A ORIGEM DA DESIGUALDASDE ENTRE OS HOMENS – ROUSSEAU
À medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração
entram em atividade, o gênero humano continua a domesticar-se, as ligações se ampliam e os vínculos se estreitam. Os homens habituaram-se a reunir-se diante das cabanas ou ao redor de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a distração e sobretudo a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e arrebanhados. Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser olhado, e a estima pública passou a ter valor. Quem cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais hábil, ou o mais eloqüente, tornou-se o mais considerado; e esse foi o primeiro passo para a desigualdade e, ao mesmo tempo, para o vício: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro, a vergonha e a inveja. A fermentação causada por esses novos germes produziu, por fim, compostos funestos à felicidade e à inocência. Assim que os homens começaram a apreciar-se mutuamente e se lhes formou no espírito a idéia de consideração, cada um pretendeu ter direito a ela e a ninguém foi mais possível deixar de tê-la impunemente. Saíram daí os primeiros deveres de civilidade, mesmo entre os selvagens, e por isso toda afronta voluntária tornou-se um ultraje porque, junto com o mal que resultava da injúria ao ofendido, este nela via desprezo pela sua pessoa, frequentemente mais insuportável do que o próprio mal. Eis como, cada um punindo o desprezo que lhe dispensavam proporcionalmente à importância que se atribuía, as vinganças tornaram-se tremendas e os homens sanguinários e cruéis. Aí está precisamente o grau a que chegara a maioria dos povos selvagens que conhecemos e, por não ter distinguido suficientemente as idéias e observado como os povos já estavam longe do primeiro estado de natureza, inúmeras pessoas apressaram-se a concluir ser o homem naturalmente cruel e ter necessidade de polícia para abrandar-se. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: Coleção os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 263-5.