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r uma reeducagao CiOlINQUIStICA sve ‘ as yistica © SU ee secuencias variagao linguistica é um tema muito in- teressante em si mesma, como fendme- no linguistico capaz de explicar muitas coisas sobre a natureza das linguas hu manas, seu funcionamento e, mais espe} ialmente, sobre os processos de mudan-\ ‘nguistica. ee existe um outro lado da variacao linguistica-y , Me parece, é talvez mais relevante para a / cagdo em lingua materna do que o lado pro- mente cientifico do fendmeno. E 0 conjunto consequéncias sociais, culturais, ideold- | cas que a variaco lingulstica faz surgir em cag r Comunidade. Uma andlise primorosa das conse- Pela Otica do clentista da linguagem, a cons- __quéncias sociais da variacdo, quando TUCAO OS MENINO VeIO é tao interessante para ees ee ee oe = - guista) se transforma em deficiéncia destudo e téo merecedora de atengao Quan: itera edeerere sigan) ae fO 0S MENINOS VIERAM — J que, para o cientista, | encontra no livre de Magda Soares, n20 existe construcao linguistica mais “certa" —_Linguagem e escola: uma perspectiva sem mais “bonita” do que outra. No entanto, __seeial. A leitura dessa obra € obriga- fora do circulo restrito da pesquisa cientifica, ®t! Pata todos os profissionais en- P =~ volvidos com educacéio em geral ¢, 4 diferenca entre OS MENINO VEIO © OS MENINOS Sits aeqiainree, corns ediaeneets VIERAM provoca sérias e profundas divisées em lingua materna. As referéncias entre as pessoas, pde em agao uma escala de completas estéo nas Indicagées de avaliacOes e julgamentos que opera com pre- — *ltur™- Por uma reeducagao sociolinguistica conceitos, discriminagées, humilhacgdes e muito frequentemente co exclusdo social. Neste capitulo, vamos investigar mais detidamente, entaéo, as conseq cias sociais da variagao linguistica A lingua vista de dois lados Sempre que 0 assunto é LINGUA, existem na sociedade dois pontos de w bem definidos, duas ordens de discurso que se contrapdem: (i) oO discurso cientifico, embasado nas teorias da Linguistica moder na, que trabalha com as nogGes de variacéo e mudanca; (i) 0 discurso do senso comum, impregnado de concepcdes ultra- passadas sobre a linguagem e de preconceitos sociais fortemente arraigadios, e que opera com a nocao de erro. VARIACAO E MUDANCAL "Nada na lingua 6 por acaso: por uma pedagogia da varlagao linguistica on meiro modo de ver as coisas, isto 6, na perspectiva das ciéncias da lingua- = nao existe erro na lingua. Sea lingua 6 entendida como um sistema de © significados que se organizam sintaticamente para permitir a interaco na, toda e qualquer manifestacao linguistica cumpre essa fung&o plena- — COMO € 0 CASO COM OS MENINO TUDO VEIO/OS MENINOS TODOS VIERAM OU 0 FILME/ASSISTI AO FILME. 10 de “erro” — que esta no segundo modo de ver a lingua — se prende a enos sociais e culturais, que nao esto incluidos no campo de interes- ‘G2 Linguistica propriamente dita, isto é, da ciéncia que estuda a lingua “em ESTA" , VIM SUS ASPecins foncioEices, Troniviogicos, Sintticos eC. a investigar esses dois pontos de vista, a gente tem que recorrer a uma ‘a disciplina, necessariamente interdisciplinar, que 6 precisamente a So- inguistica. “erro” é uma invencao dos seres humanos 0 de “erro”, em lingua, tem a mesma origem das outras concep¢des “certo” e“errado” que circulam na nossa sociedade. Assim, € bom lembrar 10 de saida que todas as classificagoes socials e culturais de “certo” € “erradio” sao resultantes de visbes de Trunto, de juiZes We Vales, de CIeMCAS, ‘culturais, de ideologias e, exatamente por isso, estao sujeitas a mudar com 0 ‘=mpo. Até bem recentemente, por exemplo, era “errado” a mulher se casar s2m ser virgem — em muitas culturas isso ainda prevalece, infelizmente. Era “errado” nao acreditar em Deus e, pior, nao acreditar em Deus do modo como 2 igreja Catdlica Romana dizia que era preciso acreditar — muita gente foi ‘cruelmente torturada e assassinada, queimaca em fogueiras, por causa des- Se “erro”. No inicio da era industrial, era “certo” colocar criangas de 7 anos para trabalhar 18 horas por dia numa fabrica a troco de um salario miseravel. ‘Até cento e poucos anos atrds, no Brasil, era “certo” escravizar as pessoas de raca negra e trata-las como objetos ou animais. Na Alemanha nazista, era “cer- ~” exterminar os judeus, os ciganos, os homossexuais, os comunistas e outros grupos. Para muita gente, ainda hoje, é “certo” considerar a homossexualidade como uma doenca, um desvio moral ou coisa pior.... Nenhuma dessas ideias do que era (6) “certo” ou “errado” se explica por al- guma causa natural, por algum fendmeno empiricamente comprovavel, por Por uma reeducagao soctolingustica O nome da Grécia, na lingua grega, 6 Hellas, de onde vem Hélade, em por- tugués. Por isso, os gregos se cha- mam a si mesmos de helenos. O es- plendor do helenismo se deu entre 8 anos 300 ¢ 30 antes de Cristo. nome Grécia © 0 adjetivo grego se relacionam com a tribo dos Graeci, que foram os primeiros helenos en- contrados pelos romanos quando es- tes invadiram a Grécia para conquis- téla no século Ia, C. Os romanos aplicaram a todo o povo heleno e a seu pafs o nome de apenas uma de suas populacdes regionais. alguma “lei da natureza” turais", das relagdes de poder, dos Conflitos sociais, das imposigées res de determinados grupos sobre os demais, da distribuigao desigual dos bens materiais e culturais etc. Nao existe absolutamente nada na “natureza” das mulheres, nem na “natureza” dos Negros, nem na “natureza” dos indios, nem na “natureza” dos homossexuais que justifique o tratamento excludente, Opressivo € injusto que esses € outros grupos humanos vém recebendo ao longo da historia. Todas as nogGes de “certo” e “errado” que circulam na socie- dade sao invengdes humanas, demasiadamente humanas, como diria o filso- fo Nietzsche — e, muitas vezes, invencdes demasiadamente desumanas. — todas elas derivam exclusivamente de "leis cul- de valo- Onde e quando nasceu 0 “erro” linguistico? No que diz respeito a lingua, a nocao de “erro” nasce, no mundo ocidental, junto com as primeiras descrigées sistematicas de uma lingua especifica, a lingua grega. Essas descric6es sisterndticas foram empreendidas no mundo de cultura helenistica, particularmente na €ra 0 mais importante centro de cultura grega no século Cer estranho dizer que uma cidade do Egito era o maior ®a, mas uma répida revisdo da historia vai explicar por cidade de Alexandria (Egito), que Ill a.C. Pode pare- centro de cultura qué. O Jovem rei macedénio Alexandre Ill (356-323 a.C), que passou a posteridade com 0 adjetivo de Magno, isto é, “o Grande”, conquistou um enorme territorio que ia desde a pequenina Grécia, na Europa, até 0 Egito, na Africa, passando pelo Oriente Médio, pela Mesopotamia, e chegando até © rio Indo, no limite entre o grande império persa (atuais Ira e Afeganistao) e a india. E ele sé nao tentou conquistar a india e mais além Porque seus soldados, exaustos depois de uma década de ba- talhas interminéveis, se recusaram a prosseguir e Pediram para voitar para casa, Em consequéncia dessas conquistas, a lingua e a cultura gregas se difundiram por um territorio muitissimo maior do ue o da pequena Grécia original. Esse periodo his- torico € conhecido como helenismo. Ao longo de sua trilha de conquistas, Alexandre fundou diversas cidades, todas chamadas "Nada na lingua € por acaso: por uma pedagogia da variagao linguistica Wie. Dessas, a Unica que sobrevive até hoje com esse nome é a 72 do Egito, no delta do rio Nilo, com quase trés milhdes de habitantes. Gade fundada por Alexandre foi Kandahar, no Afeganistéo — embora o nome Kandahar é derivado do nome do rei-general maced6nio.) Ge morte de Alexandre, seu império foi dividido entre seus generais. O a Ptolomeu, que fundou uma dinastia de reis que governou o pais 22 30 a.C. O Ultimo soberano da dinastia ptolomaica foi a célebre rai- itra VII, que se suicidou quando o Egito foi conquistado pelos roma- ‘Serdeu sua autonomia politica. Durante a fase de maior brilho da dinastia "aica, Alexandria foi um centro muito importante de cultura e erudicao, se a sede de escolas filos6ficas e de uma famosa biblioteca, que N= O Maior Patrimonio intelectual e literario da Antiguidade (infelizmente uida por um incéndio quando os habitantes da cidade se rebelaram con- © general romano Julio César, ein 48 antes de Cristo). 0 a lingua grega tinha se tornado o idioma internacional dentro do gran- mpério formado pelas conquistas de Alexandre, surgiu a necessidade de jatizar essa lingua, ou seja, de criar um padrdo uniforme e homogéneo Se erguesse acima das diferencas regionais e sociais para se transfor- num instrumento de unificagdo politica e cultural. Essa tarefa de consti- 20 de uma norma unificada, de um padrao de correcdo, foi empreendida sabios que trabalhavam justamente na Biblioteca de Alexandria, os 0s ("amantes da palavra”). matica tradicional: intuicdes filosdficas esse periodo, do século Ill a.C., 0 surgimento daquilo que hoje se cha- nos estudos linguisticos, de Gramatica Tradicional — um conjunto de pes acerca da lingua e da linguagem que representou 0 inicio dos estu- maguisticos no Ocidente. Sendo uma abordagem no cientifica, nos ter- modernos de cléncia, a Gramatica Tradicional combinava intuigées fi- is e preconceitos sociais. Mmituicées filos6ficas que sustentam a Gramatica Tradicional estao pre- sS até hoje na nomenclatura gramatical e nas definigdes que aparecem ¥em0s ver, por exemplo, a nogdo de sujeito que encontramos em impor- compéndios normativos. Ali a gente lé que “o sujeito é o ser sobre 0 Por uma reeducagao sociolinguistica Essa nossa discusso sobre a nocdo qual se faz uma declarac4o”, ou coisa tradicional de sujeito se baseia nos te. J4 de saida, a gente percebe que naa. muitos traballhos do lingulsta brasi- a uma definica ical Riva Mae Fert He tee de uma definig&o lingulstica — nada se dos livros dele esto nas Indicagses --eSPeito das fun¢des do sujeito na si de Leitura. das caracteristicas morfoldgicas do si ta-se, isto sim, de uma defini¢éo mete que 0 préprio uso da palavra “ser” evidencia uma analise de cunho (1) Nesta sala cabem duzentas pessoas, Se tivermos de analisar esse enunciado com base na definic&o trad seremos obrigados a classificar como sujeito o elemento SALA, j que € @ sala que se esté “dizendo alguma coisa”, se esta “declarando algo" todos sabemos que no enunciado (1) 0 sujeito é puzentas PESSOAS, numa definicéo propriamente linguistica, 0 sujeito é o termo sobre @ recai a predicacao da oracdo e com o qual 0 verbo concorda. Dificuldades semelhantes de lidar com as definicdes tradicionais apars quase a cada passo quando as estudamos com cuidado. Isso porque, to, a Gramatica Tradicional, ao se formar no século Ill a.C. como uma plina com pretensdes ao estudo da Jingua, n&o produziu um corpo teé exclusivamente linguistico, mas se valeu de um importante aparato de Peculagoes filosoficas que vinha se gestando na cultura grega desde o culo V a.C., gragas ao trabalho dos sofistas, de Platdo, de Aristételes, estoicos e de outros grandes pensadores. Para eles, 0 estudo da lingu: humana (logos) era s6 a etapa inicial Para a compreensdo de fendme de outra natureza, como o funcionamento da mente humana (psique) e correspondéncia com o funcionamento-organizacao do proprio uni (cosmo). Por tudo isso, a Gramética Tradicional merece ser estud como um importante patrimdnio cultural do Ocidente, mas nao para aplicada cegamente como Unica teoria linguistica valida nem, muito Nos, como instrumental adequado para o ensino, Continuar a acreditar (e a repetir) que o substantivo é a “palavra que ae OS seres em geral” (outra definigao metafisica) é tao inadequado e impr quanto acreditar na arcaica doutrina dos “quatro elementos” (agua, fogo, ‘Nada na lingua 6 por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica Pensadores gregos... do conhecimento que temos hoje em dia Giversos campos do saber — biologia, fisica, ica, Matematica, medicina, astronomia etc. leCOU a Ser produzido pelos sabios da Anti- idle, e"afe Mesmo a maioria dos nomes que 10S a essas ciéncias nos foram legados pelos ssadores gregos. Mas nenhum bidlogo, fisico, ico, mateméatico, médico, astronomo etc. pleno século XX! vai basear seu lho exclusivamente nas teo- elaboradas 2.500 anos atras! ue somente nds, no cam- Ga lin- A doutrina dos “quatro elementos” foi formulada pelo filésofo grego Empédocles (483-430 a.C.), mas ja tinha raizes mais antigas na cultura do Extremo Oriente. Hoje, quando estudamos na escola a tabela perid- dica, descobrimos que os elemen- tos, na verdade, ultrapassam uma centena (bem mais do que quatro!). “Para invalidar a velha doutrina, basta lembrar que a Agua é com- posta de hidrogénio oxigénio, ou seja, de dois elementos... Assim como a velha doutrina gramatical tradicional, essa dos quatro elemen- tos continua fazendo muito suces- so, embora tenha sido abandonada ha muito tempo pelos cientistas. , terlamos que continuar analisando a lingua e, pior, ensinando a lingua 10 jeito que se fazia 300 anos antes de Cristo nascer? Alguém por acaso 'S= submeter a uma cirurgia feita do mesmo jeito como os médicos faziam € que 0 sol gira em torno dela? 10 XVI? Alguém vai ensinar a seus alunos que a Terra 6 0 centro do #9 eSCrevo essas linhas (Setembro de 2006), um grande congresso in- mal de astrénomos reunidos na cidade de Praga decidiu que Plutao Por uma reeducagao sociolingulstica ‘tos que a ciéncia astronémica atual exige para que um corpo celeste re: essa classificacdo. As pessoas esto comentando muito isso, fazendo até gumas brincadeiras, mas ninguém ousa contestar a decisdo dos cientistas. entanto, se um professor disser em sala de aula que 0 sujeito néo é “o ser © qual se declara alguma coisa”, que as Palavras POREM, TODAVIA, CONTUDO. sao “conjungdes” ou que nao existe a “3° Pessoa do discurso", é provavel Os pais dos alunos protestem e pecam a demissao desse profissionall! Pers to de novo: por que as outras ciéncias podem avangar, rever seus concei lancar novas teorias que ajudem a entender os fendémenos e somente nds, area da linguagem, temos que continuar repetindo imprecisdes, conceitos |hos e definig6es incompletas elaboradas ha mais de dois milénios? Gramatica Tradicional: nada além da frase Outro problema sério da Gramética Tradicional — sem dtivida, o mais grave — ue seu foco de interesse é extremamente restrito. Todo O aparato de conceit definigdes e instrumentos de andlise que ela oferece se limita ao estudo frase: 0 ponto final da frase escrita 6 © ponto final da andlise gramatical 4, 0Fa, a lingua no se manifesta nem em palavras soltas nem em frases i: ladas e descontextualizadas, Toda e qualquer manifestagdo da linguage! iin’ falada ou escrita, necessariamente, invariavelmente, inevitavelmente u yw | texto. O texto é que tem que sero Ponto de partida para qualquer estut 1} da linguagem humana em acao, em interacdo. Os estudos gramaticais tras #) ‘| dicionais, no entanto, ndo levam isso em conta e tudo 0 que conseguem a fazer é analisar a frase, a oragdo ou, quando muito, 0 periodo composto por 4\ | Mais de uma oracdo. Com isso, todo um mundo de coisas interessantes, fascinantes e importantes para o entendimento da linguagem humana se erde, nao € estudado, fica oculto. O portugués da gente. Sao Paulo, Vale a pena citar aqui as palavras de Rodolfo lar pottexts; 2006; Di8ta, € Renato Basso a respeito disso: Para a maioria das pessoas escolarizadas, o sumério das graméticas funcio- na como uma espécie de representagso padrao da lingua e isso € ruim, por- que essa representacdo é muito pobre. "Nada na lingua € por acaso: por uma pedagogia da variac&o linguistica “S=> dessa pobreza, dessa quase indigéncia do retrato que oferece da lin- 2 Gramatica Tradicional, como ja sabemos, se preocupa exclusivamente om a lingua escrita e, dentro do universo da escrita, somente coma lingua ‘Gos grandes autores, dos “classicos”. Com isso, mais uma vez, todo um mun- '@ fica desprezado: 0 mundo da lingua falada, com suas especificidades, om seus mecanismos prdprios. Todo e qualquer ser humano (desde que seja mudo, evidentemente) fala muito mais do que escreve, mesmo seja uma pessoa altamente letrada, mesmo que seja um profissional da =scrita, mesmo que escreva 50 paginas por dia. Falar € tao imprescindivel e etural para o ser humano quanto respirar, andar, ver, beber 4gua, comer Escrever também é importante, e essa importancia cresce cada vez #sna sociedade contemporanea, mas é um conhecimento de outra natu- , semelhante a tocar piano, guiar um automdvel, dancar balé classico, tric, pilotar um aviao, formatar o disco rigido de um computador... — uém nasce sabendo essas coisas, elas dependem de estudo prolonga- consciente, de condicionamentos fisicos e mentais, de treinamento stante etc. Por isso é inconcebivel, nos dias de hoje, estudar a lingua inte em sua modalidade escrita e, para piorar, somente na modalidade ta literaria, que € um uso extremamente minoritario da lingua escrita, J um uso minoritario da lingua. matica Tradicional: preconceitos sociais de ser anacr6nica como teoria linguistica, a Gramatica Tradicional também nstituiu com base em preconceitos sociais que revelam o tipo de soci- em que ela surgiu — preconceitos que vém sendo sistematicamente ciados e combatidos desde 0 inicio da era moderna e mais enfaticamente timo 100 anos. Nao causa nenhum espanto que esses preconceitos este- =mbutidos num aparato intelectual surgido no século Ill a.C. — 0 espantoso existam pessoas que queiram usar esse aparato sem submeté-lo a critica, sesociedade como a brasileira do século XXI, como se estivéssemos vivendo indria do Egito sob o reinado dos Ptolomeus! . © produto intelectual de uma sociedade aristocratica, machista, wagista, oligarquica, fortemente hierarquizada, a Gramatica Tradicional como modelo de “lingua exemplar” 0 uso caracteristico de um grupo #0 de falantes: Poruma reecucago socioinguistica do sexo masculino; livres (nao escravos); membros da elite cultural (letrados); cidadaos (eleitores e elegiveis), membros da aristocracia politica; detentores da riqueza econémica. Os formuladores da Gramatica Tradicional foram os primeiros a perceber as duas grandes caracteristicas das linguas humanas: a variagao (no espaco) eamudanga (no tempo). No entanto, a percepcao que eles tiveram da varia- cdo e da mudanca lingufsticas foi essencialmente negativa. Por causa de seus preconceitos sociais, os primeiros graméaticos considera- vam que somente os cidadaos do sexo masculino, membros da elite urbana, letrada e aristocratica falavam bem a lingua. Com isso, todas as demais varie- dades regionais e sociais foram consideradas feias, corrompidas, defeituo- sas, pobres etc. Ainda na questdo da variacao, os primeiros gramaticos, comparando @ lingua escrita dos grandes escritores do passado e a lingua falada espontanea, concluiram que a lingua falada era cadtica, sem regras, ild- gica, e que somente a lingua escrita literaria merecia ser estudada, ana- lisada e servir de base para o modelo do “bom uso" do idioma. Essa separacdo rigida entre fala e escrita é rejeitada pelos estudos linguisti- cos contemporaneos, mas continua viva na mentalidade da grande maio- \ tia das pessoas. Comparando também a lingua falada de seus contemporaneos e a lingua escrita das grandes obras literarias do passado, eles concluiram que, com 0 tempo, a lingua tinna se degenerado, se corrompido e que era preciso preservé-la da ruina e da deterioragao. Tinham, portanto, uma vis&o pessi- mista da mudan¢a, resultante do equivoco metodolégico — que s6 veio a ser detectado e abandonado muito recentemente — de comparar duas modalidades muito distintas de uso da lingua (a escrita literaria e a fala espontanea), desconsiderando a existéncia de um amplo espectro conti- nuo de géneros textuais entre esses dois extremos. (Vamos tratar disso, mais demoradamente no capitulo 8.) Nada na lingua & por acaso: por uma pedagogia da vatiacéo lingulstica Gramatica tradicional: o bercgo da nogao de “erro” “Sssim, 0s elaboradores das primeiras obras gramaticais do mundo ociden- definiram os rumos dos estudos linguisticos que iam perdurar por mais dois mil anos: desprezo pela lingua falada e supervalorizagao da lingua escrita literaria;, depreciacao das variedades nao urbanas, nao letradas, usadas por falantes excluidos das camadas sociais de prestigio (excluséo que atingia todas as mulheres), criagao de um modelo idealizado de lingua, distante da fala real con- eS temporanea, baseado em opgoes |4 obsoletas (extraidas da literatu- ra do passado) e transmitido apenas a um grupo restrito de falantes, ‘0s que tinham acesso a escolarizacéo formal. consequéncia disso, passa a ser visto como erro si todo e qualguer uso que escape desse modelo idealizado, toda e qual- quer op¢o que esteja distante da linguagem literaria consagrada; toda prontincia, todo vocabulario e toda sintaxe que revelem a ori- gem social desprestigiada do falante; iN tudo 0 que néo conste dos usos das classes sociais letradas urba- | 1M nas com acesso a escolarizacao formal e a cultura legitimada. ® o Essim, fica excluida do "bem falar" a imensa maioria das pessoas — um tipo exclusdo que se perpetua em boa medida até a atualidade. preceitos e preconceitos da Gramatica Tradicional sO comecaram a ser ques- nados a partir do século XIX, com o surgimento das primeiras investigagoes uisticas de carater propriamente cientifico. Embora contestada pela ciéncia "moderna, aquela visdo arcaica e preconceituosa de lingua e de linguagem pene- ‘ou no senso comum ocidental e ali permanece firme e forte até hoje. Gramatica: é ou nao é para ensinar? or isso, para as pessoas que a todo momento nos perguntam: "E ou no é Gera ensinar gramética?”, a resposta é: se for para ensinar gramatica como. mera repeticao da doutrina tradicional, anacronica e encharcada de pre- Por uma reeducagao sociolinguistica conceitos sociais, definitivamente nao é para ensinar gramatica. Se “ens nar gramatica” for entendido como decoreba de nomenclatura sem nenhus objetivo claro e relevante, andlise sintatica de frases descontextualizadas as vezes até ridiculas, definitivamente nao é para ensinar gramatica. Mas se por gramatica entendermos 0 estudo sem preconceitos do funciona mento da lingua, do modo como todo ser humano é capaz de produzir lingua gem e interagir socialmente através dela, por meio de textos falados e critos, portadores de um discurso, entéo, definitivamente 6 para ensi gramatica, sim. Na verdade, mais do que ensinar, é nossa tarefa const! © conhecimento gramatical dos nossos alunos, fazer com que eles dese bram o quanto ja sabem da gramatica da lingua e como é importante $ conscientizar desse saber para a producdo de textos falados e escritos COs sos, coerentes, criativos, relevantes etc. Num dos textos mais importantes ja escritos no Brasil sobre esse tema, & linguista Carlos Franchi resume assim 0S problemas envolvidos no “ensino Gs gramatica”: > apesar de tudo 0 que tem sido dito pela Linguistica e pela Pedagogia, man= tém-se um viés normativo que néo se limita a levar os alunos ao dominio da modalidade culta ¢ escrita (um dos objetivos da escola), mas que constitu um fator importante de discriminagio e repressao linguisticas; enquanto sistema nocional descritivo, a gramatica escolar esconde intui- Ges interessantes sobre a linguagem sob uma capa de definigdes e um conjunto de critérios que nao dao conta dos fa- Esse texto se chama “Criatividadee tos das Iinguas naturais; eramética’, foi produzido original _enquanto pratica escolar, o ensino gramati- RR Gee ee eae a Ra A a ea mente em 1988 ¢ recentemente pu- blicado, junto com outros textos de in os ease Seen RR APIS. térias de descoberta e de classificagao de do em 2001, no auge de sua maturi- segmentos de oracées; dade intelectual), no livro Mas 0 que em nenhum dos casos se busca responder & é mesmo “gramdtica”? (pp. 79-80), questdo relevante para qualquer estudo gra- que est em nossas Indicagdes de matical da linguagem: por que as expressées Leitura. Poucas vezes alguém teré say z eee eae neice significam aquilo que significam. profundidade sobre essa questio __ Emconjunto, pois, no hd nenhuma conexao pos- crucial para a pedagogia da lingua _—sfvel entre gramética e uso, entre gramética € materna no Brasil. Com isso, esse produgao e compreensao de textos: os estudos. texto se torna leitura obrigatériapara —_gramaticais nas escolas operam sobre objetos todos os profissionais envolwidos nes- eer eae mortos ou sobre guardados de museu [...] cal se reduz.ao exercfcio de técnicas insatisfa- Nada na lingua & por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica esse texto fundamental de Franchi, existe um importante volume de es € propostas sobre o (nao) ensino da graméatica, e a pessoa inte- 4 nisso ou comprometida profissionalmente com isso n&o pode ficar srendo que esse ou aquele linguista oferega a resposta pronta. Assim, Wdicacdes de Leitura oferecemos alguns bons titulos para quem quiser seriamente a esse respeito: autores como Irandé Antunes, Magda == Rodolfo llari, Joo Wanderley Geraldi, Luiz Percival L. Britto, Ataliba T. iho, Mario A. Perini, Paulo Coimbra Guedes, Carlos Alberto Faraco, snio Marcuschi, Maria da Graca Costa Val, Maria Cecilia Mollica, Angela . Inés Signorini, Antonio Augusto Gomes Stella Maris Bortoni-Ricardo, Sirio j, Maria Helena de Moura Neves, Rosa Eas: Além dos trabalhos individuais dos autores aqui citados, cabe também destacar a importante produgao cen- = Mattos e Silva, Ingedore Koch, Lulz Carlos: %2, entre outros, tem muito o que nos apre- 2 esse respeito. Também oferecemos al- sugestes de livros didaticos elabora- tralizada no CEALE (Centro de Al- fabetizacdo, Leitura e Escrita), vin- culado 4 Faculdade de Educagao da Universidade Federal de Minas Ge- rais (UFMG). Ali, sem diivida, se ‘entro de um espirito que valoriza a inteli- dos alunos e dos professores, livros di- que nao partem do pressuposto enga- de que “ninguém sabe a lingua” e que so- produz o que ha de mais avangado em termos de reflexdo e agéo no ‘campo da educacdo em lingua ma- tera no Brasil. 0 portal do CEALE na internet é um excelente acervo de informacio e formagao para to- dos os profissionais da area: www fae.ufimg.briceale. = na escola esse conhecimento vai ser fi- ate adquirido... ————___— Mhguistas tém tido grande influéncia na oracdo dos programas oficiais de ensino (em nivel federal, estadual, pal), tem elaborado projetos de formagao continuada de profes- _ 46m colaborado estreitamente com as instancias oficiais de edu- para tracar uma politica de livro didatico coerente com os novos semas cientificos educacionais. Como se vé, nao existe mais justi- @ para continuar “ensinando portugués” 4 moda antiga, sob 0 pre- 5 de que “vocés, linguistas, nao puseram nada no lugar da gramati- mativa” — pusemos, sim, € sO arregacar as mangas, ler, estudar, re construir suas préprias alternativas. ico da queixa Scesso de normatizacdo, ou padronizacao, retira a lingua de sua realida- Scial, complexa e dindmica, para transformd-la num objeto externo aos or uma reeducagao sociolingustica aos falantes, numa entidade com “vida prépria”, (supostamente) independen- te dos seres humanos que falam, escutam, escrevem, leem e interagem por meio dela. Isso torna possivel falar de “atentado contra o idioma”, de “pecado contra @ lingua”, de “atropelar a gramatica” ou “tropecar no portugués”. Todo ess discurso da a entender (enganosamente) que a lingua esta fora de nés, que ela € um objeto externo, alguma coisa que n&o nos pertence e que, pare piorar, € de dificil acesso — uma espécie de saber esotérico que sé alguns poucos iluminados conseguem atingir. Traduzimos por “tradic¢ao da quei- A criagéo de um padrao de lingua muito distan- xa” a expressio “the complaint te da realidade dos usos fez surgir, em todas as tradition”, cunhada pelo casal de —_sociedades ocidentais, uma milenar “tradi¢ao ee tes da queixa”. Em todos os paises, em todos os Authority in Language (1985). perfodos histéricos, sempre aparecem as mani festagdes (em geral enfurecidas) daqueles que lamentam e deploram a “ruina” da lingua, @ “corrupcdo” do idioma etc. Acerca da suposta decadéncia da lingua portu- guesa, por exemplo, a gente encontra as seguintes declaracées apocalipticas. que se desdobram ao longo de quase 300 anos: ) “Se nao existissem livros compostos por frades, em que 0 tesouro esta conservado, dentro em pouco podiamos dizer: ora morreu a lingua portu- guesa, e nao descansa em paz” (José Agostinho de Macedo [1761-1831], escritor portugués). “Temos a prosa histérica, abastardada, exangue e desfalecida de uma raga moribunda. A nossa pobre geracao de anémicos da a historia das letras um ciclo de tatibitates” (Ramalho Ortigao [1836-1915], escritor & politico portugués), — #y “(...] portugués — um idioma que de tao maltratado no dia a dia dos brasileiros precisa ser divulgado e explicado para os milhGes que 0 tm. como lingua materna” (Mario Sabino, Veja, 10/9/1997). “Nao fique nenhuma divida, o portugués do Brasil caminha para a degra~ dagao total” (Marcos de Castro, A imprensa e 0 caos na ortografia, Ed. Record, 1998, pp. 10-11). “Que lingua falamos? A resposta veio das terras lusitanas. Falamos o caipirés. Sem nenhum compromisso com a gramatica portuguesa. Vale tudo [...]” (Dad Squarisi, Correio Braziliense, 22/7/1996). "Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da varlagao linguistica “Nunca se escreveu ¢ falou tao mal o idioma de Ruy Barbosa” (Arnaldo Niskier, Folha de S. Paulo, 15/1/1998). ‘L.-Jo usuario brasileiro da Itgua [...] comete erros, impropriedades, diotismos, solecismos, barbarismos e, principalmente, barbaridades” (Luis Anténio Giron, revista Cult, n° 58, junho de 2002, p. 37). da na lingua é por acaso y contraposig¢ao a nogao de “erro”, e a “tradicdo da queixa” derivada dela, a la linguistica oferece os conceitos de variagao e mudanga. Enquanto a iatica Tradicional tenta construir uma “lingua” como uma entidade homo- € estavel, a Linguistica reconhece a lingua como uma realidade intrinse- nte heterogénea, variavel, mutante, em estreito vinculo coma dina- social e com os usos que dela fazem os seus falantes. Uma sociedade_. mamente dindmica e multifacetada s6 pode apresentar uma lingua igual- dinémica e multifacetada, EX vthe feuan, 7 FO\ 0% contrario da Gramatica Tradicional, que afirma que existe apenas uma certa de dizer as coisas, a Linguistica demonstra que todas as for- de expresso verbal tém organizacao gramatical, seguem regras e uma légica linguistica perfeitamente demonstravel. Ou seja: nada na € por acaso. ex € envay =xemplo: para os falantes urbanos escolarizados, proniincias como bro- "srés, chicrete, pranta etc. so feias, erradas e toscas. Essa avaliacao se € essencialmente a0 fato dessas pronuincias caracterizarem falantes jalmente desprestigiados (analfabetos, pobres, moradores da zona rural ). No entanto, a transformacao do L em R nos encontros consonantais eu amplamente na historia da lingua portuguesa. Muitas Palavras que = tém um R apresentavam um L na origem: LATIM PORTUGUES blandu- brando clavu- cravo duplu- dobro flaccu- fraco fluxu- frouxo obligare obrigar placere- prazer plicare pregar plumbu- prumo Por uma reedticacao sociolinguistica Assim, 0 suposto “erro” é na verdade perfeitamente explicavel: trata-se do seguimento de uma tendéncia muito antiga no portugués (e em outras Ii que os falantes rurais ou nao escolarizados levam adiante. Esse fenmeno até um nome técnico na Linguistica historica: rotacismo. Muitas dessas vras com R estéo documentadas em textos escritos no portugués medi indicio de que, em algum momento da hist6ria, elas gozaram de prestigio, de serem substituidas (no século XVI, no periodo da relatinizacao) pelas f¢ com L. Isso para néo mencionar a ocorréncia de PRANTA, PRUMA, PUBRICA, INGRES! obra-prima de Camdes, Os Lusiadas (1572), em pleno periodo renascentista. Esse é sO um minimo exemplo de que tudo 0 que é chamado de “erro” uma explicagao cientifica, tem uma razdo de ser, que pode ser de of! fonética, seméntica, sintatica, pragméatica, discursiva etc. Falar em “erro” lingua, dentro do ambiente pedagogico, é negar o valor das teorias cientifi e da busca de explicacdes racionais para os fendmenos que nos cercam. A variagao nao é exclusiva dos falantes nao escolarizados! O exemplo apresentado acima (mudanga de L para R em encontros con nantais) néo deve levar ninguém a supor que esses fendmenos varidveis mutantes s6 ocorrem na lingua dos falantes rurais, sem escolarizacao, bres etc. Eles também ocorrem na lingua dos falantes.“cultos”, urbanos, trados etc., muito embora esses mesmos falantes acreditem ser os legiti representantes da lingua “certa”. BA E preciso ficar bem atento a esse respeito porque, como vamoswer no ca tulo 5, muita gente tem a tendéncia de achar que “norma- padréio” “nom culta” séo a mesma coisa, e que os falantes escolarizados, irbanos e. privil giados economicamente falam “melhor” ou “mais certo” do que os pobres” analfabetos etc. Essa distorgéo aparece frequentemente nos livros didaticos: de portugués, onde é muito comum o fenémeno da variacao linguistica ser tratado como exclusividade dos falantes rurais — 0 que explica a presenga: tao insistente das tirinhas do Chico Bento nos livros e materiais didaticos, como se $6 existisse variagao (isto é, no fim das contas, “erro”) na fala dos “caipiras” e “matutos”. Vamos cuidar melhor disso no capitulo 6. Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacdo lingulstica xemplo: ALUGAM-SE SALAS OUI ALUGA-SE SA" Estamos aqui diante daquilo que a @ Apesar da gramética normativa exigir 0 nossa tradi¢ao mormativa chama de no plural, a grande maioria dos brasileiros Pas” sii as cee de, uma invengao dos gramaticos, Sos portugueses) mantém 0 verbo no singu- porque essa tal de “passiva sintéti- = nao é por ignorancia nem por preguica ca” provavelmente nunca existiu de por qualquer outra explicagao preconcel- ee a Hague: come ae zi Fs ‘exemplos literdrios de todas as fases. psa desse tipo. A andlise sintatica tradicional hyistéricas do portugués (inclusive em 2 é ilégica, ao atribuir a fungao de sujeito a Camébes, considerado 0 “pai” do por- como se salas pudessem ALUGAR algu- eee Leite e : 2 lo e irracional querer continuar im- ‘oisa, um verbo que s6 pode ser desempe: pondo uma “concordancia” que no 0 por seres humanos. O falante, intuitiva- faz o menor sentido e contraria to- ente, analisa saLas como objeto direto e 0 pro- talmente a intuicao lingufstica do € SE como 0 verdadeiro sujeito da oracao, pla seanticamente indeterminado —e como no —! Bee UCL + escolaridade aan se PaO + urbano peeeene > + ESTIOMA olpjisaud + Assim, aquilo que para O sociolinguista representa apenas: "diferenga” no uso da lingua, para as pessoas em geral vai representar, de fato, um “erro”, um “defeito”, um sinal de “ignorancia”. Por isso, venho repetindo que onde tem variacéo sempre tem também avaliacao. Essa avaliagdio pode ser positiva, se a pessoa julgar que seu/sua interlocutor/a pertence a uma classe social mais prestigiada, tem “mais estudo”, exerce uma orofissao valorizada socialmente. E 0 que esta presente em comentarios do tipo “Fulano/a fala muito bem’” ou "sabe falar bonito”. Muitas vezes, esse “falar bem” ou “falar bonito” é, na verdade, uma habilidade de uso da linguagem para seduzir ou persuadir 0/a interlocutor/a, com 0 USO de vocabulério sofisticado € construcées sintaticas pouco usuais, com o objetivo de causar impressdo, mais do que de dizer coisas relevantes e ben fundamentadas. A avaliagéo é negative quando as formas linguisticas usadas pela pessoa nao correspondem ao ideal de "correcao" previsto nas gramaticas normativas e, por isso, so evitadas pelos membros da comunidade familiarizados com os usos linguisticos mais padronizados, sobretudo da escrita mais monitorada. Nunca é demais repetir: a avaliagao é essencialmente social, isto é, nao é propriamente a lingua que esta sendo avaliada, mas, sim, a pessoa que esta usando a lingua daquele modo. Pense, por exemplo, no que acontece com a prontincia do chamado “R caipi- ra” (retroflexo), que aparece @M PORTA, VERDE, cerTO etc. AS pessoas que nao 4m oR retroflexo em sua variedade linguistica consideram que essa pronun- cia é “feia”, "grosseira”, “coisa de jeca” etc. No entanto, essas mesmas pes- soas pagam caro para aprender inglés e pronunciar o mesmo R retroflexo em palavras COMO CAR, ORDER, MURDERER €tC. £ o mesmissimo som, mas quando € Por uma reeducagao sociolinguistica pronunciado por americanos ele é “chique”, quando é pronunciado por gente do interior de Sao Paulo e de outros estados ele é “feio”... Da para entender?) Claro que da: so dois pesos e duas medidas, toda Por isso, o linguista italiano (que uma grade de avaliacdo social que — insisto — viveu no Brasil) Maurizzio Gnerre ng tem nada a ver com 0 fato linguistico em si, Ran Gees mas com os valores sociais atribuidos a quem falantes”, no livro que aparece nas _ fala. 0 qué, onde, quando e como! Indicagées de Leitura. O que fazer na escola? Diante de tudo 0 que se argumentou até agora, como devemos tratar os fend- menos de variacdo e mudanca na educa¢ao em lingua materna? Existem trés respostas possiveis: (a) desconsiderar as coniribui¢des da ciéncia linguistica e levar adiante a nocao de “erro”, insistindo no ensino da gramatica normativa e da norma-padrao tradicional como tinica forma “certa” de uso da lingua; aceitar as contribuigGes da ciéncia lingufstica e desprezar totalmente aantiga nocao de “erro”, substituindo-a pelos conceitos de variagao. e mudanga; reconhecer que a escola é o lugar de intersegao inevitavel en- tre o saber erudito-cientifico e o senso comum, e que isso deve ser empregado em favor do/a estudante e da formacao de sua cidadania. A opcao (a), embora apareca quase diariamente na midia, patrocinada pelos atuais “defensores” da lingua que se apoderaram dos meios de comunica- Go, tem de ser veementemente rejeitada por causa de seu carater obscu- rantista, dogmatico, autoritario e, muitas vezes, irracional. A opcao (b), apesar de sua aparéncia de postura inovadora e progressista, na verdade despreza a anélise da dinamica social e da complexidade das rela- des sociolinguisticas. Acredito que a op¢ao (c) € aquela que melhor nos orienta para um tratamen- to sereno e equilibrado do intrincado relacionamento linguagem-sociedade- -ensino. Essa opco ajuda a gente a compreender a “dupla face” do que se chama, no senso comum, de “erro de portugués”: Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da variacao linguistica FACE LINGUISTICA FACE SOCIOCULTURAL ‘Nao existe, ndo é conside- jo erro, mas um fendme- no linguistico passivel de ‘ser explicado por teorias cientificas. Existe, é decorrente das avaliagoes lancadas sobre 0s falantes, segundo critérios (preconceitos) puramente sociais. ‘Qualauer andlise que desconsidere um desses pontos de vista — 0 cientifico 20 do senso comum — serd, fatalmente, incompleta e ndo favoreceraé uma reflexdo que permita analisar a realidade linguistico-social, nem ajudaré na elaboracao de politicas que auxiliem na constituigéo de um ensino verdadei- ramente democratico e formador de cidadaos. A escola entre a ciéncia e o senso comum Aescola nado pode desconsiderar um fato incontornavel: os comportamentos sociais ndo sdo ditados pelo conhecimento cientifico, mas por outra ordem de discursos e saberes — representacées, ideologias, preconceitos, mitos, supersticdes, crengas tradicionais, folclore etc. Essa outra ordem de discursos e saberes pode até sofrer influéncia dos avangos cientificos, mas quase sempre essa influéncia se faz de forma parcial, redutora e distorcida. Querer fazer ciéncia a todo custo na escola sem levar em conta a dinamica social, com suas demandas e seus conflitos, é uma luta fadada ao fracasso. A Sociolinguistica nos ensina que onde tem variacao (linguistica) sempre tem avaliagao (social). Nossa sociedade € profundamente hierarquizada e, ‘em consequéncia disso, todos os valores culturais e bens simbdlicos que nela circulam também esto dispostos em escalas hierarquicas que vao do “bom” a0 “ruim", do “certo” ao “errado", do “feio” ao “bonito” etc. E entre esses valores culturais e bens simbélicos esta a lingua, certamente o mais importante deles. Nao foi por acaso que 0 socidlogo francés Pierre Bourdieu formulou toda uma teoria sobre “a economia das trocas linguisticas”. Por mais que os linguistas rejeitem a norma-padrao tradicional, por néo corresponder as realidades de uso da lingua, eles nao podem desprezar 0 Por uma reeducagao sociolinguistica fato de que, como bem simbdlico, existe uma demanda social por essa “lingua certa”, identificada como um instrumento que permite acesso ao cii- culo dos poderosos, dos que gozam de prestigio na sociedade. A linguista holandesa Renate Bartsch, que estuda a problematica da norma, afirma com muita clareza: [...] no tocante & preocupaco com a correc4o, esta é uma atitude necessa- ria, carregada de valor positivo e coerente com um trago caracteristico € comum do estilo de vida dos humanos: o desejo pe aries ABN Lae de controlar suas ages e produtos e de procu- Theoretical and Practical Aspects. i oe e London / New York: Longman (p.227), Tat 0s meios necessarios para garantir que os instrumentos linguisticos de comunicagao e interagdo sejam amplamente reconhectveis e interpretaveis. Também o sociolinguista britanico James Milroy € enfatico ao tratar des- ses temas: A forma canénica da lingua é uma heranga preciosa que tem sido construfda ao longo das geracdes, nao pelos milhdes de falantes nativos, mas por uns poucos escolhidos que consagraram amoroso cuidado & tarefa, polindo, refinando e enriquecendo a lingua até ela se tornar um sutil instrumento de expresso [...]. Essa é uma opinifio sustentada por pessoas em diversos campos de atuacio, incluindo encanadores, politicos e professores de literatura. Acredita-se que se a variedade canénica nao for universalmente defendida e protegida, a lingua inevitavelmente vai declinar e decair: [...] Alguns linguistas vém tentando se engajar em debates sobre essas questées, em geral denunciando que tais opi- nides sdo erréneas, e parece que eles nem sempre tém entendido plenamente o poder das ideologias da lingua que dirigem a opiniao piblica sobre esses temas. Um componente bésico do raciocinio, aqui, deriva da crenca de que a lingua é um bem cultural, anélogo a religiao e aos sistemas legais, mais do que parte das faculdades mentais ou cognitivas do ser humane. [...]. No entanto, na medida em quea lingua realmente é um objeto cultural, dificilmente se pode dizer que aquelas opinides so inteiramente extraviadas, e neste sentido tampouco sao irracionais. Assim, por tal qualidade, elas tém de ser respeitadas e levadas a 5 sério. Opiniges piblicas sdo profunda e sincera- ES eee ae see mente sustentadas ¢ amplamente difundidas na zation. Journal of Sociolinguistics 5) Sociedade, por mais que os linguistas possam 4; 530-555. Oxford: Blackwell. consideré-las infundadas. Nada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da varlagéo linguistica m Bartsch nem Milroy nem nds aqui estamos entao vamos deixar as coisas ComO estdo, tifico sobre a lingua € continuar apegados oreciso ter muita atencao! Net que, jé que € assim mesmo, deixar de lado o discurso cient tradicional, ao senso comum. Nada disso... sem nos lembra Pierre Bourdieu, 5 de mais, e sobretudo, romper construir um objeto cientifico é, antes resentacdes partilhadas por © senso comum, quer dizer, com rep . quer se trate dos simples lugares-co- da existéncia vulgar, quer se trate das P. Bourdieu (2003): O poder simbé- lico, Rio de Janeiro, Bertrand Bra- nntacoes oficiais [...] © pré-construldo Gs eq (p. 34 em toda parte. sil, 6 ed. @. ge 0 cientifico-pedagoErn Tee 4 tarefa exclusiva do sta — NO NOsso caso, do linguista —, mas também é uma atribuigao da , como. instituigédo mantida e/ou controlada pelo Estado, instituigado em o cidadao e a cidadé recebem sua formagao intelectual, junto com uma cdo ética € politica. jonstrugao de um objet nhecer o senso comum, mas bém lutar contra ele, se for 0 caso sociedade que quer ser verdadeiramente democratica, é preciso cO- er, descrever, denunciar e combater 0S componentes do senso comum funcionam como repressores da liberdade individual e coletiva, como imentos de discriminagdo social, de humilhacao, de opressao psicoldgi- 2 até mesmo de violencia fisica. persticoes, mitos e crendices que dominaram a social durante séculos a fio vem sendo sistematicamente abandonados, mesmo gracas a intervenco explicita do Estado, na busca de um convi- mais harmonioso, pacifico e justo entre as pessoas. oléncia contra a mulher sempre foi praticada € aceita como “normal”, mas em dia ela é veementemente condenada e combatida nas sociedades de legislacao especifica & de instituigoes “Smocraticas, inclusive por meio Ghcizis criadas para defender os direitos das mulheres. O mesmo se pode stos habitos, costumes, SU por uma reeducagao soctolingustica dizer com relag&o ao racismo, ao trabalho infantil, exploracdo sexual de me- nores de idade, a exclusao social dos portadores de deficiéncias, a violénci contra os homossexuais, ao trabalho escravo e a tantas outras praticas q aviltam a dignidade dos seres humanos, Contra tudo isso existem leis que prt tegem as vitimas e impdem penalidades aos infratores. £ verdade que, no sel so comum, ainda circulam com muito vigor as ideologias machistas, sexista: racistas etc., mas néo é por isso que nds, cidadas e cidadaos consciente vamos permitir que as praticas inspiradas nessas ideologias continuem imp\ nes. E nossa tarefa se torna ainda mais importante quando exercemos a profi dio docente, quando temos que ensinar e educar outras pessoas. Por uma reeducacao sociolinguistica! A professora e ao professor de lingua portuguesa cabe 0 trabalho da reed! cacao sociolinguistica de seus alunos & de suas alunas. O que signifi isso? Significa valer-se do espago e do tempo escolares para formar cidada e cidadaos conscientes da complexidade da dinamica social, conscient das miultiplas escalas de valores que empregamos a todo momento em ni sas relacdes com as outras pessoas por melo da linguagem. Por que reeduca¢ao? Porque a educa¢ao lingufstica priméria, primeira, mordial se da logo no inicio da vida de qualquer pessoa, quando ela e! num mundo rodeado de outras pessoas que nao param de falar ao seu red Quando (ou se) essa pessoa vai para a escola, tudo o que ela aprendeu pontaneamente até ent&o em seu convivio familiar, comunitario, social vai transformar em saber formalizado, sistematizado, delimitaco em areas pecificas de conhecimento, rotulado por meio de conceitos, explicado c aajuda de teorias. No caso da lingua, antes de mais nada, a crianca vai aprender a ler e a esci ver, isto 6, vai ter acesso a uma outra modalidade de uso linguistico q muitas vezes, pode nao estar presente em seu ambiente familiar. Essa mi ma crianca que usa sem nenhum problema, por exemplo, as formas EU TO, EU CANTEI, EU VOU CANTAR vai descobrir que cada uma dessas formas di rentes recebe respectivamente o nome de “presente do indicativo”, “preter to perfeito”, “futuro perifrastico” e que todas sao “verbos”. Vai descobrir que: lingua, junto com tantas outras coisas que ela conhece, pode se transfo! Nada na lingua 6 por acaso: por uma pedagogia da variagao linguistica s objeto de estudo sistematico, em que as regularidades de funciona- 0 podem ser apreendidas em regras mais gerals, que tentam explicar = funcionamento. Vai descobrir, principalmente, que a lingua € muito mais Sie do que ela supunha, que existe todo um mundo de palavras, de signi- aos e de formas de dizer que, quanto mais a gente explora, mais tem 0 explorar. Vai descobrir que além da forma EU CONHECO ELA, que faz parte su repertorio, também existe EU A CONHECO, EU CONHECO-A. Que além de cantar também existe CANTAREL Que além de TEM MUITA GENTE Qui tam- se pode dizer HA MUITA GENTE AQUI. Que além de AQUELAS FRO BONITA MURCHO so também existe TODAS AQUELAS FLORES BONITAS MURCHARAM.... ém de aprender todas essas novidades sobre a lingua, também vai apren- = que todas as suas manifestagdes verbais — faladas ou escritas — estao sitas ao julgamento social, a avaliacdo das outras pessoas com quem e tiver de interagir. <9 deixa claro que as pessoas que, na melhor das intencées, dizem que “tudo | fingua vale” e que “O importante € a comunicagao” estéo redondamente | ivocadas. A lingua nao é simplesmente um "meio de comunicacao" — ela é poderoso instrumento de controle social, de manutengao ou ruptura vinculos sociais, de preservagao ou destrogamento das identidades indivi- is, de promogao ou de humilhagao, de inclusdo ou de exclusao. fingua é lugar e meio de conflito, porque a sociedade em que vivem Os =us falantes também € conflituosa. Embora 0 linguista diga que NOs val e NOS. os so variantes, isto é, "duas formas diferentes de dizer a mesma coisa”, 0 de cada uma delas comunica coisas que n&o s4o “as mesmas” para quem © a construcdo gramatical Ae @ construgao gramatical B — comunica a gem social de quem fala 4 ou 8, Seu status socioecondmico, seu prestigio ou esprestigio na hierarquia da comunidade, sua insercéo maior ou menor na suitura letrada, sempre mais valorizada que a cultura oral... Por isso, © discur- <0 do linguista nao pode dispensar 0 discurso do socidlogo, do antropdlogo, do SOs0f0, do psicdlogo, do pedagogo para dar conta do que realmente acontece ‘Quando a gente abre a boca para falar ou quando se poe a escrever. or isso estamos falando de uma reeducacao, de uma educacao nova, de uma reorganizagao dos saberes linguisticos que nao tem nada que ver com “corregao” nem com substituicao de um modo de falar por outro — ao con- sario, a reeducacao sociolinguistica tem que partir daquilo que a pessoa ja sabe e sabe bem: falar a sua lingua materna com desenvoltura e eficiéncia. por uma reeducacao sociolinguistica Eéuma reeducagao sociolinguistica porque é através dela que 0 aprend conhecerdé os juizos de valor sociais que pesam sobre cada uso da lingu O trabalho da reeducacao sociolinguistica implica, entre outras coisa’ para a professora: a a & fazer o/a aluno/a reconhecer que & possuidor/a de plenas capack dades de expressao, de comunicagao, isto é, possuidor/a de umd lingua plena e funcional, de uma lingua que € um instrumento eficaz de interacdo social e de autoconhecimento individual — em outras palavras, promover a autoestima linguistica dos alunos e das alu= nas, dizer-Ines que eles sabem portugués € que a escola vai aju= dar a desenvolver ainda mals esse saber, levar o/a aluno/a a tomar consciéncia da escala de valores que existe na sociedade com relacdo aos USOS da lingua: algumas var dades linguisticas $60 consideradas mals “ponitas" e “certas” GU! outras; alguns sotaques ao valorizados, outros sao ridicularizados; (os usos escritos Sao mais prestigiados que 0S usos orais etc. — Mm atencao. tomar consciéncia nado significa aceitar essa situ cao de discriminagao nem submeter-se a ela! garantir 0 acessO dos alunos e das alunas @ outras falar e de escrever, isto 6, permitir que aprendam e al variantes linguisticas diferentes das que eles/elas ja dominam isso significa ampliar © repertorio comunicativo, ter a sua disp sigao um numero maior de opgdes, que poderao ser empregad de acordo com as necessidades de interagao; conscientizar 0 aluniado de que a lingua & usada como elemento promocao social e também de repressdo € discriminagao comparar 0 preconceito linguistico com @s outras formas de prec ceito que vigoram na sociedade; desconstrulr 0 preconceito linguist co com argumentos bem fundados e alertar alunos € alunas cont suas proprias praticas de discriminagao por melo da linguagem, trabalhar para a insergao plene dos alunos e das alunas Na cult jetrada, por melo das praticas ininterruptas da escrita e da leitur isto 6, praticas de letramento — promover 0 conhecimento ati das convencdes dos muitos géneros textuals que circulam na soci dade, sobretudo dos géneros escritos mals monitorados; promo a formago do \eitor literario autonomo; ada na lingua é por acaso: por uma pedagogia da vareceo lingufstica promover o reconhecimento de diversidade linguistica como uma riqueza da nossa cultura, da nossa sociedade, ao lado de outras di- versidades culturais e até mesmo da biodiversidade natural — mui- tos estudiosos falam de uma ecologia linguistica, em que a diver- sidade das linguas e das variedades linguisticas deve ser valorizada e preservada como bem inestimavel da espécie humana. %4cil ver que a reeduca¢do sociolingutstica alunos e das alunas passa, inevitavelmente, reeducacdo sociolinguistica do proprio sor, da prépria professora. Um/a pro- nal da educacdo em lingua materna nao compartilhar das mesmas ideologias ar- 2s € preconceituosas sobre lingua que cir- m no senso comum, se de fato quiser se ajar numa pratica docente libertadora e BEIZAUOAS caren mar ae si 2 isso, € preciso que a professora saiba usar maneira critica e auténoma os materiais di- ‘“@ricos que se encontram a sua disposigao no “verso escolar: livros didaticos, livros paradida- ens, gramaticas, dicionarios... A professora bem “mrmada deve ser capaz de reconhecer as qua- “Gades e as deficiéncias desse material, sem considerar que nele tudo é necessariamente Som, correto e adequado. “A tarefa de reconhecer a competéncia linguisti- Ideias francamente retrégradas siio as que aparecem, por exemplo, num texto assinado por Evanildo Bechara, com 0 titulo “Educacdo lingufstica as avessas” Jornal do Brasil, 16/2/ 2005, Cademno B, p. B2). Ali, entre outras inverdades, o conhecido gra- mitico diz que os linguistas e peda- gogos “recomendam” para o ensino ‘uma coisa que tem “ineficdcia cultu- ral: a lingua viva do povo”. O pre- conceito social € tio explicito que dispensa comentarios. Nao € a pri- meira vez, no entanto, que Bechara expressa stia ideologia conservadora e suas nogdes mais que ultrapassa- das sobre ensino de portugués. Alias, elas j4 estavam presentes em 1985 ‘em seu livro Ensino de gramadtica. Opresso? Liberdade?. Para uma ané- lise critica dessas ideias do gramé- tico, ver os livros de Carlos Franchi (2006, p. 76, nota 13) e Luiz Percival Britto (1997, p. 31-35) citados nas Indicagées de Leitura. = = comunicativa dos alunos e das alunas e, ao mesmo tempo, de ampliar € =eoandir essa competéncia é uma tarefa delicada e sofisticada, muito mais =egente do que a pratica tradicional de reprimir os “erros", de zombar dos Sotaques “engracados” e de impor a ferro e fogo uma norma-padréo “ssilizada, através da decoreba infrutifera e magante da gramética normativa = ca pratica da andlise sintatica como fim em si mesma. Por isso, talvez, essa ‘erefa assuste tantas pessoas. Mes nao existe raz4o para susto, medo ou inseguranga. Quem estiver dispos- > 2 investir nessa reeducac&o sociolinguistica pode contar com 0 apoio de Por uma reeducacao sociolingistica muita gente que vem escrevendo, publicando, agindo nessa direcéo — set dizer que ja podemos contar, felizmente, com a sustentagao das instituicd Oficiais que administram a educagdo em nosso pais. Naya ESQUECER Amais importante consequéncia social da variacao linguisti- ca foi o surgimento, na Antiguidade classica, da nogéo de “erro” e, junto com ela, do preconceito contra as camadas Sociais que falam de um modo diferente do previsto na nor Ma-padrao, o que acaba englobando todos os falantes da lin- gua, j4 que ninguém usa integralmente as regras padroniza- das, muitas delas caidas em desuso e, por isso, estranhas ao falante comum. AGramatica Tradicional, apesar de interessante do ponto de vista da historia do desenvolvimento das ideias linguisticas no Ocidente, nao pode ser usada como instrumento de ana lisenem, muito menos, de ensino da lingua. Ela se baseia num Conjunto de intui¢6es filosficas e preconceitos sociais que ndo tém mais cabimento no mundo contemporaneo. \> Areeducacao sociolinguistica é uma proposta de peda ogia da variacao linguistica que leva em conta as conquis- tas das ciéncias da linguagem mas, também, as dinamicas Sociais e culturais em que a lingua esta envolvida. Nao é pos- sivel desprezar, em nome da ciéncia “pura”, as necessidades € 0s desejos (legitimos) dos falantes da lingua. Mas também. no € possivel, em nome dessas necessidades e desejos, det Xar @S Coisas Como estdo, dominadas por uma ideologia lin uistica autoritaria e excludente. "Nada na lingua € por acaso: por uma pedagogia da varlacao linguistica

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