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DIZEM QUE OS CAES VEEM COISAS Ela chegou didfana, transparente, no vestido branco que Ihe descia até os pés calgados pelas ricas sandalias de pluma. Ninguém Ihe ouviu os passos. Sentou-se a beira da grande piscina, cruzando as pernas longas. Chegou anti- quissima, atual e eterna, com a sua cara de mascara. Mol- dada em gesso? Apenas uma presenca, porque pousou co- mo uma sombra. Mas por um fragmentogde tempo, um quase nada, reinou entre todos um silencio EO Gee se estendeu pelo vasto terreno murado da mansdo ensombrada pelas arvores, dominou a enorme piscina e emudeceu as proprias criangas pajeadas pelas babas de aventais borda- dos, e vejam que as criancas sao inddceis. Um pressdgio.., tagmento de tempo apenas, porque logo o homem gordo, de ventre imenso, saltou dentro da piscina com o copo de uisque na mao. Espadanou agua por todos os lados, a piscina transbordou, Muitos se molharam, outros salta- ram das cadeiras de lona. — Bruto! — disse alguém intimo, sem que ele se abor- recesse, bébado. A onda de agua despejou-se sobre que ndo se moveu: era trespassavel e transparente. Floco de névoa pronto a esvoacar. Permaneceu parada, a cara imovel, ne- nhum ricto. Apenas parecia consultar no pulso um relogio invisivel, para marcar.o tempo. O homem de ventre enorme ja estava a beira da piscina, gotejante e trépego, para uma nova dose de uisque, os dedos gratidos catando no balde os cubos de gelo. Mulheres seminuas, as nadegas reluzentes de sol e gotas d’agua. As rodas, as conversas, os garcons que circulavam, as bandejas de salgadinhos Uns oculos escuros sofisticados no sutia minimo: — Por favor. O gargom mogo atendia, solicito, perdendo os olhos avidos_nos seios mal contidos, oferecidos e inatingiveis. — Obrigada. O garcom mantinha a dignidade, ereto. A menina che- gou e segurou a mae pelo queixo: — Ma§e-é, quero uma coca-cola. A mae nao lhe dava atencdo em flerte com o recente campedao de vdlei, uma estrutura de torax (a mde da menina contrariava-se apenas com 0 tufo de pélos que ele tinha no meio do peito, quase imoral). A menina impacientava-se: — Mae-é, uma coca-cola. — Deixa de ser chata! O campedo levantou-se para apanhar-lhe o refrigeran- te. Em roda mais distante conversavam os homens graves: a ultima medida do governo, a crise econémica. — O pais vai a bancarrota. —<_Vai 0 qué? — A bancarrota. — Fazia tempo que eu nao ouvia esta palavra. — Mas vai. Aceitava-se a bancarrota sem muita convicedo. Na gran- 152 de varanda, as(senhoras grisalhas e indesnudaveis) pulsciras tilintantes na flacidez dos bracos, discutiam os novos valo- res morais € comentavam o recente desquite. menina dela nado tem um ano de casada. a-segunda filha que se separa. —_ Como?» — A segunda. Aniversario da dona da mansao, que se acompanhava ao violao com graca, aplaudida pelos que estavam em volta. O garcom (ou maitre, porque era solene) curvou-se ao seu ouvido. Ela se livrou do violdo, levantou-se e bateu palmas chamando todos para o almogo 4 americana, as mesas sob as arvores. Cada um apanhou o seu prato, formaram-se as filas, o homem gentil cedeu lugar a umas nddegas rijas, cortadas pelo maid. — Faz favor. — Obrigada Os caes de raga latiam e uivavam desesperadamente nos canis (¢-dizem.que-os caes véem.coisas). Foi preciso que 0 tratador viesse acalma-los, embora eles rodassem sobre si mesmos e rosnassem. A distancia, a piscina quase olimpica, agora deserta, toalhas esquecidas, o vidro do bronzeador, o cinzeiro sobre a mesinha cheio de pontas de cigarro marca- das de batom. As filas. Alguém tangeu o gato que lutava com um pedacgo de osso, Le: fez o prato do marido, preparou também o seu. Mordia a fatia de peru com farofa, quando se lembrou do filho: @& Cadé 0 Netinho? a Certa angustia na voz. Chamou 0 marido, gritou pela baba, que se distraia com as outras na varanda. Olhos espantados e€ repentino siléncio talvez maior que qualquer outro. Refeigdes suspensas, uma senhora mantinha no ar o garfo cheio. Tentavam segurar Lenita. Ela se desvencilhava: — Cadé o Netinho? Cadé? 153 ~As_aguas da grande piscina eram tranqiilas, apenas levemente franjadas pelo vento. Boiava sobre elas uma car- teira de cigarros vazia. Mas a moga que se aproximara parecia divisateumscotpo.no.fundo, preso.a.escadae’Volta- ram a afastar Lenita, o marido a envolveu nos bragos pos- santes, talvez procurando refugio também. O campedo de volei atirou-se a piscina e veio a tona sacudindo com a cabeca os cabelos longos: trazia sob 0 braco um corpo inerte, flacido, de apenas quatro anos e de cabelos louros e gotejantes. O médico novo, de calcdo, tentou a respiracdo artifi- cial, 0 boca-a-boca (os labios de Netinho estavam arroxea- dos) e levantou-se sem palavras e sem olhar para ninguém. Lenita soltou-se e agarrou-se ao filho: — Acorde, acorde! Pelo amor de Deus, acorde! Conseguiram afasta-la mais uma vez, quase desmaiou. A amiga limpava-lhe com os dedos a sobra de farofa que se grudara ao seu rosto. Os caes de raga voltavam a latir desesperadamente. izem que os cdes vée: coisas. = Lenita ficou para sempre com a sensacdo do corpo inerte e mole entre os bragos. Uma marca, presenca, que procurava desfazer com as maos. Cabelos louros e gotejan- tes. As vezes, ela despertava na noite: — Acorde, acorde! A presenga também daquele i ilé x Pesara.sobre a_piscina. Um pressentimento apenas? Precisa- mente o momento em que (Ela chegara, transparente e invi- sivel, e se sentara a beira da piscina, cruzando as pernas longas, antiquissimagatual e eterna. 154

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