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[Rite responds “Por Deus pois entdo nto erd mais sablo do fem comands tri egies”. Aug eceveu verox conta Al ®, © qual observou: “Calar-me-ei; nao é 0 nao é prudente rever C4 pode prostever” E inham ambos ruse, pols Dione wee mga igual Filoxeno na poesia nem Plato na filosofa, condenou um a0 hos forgados e vendeu o outro como escrave nai Capitulo VIL Da arte de conversar condenou um aos Iha de Egina, £ costume de nossos tribunais condenar alguns para exemplo dos ou- tros. Condens-los unicamente porque erraram seria inepto, como diz Plato, (© que esta feito nao se desfaz; mas é para que nao tornem a errar ou a fim de que os outros atentem para o castigo. Nao se corrige quem se enforcas corrigem-se os demais com ele, Eu fago a mesma coisa. E certo que os meus cerros sio naturais e incorrigiveis, mas assim como os homens de bem ofere- cem-ao povo 0 exemplo do que este deve fazer, eu os convido a nao me imitarem: “No vedes como o filho de Albo vive mal e como Barro se tornou miserdvel? Bom exemplo: que vos ensine a no dissipar vosso patriménio”."” Publicando e criticando minhas imperfeicdes, ensinarei alguém a temé-las. ‘As qualidades que mais aprecio em mim, mais se honram em me criticar do que em me elogiat. Eis por que volto amitide a isso, e tanta vez me demoro | “4 no assunto. Mas nio é possivel tudo contar de si proprio sem que algum prejuizo advenha: acreditam no mal que dizemos e duvidam do bem. Nao sei se haverd alguém como eu que mais se eduque contrariando 0: modelos do que 0s imitando, ¢ deles fugindo mais do que os seguindo. A ~ essa espécie de disciplina referia-se Cato, quando disse que 0s sensatos aprendem mais com os loucos do que estes com aqueles. E Pausanias conta ‘que um velho tocador de lira tinha por hébito mandar seus discipulos ouvi- rem um mat miisico que morava em frente, a fim de que aprendessem a odiar as desafinagdes e os compassos errados. O horror & crueldade incita-me mais a cleméncia do que o faria um modelo de generosidade. Um bom picador no corrige melhor minha maneira de montar a cavalo do que um procura- dor ou um veneziano. E um vieio de linguagem, mais do que um falar cor reto, emenda o meu modo de exprimir. Todos os dias a tola conduta dos outros me adverte e aconselha, © que magoa impressiona e desperta mais do que o que agrada. O tempo em que vivemos s6 nos corrige 4s avessas, ‘mais por desacordo do que por acordo e mais por divergéncia do que por semelhanga. Aprendendo mal com os bons exemplos, valho-me dos maus, by enatantae Horicio, Stirs, I iv, 109. (N. da E.) non Rot Asys* I, vii, Dos inconvenientes das grandezas ne por me tornar vel quanto os s janto eram moles, Zo brando quanto eram. tio bom quanto eram maus. Mas a tarefa é irrealizvel. mais proveitoso e natural exercicio de nosso espirito é, a meu ver, sagdo. f-me a sua prética mais agradavel do que qualquer outra, Bi © ouvido ou a fala. Os atenienses e os romanos tinham esse exercicio nde conta em suas academias. Em nosso tempo os italianos ainda ti- vm proveito dos restos que conservaram, como se vé da comparagio so talento como deles. A frequentagao dos livros € uma atividade 2 fraca, que nao entusiasma, enquanto a conversacao ensina e exerci rnesmo tempo. Se converso com um espirito forte, e rude discutidon, rta-me, fere-me & direita e & esquerda e suas ideias sugerem as minhas. xe, 0 amor-préprio, a atengio excitam-me e elevam-me acima de mim 1. O acordo é, na conversacio, qualidade bem aborrecida. Mas assim > nosso espirito se fortalece na convivéncia com os espititos rigorosos tos, também se empobrece e degenera pelo comércio com os vulgares tios, Nao ha doena que tio facilmente se espalhe. Sei por experiéncia 1 custa. Gosto de discutir e conversar, mas é com pouca gente e para ‘oveito, Pois servir de espetéculo aos grandes e fazer exibigao de espi © coisas que nao considero recomendéveis em um homem de bem. tolice € péssima qualidade, mas nao a poder suportar e moer-se por asa, como me acontece, é também uma doenca que nada fica a dever Bo que quero criticar em mim, agora. tro em conversa e discuss com grande liberdade e facilidade, tanto uuanto as opiniées encontram em mim terreno pouco propicio a seu olvimento em profundidade, Nenhuma afirmacao me espanta, nenhu- nga me fere, por contraria que seja as minhas. Nao ha fantasia, por e extravagante, que no me pareca compativel com as produces do. > humano. Nés, que privamos a nossa inteligéncia do direito de julgar, ‘mos sem antipatia as ideias alhcias e damos-Ihes ouvidos embora niio emos. E, em estando completamente vazio um dos pratos da balanga cile o outro mesmo com hist6rias de mulheres desfrutaveis. cho desculpavel preferirem-se os niimeros impares; a quinta & sexta e ser 0 décimo segundo ou décimo quarto & mesa a ser o décimo ter ‘e, quando em viagem, vejo de bom grado uma lebre a correr a0 longo sinho do que a atravessé-lo; calcar primeiro o pé esquerdo a calgar 0 Todas essas bobagens em que acreditam merecem a0 menos que s¢ ‘i, Para mim pesam mais do que nada, mas ainda assim pesam alguma mer coisa, Em matéria de peso, as opinides do vulgo, embora sem fundamento, Importam mais do que o nada ¢ quem as desdenha totalmente, em querendo 10, peca por obstinagao. A contradigao das opiniGes mio xalta, apenas me fornece oportunidades de me exercit evitar a supersti Nilo gostamos de ser corrigidos, e qualquer observagao nesse sentido deve fazer-se em tom de conversa. Nao procuramos saber se tepelir; em lugar de acolhé-la, arreganhamos os dentes. A mim seria desa- igradivel que meus amigos me criticassem com rudeza: “és um tolo, estas a sonhar”; entretanto, gosto que sejam sincetos e que suas palavras exprimam justa e sim como a ‘exatamente seu pensamento. Cumpre fortificar os ouvidos contra o som li- sonjeiro das palavras cerimoniosas. Aprecio uma convivéncia e familiarida- | dle fortes e viris, uma amizade feita de aspereza e energia, que se desenvolva ‘como 0 amor, com mordidas e arranhées. Nao sera bastante vigorosa e ge- nerosa, se nao for algo brutal, se se mostrar demasiado educada, artificial, contrafeita: “Nao ha conversagao sem contradigao”.'** A mim, quando me contradizem, despertam-me a atencao, nao a c6lera; aperto meu interlocutor tro partido de seus argumentos. A busca da verdade nio deve ser 0 alvo. | «le ambos os contraditores? Que responder, se a célera toma conta do espi- Fito © 0 turva logo de inicio? Seria titil que se fizessem apostas nas discussdes, ‘apostas que seriam ganhas por quem tivesse razo. Constituiriam testemu- thos preciosos das nossas vit6rias ou derrotas e nos obrigariam a cuidar de nio ouvir nosso eriado advertir-nos de quando em vez: “no ano passado, ceustou-vos cem escudos o terdes sido ignorante ¢ teimoso vinte vezes”. Aco- Iho e festejo a verdade, venha de quem vier; rendo-me com alegria, entrego- Ihe as armas, vencido de antemao ao avisté-la de longe. E se nao o fazem com demasiada agressividade, aceito quaisquer criticas a meus escritos; cor- rigi-os mais de uma vez, antes por cortesia do que por aché-los errados; gosto de encorajar as pessoas a me criticarem livremente e procuro recom- ter ae eho aoc eed intial ederat ects darita homens de minha época a pensarem de igual modo; no se animam a corri GS outros porque’ndo tém a coragem de suportar que os corrijam; ¢ sua) linguagem, quando em presenga uns dos outros, carece de franqueza. Tenho tanto prazer em serjulgado e apreciado, que me é iniferente a mancica por que. fazem. Minhas ideas sio amide tio contraditérias que se condenam Sozinhas e pouco me importa que outra as condene também, tanto mais quanto dou & critica uma importancia relativa, Mas aborrece-me quem a: 1% Cieero, De finibus, vii. (N. da E.) b {equ na atitude superior (como alguém que conhego) e se ofende se niio 0 indo-se Sécrates acolher sorridente as observagdes que the faziaim, dizer que era por causa de seu valor e porque vencia sempre. Acti: tanto 0s reparos como pretexto para conquistar novas glérias, Na le, nada nos torna a sensibilidade mais delicada do que o valor que 10s ao adversario ¢ o desprezo em que ele nos tem; por isso, nem jue prudéncia, deve 0 mais fraco aceitar de bom grado as criticas que 1 fortalecam. No que me diz respeito, procuro mais a conviveneli se mostram severos do que a dos temerosos. f prazer insipido € 108 sete 1es recomendava a seus filhos que nao fossem reconhecidos a queit asse, Muito mais me orgulho com a vit6ria obtida sobre mim mesmo » no ardor da discuss4o, me curvo sob 0 peso das raz6es do meu tio, do que com a sua dertota se se revela fraco, Em suma, recebo € 5dlos os golpes leais, por mais fracos que sejam, mas suporto com! ade aqueles cuja forma deixa a desejar. Importa-me pouco 0 asstinto ate, as opinides emitidas sao-me indiferentes, bem como a vit6riil ‘eum dia inteiro, se a discussio se proc ‘nos a sutileza ¢ 0 Vigor do que a ordem nas ideias, essa ordem que entre os pastores e caixeiros, mas nao entre nds. Sao por vezes inde 0 mesmo fazemos, mas suas impaciéncias no os afastam do asst ial tratar com gente que nos admira sempre e sempre sar com ordem. Intere am: ccussio prossegue e, se falam sem aguardar sua vez, a0 menos entell= Qualquer resposta me satisfaz se vem a propésito, mas quando io se perturba e se torna desordenada, abandono o assunto, prendd= yma, indiscretamente, e ponho-me a discutir com uma malicia ¢ um idade que, a0 depois, me envergonham. E impossivel discutir de ‘om um tolo, E no € apenas, entio, meu julgamento que se corrom mbém minha consciéncia. discusses deveriam ser regulamentadas como outros crimes verbais, s vicios suscitam ¢ acumulam em nés, governadas pela célera! Goe 9s por hostilizar os argumentos e acabamos inimigos dos homens! SO mos a discutir para contraditar, e acontece, em meio as contradighes as, perder-se e aniquilar rofbe tal exercicio aos espiritos ineptos e malformados. Por que bus srdade em companhia de quem nao tem capacidade para tenti-lo? prejudica o assunto discutido, quando o deixamos um momento de fim de acertar 0 método de traté-lo; nao me refiro aos métodos esco. © artificiais ¢ sim aos meios naturais, peculiares as inteli e a verdade. Por isso Plato, em sua Repl clas sa dias, Que se verfica de outro modo? Cada qual puxa para seu lados perde-se (0 do acess6rio, Ao fim de uma hora de dispue se sabe 6 que se procura. Um se distancia, outro se desvias um se de vista o essencial na con wai peri siasmo, nao entende o que se Ihe objeta; cada qual pensa em si somente, € nilo.em nés. Ha quem, sentindo-se fraco, tudo confunda de entrada, tudo baralhe, tudo recuse; ou finja concordar, afetando, por ignorancia e despeito, um orgulhoso desdém ou uma estipida humildade, Outro, conquanto fira, ilo se importa se se descobre. Outro, pesa as palavras € as toma por argue mentos, Outro faz valer a voz ¢ os pulmdes; ou conclui contra si mesmo. E hi quem nos ensurdega com introitos e digressbes inieis. E hd também quem se arme de injtirias e levante objegdes sem fundamento para se libertar da ‘companhia ¢ da conversagao de um espirito que o perturba. Outro enfim nao raciocina de modo nenhum, mas envolve-nos em uma dialética de clausulas a uma palavra, outro a uma analogia. Outro, ainda, no auge do entu ¢ férmulas. Ora, quem nao ha de desconfiar da ciéncia, “das letras que nada cu- m”,! e duvidar que delas se tire algum resultado sério, dado 0 uso que wemos delas? A quem deu, a l6gica, inteligéncia e juizo? Que é feito de suas promessas? “Nao ensina nem a viver melhor nem a bem pensar.’ Hayera mais confusdo no palavrério das regateiras do que nos discursos dos profissionais? Preferieia que um filho meu aprendesse a falar antes nas taber- nas do que nas escolas de eloquéncia. Escolhei um professor de eloquén eonversai com ele. Por que motivo nao se contenta com fazer-nos sentir a sua superioridade nessa arte, com deslumbrar as mulheres, ¢ os ignorantes como nds, mediante a admirdvel preciso de suas razOes e a beleza de seus discursos? Por que nao se satisfaz com dominar-nos e persuadir-nos a seu talante? Por que razao esse homem tao avantajado em saber ¢ talento mis- tura a suas possibilidades naturais, injérias, insultos € furores? Que se des- faga da toga e do latim, e nao nos encha os ouvidos com Arist6reles mu e cru, 0 tomareis por um de nés, ou menos ainda. As combinagdes e requintes de linguagem com que nos aborrecem semelham-se a passes de pelotiqueiros; sua sutileza vence nossos sentidos mas ndo nos abala a convicgao; fora de tis peloticas nada fazem que ndo seja vulgare vil. E nao é porque sio sibios ue sio menos tolos. Amo ¢ honro o saber, bem como os que © possti ‘empregado com critério € a mais nobre e poderosa aquisicio do homem, Mas 1» Seneca, Epistolas morais a Luctlio, LIX. (N. da E.) © Cleero, De fimibus, xix. (N. da E.) queles (¢ so em niimero infinito) que nele assentam sua capacidade ¢ seu ox, naqueles cuja inteligéncia se encontra inteira na meméria (*abrigados sombra alheia”, como diz Séneca),8* que nada podem sem seus livros, et sto mais ainda que a imbecilidade. Em minha terra, nesta época, a tbedoria endireita as bolsas mas s6 raramente melhora os espiritos; se estes io obtusos, sufoca-os com sua massa informe € indigesta; se sio agudos 5 det tio sutis que os esgota. E coisa sem qualidade préprias utilissimo 2ess6rio As inteligéncias bem formadas, mas pernicioso is outras, ou antes, reciosissimo, porém de custo elevado. Em certas mos é um cetro e noutras chocalho do bobo do rei. Mas passemos adiante. Haverd mais bela vitéria do que mostrar ao adversério que nto nos ode vencer? Quando 0 assunto vence, vence a verdade; quando ganham a dem eo método, ganhamos nds. Acho que, em Plato e Xenofonte, Séera= 's discute mais para os participantes do que pela discussio mesma, ¢ mais ara instruir Eutidemo e Protégoras acerca de suas préprias tolices do que € sua arte. Qualquer assunto serve de pretexto, porque seu objetivo esti xenos em elucidar do que ser iti, isto esclarecer os espiritos que sonda¢ xercita. A caca é de nossa algada, nifo é desculpavel que a conduzamos mals uanto a errar 0 golpe, outra coisa. Nao esta, como dizia Demécrito, en zrrada no fundo de um abismo; antes se eleva ao infinito até se tornar co- hecida unicamente de Deus. © mundo nio passa de uma escola de investi aco. Nao ganha quem corre mais, mas quem corre melhor. E tanto pode izer tolices quem diz. a verdade como quem mente, pois aqui nao se trata co assunto e sim da forma. Quanto a mim, olho igualmente para o contetido como para o continente, tanto para 0 advogado como para a causa, seguin= o nisso o conselho de Alcibfades. Todos os dias divirto-me com ler autores, sm cuidar do que sabem, analisando-Ihes a maneira e no o tema. Ocorre- ne também procurar entrar em relagdes com dado espirito famoso, nao ara que me ensine, mas para o conhecer. Todos podem dizer verdades, mas izé-las com ordem, sensatez e pertinéncia poucos o fazem. Por isso no me fendo com o erro que vem da ignorancia e sim com a inépcia. Rompi varias egociagdes, titeis para mim, s6 por causa da estupidez das contestages aqueles com quem eu negociava, Nao me irrito sequer uma vez por ano ‘om as faltas de meus subordinados, mas no que concerne & burrice ¢ a tei- rosia de suas desculpas, e & imbecilidade delas, diariamente me aborrego ‘om eles, Nao entendem o que Ihes dizem, nem atinam com o porque; e de ‘gual modo respondems é de desesperat. Somente outra cabega pode impres- sionar a minha e acomodo-me melhor com as insuficiéncias dos meus do que com sua audécia, impertinéncia e estupidez. Que fagam menos, mas alguma coisa que saibam fazer. Vivese na esperanga de excitar-thes a vontade, mas nada ha que arrancar de um pedaco de pau. Talvez, entretanto, julgue eu as coisas diferentes do que sio. Fis por que nha impaciéncia e confesso que & uma falha, tanto em quem tem faniio como em quem nao a tem, porque é sempre rispides tirdnica no sue portar maneiras diferentes da nossa, e nao ha maior tolice, nem mais absur= da, do que impressionar-nos e irritar-nos com as tolices alheias. Em geral isso nos aborrece a nés mesmos, € o filésofo antigo nunca houvera perdido ‘\ oportunidade de chorar se se olhasse para si mesmo. Mison, um dos sete sabios, cujo espirito tinha algo de Timon e de Demécrito, interrogado por que se ria sozinho, respondeu: “Exatamente porque estou a rir sozinho”. ‘Quantas tolices ouco dizer e responder diariamente! E quantas, em maior jnimero ainda, devem os outros ouvir de mim! Se mordo os labios para delas filo ris, que farao os outros? Afinal cumpre-nos viver com os vivos e deixar correr o rio sob a ponte, sem nos preocuparmos ou, a0 menos, sem nos en- colerizarmos. Pois nao deparamos com gente disforme, ou aleijada sem que ‘ios irritemos? A irritacdo provém antes do juiz que do crime. Tenhamos sempre em mente estas palavras de Platao: “O que considero errado, nao 0 considerarei por estar eu proprio em condigdes anormais? Nao serei eu 0 eulpado? Nao poder minha observagio voltar-se contra mim?”. Sabio ¢ dlivino preceito que fustiga o erro mais comum e universal dos homens! Nao, somente as censuras que fazemos uns aos outros como também as razbes € ‘urguumentos e os temas de nossas controvérsias podem voltar-se contra nés ¢ feri-nos. A esse propésito legou-nos a Antiguidade exemplos edificantes. Falou muito bem e agudamente quem disse que “cada qual aprecia 0 odor de seu esterco”.* Nossos olhos nao veem para tras. Cem yezes por dia vombamos de nés mesmos ao zombarmos de nosso vizinho; os defeitos que detestamos em outrem sdo ainda mais visiveis em nds e no entanto os admi- Famos com maravilhosa impudéncia sem perceber a contradicio. Ainda on- {om pude ver um homem inteligente e fidalgo zombar com graga e justiga de ‘outro que anda a aborrecer meio mundo com suas genealogias e parentescos eensuro Trata-se de Herdclito. Sobre as posturas opostas destas personagens diante da ‘eondigio humana, ver 0 ensao I |, “Sobre Demécrito e Heréclito”. (N. da E.) Uma formula parecida encontea-se em Erasmo, Addgios, I, iv, 2: “sus euique ropitus bene olet” (a cada umm cheira bem o prépri flato") (N. da E,) bh re tuase todos falsos (sao os que tém qualidades mais duvidosas que se abalan- tm com maior entusiasmo a tais pesquisas); mas ele proprio, se houvesse ‘parado em si, nao se acharia menos cacete em valorizar fora de proposito linhagem da mulher. Que infeliz.vaidade leva esse marido a fornecer armas sua propria esposa! Se nos pudesse entender, caberia dizer-Ihe: “Coragem! a nao achas bastante louca, excitas-Ihe ainda a loucura”.2" Nao quero ‘geri com isso que somente os puros tém o direito de criticar, pois entio io haveria criticos; ndo nego tampouco esse direito a quem exibe falha éntica & censurada; mas acho que, quando criticamos alguém, nao nos vemos poupar. E dever de caridade tentar arrancar dos outros um defeito, rida que nao 0 possa arrancar de si préprio quem o faz. Nao me parece nto dizer a quem me adverte de um defeito que também 0 encontro nele. por qué? Porque uma adverténcia justific4vel 6 sempre itil. Se tivéssemos om olfato, sentiriamos mais desagradavelmente os nossos maus odores ‘atamente porque so nossos. Sécrates era de opiniao que se alguém come- sse algum crime, juntamente com seu filho e um estranho, deveria comegar DF Se apresentar a0 carrasco e provocar sua propria puni¢ao; s6 depois ria 0 mesmo com o filho ¢ por tltimo com o estranko. Esse preceito pode trecer algo severo, mas quem se acha culpado deve ser o primeiro a entre. ir-se ao castigo da propria consciéncia. Os sentidos so nossos préprios juizes ¢ os primeiros a julgar-nos; como percebem as coisas pelos acidentes exteriores, nao é de estranhar que, em dos os atos da sociedade, haja sempre, em toda parte, quantidade de ceri- Onias em que as aparéncias desempenham papel importante e constituem parte mais eficiente dos regulamentos. Temos sempre que tratar com ho- ens, e nestes 0 que é tangivel se sobrepde ao que nio o é. Os que quiseram troduzit nestes iiltimos anos um culto exclusivamente contemplativo € ‘aterial,™* nao se devem admirar de haver quem pense que nao seria man- lo, se ja udu ve houvesse tornado, entre nés, instrumento de divisio € sc6rdias gracas a isso é que vai durando. O mesmo se verifica na conver cio: a gravidade, o traje, a condicao social de quem fala dio muitas vezes ‘dito a palavras vas e ineptass pois é de presumir que um senhor tio com ado ¢ temido tenha dentro de si alguma qualidade invulgar, ¢ que um mem que ocupa cargos tao importantes e se mostra tio insolente e altivo, ia mais talentoso do que 0 outro que o satida de longe e ninguém emprega. 2 Teréncio, Andra, IV, i, 9. (N. da E.) ™ Os protestantes. (N. da E.) E nio somente palavras, mas também os gestos ¢ i ¢interpretadas de modo lisonj n toda a aprovagio e defer itoridade de sua experiencia. Ouviram, viram, fizeram e enchem: scaretas dessas pes se dignam conversar soas sto not com outros, € niio receb cesmagam-nos com, os de exemplos. Gostaria de dizer-thes que o fruto da experiéncia de um cirurgiio ‘nlo consiste apenas em historiar suas operagdes, nem em lembrar que curou ro pestiferos e trés gotosos, mas em saber tirar da pratica maior perspi- ac em demonstrar que se fez mais habil em sua arte. Deve ser como um ‘concerto, em que nao se ouve o alatide, ou a espineta, ou a flauta, mas uma harmonia total, soma de todos os instrumentos. Se as viagens e 0s cargos 03 melhoraram, que o comprove seu espirito. Nao basta enumerar experiénciass é preciso ainda classificé-las e ponderar-Ihes o valor; cumpre examind-las de porto, analisé-las, a fim de extrair as conclusdes e as razdes que comportam. Nunca houve tantos historiadores. E sempre itil ¢ agradavel ouvi-los porque hos franqueiam 0 armazém de sua meméria, cheio de informacdes belas ¢ di &.no moment, 0 que buscames. O que queremos saber € se esses compila- dores ¢ narradores sao eles proprios louvaveis. ote Detesto toda espécie de tirania, tanto de palavras como de fatos. Rete- so-me contra as circunstncias vas que iludem nosso julgamento pelos sen- tidos; e observando atentamente esses homens que cumulam grandezas, ve- Fifiquei tratar-se na maioria dos casos de gente como outra qualquer ¢ “0 hom-senso se encontra raramente em pessoas de t2o alto coturno”.2 Nao Faro, porque empreendem coisas mais ousadas e se expoem mais, julgamo-las evemo-las menores do que so, pois ndo suportam entio o fardo que tentam carregar. E preciso que o carregador tenha mais vigor do que pesa a carga, pois assim nos sugere que pode carregar mais e que nao esta dando tudo. E ‘© que sucumbe ao peso revela a fraqueza de seus ombros. Dai verem-se tan= {05 tolos entre os sabios, gente que teria dado bons criados, agricultores, artfices. Para tanto nao careceriam de habilidade natural, A ciéncia é pesada dlomais para eles ¢ os esmaga. Seu engenho e vigor nao bastam para que possam mostrar e distribuir, empregar e manejar tio rico e poderoso mate- rial, S6 as naturezas fortes sio capazes de tal esforco, ¢ elas so raras. Os fracos, diz Sécrates, em a exercendo, corrompem a dignidade da filosofia, ‘Torna-se cla intitle viciada quando entregue aos incapazes, os quais a estra- jam e prejudicam, “Como um macaco que um menino vestiu de vestes dle s de elogios. Trata-se por certo de um grande auxilio na vida, mas nao Juvenal, Sétiras, VII, 73. (N. da F.) ‘da para fingir de homem, mas dei ‘ou 0 traseiro descoberto, para alegria os convivas. Assim, 05 que nos regem e governam, os que tém o mundo nas miios, devem possuir apenas uma inteligéncia vulgar e poder o que podemos; estiverem muito acima de nés, ficardo muito abaixo, Prometem mais, ‘go devem mais, Portanto, o siléncio serve-Ihes nao s6 para assumirem uma itude cerimoniosa ¢ grave, mas também para se precaverem ¢ auferirem toveitos da situagao. Megabizo fora visitar Apeles e permanecera muito mpo sem dizer nada. Tendo-se decidido a discorrer, em seguida, acerca das bras do pintor, recebeu esta rude reprimenda: “Enquanto te conservaste tlado, eras soberbo com teus colares e tua magnificéncia; agora que te pu- ste a falar, até os meus aprendizes se riem de ti”. Seus adornos, sua condi: io social ndo Ihe autorizavam uma ignorancia igual a do vulgo e a falar eptamente de pintura. Devera ter-se mantido silencioso para conservar a tesungdo de capacidade que seu exterior sugeria. A quantos espiritos me- ‘ocres um ar taciturno e distante tem servido de marca de prudéncia ¢ ca- acidade! As dignidades e os cargos diio-se necessariamente mais por acaso 2-que pelo mérito; mas nao temos razao de censurar os reis. E ainda espan- 'so que acertem com tio reduzidas possibilidades de informagio. “A maior salidade dos principes é conhecer os que empregam”,2 pois, nao Ihes ndo dado a natureza uma vista suficiente para alcancar tanta gente, ¢ dis- ‘mir os melhores, ¢ ver dentro de cada um seu valor préprio, sio forcados escolher por intuigdo, as apalpadelas, pelo sangue, pelas riquezas, pelo ber, pela voz do povo, indicios, todos, bem fracos. Quem encontrasse cio de julgar os homens com razio e justiga, asseguraria uma perfeita or- tnizagio dos setvigos piblicos. Mas, ouve-se dizer “mas ele deu conta do cado”. E uma razio, mas nao basta, pois ha uma maxima que diz: “néo deve julgar 0 valor das ideias pelos resultados”. Os cartagineses puniam us capitaes quando julgavam mas as medidas tomadas, ainda que o resul- do final as cortigisse. © povo romano recusou muitas vezes as honras do iunfo a generais que haviam alcancado grandes e titeis vit6rias, por consi- star que seu procedimento nao correspondia a sua sorte. Vé-se no raro sste mundo 0 acaso comprazer-se em diminuir nossa presuncao, como que tra mostrar quanto pode. Nao podendo tornar avisados os incapazes, tor- +08 felizes, em oposigéo ao que determinaria a virtude. Amitide favorece 2 Claudiano, Contra Eutrépio, 1, 303. (N. da E.) 2" Marcial, Epigramas, VII, xv. (N. dE.) ‘as empresas que tramou sozinho, Por isso vemos diariamente 05 mais simples dentre nds levar a cabo geandes cometimentos pablicos ou particulates, O porsa Siranez respondeu a alguém que se espantava com a ma situagio de seus negécios, embora tao sensatos fossem seus planos, que s6 podia respon= sabilizars inabil e feliz a que aludi, poderia dar a resposta inversa. Na verdade, as coisas do mundo fazem-se, em sua maioria, por si mesmas, “o destino abre- -Ihes 0 caminho” 2” O resultado justifica muitas vezes uma conduta inepta; por estes; quanto ao resultado, dependia do destino. Essa gente nossa intervene é quase um habito rotineiro e as mais das vezes provocada pelos usos e costumes e nao pela razdo. Espantado com as consequéncias de luma empresa capital em nossa época, procurei saber, dos que a levaram a cabo suas razbes e meios; verifiquei que eram vulgares. Ocorre que os mais vulgares sao os mais eficientes e seguros na pratica, conquanto nao sejam os mais sedutores. Que fazer, se os que tém menos valor so os mais convenien- tes? E se os mais baixos e mais gastos melhor se adaptam aos empreendi- ‘mentos? Para que o Conselho dos Reis conserve sua autoridade é preciso que (05 profanos nao assistam As sessGes. Quem quiser que se mantenha intacta sua reputagao, deve acaté-lo sem Ihe discutir as determinagdes. Quando ine consulto, esbogo apenas o tema de minhas reflexes € o encaro superfi- clalmente nos seus primeiros aspectos; 0 principal da tarefa, tenho por hé- © bito confis-lo ao céu: “Deixa aos deuses o resto” 2"? A boa e a mé sorte sio, a meu ver, dois poderes soberanos. £ insensato pensar que a sabedoria humana possa desempenhar o papel do destino. Va 6a empresa de quem presume abracar causas e consequéncias e conduzir os {atos pela mao. Principalmente nas coisas militares. Nunca se viu na guetta tanta circunspegao e prudéncia como entre nés; sera porque temem perder-se minho e se reservam para a catéstrofe final? Vou mais longe, e sustento que a nossa prépria sabedoria e as nossas, deliberagdes so, as mais das vezes, guiadas pelo acaso. Minha vontade ¢ eu raciocinio pendem ora para um lado, ora para outro € muitos desses movimentos se produzem sem minha intervengao. Minha razio € sujeita a Inypulsos e agitacoes dirias e fortuitas. “Nada varia tanto quanto as dispo~ sigdes da alma; uma paixdo perturba-a, mas mudem os vento € OU & ‘arrastaré.”2!! Observe-se quem sio os mais poderosos nas cidades ¢ quem eme Eneida, Ml, 395. (N. da E.) Horacio, Odes, 1, ix, 9. (N. da E.) ™° Virgilio, Gedrgicas, 1, 420. (N. da E.) Yer —y ence tos negdcios. So em geral os menos habeis. Tem ocorrido que mulhe: Fes, ofiangas e loucos governem grandes nagées tao bem como os mais capa: zesi Entre os principes que triunfaram afirma Tucidides serem (08 grosseiros do que os sutis. Atribuimos entretanto a sua sabedoria os éxi tos que deveram ao acaso: “Se vos elevardes pela sorte hao de louvar-vos 0 talento” 2" Isso demonstra que os acontecimentos sao frageis testemunhos de nosso valor e capacidade. sih'sauee Dizia, acima, que basta considérar um homem de elevada situacdo so- ial; ainda que o julgassemos sem yalor trés dias antes, insensivelmente pas- samos a imaginar que devia ter capacidade e persuadimo-nos, ante sua con~ digo presente e sua importincia, de que seus méritos também se amplia- ram. Apreciamo-lo nao mais segundo o seu valor, mas de acordo com as suas prerrogativas. Que a sorte mude porém, que ele caia e volte a misturar- -se a multidao, logo indagaremos com espanto por que motivo se guindara to alto, Ditemos: “Seré 0 mesmo?” “Era pois tudo o que sabia?” “Estava- ‘mos em verdade em boas mios!”. E 0 que tenho visto seguidamente. E até no teatro a grandeza nos impressiona e ilude. © que admiro eu préprio nos reis sio os admiradoress diante deles tudo deve inclinar-se, salvo a inteligén- cia, pois nao foi & razio que ensinei a curvar-se, foi aos joelhos. Tendo al- guém perguntado a Melanto 0 que pensava de uma tragédia de Dionisio, respondeu: “Nao a vi, a énfase ofusca-a”, Os que julgam os discursos dos grandes em geral deveriam dizer também: “Nao os ouvi, ofuscavam-nos a gravidade e a majestade de suas palavras”. Antistenes aconselhou de uma feita aos atenienses que empregassem seus burros nos trabalhos da terra, como faziam com os cavalos. Responderam-lhe que 0 animal nao nascera para tais servigos, ao que ele replicou: “Nao faz mal, basta decreté-los pois por mais ignorantes ¢ incapazes que sejam, nio se tornam logo muito dig- nos do encargo os homens a quem entregais a direcao da guerra?”. Dai o costume, comum a tantos povos, de canonizar os reis que elegem; nao se contentam com honré-los, adoram-nos. No México j4 nao ousam olhé-los de frente mal terminam as cerimdnias da sagracao. Como se o tivessem di- vinizado pela realeza, entre os juramentos que thes fazem prestar de mante- rem a religido, as leis, as liberdades, de serem valentes, justos urbanos, obrigam-nos a prometer que o sol continuaré a brilhar, que havera chuvas ‘em tempo oportuno, que 0s rios seguirdo seu curso regular e a terra produ- rir as coisas necessarias a0 povo. ais comuns. % Plauto, Pseudolo, Ml, da E.) _ yyy — a“ F principalmente quando a Nejo acompanhada de grandezas e de popu laridade que desconfio da competéncia, indo assim de encontro a uma ten- déncia assaz espathada. £ preciso atentar para a vantagem de falar quando quer, de escolher 0 assunto, de intercomper ou desviar a discussio com autoridade, de se defender das objecdes alheias, com um simples movimento de cabega, um sorriso, um siléncio, diante de uma assisténcia que treme de respeito, Um homem de condigao social excepcional, dando sua opiniao dde uma questo de nonada que se discutia & mesa, assim comecou: 56 Jum mentiroso ou ignorante poderia negar que, ete. Bis um argumento filo- s6fico apresentado de punhal na mao. © Por principio considero também que nas discusses e conversas no devemos aceitar sem reflexao os ditos que nos parecem felizes. A maior par- te dos homens é rica de competéncia alheia. Pode ocorrer que uma pessoa e uma bela frase, uma resposta ou sentenga sem lhes perceber o alcance exato, Nao assimilamos tudo 0 que tomamos de empréstimo. Nao devemos ceder desde logo a um argumento, por mais belo que se nos afigure. Cumpre rofuts-lo francamente se estamos a altura de fazé-lo, ou bater em retirada sob qualquer pretexto para melhor ponderé-lo, examinando-o no sentido empregado pelo autor. Pois poderia, de outra maneira, acontecer que nos Jangassemos diante do ferro, aumentando a violéncia do golpe. Apertado acer © pelo adversério, e no tumulto da luta, empreguei nio raro réplicas que fo- tam muito mais eficientes do que esperara e que, na realidade, eu dera tio somente para ndo me confessar sem resposta. Quando discuto com um ad- -ersirio vigoroso, acontece-me também antecipa dorthe o trabalho de se explicar e procurando adiantar-me as ideias ainda imperfeitas que pretende exprimir, pois a ordem e a justeza de seu raciocinio auvertem-me e ameagam-me de longe. Com outros, procedo de modo con- tnirio, aguardo que se expliquem integralmente. Quando se atém a genera- lidades e acertam, cabe verificar se nao acertaram por acaso. Insisto paga que precisem sua opiniao, que digam como e por qué. As apreciagoes gerais, tfo ‘comuns, nada significa. Os que as emitem dio a impressio dessas pessoas {que satidam um povo inteiro em bloco, sem discriminar. Os que tem conhe- imentos reais, satidam pelos nomes, individualmente. Mas a empresa é ar- riseada, E tenho visto amitide espiritos mal preparados para a empreitada fazerem-se de perspicazes, anotando na leitura de uma obra o trecho mais elo mas 0 escolhendo to mal que, em lugar de realgar o talento do autor, sevelam sua propria ignorancia. Temos certeza de nao, errar quando excla- imamos “como € belo” apés a leitura de um trecho de Virgilio, e os espertos im fazem, Mas empreender segui-lo passo a passo ¢, através de j lo nas conelusdes, poupan- Iicidos ¢ pertinentes, mostrar como um eseritor se realiza, analisar as pala- vra frases, e os achados, nao é coisa da algada de qualquer um. “Deve- Wo somente analisar as palavras, mas ainda as opiniGes e os fundamen tos delas.”2 Ouso seguidamente tolos dizerem coisas acertadas. Resta saber se en- tendem o que dizem e de onde o tiraram. Muitas vezes nés é que os ajudamos ‘a empregar uma frase ou um argumento que nio sao de sua autoria; tém-nos em reserva ¢ 0s apresentam ao acaso; n6s é que Ihes damos importancia ¢ valor. Nés € que Ihes estendemos a mao. Para qué? Nao nos ficam gratos por isso € nao se tornam menos ineptos. Nao os ajudemos, portanto, deixemo-los soltos; manejam essas frases como gente que tem medo de se escaldars nao ousam tocé-las, nem mudé-las de lugar, nem aprofunds-las. Uma sacudidela bastaria para que as deixem cair, para que as abandonem, embora fortes ¢ belas. Sao boas armas porém mal encabadas. Quantas vezes fiz a experiencia! Mas se nos pusermos a esclarecé-las e confirmé-las, tirardo vantagem da nterpretagdo: “era 0 que queria dizer, afirmario. Era a minha ideia, se nao \exprimi assim foi porque me faltou a palavra”. Insistimos. f preciso alg xa malicia para corrigir esses vaidosos imbecis. A maxima de Hegésias (que * preciso nao odiar nem censurar, mas ensinar) tem sua razio de ser, porém 20 caso parece-me injusto e desumano socorter ¢ emendar quem o nao sabe 'proveitar. Que se enleiem e se embaracem quanto possivel para que afinal e conhecam! A tolice e a insensatez nao se curam com conselhos. Dessa cura pode-se lizer © que Ciro respondeu a quem o aconselhava a exortar seu exército res da batalha: “os homens nao se tornam valentes e guerreiros s6 pot vavirem uma boa arenga, como ninguém se torna imediatamente miisico s6 oF ouvir uma bela cangio”. E preciso uma longa e prévia aprendizagem, Jumpre-nos ter esse cuidado com os nossos; cabe-nos ensina-los e corrigi-los, ras ir pregar ao primciro sujeito que passa, esclarecer qualquer ignorante ue se encontre é prética que reprovo. Raramente o faco, mesmo nas minhas onversagdes, e prefiro susté-las a ter de corrigir como um mestre-escola. lio sei falar nem escrever para principiantes; e nas conversagdes de ordem sral de que participo, ou a que assisto, por falso e absurdo que seja o que 4ugo, nunca procuro contrariar ninguém; nem por palavras nem pot sinais {ada me irrita mais, porém, na estupidez, do que a satisfagio com que se sibe, maior do que poderia ter, com certa razo, a inteligéncia. E pena que 4 Cicero, Dos deveres, 1, XLI. (N. da E,) joe a.confianga vempre nosia e a audcia enchem os que «prudéncia nos protba a satisfa descontentes ¢ intimidados, as tém de alegria e seguranga. S40 sempre os menos capazes que olh ‘outros de cima e voltam da luta cheios de orgulho e disposicao. Nao raro a fatuidade da linguagem e a jovialidade que demonstram ja lhes do ganho de causa perante uma assisténcia em geral fraca ¢ incapaz de julgar a verda~ ira superioridade. A obstinagdo e a conviegio exagerada sio a prova mais evidente da estupidez. Haverd algo mais afirmativo, resoluto, descenhoso, nplativo, grave e sério do que um burro? Podemos também tratar, neste capitulo, acerca da conversa ¢ da discus- sito, dos propésitos trocados na intimidade, entre amigos que zombam e sgracejam uns dos outros. E um exercicio em que se compraz. minha vivaci- dade natural, ¢ se nao € to sério como aquele de que acabo de falar, nao € menos fino nem menos proveitoso. Era o que pensava Licurgo. No que me diz espeito, ponho nele mais liberdade do que sal e mais espirito de opor- tunidade do que imaginagao; ¢ suporto muito bem o revide, ainda que éspe- ro ¢ excessivo, sem me irtitar. Se quando me atacam no encontro com que responder de imediato, no me apego a respostas aborrecidas e frouxas, twimosamente; deixo passar, curvo-me de bom grado e aguardo ocasiio pro- picia para a desforra, Nao hé negociante que sempre ganhe. Entretanto, em suia maiotia, as pessoas mudam de cor e de voz em Ihe faltando forga; em ugar de se vingarem denunciam assim sua fraqueza e sua itrtagio. Com os [gracejos tocamos por vezes cordas secretas de nossas imperfeigies que, sere~ ‘namente, nao tocarfamos sem nos ofender; desse modo avisamo-nos tns aos outros de nossos defeitos. Hi outros jogos na Franca em que me aborrego mortalmente; violen- tos, grosseros, evam fatalmente s vias de ato. Tenho a pele sensvel ej vi tenterrarem dois principes de sangue real. f feio bater-se brincando.’" E ‘quando desejo julgar alguém pergunto-the até que ponto esta satisfeito con- sigo, em que medida o que pensa e diz o satisfaz. Procuro evitar que respon- dda com desculpas esfarrapadas: fiz, por brincadeira, “a obra foi tirada da forja antes de terminada” 2 nao levei uma hora a fazé-la, no a tornei a ver. J tais desculpas respondo: pois deixemos isso de lado e dai-me uma obra que vos represente bem e pela qual quereis ser julgado. E acrescento: Que ichais melhor nesta obra? Isso ou aquilo? A graga, a matéria, a fantasia, 0 nto a tei nq cont 2 Montaigne refere-se as justas.(N. da E.) ® Ovidio, Trista, I, vii, 29. (N. da E, ‘ocinio, © ; » do trab ber? Porgiie jo que habitual : nte tanto se erra na aprecia lho préprio como na do alheio. Nao somente pela afeieto aus erfere mas também por falta de compet ee por efeito do acaso, pode ultr ita tanto a afegao que |. A obra, por sua propri ‘apassar o autor. Quanto a mim nada ee avaliar quanto 0 os Préprio trabalho; considero os Ensaios ora ruins, com inconstancia e indecisio, Hi livros ites pelo ay (fo mas que nao valorizam os autores, ¢ bons livros a semelh; tarefas que envergonham 0 artifice. Posso eserever sobre as repras a ® comer ede bem-vesir eescrever de ma vontade; posso publicar ox edi, dde nosso tempo e as missivas dos principes que desempenharam missdes, fazer um resumo de um bom livro (embora todo a resumo de um livro se- tbsurdo) que venha a perder-se, € outras tantas coisas anélogas, Tals ae ovsr de grande ulidade para os péstzos, masa honra que po si auferir dependera unicamente da sorte. Boa re é ae Boa parte de livros famosos & Anos atris, lendo Filipe de Commines, © singular: anga de cer- s , bom autor por certo, notei essa ue & preciso nio prestar ao senhor tantos servigos que se torne impossivel encontrar uma recompensa adequada” A ideea& +1, mas nao é dele. Encontrei-a nao faz muito em Tacite daveis enquanto os podemos pagar; 1 2 Séneca diz também redores’ A ideia é lou- ‘05 favores slo “ além desse limite tornam-se odio- ca ‘Quem acha vergonhoso niio pagar, no deseja Eem Quinto Cicero encontra-se igualmente: “Nao pode ser © amigo quem no se ulgue quite conosco” ndo sua natureza, revelar um homem de saber e meméria, mas para + o que lhe pertence de fato, para apreciar a forca ea beleas de sen es. >, € necessario verificar o que é seu eo que nao é; e, nisto que nao é seu, e se lhe deve pela escolha, ordenagio e linguagem. Pode também ter do o assunto piorado a forma, como acontece muitas vezes, Nés 2stamos familiarizadas com os livros, vemo-nos embaracadns amavis ‘amos com alguma bela imagem em tm poeta recente, um forts a © em um pregador; ndo ousamos louva-los antes de se 0 trecho € deles ou nao. E até ld fico de pé atras. Acabo de percorrer de um félego a historia de Ticito (o que s6 rara- = me acontece, pois ha vinte anos nao dedico A leitura mais de uma # © assunto tratado pode, indo um forte argu- indagar de algum “Tac 0, Anais, IV, xvii (N. da.) "Seneca, Epistolas morais a Lucio, LXXXI. (N, da E.) * Quinto Cicero, Da peticzo do consulado, IX. (N, da.) Lee votroe AVE ey hom seguida). Ficlo a consetho de um fidalgo-que a Feanga muito, {unto pelo seu valor pessoal como pelos méritos que tem em comum com seis virios irmos. Nao sei de autor que junte aos fatos da histéria tantas onlderagdes acerca dos costumes e temperamentos dos individuos. Acre iio, no contedrio do que the parece, que, tendo de tratar da vida dos impe: fudores de seu tempo, to diversas e excepcionais em tudo, ¢ relatar s juntos e crucldades, tinha assunto mais interessante ¢ instrutivo do que se tlevesse falar de batalhas e revolugdes; por isso, quando passa rapidamente por cima de tao belas mortes, acho que nao tira delas todos os ensinamentos que receia fatigar-nos e entediar-nos com 0 set gue comportam. Dirse- {nimero, Essa forma da hist6ria 6, de muito, a mais itil, pois os movimentos jniblicos dependem principalmente do acaso e os particulares de nés m Tifito julga os fatos ocorridos, mais do que os relata; ha nele mais preceitos do que narrativas, Nao é o seu um livro de simples leitura, e sim de estudo © meditagio; tao cheio de sentengas que as encontramos a torto ¢ a direito. tuma mina de reflexes moraise politicas Giteis aos que governam o mundo. Aasenta-as sempre em razdes solidas e vigorosas, incisivas e sutis, no estilo Metado daquela época em que tanto se apreciava a afetagio que, se nio a tinham as coisas, tinham-na obrigatoriamente as palavras, Sua maneira de ‘eserever assemelha-se & de Seneca, mas parece mais densa, enquanto a de Séneca é mais viva. E bem adequada a uma situacao perturbada como a nossa de hoje. E dir-se-ia que é a ns que pinta e critica. Os que duvidam de suarsinceridade demonstram que as causas de nao apreciarem so outras realidade, Suas opinides sio sensatas e ele pertence ao melhor dos partidos que dividiam Roma. Lamento entretanto que tenha julgado Pompeu mais severamente do que os homens de bem que o conheceram, e que 0 coloque ao lado de Mario e Sila, considerando-o porém mais dissimulado. Indiseut: velmente as pretensdes de Pompeu a0 governo nao foram isentas de ambicio de desejo de vinganga, e seus préprios amigos reveavain que a vit6ria © levasse a ultrapassar certos limites e a praticar as crueldades e a tirania que ‘ historiador lhe imputa. Mas como nao se deve igualar a suspeita a evidlén cia, nao creio muito no que diz. Poder-se-ia considerar as narrativas de Tit cito verdadeiras e sinceras, em virtude mesmo de nao se adaptarem sempre com preciso a seus juizos, nos quais atende a ideias preconcebidas, qualdier {que seja 0 rumo tomado pelos fatos que conta. Aprova as erengas de set tempo e obedece assim ao que Ihe ordenavam as leis; nao ha portanto como ‘censuré-lo por ignorar a verdadeira religido. Isso é uma infelicidade, no sew dio um defeito. Procurei penetrar seus juizos, mas em alguns pontos nilo 0% a7 “Titeiramente, Assim no que diz Fespeito a carta que Tibério, velho e doente enviou ao Senado: “Escrever-vos-ei, senhores? Como vos escreverei? Ou niio Vos escreverei? Mas na hora atual os deuses e as deusas resolveram por cer= toa minha desgraca, pois sinto-a dia a dia mais aproximar-se”. Nao com: Preendo por que Técito vé nessas palavras a prova de que a conscignei de Tibério se enchia de remorsos. Lendo esse trecho nio tive essa impressao. Parece-me também pouco corajoso que, tendo de dizer que exerceu em Roma certa magistratura honrosa, se desculpe a fim de que nio se imagine gue 0 diz por vaidade. 6 humildade demais para uma alma de tal enverga- dura; nao ousar falar com franqueza de si, revela falta de coragem. Um es- Pirito franco e elevado, que julga sadia e seguramente, usa seus préprios exemplos como coisa alheia ¢ apresenta seu testemunho como apresentaria 0 de outra pessoa. E preciso desprezar as regras vulgares da boa educagao, quando se est a servico da verdade ¢ da liberdade. Nao somente ouso falar de mim mas ainda falar s6 de mim; e quando falo de outta coisa, engano-me, fujo ao assunto. Nao me estimo a ponto de nao poder distinguir-me e con- siderar-me como a um vizinhd ou devore. Tanto 6 erro nio ver até onde vai 2 préprio valor como dizer mais do que aquilo que se vé. Devemos amar a 2eus mais do que a n6s mesmos; conhecemo-lo menos; e no entanto falamog "Ele quando queremos. ano t aoe Se seus escritos podem levar-nos a perceber alguma coisa de sua natu: za, Tacito foi um homem reto € ‘corajoso, sem supersticdes e dono de uma lina generosa de fildsofo, Poderemos aché-loremeritio em suas afirmagdes, ‘omo quando conta que um soldado carregando um feixe de lenha teve as dos geladas ¢ coladas carga, ndo podendo desprendé-las desta por se rem separado dos bragos. O que nos diz de Vespasiano, 0 qual gracas a rotecao do deus Serépis curou em Alexandria uma cega untando-lhe os thos com saliva, € também exagerado, Mas ele faz entio 0 que fazer todos 5 historiadores que Tegistram nao apenas os acontecimentos importantes, as usualmente os boatos ¢ as fabulas populares. E seu Papel contar ¢ nao iticar, Esta parte cabe aos tedlogos e aos filésofos, que so diretores espi- tuais. Contudo, como disse Quinto Giircio, seu confrade ilustre: “convo ais coisas do que as que creio; por um lado nao ouso afirmar. aquilo de que twido e por outro no quero suprimir 0 que me narram”.2” E ‘outro disse: Mio vale a pena afirmar ou refatar, temos que confiar na tradigao”. 29 * Quinto Circio, Histéria de Alexandre Magno, IX, i, (N. da E.) 2"Tito ', Desde a fundagdo da cidade, preticio, 6, e VI, i, 6.(N. da E) IN, viii. Da arte de conversar hora escrevendo em um tempo em que principiava a diminuir a ‘now milagres, diz que nio deseja deixar de registrar nos seus Anais 7 4s de que tem noticia por intermédio de gente de i e a pee ‘Wil Certo, A histéria deve escrever-se de acordo aes a fe bit em atengao & nossa opiniao prépria. Eu que sou rei Wonhecimento e nio em ateng: i Ex gue sou reno ‘sesunto de que trato, que nao devo contas a ninguém, nao ce redito inteira im, tre F veres a expresses que considero temerarias ie em mim, Atrevo-me por p ene ‘sivielhantes, Nao me cabe julgar sozinho, Apresento-me de pé e deitado, de Fie ede tis, de dircita e de esquerda, tal qual sou realmente. Os espiritos ‘Ijiais em forga nao o sao sempre em capacidade de sprecasto « soci His 0 que, a respeito desse historiados, me vem 3 memé a eral eassaz incerto. Nessas condigdes, quaisquer juizos s4o por certo vag #ineompletos.

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