregues na execugio de miisica profana na corte, juntamente com os tangedores da camara, especializados nos instrumentos da miisica baixa. Os cantores deveriam evitar «cantar de lingua», ou «de desvai- ramento de boca, mas somente cantem de papo», ou seja, deveriam aprender a cantar com voz de peito, e ndo com voz de garganta, ¢ nfo deveriam também «tomar os cantos mais altos dos que os folgadamente os podem levarm, ou seja entoar o canto numa tessitura mais aguda do que a que fosse c6moda para as suas vores. Dever-se-iam conhecer as vozes dos capelies, quais as que serviam para cantar alto, quais para cantar contra, ¢ quais para tenor (as trés vozes da esc polifénica no século XV). oO O rei preocupa-se ainda com as vozes que melhor se fundiriam entre si, recomendando «que se conhega quais entre si nas vozes sio melhor acorda- dos», porque «ainda que sejam boas, entresi nose acordam bem, e outras que ambas juntas fazem grande avantagem», ¢ refere além disso a necessidade de os cantores articularem o texto com clareza. Fala também de «canto feito» ede =descanto», referindo-se obviamente a técnica de dobragem polifénica improvi- ‘sada sobre uma melodia dada conhecida por descante ou faburdao, pratica cuja generalizagaio na Capela Real podera ajudar igualmente a explicar a auséncia de fontes de polifonia musical escrita. Dado que essa pratica é muito caracteris- tica da miisica inglesa da época, nao é de excluir aqui a influéncia das ligagoes nesta altura existentes entre a corte de Portugal ¢ a corte de Inglaterra Q regimento de D. Duarte poderd ter sido também adoptado nas capelas musicais privativas dos principes e de alguns grandes senhores, que surgem em ‘Portugal a partir dos finais do século XIV. Segundo Fernio Lopes, por exemplo, Nuno Alvares Pereira, «trazia mui honrada capela ¢ guarnida de ornamentas ¢ vestimentas e bons clérigos ¢ cantores os quais sempre eram prestes»'. O citado Livro dos Conselhos indica que os infantes D. Pedro e D. Fernando, irmaos de D. Duarte, tinham cada um ao seu servigo treze “Gapelied eamrores € oito mogos de capela, quatro menestréis de charamelas, quatro de outros instrumentos ¢ quatro trombetas. Sobre o infante D. Fer- nando (1402-1443) dizo cronista Frei Joo Alvares que «Tinha mui ricamente ‘ornamentada sua capela de muitas vestimentas e bons corregimentos, segundo © costume de Salisbury, servida continuadamente de muitos sacerdotes ¢ cantores». O mesmo cronista escreve ainda que «Na capela andava um livro onde estava escrita a ordenanga de quando haviam de fazer os oficios de contraponto € de cantochio, e quando com orgios e pregagdes». Do testa- s¢ um livro de canto de érgao, ou seja de isboa, Em 1437, na expedigao militar a Tanger de iveiro, o mesmo Infante ;companhar do tangedor de 6rgios Joao Alvares, o qual parece ter ensinado a sua arte a outros trés corganistas, Leonardo, Rui Martins ¢ Frei Afonso, que viriam a ser contratados por D. Afonso V para a Capela Real”. Um documento da Chancelaria do rei D. Afonso V, datado de 1453, regista 0 contrato do mestre de drgios (organista ou organeiro), Manuel Pires, 0 Rombo. Cerca de 1454, reinando em Inglaterra Henrique VI, 0 monarca enviou ali o seu mestre de capela Alvaro Afonso a fim de obter uma cépia do regulamento ou «ordenanga» da Capela Real inglesa, o qual foi fornecido pelo dedo William Say ¢ ainda hoje se conserva na Biblioteca Publica de Evora, embora ignoremos se e até que ponto foi adoptado na Capela Real portuguesa. © mesmo Alvaro Afonso foi autor de Vesperae, Matutinum, & Laudes cum Antiphonis, & figuris musicis compostas para celebrar a tomada de Arzila em 1471, Masestas obras perderam-se, assim como se perderam as obras dos seus sucessores na Capela Real Gomes Aires (1 1454), Jodo de Lisboa (/7 1476) ¢ 0 ja citado Tristano de Silva. Do reinado de D. Joao II surgem-nos testemunhos da utilizagao de charame- las € sacabuxas na igreja, além do drgio. Mas as primeiras indicacdes que possuimos sobre a existéncia de drgios e de organistas provém do segundo quartel do século XIV. Em 1326 a recepgaio na Sé de Braga do novo arcebispo, D. Gongalo Pereira, contou com a participacao de Mestre Afonso, «misico dos _Grgdos». Em 1477 0 Sinodo da mesma arquidiocese, reunido na Sé do Porto, entre outras determinagdes relacionadas com a correcta execugtio da musica linirgica, estabeleceu que tanto o Gloria como o Credo da missa deveriam ser cantados € no tocados ao érgio, fixando multas para os cantores € 0 orga- nista que no cumprissem essa determinagao. Sabemos igualmente que em 1337 havia na Sé de Coimbra um mesire de Srgios de nome Estevéo Domingues ¢ que em Lisboa, em 1374, o mesmo oficio era exercido na Igreja de S. Nicolau por um tal mestre Garcia, enquanto que em Evora a primeira noticia conhecida sobre um organista da Sé, de nome Cristiano, data de 1474', "Ch Pe, Manuel Valenga, i pp 82 Pelo que diz respeito ao ensino musical, refira- ; anos depois da fundaco dos Estudos Gerai ‘TS Tibras anuai 0 professor de Musica, um décimo do que poderia receber um lente de Direito, o que reflecte a pouca importancia dada ao ensino musical , no Ambito da Universidade. De facto a historia desta cétedra de mi permanece mergulhada na obscuridade até is44,Juata em que foi nomeado para a ocupar o espanhol Mateus de Aranda, 0 primeiro titular desse cargo de quem conhecemos o nome. Bibliografia sugerida ALEGRIA, José Augusto, 4 problemética musical das Camtigas de Amiga, Lisboa. Fundagio Calouste Gulbenkian, 1968 ALEGRIA, José Augusto, O ensino e prética da miisica max Sés de Portugal (da Reconguista aos fins do século XVI), Lisboa, Instituto de Cultura ¢ Lingus Portuguesa, 1985,

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