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RRS Lae A ORGANIZACAO TEXTUAL DO DESCRITIVO CIENTIFICO: ALGUMAS CONSIDERACOES Regina Célia Pagliuchi da Silveira * Resum0 wn . a Embora se afirme a existéncia de um tipo de texto descritivo, capaz. de fomalizar um texto completo, nos discursos cientfficas, o descritivo nao formaliza (ais textos. O descritivo cientifico éum processo analitico e de sfntese na discussio cognitiva do sujeito epistémico, enquanto, na dimensio comunicativa, 0 descritivo cientifico constréi argumentos de legitimidade e reforgo para justificar aconclusio. Abstract, Although one afirms the existence of a kind of descriptive text, able to formalize acomplete text, in scientific speeches, the descriptive doesn't formalize such texts, The scientific - descriptive is an analytic process and of syntesis in the cognitive discussion of the epistemic subject, while that, in the comunicative dimension, the scientific descriptive builds arguments of legitimacy and reinforcement to justify the conclu- sion Introdugio Esta comunicagio esté situada na érea da Lingifstica Textual e trata de aspectos da descrigao * Docente da PUCISP. cientfica, tendo por objetivo apresentarem que medida ‘odescritivo €um dos esquemas textuais formalizadores do discurso cientifico da pesquisa. Como se sabe, o descritivo tem sido objeto de atengio de varios estudiosos do texto; todavia, de forma geral ndo tem sido tratado na organizagdo textual dos discursos cientificos. 0s resultados aqui apresentados sio parciais e referem-se ao angulo textual-argumentativo do discurso cientifico da pesquisa, relacionando-se a dimensio cognitivae comunicativa do escritor-cientista. Trata- se, portanto, de examinar as representagdes cientificas enquanto produtos de observagao, anélise-sintese, englobando a explicagao da causalidade do fendmeno escrito na descrigdo cientifica. ‘Tem-se por hipétese que a descrigao cientifica é definida pelo esquema textual do descritivo, mas que se modifica nos discursos cientificos, dependendo do tipo de representagdio tratada, A titulo de exemplificagao dos resultados obtidos, foi selecionado 0 artigo de pesquisa de ANIOS, L. A.et al. (1989) - “Indicadores de gordura corporal em criangas de 7 a 11 anos de idade, vivendo em condigies sécio-ambientais diferentes no Rio de Janeiro, Brasil”. Ciéncia e Cultura, 12, dezembro, Siio Paulo: SBPC. Rae WEES] ET 1. Perspectiva teérica ‘Tem-se por hipétese que a descrigdo cientifica relacionadas as duas dimensées abarcadas pelos discursos cientificos, a saber, a dimensdo cognitivae acomuicativa, (cfr. GREIMAS, 1976). Os discursos cientificos, de forma geral, io caracterizados como discursos de “saber”, sendo este diferenciado nas duas dimensdes indicadas: na dimensio cognitiva, 0 discurso cientifico da pesquisa pode ser apresentado como a narrativa da descoberta, quando se toma posse do“saber", que se formaliza por duas categorias textuais candnicas, isto é, problema e solucZo; na dimensio comunicativa, 0 discurso cientifico da pesquisa pode ser apresentado como do tipo dissertativo, pois se trata de comunicar aos leitores 0 que se descobriu, argumentando, afim de transmitira eleso “saber” adquirido. Entende-se que 0 saber” cientificoé provisério © apresentado como uma forma de alternativa a0 paradigma cientficoem vigor, apresentando, portanto, sempre uma conclusdo nova, ainda que haja adestio ‘ou oposigvo ao paradigma vigente Dando adesao 2 KUHN (1962), entende-se que a cigncia se constréi em uma sucessiio de convulsbes, revolugées cientficas. Assim, 6 possivel de se distinguir historicamente no processo evolutivo daciéncia, perfodos de estabilidade e momentos de ruptuta. Os primeiros sfo os da ciéneia normal, em que haa manutengaio de paradigmas cientificos, jos segundos so os da ciéncia extraordinéria, quando hd oposigao ao paradigma vigente ea implantagio de um novo paradigma que substitui o anterior. Todavia, mesmo durante os perfodos de ciéncia normal, hd a produgio do “saber novo", sendo apresentado como alternativa; mas, quando as alternativas proliferam, ocorre a derrubada do paradigma anterior instaura-se um novo, desde que acatado pela comunidade cientifica. Nesse sentido, 0 “saber” cientifico é sempre alternativo e no categ6rico e definitivo. Segundo SILVEIRA (1994), os textos cientificos diferenciam-se de outros, namedidaem que as solugdes apresentadas pelo cientista so altemativas que complementam ou se opem 20 paradigma cientifico vi portanto, uma vatiagdo do discurso conflitante. Nesse sentido, faz se necessirio caracterizar os textos cientificos poruma ccoeréncia intema e por uma externa. O problema a ser solucionado pelo texto cientifico da pesquisa est relacionado & coeréncia intema desse discurso. Assim sendo, essa dimensio poderia ser apresentada por quatro companentes: 1. formulagio de tarefas e objetivos, assim ‘como a escolha de um corpus ou objeto empirico; 2. descrigao e comparagao de fatos pertinentes; 3. interpretagio e explicagio de fatos sob a forma de umatteoria, 4.a validagdo empitica da teoria, (cfr. GARDIN etal., 1987). Segundo SILVEIRA (1994), a coeréncia externa est relacionada aos conhecimentos discursivos que o cientista tem da dimensao ‘comunicativae, nesse sentido, os textos cientificos so formalizados por tipos diferentes de esquemas textuais, mas que esto imbricados e hierarquizados pelo discurso dissertativo, tradicionalmente modificado no tipo designado académico. Mas, tanto em relagao a coeréncia interna quanto & externa, o texto cientifico dda pesquisa é proxuzido a partir do paradigma vigente. Logo, 0 texto cientifico da pesquisa é formalizado por categorias textuais que se diferencia por se tratar da descoberta realizada.e da transmisso da descoberta, Assim, a forma do. discurso cientifico da pesquisa pode ser definida pelas categorias textuais - problema e solugdo - que esto agrupadas por um esquema textual mais hierarquizante: esquema argumentativo, com as categorias: premissa-hip6tese, |justificativae conclusio, Assim sendo, segundo SILVEIRA (1993), seria possivel de se visualizar esse esquema textual pela seguinte formalizagdo, convencionada na ¢ pela nte, sendo comunidade cientifica: ‘Texto cientifico da pesquisa [Premissa-Hipétese Justificativa Conelusdo| Problema Solugao 2. Os dados Os dados apresentados referem-se ao descritivo cientifico e sua fungo textual no discurso ccientifico da pesquisa. Assim sendo, 0s resultados obtidos indicam o que se segue: 2.1 Oesquema textual do descrito SILVEIRA (1980) propde que a descrigdo € caracterizada pelo ato de representar o ser-descrito, individualizando em relagao aos demais seres que podem ser clasificados como sendo da mesma espécie do ser-descrito no texto. MARQUESI (1991) propde que o descritivo é um tipo de texto formalizado por um esquema textual tfpico que se define pelas categorias: textuais designagio, definigao eindividuagto. (Os dados obtidos indicam que a descrigao nfo € um tipo especifico de texto cientifico da pesquisa, mas que nele a descricdo esté imbricada com outros esquemas textuais, sendo, portanto, um suporte para formalizaro problemacasolugao, assim como suporte para a apresentagdio da justificativa para a conclusio asseverada pelo escritor, Nesse sentido, a descrigio cientifica manifesta-se por categorias textuais do narrativo ¢ do dissertativo, sendo manifestada em segmentos enunciados no discurso cientifico da pesquisa. . Assim exemplificada no tex a) Categoria Apresentacao: “O conhe- cimento do nivel de gordura corporal tem importancia como indicador de savide e de aptidio fisica da populagZo. O nivel de gordura pode seravaliado em termos de percentual da massa corporal (% GC) ou como gordura corporal total (GTC)...”. do: gordura corporal; (0: a gordura corporal é indi satide ¢ de aptidio fisica da populagdo (marco de conhecimento); Individuagao: o nivel de gordura, avaliado em termos de percentual da massa corporal ou da gordura corporal total b) Categoria-Materiais e Métodos: “Os dados deste estudo fazem parte de um trabalho desenvolvido durante os anos de 1987 e 1988, com criangas de duas escolas do Estado do Rio de Janeiro, ‘Uma 0 Colégio de Aplicacao da Universidade do Estadodo Rio de Janeiro (CAP), localizadono bairro da Tijuca, zona residencial tipica de classe média no Municipio do Rio de Janeiro. A outra 6 0 Centro Integrado de Ensino Piblico (CIEP) Nelson Cavaquinho, localizado na Chatuba, Municipio de Nova Iguacu, Baixada Fluminense, Um questionstio sécio-econdmico, preenchido através de entrevistas ‘coms pais das criangas do CIEP, indicou que arenda familiar média mensal era em torno de um salério- ‘minimo..” Designago dos locais para a compar CAP e CIEP; Definigdo: duas escolas do Estado do Rio de Janeiro; Individuagio: CAP-localizado no bairro da Tijuca, zona residencial tipica de classe média no Municipio do Rio de Janeiro; CIEP- localizado na Chatuba, Municfpio de Nova Iguagu, Baixada ‘Fluminense, com os pais das criangas tendo uma renda familiar em toro de um sakério minimo. ico: ¢) Categoria-Resultados: “As meninas do CAP apresentaram valores de IMC e do E7 DC superiores as meninas do CIEP em todas as faixas etirias, sendo que a diferenga alcangou significincia até 0s 10 anos A mesma tendéncia foi observada entre ESE ‘osmeninos...” Designagiio indice de gordura; Definigdo: implicita, pois nao se diz 0 Sbvio ja afirmadona Aptesentagio, mas = indicador de satide de aptidio fisica da populacao; Individuagao: no CAP, meninase meninos, de alé aos 10 anos, tém o IMC e E7 DC superiores as, ceriangas do CIEP NO CIEP, as crianeas tém o IMC € E7 DC inferiores as criangas de até dez anos, do CAP. 4) Categoria Discussio: “As criangas com precarias condigdes de vida apresentam alta prevaléncia de desnutricao proteico-energética (DPE), enquanto as criangas que vivem em condigdes mais privilegiadas a prevaléneia de DPE é baixa; mas, nessas populagdes, jé se encontram indicios de grande actimulo de gordura, fato que as coloca em pé de igualdade com as criangas de pafses mais industrializados..” Designagio: implicit Definigao: implicita aptiddo fisica da populagio; Individuagdo: contraria 0 marco de conhecimento que fez 0 autor apresentar a definicao: emeriangas de condigdes mais privilegiadas de vida, a prevaléncia de DPE é baixa; as criangas com condigdes precérias de vida apresentam alta prevaléncia de desnutrigio proteico-energética (DPE); ‘mas, nessas populagdes, jd se encontram indicios de grande aciimulo de gordura. €) Categoria-Conelusio: logo, no &0 indice de gordura que define o indice de satide e define 0 indicador de satide e de aptidio fisica da populagio, ‘mas sim, o indice de nutrigdo pelo proteico-energético. Como se pretendeu demonstrar, o descritivo est formalizando seqiiéncias de enunciados, agrupados pelas diferentes categorias'textuais do discurso cientifico da pesquisa: apresentagio, material emétodos, resultados (dados), discussd0 e conclusio (cfr. SILVEIRA, 1992). 2.2. O Descritivo e a observagao cientifica Os resultados obtidos indicam que, na dimenstio cognitiva, o ato de observar um fendmeno ou uma circunstincia pode ser apresentado por um, ato de apreensdoe por um ato cognitivo de focalizaczo (perceber a circunstancia como individual), um ato de comparagio entre que se sabe (marco de conhecimento) e de comparagio com o que se observa, 0 novo-circunstancia, encontrando similitudes, a categorizagio; ¢ diferengas, a individuagdo, Esses atos, na dimenso cognitiva do cientista, possibilitam que ele represente mentalmente, para si o fato percebido, conhecendo-o. Nesse sentido, odescritivo formaliza discurso cientifico na dimensao cognitiva Para tanto, é necessério que a descri¢aio cientifica nessa dimensao seja precisa a fim de se cconstruit a representagzio mental do que se observa. Assim, a descri¢tlo poderia ser apresentada como um ato analftico que parte em blocos o ser observado pelo cientista; e numato de sintese, quando ele constréi a representago mental como um todo, a partirdos sentidos mais globai Notextoexemplificado, ter-se-ia uma andlise dos blocos descrtivos pelas partes, assim como segue: a) Todo: conjunto de duzentas e quarentae trés criangas. 1b) Blocos: classe média alta e classe baixa, economicamente comparada na amostra.. ¢) Termo da comparagiio: fndice de gordura corporal. 4) Sintese: meninos e meninas com o mesmo indice de gordura corporal na faixa de lez anos (categorizagao pela zona de similitucle), mas individuados por diferengas que levaram consirugo dos blocos: apresentam os de classe média alta com indice maior de protefnas ¢ os de classe baixa com baixo indice de protefna, A partir da sintese dos resultados, 0 cientista recorre ao paradigma e apresenta.a sua alternativa no € apenas 0 indice de gordura que serve de indicador de satide ¢ de aptidao fisica da populagao, ‘mas sim, o indice de protefnas. 2.30 descritivo e 0 dissertativo cientifico Os resultados obtidos indicam que o descritivo, na dimensio comunicativa, € apresentado como argumento de legitimidade e de reforgo para auxiliar na narrativa da descoberta (Problema e Solucao) a jjustificar a conclusio asseverada pelo cientista, apresentada como a sua conclusfio, ou “saber” novo. No texto exemplificado, a pesquisa relatada justifica a conclusdo declarada: nfo € apenas. indice de gordura, mas 0 indice de proteinas quando associado a gordura que define o indicador de satide ede aptidzo da populagio. Justifica, na medidaem ‘que aamostra coletada é satisfat6ria para resolver 0 problema e os resultados obtidos legitimam a conclusdo do cientista Todavia, para justificar, no basta narrar a descoberta; é necessfrio descrever com preciso 0 fendmeno observado, para explicé-lo,a seguir, a partir da regra da causalidade: gordura nfo é a causa da satide ¢ da aptidio fisica, mas sim, o indice de protefnas. 3. Discussio Embora se afirme a existéncia de um tipo de texto descritivo, capaz de formalizar um texto completo (cfr. MARQUESI, 1991), nos discursos cientificos, 0 descritivo nao formaliza textos completos. Trata-se de um instrumento auxitiar que pode ser diferenciado na dimenstio cognitiva e na ddimensdo comunicativa(cfr. GREIMAS, 1975). Nadimensio cognitiva, o descritivo formatiza os resultados da observacio cientifica, propiciando, nesse sentido, diferenciar 0 raciocinio cientifico de outros raciocinios, tais como o jornalistico, 0 propagandistico, o didatico, Conelui-se que o descritivo cientifico tanto estrutura a descoberta quanto a sua transmisso, Na cognigdo, as representagdes tém poder explicativo para o que se descreveu. Na transmissio, as relagdes entre representagdes discursivas pela linguagem e representagdes mentais foram durante muito tempo ignoradas. Todavia, a partir dos resultados apresentados, pode-se concluir que o descritivo, nas representagdes discursivas, juntamente com a referéncia temporal do ponto de vista do discurso, d ‘um conjunto de instrugdes que, manifestadas nos cenunciados, permite argumentar coma comunidade cientificae conflitar com o paradigma vigente. Conelui-se que 0 descritivo cientifico é um processo analitico e de sintese na dimensfo cognitiva do sujeito epistémico; todavia, na dimensio comunicativa, 0 descritivo cientifico constréi argumentos de legitimidade e de reforgo para a representaco textual dos fatos observados que justificam argumentativamente a conclusio do cientista. Bibliografia 1. UET, J. C.O sujeito epistémico e seu diseur- $0, Anélise do discurso em Ciéncias Sociais. Public. e org. por AJ.Greimas e E, Lando- wski, trad. C.TT. Pais, Sao Paulo: Global, 1979, 2.GARDIN, J.C. et al. La logique du plausible Essais depistemologie Pratique. 2. ed. Paris: MSH, 1987. 3. KUHN, T.S. A estrutura das Revolugées cien- tifieas. Trad. B. V. Boeira e N. Boeira,3, ed. Sao Paulo: Perspectiva, 1991. erreeneeRGe 4, SILVEIRA, R. C. P. Um estudo textual de en- saios cientificos: variabilidades e constan- cias. XXII Anais de Seminaries do GEL, vol. 2, Ribeiro Preto: Instituto Moura Lacer- da, 1993. 5.__.A organizagio textual do discurso cienti- fico da revisio ¢ 0 questionamento do ‘saber revisado'. XXIII Anais de Seminé- rios do GEL, vol 2, Sdo Paulo: USP,1993..6. 6.__. Consideragies sobre o dissertativo cien- {ifico. Anais do VII Seminario doCELLIP. Palestra de abertura do Seminério, realizado em Paranavas,1993, 7. TOULMIN, S. The uses of argument, New York: Cambridge University Press, 1958. 8. DUK, T. van Cognigao, discurso e interagao. Apres.¢ org. de I. V. Koch, col. Caminhos daLingiifstica. Si0 Paulo: Contexto, 1992. 8. DUK, T. Van. Cognigio, diseursoe interagio. Apres. e org. de I. V. Koch, col. Caminhos a Lingitfstica. $0 Paulo: Contexto, 1992.

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