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Resumos Dpci PDF
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Por trás de um processo cível está sempre um litígio, ou seja, um conflito de interesses, uma controvérsia
juridicamente relevante. O litígio pode representar, e na maior parte das vezes representa, uma ofensa já
consumada dos direitos e interesses de um sujeito; nesse caso, temos uma tutela judicial preparatória.
Noutros casos, podemos ter apenas uma ofensa potencial, pelo que a doutrina fala aqui de uma tutela
judicial inibitória, destinada a afastar a lesão.
Isto com uma excepção – a dos processos de jurisdição voluntários, previstos nos arts. 968.º e segs. Estes
processos não obedecem a uma estrutura contenciosa, visando a prossecução de interesses não
organizados em conflito. É exemplo a acção de divórcio por mútuo consentimento, art. 994.º.
2. O princípio do pedido
Todavia, o litígio não origina, por si só, um processo. O tribunal não pode resolver o litígio sem que a
resolução lhe seja pedida pelas partes, ou seja, sem que o autor exerça o seu direito de acção, solicitando
a tutela jurisdicional. Este princípio é o princípio do pedido, que está consagrado no art. 3.º/1. Mesmo
tendo conhecimento dos factos, o juiz nunca pode dar início, oficiosamente, a um processo cível, ou
seja, nunca se pode substituir neste impulso processual inicial.
Porém, não é apenas necessário que o autor exerça o seu direito de acção, isto é, que haja um pedido; a
outra parte tem de ter a faculdade de se defender. Assim, a outra parte tem de ser chamada para deduzir a
sua oposição (art. 3.º/1, in fine). Não pode o juiz ouvir apenas as razões do queixoso. Se ao lesado cabe o
direito de acção, ao demandado cabe o direito de contradição ou defesa.
Há doutrina que insere o princípio do pedido num princípio mais amplo, o princípio do dispositivo. LEBRE DE FEITAS,
na linha da doutrina alemã, distingue duas dimensões do princípio do dispositivo: o princípio do dispositivo
propriamente dito, que se reconduz à ideia de disponibilidade da tutela jurisdicional (disponibilidade do início, termo e
suspensão do processo; e disponibilidade do objecto e das partes); e princípio da controvérsia, que se traduz na
liberdade de alegar e provar os factos destinados a constituir fundamento da decisão. No entanto, está hoje ultrapassada
a concepção liberal do processo civil, dominante no século XIX, na qual o juiz era reduzido ao papel de árbitro,
limitando-se a aplicar o direito, sendo reconhecida às partes uma total liberdade de dispor do processo. O processo
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seria assim uma pura querela inter-subjectiva. Esta concepção foi ultrapassada por uma outra, que passa pela atribuição
de mais poderes ao julgador e pela exigência de cooperação entre o tribunal e as partes.
MIGUEL MESQUITA , na linha da doutrina italiana, defende que o princípio do pedido e o princípio do dispositivo se
devem distinguir, por terem naturezas distintas, reconduzindo o último à liberdade (ou melhor, ao ónus) de alegar e
provar os factos no processo: é às partes, e não ao juiz, que cabe alegar os factos principais. Este princípio está previsto
no art. 5.º/1.
Já FERREIRA DE ALMEIDA fala no princípio do dispositivo e da disponibilidade privada, que exprimem a relevância da
autonomia da vontade das partes no âmbito do processo civil – o primeiro, na determinação dos fins; e o segundo, no
domínio sobre os meios processuais para alcançar esses objectivos. O princípio do pedido estará intimamente ligado
com o princípio do dispositivo, algo que se vê no ónus de alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em
que se baseiam as excepções (art. 5.º).
Qual a razão de ser do princípio do pedido? No fundo, este princípio assenta na ideia de que o Direito
Processual Civil se dirige à tutela dos direitos privados; e, no direito privado, vale o princípio da
liberdade de exercício dos direitos privados. É aos sujeitos que compete ajuizar dos seus interesses,
decidindo se quer exercer ou não o seu direito de acção para tutelar um direito privado – e o juiz não se
pode substituir às partes nesta liberdade. Por outro lado, mesmo que não houvesse esta ideia de
liberdade, seria insustentável que o início dos processos competisse aos juízes oficiosamente, pois estes
não podem ter conhecimento de todos os litígios.
O primeiro sistema de justiça que existiu historicamente foi o de justiça privada, na qual o lesado poderia
recorrer à própria força, a fim de, por si mesmo, repor a solução que decorre do direito substantivo
aplicável. Eram dois os instrumentos principais através dos quais se processava a reparação das ofensas: a
legítima defesa e a acção directa. Os meios de justiça privada foram tendo o seu raio de acção cada vez
mais reduzido, à medida que o sistema de justiça privada foi sendo substituído pelo monopólio da
função jurisdicional do Estado. Isto por várias ordens de razões:
1. Este sistema tem um defeito congénito – a força nem sempre se encontra com quem tem a razão,
pelo que valeria a lei do mais forte, ficando o mais fraco sem meios de fazer valer o seu direito;
2. A própria parte queixosa não é a entidade psicologicamente indicada para definir os poderes
próprios e os deveres alheios, nem para fixar os termos da reparação devida, pelo que este
sistema levaria a excessos e injustiças;
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3. Assim, em vez de repor a paz social e a ordem jurídica violado, originaria mais conflitos,
atentando gravemente contra o Estado de Direito.
Desta forma, o Código estabelece, no art. 1.º, o princípio da proibição da autotutela: a ninguém é lícito o
recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito. O Estado chama exclusivamente a si,
através dos órgãos jurisdicionais, o poder de reconhecer vinculativamente os direitos controvertidos e de
coercivamente os realizar – sistema da justiça pública.
No entanto, este princípio tem de ser articulado com a existência de formas de tutela privadas previstas no
Código Civil, que constituem desvios ao princípio da proibição da autotutela:
1. Acção directa, art. 136.º CC: a acção directa traduz-se num ataque para assegurar um direito.
Requisitos:
a. Existência de um direito subjectivo;
b. Violação desse direito;
c. Impossibilidade prática de actuar de outro modo, ou seja, de recorrer aos tribunais – se o
agente não actuasse de outro modo, o seu direito não poderia ser tutelado.
2. Legítima defesa, art. 337.º CC: traduz-se no uso da força para afastar uma agressão actual contra a
sua pessoa ou o seu património, ou seja, numa reacção. Requisitos:
a. Existência de uma agressão actual;
b. Ilicitude da agressão;
c. Impossibilidade de recorrer em tempo útil aos tribunais;
d. Os danos causados não podem ser superiores aos que se queriam afastar
(proporcionalidade).
3. Estado de necessidade, art. 339.º CC: no estado de necessidade, o agente destrói ou causa danos
numa coisa alheia, para afastar um perigo iminente.
Para além destes desvios genéricos, encontramos outros mais específicos – é exemplo o art. 1366.º CC,
que prevê a possibilidade de recorrer à força para cortar as raízes ou ramos da árvore do vizinho que
invadem a propriedade de um sujeito, enviando antes uma notificação judicial: se o vizinho nada fizer, i
sujeito pode ele mesmo cortar os ramos ou raízes, com direito à indemnização pelos despesas.
4. A tutela judicial
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Os tribunais estaduais que têm competência para o julgamento dos processos cíveis são os tribunais
judiciais, previstos nos arts. 209.º, 210.º e 211.º da CRP. Estes tribunais existem em pirâmide judiciária:
1. No primeiro patamar estão os tribunais de comarca ou de primeira instância;
2. Acima destes, encontramos os tribunais de relação ou de segunda instância;
3. No topo da pirâmide, está o Supremo Tribunal de Justiça.
Para além dos tribunais judiciais, são ainda competentes para o julgamento dos processos cíveis:
1. Os julgados de paz: são tribunais estaduais, com o apoio dos municípios, que têm carácter sui
generis. Julgam apenas certas acções, em determinadas matérias, e têm carácter menos formal,
virados para o acordo das partes. São regulados pela Lei n.º 78/2011, alterada pela Lei n.º 54/2013
(que veio alargar a sua competência).
2. Os tribunais arbitrais: são tribunais de natureza privada, formados por árbitros. A lei permite, em
certos casos, que as partes submetam os seus litígios aos tribunais arbitrais. São regulados pela Lei
n.º 63/2011.
O exercício da jurisdição implica, para um bom funcionamento da justiça, que o juiz seja imparcial,
neutral. Assim, o CPC prevê dois mecanismos para assegurar a imparcialidade do juiz:
1. A figura do impedimento, art. 115.º.
2. A figura da suspeição, art. 119.º.
Figura do impedimento: tem por base certas circunstâncias ou factos previstos taxativamente na lei, no
art. 115.º, nas quais se entende que o juiz é parte interessada no processo. Quando se preencha alguma
das causas previstas, o juiz tem o dever de fazer uma declaração de impedimento, afastando-se do
processo (art. 116.º/1). E se o juiz nada fizer?
1. Qualquer uma das partes pode fazer um pedido de declaração de impedimento, que se apresenta
em requerimento ao próprio juiz.
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2. O juiz pode fazer uma de duas coisas: ou profere um despacho de deferimento, afastando-se do
processo; ou profere um despacho de indeferimento.
3. Neste último caso, se a parte ainda assim entender que o juiz se deve afastar, o art. 116.º/5 permite
que a parte reaja contra a decisão de indeferimento, interpondo recurso para o tribunal superior.
M IGUEL M ESQUITA critica este regime: ao regular uma matéria atinente à imparcialidade do juiz, a lei
deixa ao próprio juiz, contra quem a parte está a reagir, o poder de se pronunciar sobre um caso que lhe
diz respeito. Terá o juiz condições de neutralidade para apreciar o pedido da parte? Seria melhor um
regime semelhante ao que vigora em Espanha, no qual é outro juiz que aprecia o pedido de declaração de
impedimento.
E se o juiz for indicado como testemunha? Este é um caso de impedimento, art. 115.º/1/h). Todavia, temos
de jogar esta norma com o art. 499.º: se o juiz declarar, sob julgamento, que teve conhecimento dos
factos, tem de ser declarar impedido (a fórmula “é declarado impedido” está incorrecta); senão, pode
julgar o caso. Se assim não fosse, bastava uma das partes indicar o juiz como testemunha para o afastar do
caso. A razão de ser deste impedimento prende-se com a imparcialidade do juiz na valoração da prova: o
juiz tem fazer uma valoração da prova para formar, na sua mente, uma convicção psicológica sobre a
verdade ou a mentira dos factos alegados; se pudesse ser testemunha, a tendência natural seria para dar
mais valor ao seu depoimento, à sua versão dos factos, que seria mais favorável a uma das partes.
Figura da suspeição: a suspeição está prevista no art. 119.º, tendo origem em situações, previstas de
forma não taxativa, menos gravosas que as do impedimento mas que são susceptíveis de levantar sobre o
juiz uma nuvem de suspeição. Quando ocorrem estas situações, então o juiz pode (e não deve)
apresentar o pedido de escusa, porque tem escrúpulos em julgar aquele processo. Este pedido, nos
termos do art. 119.º/3, é dirigido ao presidente do tribunal da relação que exerce jurisdição sobre o
tribunal de comarca, a quem cabe a última palavra sobre o pedido. Se o juiz não se afastar, qualquer uma
das partes, nos termos do art. 122.º, pode levantar o incidente da suspeição, igualmente dirigido ao
presidente do tribunal de comarca. Se o juiz não se afastar e a parte não levantar o incidente, não pode
depois a suspeição constituir fundamento para recurso.
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um litígio. Mas a palavra processo pode ainda ser utilizada, no âmbito da linguagem corrente jurídica,
com outras acepções – como os próprios autos (pasta, caderno ou dossier) da acção em curso,
constituída pelas peças escritas; ou ainda para significar causa, litígo.
Mas estes actos são praticados com uma ordem lógica, ou seja, o processo obedece a uma tramitação.
Podemos, assim, identificar várias fases processuais:
1. Fase dos articulados, art. 552.º a 589.º: esta fase começa com a petição inicial. O réu tem então um
prazo para a contestação.
2. Fase da audiência prévia, art. 590.º a 598.º: o juiz reúne-se com as partes ou com os advogados das
partes.
3. Fase da audiência final, art. 599.º a 606.º: entramos aqui no processo declarativo. Esta é a fase
pública que se passa no tribunal, na sala das audiências. O juiz ouve as partes, os peritos, etc.,
havendo lugar à produção da prova.
4. Julgamento final, art. 607.º a 626.º: é a fase em que o juiz vai lavrar a sentença, aplicando o direito
aos factos provados e não provados.
5. Recursos, art. 672.º a 702.º.
Podemos perguntar-nos se esta tramitação é rígida ou pode, pelo contrário, ser dotada de alguma
flexibilidade. Neste âmbito, tem vindo a ganhar força no processo civil o princípio da adequação formal,
que diz que o juiz deve, oficiosamente, quando a forma legal não for a que melhor se adeque às
especificidades do caso concreto, adaptar a tramitação abstractamente prevista na lei, designadamente
determinando a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo. Este princípio foi
introduzido na revisão do CPC de 1961, vindo substituir o anterior princípio da legalidade das formas
processuais. A reforma de 2013 veio dar uma nova redacção, estando hoje o princípio previsto o art.
547.º. Assim, o juiz, face ao caso concreto, pode ordenar quer a simplificação da sequência, quer a
inclusão nela de actos não previstos na lei. (LEBRE DE FREITAS, p. 228 e ss.)
Qual o fim do processo, a sua finalidade? Lendo o art. 6.º/1, podemos constatar que é a justa composição
do litígio (e não, como alguma doutrina defende, a defesa do direito privado).
No entanto, pode acontecer que o autor e o réu se sirvam do processo para praticar um acto simulado ou
para prosseguir um fim ilegal – falamos aqui do uso anormal do processo. Quando o juiz tenha a
convicção segura de que há um uso anormal do processo, porque a lei quer que o processo seja
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“normalmente” aproveitado e conduza à solução de um litígio segundo o direito constituído, o juiz deve
em princípio anular o processo, abstendo-se de conhecer o mérito e declarando extinta a instância – art.
612.º. Se não for detectado o uso anormal e vier a ser proferida decisão de mérito, prejudicial para
terceiros, poderão estes impugná-la, sem que a isto obste o caso julgado (art. 696.º/g) – recurso
extraordinário de revisão). Exemplo típico do uso anormal do processo é a simulação processual: as
partes criam a aparência de um litígio para obter uma sentença cujos efeitos apenas querem relativamente
a terceiros. Já haverá fraude processual quando as partes criam a aparência de um litígio para obter uma
sentença cujos efeitos querem apenas para si.
As partes poderão ainda ser condenadas como litigantes de má fé, apesar de a litigância de má fé não se
confundir com o uso anormal do processo. Esta está prevista no art. 542.º, que ocorre quando as partes
estão de má fé – por exemplo, alegando factos que se sabe não terem ocorrido ou omitindo
conscientemente factos essenciais.
O Direito Processual Civil pode ser definido como o conjunto de normas reguladoras reguladoras do
direito de acção (e correspondente direito de defesa), da jurisdição dos tribunais judiciais (competência,
organização e funcionamento), bem como da tramitação do processo. Estes três elementos compõem o
objecto do Direito Processual Civil enquanto ramo do direito.
1) É um ramo de direito instrumental ou adjectivo: regula os meios por via dos quais os sujeitos fazem
valer os seus direitos, regulados pelo direito privado; ou seja, os meios necessários para, a partir do
direito privado, se alcançar a solução concreta do conflito levantado entre as partes ou para se dar
realização efectiva ao direito violado. Esses meios são três: as acções, os procedimentos cautelares e os
recursos.
2) É um ramo de direito público: embora servindo o direito privado, o Direito Processual Civil é um ramo
de direito público. Segundo o critério geralmente aceite, o direito público abrange normas reguladoras
das relações em que pelo menos um dos sujeitos age dotado de poderes de autoridade. Ora, a relação
processual civil não é uma relação de natureza paritária, de direito privado, mas sim uma relação de
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subordinação, de direito público, visto que nela intervém um sujeito com podres de autoridade – o juiz. Os
poderes de autoridade com que o juiz intervém manifestam-se, por exemplo, no art. 150.º.
Mesmo se seguíssemos um critério que atendesse à natureza dos interesses prosseguidos pelas normas,
também seríamos reconduzidos à mesma solução: o Direito Processual Civil, ao substituir o sistema de
justiça privada pelo de justiça pública, acautela o interesse colectivo da paz social, ligado à justa
composição dos interesses privados em litígio (é em obediência a este fim que se impõe o dever de
fundamentação, art. 154.º/1).
Como ramo de direito público, muitas normas processuais têm carácter imperativo, não podendo ser
afastadas nem pela vontade das partes, nem pela vontade do juiz – é exemplo o art. 95.º. Em certas áreas
limitadas, em que o relevo concedido à vontade das partes não colide com os poderes de soberania do
juiz nem com os interesses públicos subjacentes ao processo, encontramos normas supletivas.
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Se o Estado, com uma mão, retirou aos particulares a possibilidade da autodefesa; com a outra, deu-lhes
a acção judicial. Isto é, se o lesado deixou de poder agir directamente na defesa do seu direito, passou a
ter a possibilidade de fazer agir o Estado no seu próprio interesses. A este poder a doutrina chamou
direito de acção (a todo o direito corresponde uma acção, art. 2.º/2). Como foi ententido o direito de
acção ao longo dos tempos?
A tese clássica ou privatística, predominante no século XIX, foi defendida por autores como SAVIGNY ,
W INDSCHEID E DEMOLOMBE. O direito de acção era entendido como um poder que integrava, que fazia
parte, do núcleo dos direitos subjectivos materiais, logo não se fazia a distinção entre o direito subjectivo
material e o direito de acção, pois este era um poder implícito aquele. Esta concepção foi inspirada no
sistema das actiones do direito romano – o pretor apenas concedia a actio quando entendia que a pessoa
tinha um ius. Neste entendimento, o direito de acção era exercido contra a outra parte, ou seja, a relação
processual desenhava-se essencialmente entre as partes, intervindo o Estado apenas para garantir a
efectiva realização desse direito.
1. SAVIGNY : O direito de acção é "o direito subjectivo quando violado".
2. W INDSCHEID : O direito de acção é "uma manifestação de vida do direito subjectivo material".
3. DEMOLOMBE: "A acção é o próprio direito subjectivo material posto em movimento; é o direito
subjectivo material no estado de acção, em vez de se encontrar em repouso; é o direito subjectivo
material em estado de guerra, em vez de se encontrar num estado de paz".
Esta tese foi ultrapassada pela tese moderna ou processualista, no século XX, defendida por nomes como
M ORTARA, CHIOVENDA, CARNELUTTI e, entre nós, por A LBERTO DOS REIS. Estes autores vieram dizer
que o direito de acção, não obstante o carácter instrumental do processo civil, é um poder essencialmente
distinto do direito subjectivo substantivo em que a pretensão do requerente se baseia. E, enquanto
direito autónomo, passou a ser concebido como um direito público, dirigido contra o Estado e não contra
a outra parte.
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Em primeiro lugar, por trás do exercício do direito de acção pode não existir qualquer direito subjectivo
real: com efeito, em muitos casos, verifica-se que é exercido o direito de acção sem que exista um direito
subjectivo material (a acção é julgada improcedente). Também sucede que o direito de acção existe
mesmo quando o juiz recusa a apreciar o mérito da causa (absolvição da instância); ou, mesmo que o
direito subjectivo exista, o direito de acção pode ser manipulado pelo autor em moldes não coincidentes
com o enquadramento substancial daquele. Tudo isto levou à constatação de que o direito de acção
transcende assim os direitos subjectivos materiais, ou seja, tem autonomia, podendo ser exercido
independentemente da efectiva titularidade de um direito subjectivo material. Ocorreu assim uma cisão
nuclear entre o direito privado e o processual.
1. J OÃO DE CASTRO M ENDES: "O direito de acção transcende o direito subjectivo material, pois existe e
é exercido ainda quando aquele que o usa não tem de facto o direito subjectivo material".
2. Z ANZUCCHI: "O direito de acção não pressupõe a existência de qualquer direito subjectivo real;
tanto assim é, que podem ser intentadas acções infundadas".
3. J OSÉ A LBERTO DOS REIS também defendeu, entre nós, a teoria moderna do direito de acção –
"seria absurdo enunciar a seguinte regra: 'só pode ir a tribunal quem tem razão'".
Outro argumento, avançado por Antunes Varela, baseia-se na existência de certos meios de tutela dos
interesses legítimos das partes a que não correspondem, no plano da lei substantiva, quaisquer direitos
subjectivos – as acções de mera apreciação negativas. Nestas acções, pede-se apenas uma declaração ao
tribunal, não existindo propriamente a defesa de um direito subjectivo material. Estas acções estão
previstas no art. 10.º, n.º 2 e n.º 3, al. a).
Finalmente, a teoria clássica não dá resposta a um problema: existem direitos subjectivos materiais que
não podem ser exercidos perante o tribunal – as obrigações naturais (art. 304.º CC).
A partir do momento em que se reconhece que o direito de acção tem autonomia, é o próprio direito
processual civil que ganha autonomia em si mesmo, separando-se do direito privado. Esta é uma nota
muito importante. CARNELUTTI disse "foi necessário o decurso de dezenas de séculos até que se fizesse a
distinção entre a actio e o ius. A dificuldade estava em distinguir o direito que se faz valer em tribunal (o
direito subjectivo material) do direito através do qual aquele se faz valer (direito de acção). Um dos
capítulos mais interessantes da história da ciência do direito diz respeito ao desenvolvimento do conceito
autónomo do direito de acção. Hoje, este desenvolvimento encontra-se concluído. O direito de acção pode
existir sem que exista o direito subjectivo material".
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Ou ainda: "para a ciência do processo civil, a separação entre o direito subjectivo material e o direito de
acção constitui um fenómeno análogo ao que representou para a física a divisão do átomo. Foi neste
momento que o direito processual civil adquiriu personalidade e se desprendeu do velho tronco do direito
privado" (EDUARDO COUTURE).
2) É um direito subjectivo processual. O direito de acção é um verdadeiro direito subjectivo, pois a ele
corresponde, da parte do tribunal, um dever jurídico – o dever de decidir. Ao direito de acção
corresponde o dever de decisão do juiz. Isto está previsto no art. 3.º/2 do Estatuto dos Magistrados
Judiciais (Lei n.º 21/85), que diz que os juízes não podem abster-se se julgar.
Inicialmente, o cumprimento deste dever era tutelado através da obrigação de indemnizar os danos
dolosamente causados às partes, a cargo dos magistrados (previsto no art. 967.º); tendo a Constituição de
1976 vindo responsabilizar directamente o próprio Estado pelos danos provenientes da denegação de
justiça (art. 22.º). A denegação de justiça constitui crime – art. 369.º do Código Penal.
3) É um direito autónomo, pois não pressupõe a efectiva titularidade do direito subjectivo material –
basta a mera alegação do direito.
4) Trata-se de um direito abstracto quanto ao conteúdo. O que significa esta nota de abstracção? É uma
consequência lógica da nota do direito subjectivo – o direito de acção atribui ao autor um poder, que é o
poder de alcançar uma decisão judicial. Note-se que não é o direito de obter uma decisão favorável, mas
apenas o de obter uma decisão.
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Porém, podemos acrescentar mais qualquer coisa: o direito de acção é o direito a uma decisão justa e em
prazo razoável. Isto está hoje previsto no art. 20.º/4 e 5 da CRP (introduzidos com a revisão de 1997),
integrando por isso o direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais; resultando igualmente da Lei
n.º 67/2007 (Lei do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades
Públicas). O art. 12.º e 13.º prevê que uma parte que seja vítima de um erro judiciário ou não obtenha
uma decisão em prazo razoável tem direito a obter uma indemnização, intentando uma acção contra o
Estado junto dos tribunais administrativos. Nos termos do art. 14.º, o Estado goza de direito de regresso
contra o juiz. Note-se que a questão do "prazo razoável" é complexa, sendo necessário que o sujeito
prove que sofreu danos patrimoniais ou não patrimoniais.
5) O direito de acção é um direito complexo - não se esgota no puro e simples poder de exigir ao tribunal
uma decisão. Apesar de este ser o poder principal, podemos fazer derivar do direito de acção outros
poderes, como:
1. Direito à prova - direito de apresentar documentos, testemunhas, etc.
2. Direito ao recurso.
Quem exerce o direito de acção tem de ter, à partida, algo que a doutrina define como o interesse
processual (em Itália, fala-se em interesse em agir; na Alemanha, necessidade de tutela judiciária). O
interesse processual prende-se com a “necessidade de recurso à via judicial, ou seja, com a
inevitabilidade da solicitação de tutela, a fim de pôr termo a uma situação de carência em que o litigante
se encontra”.
Qual a razão de ser do interesse em agir? Este tem uma dupla razão de ser:
1. Razão de cariz privado: visa evitar que o réu seja alvo de um processo que é inútil, causando-lhe
incómodos desnecessários.
2. Razão de cariz público: pretende evitar a sobrecarga dos tribunais com processos inúteis.
A falta de interesse em agir leva a um desencadeamento inútil dos meios processuais, o que leva a doutrina
a configurar este requisito como um pressuposto processual – se o art. 130.º, que prevê o princípio da
proibição dos actos, proíbe actos inúteis, por maioria de razão proíbe acções inúteis. O interesse
processual, enquanto pressuposto processual, não está expressamente previsto na lei, mas pode ser
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enquadrado no art. 577.º, que prevê, de forma não taxativa, uma lista de pressupostos processuais.
Quando falta um pressuposto processual, há uma excepção dilatória, e o juiz absolve o réu da instância,
salvo quando a excepção for susceptível de sanação (o interesse em agir é, segundo a doutrina e a
jurisprudência, insusceptível de sanação).
Em que consiste, então, o interesse processual? Traduz-se num pressuposto processual, que tem de ser
aferido na fase inicial do processo, perante a pretensão inicial do autor, e que é, como tal, independente
da efectiva titularidade do direito subjectivo material. Dizemos que há interesse em agir quando se
verificam, cumulativamente, os dois requisitos:
1. Interesse no resultado: o exercício do direito de acção é processualmente útil? O juiz tem de
aferir se a parte tem interesse no resultado do processo, e se este é objectivamente útil para ela. Só
existe utilidade se, por trás da acção, existir um litígio ou um conflito de interesses.
2. Interesse no meio: o exercício do direito de acção é a via apropriada ou adequada para a
resolução daquele pretenso litígio? Sempre que a tutela judicial não seja a via adequada para o
exercício do direito que o autor quer fazer valer, falta o interesse em agir.
FERREIRA DE A LMEIDA densifica este requisito consoante se trate de uma acção constitutiva, condenatória
ou de simples apreciação.
1. Acções condenatórias: a lei basta-se com a ameaça ou a simples previsão da violação do direito.
Assume aqui maior relevância o interesse no resultado.
2. Acções constitutivas: o interesse processual radica na circunstância de o direito potestativo em
causa ter de ser exercitável por via judicial (interesse no meio).
3. Acções de simples apreciação: o interesse em agir existe quando há um estado de incerteza
objectiva, séria e grave sobre a existência ou inexistência do seu direito, resultante de um facto
exterior (interesse no resultado). No fundo, tem de haver um litígio. A gravidade da dúvida deve
aferir-se pelo prejuízo ou desvantagem, de ordem material ou moral, que a situação de incerteza
possa acarretar para o autor . Assim, nas acções de simples apreciação, o requisito do interesse
em agir assume extrema relevância, cabendo ao autor provar que existe um estado de incerteza
grave sobre o seu direito.
Exemplo 1: A intenta contra B uma acção, alegando que comprou a B um prédio rústico por mero
negócio verbal, há 20 anos, e pedindo a declaração judicial desse direito. Porém, ninguém tinha
contestado o seu direito de propriedade, nem violado as suas faculdades de uso e fruição da coisa –
tratando-se de uma acção de simples apreciação, teria de existir aquele estado de incerteza objectiva,
séria e grave sobre o seu direito de propriedade. Atenção: mesmo que existisse esse estado de incerteza, A
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deveria antes propor, perante a Conservatória do Registo Predial, um processo de justificação – este é um
procedimento extrajudicial regulado nos arts. 116.º e segs. do Código de Registo Predial. Este
procedimento corre a pedido da pessoa que se dirige à Conservatória, e visa, perante o conservador,
certificar factos – neste caso, o de ter comprado há mais de 20 anos. O conservador vai proferir uma
decisão certificando os factos alegados pelo requerente, mandando proceder ao registo oficioso na
Conservatória do direito do requerente, art. 117.º/h) do Código do Registo Predial. Se por acaso alguém,
no decurso do processo de justificação, manifestar oposição perante o pedido, então o conservador,
porque já há litígio, remete as pessoas para o tribunal.
Exemplo 2: A, empregador, quer despedir B, trabalhador, intentando para tal uma acção junto do
tribunal. A quer assim fazer valer o direito potestativo de resolução do contrato (acção constitutiva).
Neste caso, falta o requisito do interesse no meio, pois a lei prevê um procedimento extrajudicial de
despedimento – a via judicial não é a adequada para fazer valer o direito potestativo.
Já se defendeu que o processo, como jogo, é um jogo amoral, ao qual é estranho o juízo de ilicitude –
valeria a astúcia acima de tudo. Hoje, esta ideia é totalmente insustentável, entendendo-se que quem
exerce o direito de acção, e quem exerce o correspondente direito da defesa, estão vinculados por um
princípio consagrado no art. 8.º do CPC, o princípio da boa fé processual (art. 542.º/2). Isto significa que
recai sobre as partes (autor e réu) um dever de litigância de boa fé, ou seja, um dever de levar a cabo uma
conduta honesta, correcta e leal. Assim, apesar de o ónus revestir extrema relevância no direito processual
civil, também não é menos verdade que as partes estão sujeitas no processo a autênticos deveres
processuais.
Há autores que incluem este princípio num mais amplo, o princípio da correcção (art. 7.º): as partes e o
juiz devem cooperar no sentido de se apurar a verdade sobre a matéria de facto, por forma a obter a
adequada decisão de direito (cooperação material, art. 417.º/2 e 3); e no sentido de obter uma decisão
num prazo razoável, não levando a cabo expedientes dilatórios (art. 7.º/4 e art. 151.º). M IGUEL M ESQUITA
integra este dever de cooperação no princípio da boa fé.
A violação grave do princípio da boa fé processual diz-se litigância de má fé. O art. 542.º indica os actos
que as partes não podem praticar, sob pena de violar este princípio e serem condenados como litigantes
de má fé. Nos termos do n.º 2, a parte só é sancionada se agir com dolo ou negligência grave, não
contando a negligência leve – tem de haver culpa.
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
Exemplo 1 (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de Junho de 2008 ): este é um caso típico de
litigância de má fé. A exerceu o seu direito de acção, pedindo uma indemnização a uma companhia de
seguros, alegando que tinha sofrido um acidente de trabalho quando fiscalizava uma obra da sua
entidade empregadora. Veio-se a provar que isto não era verdade: apesar de ter tido uma lesão, esta tinha
sido feita a jogar futebol.
Exemplo 2: um casal foi depositar ao banco da Covilhã a quantia de 124 mil escudos. O banco creditou a
quantia de 124 mil euros; o casal gastou o dinheiro todo. Passado 1 ano, o banco notou a falta, o casal não
devolveu o dinheiro, e o banco propôs uma acção cível para devolução. Na contestação, os réus vieram
dizer que tal não tinha acontecido, alegando que tinha sido uma herança. Provou-se o contrário, tendo
sido condenados como litigantes de má fé.
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
O problema da litigância de má levada a cabo pelo advogado da parte: apesar de, na maior parte dos
casos, quem é responsável pela litigância de má fé é a parte, pode suceder que, em certos casos, o
responsável é antes o advogado – principalmente quando está em causa a prática de actos dirigidos a
protelar o processo. O art. 103.º do Estatuto dos Advogados impõe que o advogado deve, em todas as
circunstâncias, actuar com diligência e cuidado (ver também art. 85.º/2/a)).
O art. 545.º estabelece uma solução para estes casos: por razões corporativas, o juiz não vai aplicar uma
multa ao advogado; antes comunica à Ordem dos Advogados os actos em que se traduziu a litigância de
má fé e esta condena o advogado na quota-parte das custas, multa e indemnização que considerar justa.
Pode uma testemunha ser condenada como litigante de má fé? Não – o instituto da litigância de má fé
está pensada para as partes; o que pode suceder é a testemunha que mente clamorosamente em processo
ser condenada pela prática do crime previsto no art. 360.º Código Penal (sendo o processo crime
instaurado pelo Ministério Público).
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
3ª LIÇÃO: A INSTÂNCIA
O que é a instância? O verbo "instar" vem do latim e significa rogar, pedir com insistência. Num primeiro
sentido da palavra instância, esta vem associada a tribunal (tribunal de primeira instância, etc.),
significando por isso grau de jurisdição, ou, num sentido mais vasto, tribunal.
Mas a palavra instância tem outro sentido, que é o significado central no Direito Processual Civil. A
instância é a unidade intrínseca que é o processo: um processo é um conjunto de actos praticados por
vários actores; mas é mais do um mero procedimento. O processo contém ele próprio uma relação
jurídica, a chamada relação jurídica processual. É a essa relação jurídica processual que a lei chama
instância.
Alguns artigos do CPC que recorrem a este conceito, e que revelam que o Código está construído em
torno da instância:
1. Art. 620.º: aparece a expressão “relação processual”.
2. Arts. 259.º e ss.: referem-se ao começo e desenvolvimento da instância, tendo o legislador
traduzido a relação processual por instância.
3. Art. 269.º: fala das causas de suspensão da instância.
4. Art. 277.º: fala das causas de extinção da instância.
Ao longo do século XIX, o processo civil era ensinado aos estudantes como uma mera sequência de actos
praticados no tribunal. Todavia, em 1868, OSCAR BÜLOW publicou A Teoria das Excepções Processuais,
sendo considerado o primeiro teórico do Direito Processual Civil – foi com a sua obra que este ramo
adquiriu o estatuto de ciência jurídica. Logo nas primeiras páginas, afirma que o processo é uma relação
jurídica, de direito público, que se desenvolve passo a passo: "o processo é uma relação jurídica. Esta
realidade não foi até agora devidamente apreciada ou claramente entendida. É habitual falar-se apenas na
relação jurídica de direito privado, mas o processo é uma relação jurídica que avança gradualmente e se
desenvolve passo a passo".
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
A primeira concepção da relação processual foi uma concepção linear, configurada como duas linhas
paralelas que se estabelecem entre o réu e o autor. Foi definida na Alemanha em finais do século XIX.
Esta concepção, que excluía o juiz, foi concebida no âmbito do positivismo, que configurava o juiz como
a mera boca da lei. Assim, esta concepção compreendia-se no seu tempo, por três razões:
1. O direito de acção era ainda visto como uma emanação do direito subjectivo privado, não de
exigir do juiz uma decisão. A concepção linear está de acordo com esta noção.
2. O juiz era uma figura apagada, com reduzidos poderes no processo, que não se preocupava com
a descoberta da verdade material, mas sim com a aplicação do direito. Daí se apagar o juiz do
desenho da figura da relação processual: entendia-se ainda que, dando muitos poderes ao juiz,
este perderia a sua imparcialidade.
3. O processo era uma “coisa das partes”, que dizia apenas respeito a elas. O tribunal intervinha
assim como mero garante da realização do direito.
No início do século XX, com a superação do positivismo, superou-se também a concepção linear:
1. O direito de acção ganhou autonomia, exercendo-se perante o juiz.
2. A ideia de Estado liberal foi substituída pela do Estado autoritário, que exige um juiz autoritário.
3. O processo, apesar de ser cível, não é apenas uma coisa das partes, pois há um interesse público
na boa administração da justiça. O juiz deve procurar a verdade material e não a verdade formal
do século XIX.
Assim, qualquer concepção da relação processual teria de incluir o juiz, a quem foi atribuído poderes
significativos. O Código de 1939, no art. 264.º, dizia que o juiz tinha o poder de ordenar oficiosamente as
diligências e actos que entender necessário para o descobrimento da verdade. No Código actual, este
artigo corresponde ao art. 411.º, que estabelece o princípio do inquisitório: incumbe ao juiz ordenar
todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio. Também o
Código de 1939 veio consagrar o poder de direcção do juiz (art. 266.º, actual art. 6.º/1).
A concepção angular diz-nos que a relação processual se estabelece entre o autor e o juiz por um lado, e
entre o réu e o juiz, por outro (a sua configuração corresponde a duas semi-rectas, de sentido oposto,
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
unidas num vértice). A concepção angular foi muito defendida na segunda metade do século XX, por
autores como A LBERTO DOS REIS, M ANUEL DE A NDRADE E A NTUNES V ARELA (numa primeira fase). Mas
ainda hoje é defendida entre nós, nomeadamente por FERREIRA DE A LMEIDA. Igualmente na doutrina
estrangeira encontramos autores que a defenderam (como CARNELUTTI); na doutrina brasileira ainda há
autores que a defendem, como HUMBERTO T EODORO J UNIOR .
Em 1939, A LBERTO DOS REIS escreveu, no Código de Processo Civil Anotado (Vol III, p. 67): "A relação
processual desdobra-se em duas, uma que se constitui entre o autor e o Estado, representado pelo juiz,
outra entre este e o réu. A primeira forma-se no momento em que a acção é proposta; a segunda, no
momento em que o réu é citado. A doutrina dominante encara a relação processual como uma relação
complexa, que se desdobra em duas relações distintas e autónomas: a) a relação jurídica de acção, que se
estabelece mediante a petição inicial entre o autor e o juiz; b) a relação jurídica de contradição, que se
estabelece mediante a contestação entre o réu e o magistrado". As partes não estavam assim numa linha
directa (podendo todavia existir uma relação material hipotética entre elas). Também M ANUEL DE
A NDRADE: "A proposição e o desenvolvimento do processo em tribunal podem reduzir-se ao esquema de
uma relação jurídica (relação processual) entre as partes e o Estado".
Para M IGUEL M ESQUITA, a relação angular não espelha a realidade que é o processo, já que apaga algo
essencial – a relação entre o autor e o réu, e entre o réu e o autor. Há direitos e deveres, de natureza
estritamente processual (existem porque existe um processo), que se estabelecem entre o autor e o réu e
que nos obrigam a adoptar a concepção triangular. Assim, no processo estabelecem-se relações
recíprocas entre o autor, o réu e o juiz, que configuram uma relação triangular pois o juiz está acima das
partes, tem poderes de soberania.
Podemos apontar alguns exemplos de deveres processuais que se estabelecem entre o autor e o réu, de
forma recíproca, e que nos levam a afirmar uma relação entre eles:
1. Dever de verdade: retira-se do princípio da boa fé processual (art. 8.º), reforçado pelo instituto
da litigância de má fé (art. 542.º e ss.). O dever de verdade é um dever jurídico, que existe porque
existe um processo. Este é um dever das partes perante um juiz, mas também um dever entre as
partes: tanto é assim que se o autor violar o dever de verdade, o réu pode pedir uma
indemnização, e vice-versa.
2. Dever de cooperação: emana igualmente do princípio da boa fé e está consagrado no art. 7.º. Este
é um dever para com o juiz mas também para com o autor, sendo que a litigância de má fé
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
também existe para quando uma das partes não coopera - alínea c) do art. 542.º/2.
3. Dever de recíproca correcção e de urbanidade (art. 9.): estabelece um dever de respeito entre as
partes no processo, sendo que também é um dever do juiz para com as partes.
O art. 221.º do CPC vem reforçar esta concepção triangular: a petição inicial é apresentada pelo autor
junto do tribunal, que a notifica ao réu. Este tem o ónus da contestação; se o fizer (à falta de contestação
dá-se o nome de "revelia"), a contestação é entregue ao tribunal, que é reenviada pelo tribunal ao autor.
Mas, a partir da contestação, todos os documentos são partilhados directamente entre o autor e o réu,
sem interferência do juiz. Há assim o dever de remessa dos actos entre o autor e o réu.
Já nos anos 40, CHIOVENDA defendia esta concepção: "entre os vários intervenientes do processo existem
poderes-deveres recíprocos, que constituem os nervos do processo". Também BARBOSA DE M AGALHÃES
defendia esta concepção: "esta relação é trilateral pois dá lugar a direitos e obrigações, não só entre o autor
e o tribunal, mas também entre este e o autor" (atenção que a expressão "triangular" é mais correcta que a
"trilateral").
Numa segunda fase do seu pensamento, em 1993, A NTUNES V ARELA passa a defender (artigo da RLJ),
mas também sem grandes desenvolvimentos, esta concepção: "a relação processual tem a configuração de
uma peça triangular". Igualmente LEBRE DE FREITAS defende esta concepção: "a relação processual é uma
relação por natureza dinâmica existente entre cada uma das partes e o tribunal, bem como entre as próprias
partes, na pendência da causa, isto é, até que ocorra algumas das causas previstas no art. 277.º". Também
W ALTER Z EISS: "entre as partes, por um lado, e entre estas e o tribunal, por outro lado, existe a denominada
relação jurídica processual".
A Professora PAULA COSTA SILVA opõe-se à concepção do processo como relação jurídica, afirmando
que este é antes um facto jurídico complexo de formação sucessiva, à semelhança do usucapião. Isto não
faz sentido; o processo está muito para além desta realidade.
Qual, afinal, o conceito de instância para M IGUEL M ESQUITA? A relação processual ou instância é uma
relação de direito público, triangular, complexa, com objecto tendencialmente estável (pedido e causa
de pedir), progressiva e finita, que, tendo origem no exercício do autónomo direito de acção e na posterior
citação do réu (art. 259.º, n.º 1 e 2 do CPC), impõe ao juiz o dever jurídico de decidir (arts. 152.º/1 do
CPC; 8.º/1 do CC; e art. 3.º/2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais), para além de lhe atribuir poderes-
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
deveres relativos à boa condução do processo (dever de gestão processual: art. 6.º do CPC) e à
consequente descoberta da verdade material (poder de instrução: art. 411.º do CPC), e faz recair sobre
as partes (autor e réu) um vasto conjunto de ónus (de alegar, de contestar, de provar) e um número mais
restrito, mas altamente significativo, de deveres (por exemplo, os previstos nos arts. 8.º, 9.º, e 221.º do
CPC).
1) Autonomia: a instância não se confunde com a relação material controvertida, hipotética, pressuposta e
alegada, entre o autor e o réu. Esta é a relação que vai ser apreciada. Por outro lado, a relação processual é
uma relação de natureza pública, ao contrário da relação jurídica material alegada, que é de natureza
privada.
2) Complexidade: a relação processual é uma relação complexa, não só porque é integrada no vértice
pelo juiz (o que torna esta uma relação única), mas é uma relação constituída por um conjunto alargado
de direitos, de deveres e de ónus.
1. O juiz tem uma série de deveres, nomeadamente o de decidir (art. 152.º/1), o dever de correcção
e urbanidade (art. 9.º), o dever de gestão processual (art. 6.º, novidade do "novo" Código). Na
linha deste último dever, o juiz tem um papel activo, devendo tornar o processo mais célere e
alcançar a justa composição do litígio. Outro dever é o do art. 7.º/4, que é o dever de auxílio em
relação às partes.
2. Sobre as partes recaem igualmente alguns deveres, como o dever da verdade, urbanidade,
cooperação, etc. Se as partes não cumprirem os deveres, serão sancionadas.
3. No entanto, sobre as partes recaem essencialmente ónus, uma vez que o processo assenta sobre
uma base de liberdade. Exemplos: ónus da alegação (art. 5.º) – sobre o autor e o réu recai o ónus
de alegar as causas do pedido, os factos relevantes; ónus da impugnação (art. 574.º), que recai à
partida sobre o réu – ónus de impugnar os factos alegados pelo autor na petição inicial; ónus da
prova (art. 342.º) – cada parte tem o ónus de provar aquilo que alega.
3) Dinamismo: a relação processual é cinética, ou seja, progride, em fases sucessivas, até à sentença final.
A relação processual tem uma natureza dinâmica, é susceptível de transformação e de desenvolvimento:
se assim não fosse, nunca chegaríamos à sentença. O próprio nascimento da relação processual, a sua
formação completa e com vida, é dinâmico, dado que obedece a um duplo momento – art. 259.º/1 e 2:
1. Primeiro momento: a Secretaria do tribunal recebe a petição inicial, art. 259.º/1. Mas a Secretaria
recebe sempre cegamente a petição inicial? Não: por vezes rejeita a petição inicial, nas situações
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
previstas taxativamente no art. 558.º e que correspondem a motivos meramente formais (ex:
redacção da petição em língua portuguesa, alínea h)). Mas com isto, a instância ainda não está
formada.
2. Segundo momento: para haver a formação da instância, o tribunal tem de citar o réu. A partir da
citação, o réu entra no jogo que é o processo. A citação do réu é feita pela secretaria do tribunal,
através de carta registada. O réu tem de ser chamado para o processo, cumprindo o ónus de
contestar, na linha do princípio do contraditório: este princípio assume assim grande relevância
na formação sucessiva da instância.
A NTUNES V ARELA: "a relação processual atravessa na sua formação genética um duplo momento: trata-se
de uma relação jurídica de constituição sucessiva, não instantânea".
Após a citação do réu a instância fica estável quanto aos elementos essenciais do processo (art. 260.º), que
são: as partes; o pedido; e causa de pedir. Este é o princípio da estabilidade da instância. Pode haver
desvios à estabilidade da instância, nas situações em que a lei o permitir – quer quanto às partes, quer
quanto ao pedido, quer quanto à causa. A contrario do art. 260.º, resulta que enquanto que o réu não é
citado o autor tem um poder, que é o de, através de um requerimento, fazer alterações aos elementos
essenciais da instância.
Apesar de o processo ser dinâmico, não raro é haver, ao longo do processo, fenómenos de estagnação
processual. É a figura, regulada no CPC, da suspensão da instância (art. 269.º e segs). O art. 269.º trata as
causas clássicas de suspensão da instância, como o falecimento de uma das partes ou do advogado (há
outras causas menos clássicas – ver art. 273.º, segundo o qual o processo pode suspender para que as
partes levem o litígio a um mediador para que este o tente resolver, havendo acordo entre elas neste
sentido). Quando ocorre o falecimento de uma das partes ou do advogado, abre-se o incidente da
habilitação, regulado no art. 351.º e segs: este é um enxerto no processo para ver se é encontrado alguém
que venha substituir a parte ou o advogado que faleceu. Quanto ao falecimento do advogado, ver art.
271.º; quanto ao de uma parte, ver art. 270.º. Algumas notas sobre o regime em caso de falecimento de
advogado (pode ser questionado em caso prático):
1. É necessário fazer a prova de facto para que o juiz emita um despacho no sentido da suspensão da
instância, art. 271.º. Porém, nos termos do art. 412.º/1, há factos que não carecem de prova nem
de alegação: são os chamados factos notórios, do conhecimento geral, inquestionáveis. O que
acontece na prática é que, quando ocorre o falecimento de um advogado, toda a gente fica a
conhecer a sua morte. Assim, o que o juiz faz é lavrar oficiosamente um despacho que determina
a suspensão de todos os processos nos quais o advogado representasse uma das partes.
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
2. O art. 275.º/2 diz que, uma vez decretada a suspensão, os prazos judiciais não correm. Para além
disto, a parte final deste artigo diz que a suspensão inutiliza a parte do prazo que já tenha
decorrido, ou seja, o prazo volta ao zero.
3. E se a parte demorar a constituir novo advogado? O art. 276.º/3 diz que, se a parte demorar na
constituição, pode a outra parte fazer um requerimento ao juiz no sentido de que a parte
constitua advogado dentro de certo prazo (o que faz mais sentido quando é o advogado do réu a
falecer). Na falta de disposição legal, a lei fixa um prazo supletivo de 10 dias, art. 149.º.
4. Hoje, o novo Código de Processo Civil, o que acontece é que o juiz, ao abrigo do art. 6.º do CPC e
ao abrigo do dever de gestão processual, sem prejuízo do ónus de impulso imposto às partes,
deve providenciar pelo andamento célere do processo, promovendo as diligências necessárias,
promovendo mecanismos de agilização e simplificação. Assim, o juiz, numa situação estas,
sabendo que o advogado faleceu, não deve esperar para que a parte arranje novo advogado: deve
notificar a parte para que esta, dentro de 10 dias, constitua novo advogado (10 dias pois este é o
prazo supletivo da lei, art. 149.º).
5. O que acontece se a parte não constituir advogado? A instância extingue-se e o réu é absolvido da
instância.
6. E se for o advogado do réu que falecer? Se o réu, uma vez notificado, não constituir advogado,
não faz sentido ser absolvido da instância. Art. 41.º: fica sem efeito a defesa, ou seja, o réu fica
numa situação de revelia. A revelia é uma situação que ocorre quando o réu, citado para
apresentar a contestação (um ónus), este não o faz – arts. 566.º e segs. Os factos provados pelo
autor consideram-se automaticamente provados: é esta a sanção processual para o réu que não
contesta.
4) Finitude: como termina a relação processual? Pode terminar de duas formas: pelo fim normal ou
anormal. Nas palavras de A LBERTO DOS REIS, “a extinção normal da instância corresponde à morte natural
e a extinção anormal corresponde à morte violenta ou por acidente” (ver bibliografia indicada; e FERREIRA
DE A LMEIDA, p.653 e ss.).
A. Qual é o fim normal de um processo? É quando há uma decisão de mérito pelo juiz, art. 277.º al. a) –
quer através de uma sentença, art. 607.º, quer quando há um recurso de apelação e a instância sobe, arts.
663.º e 679.º. O julgamento de mérito significa que o juiz resolveu o litígio, aquilo que estava na base da
instância, podendo a sentença ser de condenação do réu no pedido (a acção é procedente) ou de
absolvição do réu no pedido (a acção é improcedente). Resolver o mérito da causa é resolver a questão
de mérito e a questão de facto que estão na base de toda a instância.
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
Este é o fim normal pois a sentença de mérito responde ao pedido feito pelo autor, ou seja, resolve o
litígio apresentado; a relação processual procede e dirige-se para a consecução do seu fim, que é a
decisão de mérito. Este aspecto esteve na origem de uma divergência entre CHIOVENDA e BETTI: para o
primeiro, estaria incluído no modo normal de extinção da instância quer a sentença de mérito, quer a
sentença de forma; enquanto que, para o segundo, a sentença de forma seria um modo anormal. A tese
de BETTI acabou por vencer, pelos motivos expostos; a sentença de forma abstém-se de conhecer o fundo
da causa, o pedido – numa palavra, não resolve o litígio.
B. Porém, a instância também pode ter um fim anormal ou extraordinário. As causas extraordinárias de
extinção vêm reguladas nos arts. 277.º e 278.º.
Falha ao nível dos pressupostos processuais, art. 278.º: o art. 278.º enuncia uma série de situações, não
taxativas, em que o juiz pode e deve, em certos casos e por razões estritamente relacionadas com a
instância e não com o fundo, absolver o réu da instância, sem chegar a conhecer o mérito do pedido. Os
requisitos que têm de estar verificados são os pressupostos processuais: requisitos de natureza
estritamente processual que têm de estar verificados para que o juiz possa conhecer do mérito da causa.
Quando falta um pressuposto processual, isto origina uma excepção dilatória, art. 577.º (a enunciação não é
taxativa). Certas falhas são sanáveis, mas outras não: por exemplo, a falta de competência é uma falha
insanável.
A absolvição da instância não produz efeitos de caso julgado material, uma vez que não contém uma
pronúncia jurisdicional sobre o mérito da causa (art. 619.º), surtindo apenas efeito de caso julgado
formal (art. 620.º). Assim, não origina o fim inelutável do processo, pelo que a absolvição da instância
não obsta a que se proponha uma acção sobre o mesmo objecto (art. 279.º/1).
Compromisso arbitral, art. 277.º/b) e 280.º: as partes, que estão num processo perante um tribunal
estadual, podem por convenção retirar o processo daquele tribunal e submetê-lo a um tribunal arbitral. Este
acordo é designado compromisso arbitral, e pode ocorrer em qualquer estado da causa pendente, até ao
trânsito da decisão que ponha termo ao processo. O compromisso arbitral está igualmente regulado na
Lei n.º 63/2011 de 14 de Dezembro (Lei da Arbitragem Voluntária, art. 1.º/1 e 2); e só é possível quando o
litígio disser respeito a litígios de natureza patrimonial. O compromisso arbitral distingue-se da cláusula
arbitral, que é um acordo entre as partes que submete litígios eventuais, emergentes de duma dada
relação jurídica contratual ou extracontratual, a um tribunal arbitral.
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O compromisso tem de ser celebrado por escrito no processo (por termo) ou fora dele por documento
particular (art. 2.º LAV e 290.º/2 CPC); lavrado o termo ou junto o documento, o juiz avaliará a validade
do compromisso. Em caso afirmativo, extinguirá a instância e remeterá as partes para o tribunal arbitral.
Deserção, art. 277.º/c) e 281.º: as partes têm o ónus do impulso processual (art. 6.º/1), isto é, de praticar
actos no sentido de o processo ir para a frente. Se, por negligência das partes, o processo se encontrar
parado por falta de impulso processual há mais de seis meses, o juiz emite um despacho e extingue o
processo.
Desistência, art. 277.º/d): a desistência é uma forma de extinção do processo que se traduz num acto
unilateral do autor. A lei distingue duas formas de desistência:
1. Desistência da instância, art. 285.º/2: é um acto unilateral do autor através do qual este manifesta
a vontade, através de um requerimento que apresenta no tribunal, de pôr termo unicamente à
instância. No entanto, fá-lo sem renunciar à pretensão deduzida: através da desistência da
instância, o autor faz cessar o processo instaurado, sem renunciar ao direito que quer fazer valer.
Não é muito frequente, mas pode acontecer quando o autor se apercebe que o processo foi mal
composto, desistindo dele para depois iniciar uma nova instância. Note-se que, nos termos do
art. 286.º/1, a desistência da instância depende do acordo do réu se este já tiver contestado. Porquê?
Este é um regime acertado, pois o réu já entrou no jogo e pode não querer que o processo
termine, por estar numa posição de força e pressentir que o juiz o irá absolver do pedido (sendo
que a desistência da instância origina a absolvição da instância, que não obsta a que o autor inicie
uma nova acção, na qual poderá ter mais força).
2. Desistência do pedido, art. 285.º/1: o autor renuncia ao direito que invocava através da acção,
não podendo mais instaurar uma acção com o mesmo objecto. Neste caso, não é necessário
consentimento do réu – há uma presunção que o réu consente na desistência do pedido, que lhe é
favorável.
Confissão, art. 277.º/d) e 283.º/1 in fine: ao contrário da desistência do pedido, a confissão é um acto
do réu, através do qual confessa o pedido, total ou parcialmente. A confissão é o reconhecimento por parte
do réu de que o pedido do autor é total ou parcialmente fundado.
Transacção, art. 277.º/d) e 282.º/2: a transacção é um acordo escrito através do qual as partes põem fim
ao processo com base em cedências ou concessões recíprocas, e que é homologado pelo juiz. A transacção é
um atêntico contrato, tanto é que vem regulado no Código Civil, arts. 1248.º, 1249.º, 1250.º.
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O art. 283.º/2 do CPC diz-nos que é lícito às partes, em qualquer estado da instância, pôr fim ao processo
através da desistência, confissão ou transacção, que se inserem portanto na liberdade de auto-
composição do litígio pelas partes – princípio do dispositivo. O art. 290.º diz-nos como se realiza estes
actos. Atenção que há limites objectivos à liberdade de confissão, desistência e transacção: esta não
valerá quando estiverem em causa direitos indisponíveis. A indisponibilidade dos direitos pode resultar
da lei (exemplo: art. 1103.º) ou da sua natureza (por exemplo, os direitos de personalidade). O exemplo
típico é o direito a investigar a maternidade e a paternidade: assim, é inadmissível a desistência do pedido
numa acção de investigação da maternidade ou da paternidade, mas já nada obsta à desistência da
instância.
Impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (ou do processo), art. 277.º/e): o CPC, pela mão
de A LBERTO DOS REIS, transpôs esta causa da doutrina alemã e italiana. Está em causa um facto exterior ao
processo, que faz com que a pretensão do autor não se possa manter. É necessário distinguir entre a
impossibilidade e inutilidade.
Na impossibilidade da lide, um facto exterior torna impossível alcançar aquilo que o autor pretende.
CARNELUTTI estabelecia um paralelo entre a impossibilidade da relação jurídica material, que cessa
quando desaparece um dos seus elementos essenciais, e a impossibilidade da relação jurídica processual,
chegando à seguinte sistematização:
1. Impossibilidade por extinção do sujeito: ocorre quando falece uma das partes. Nem sempre o
falecimento de uma parte dá origem à impossibilidade, na maior parte dos casos abre-se um
incidente de habilitação – tal só não sucede tratando-se de relações estritamente pessoais. Por
exemplo, numa acção de divórcio, se falecer um dos cônjuges, a lide torna-se impossível; ou
também quando, numa acção de interdição ou inabilitação, falece a pessoa que se quer interditar
ou inabilitar (apesar de esta poder continuar nos termos do art. 904.º).
2. Impossibilidade por extinção do objecto: a coisa que estava em causa no processo, que se
pretendia obter ou era o objecto mediato da acção, é destruída na pendência do processo. Note-
se que a coisa tem de ser infungível.
3. Impossibilidade por extinção da causa (é a menos frequente): verifica-se quando se extingue um
dos interesses em conflito. É o exemplo típico da confusão: o devedor sucede no crédito, pelo
que, reunindo-se na mesma pessoa as qualidades de credor e devedor, extingue-se um dos
interesses e deixa de haver conflito.
Na inutilidade da lide, o efeito útil que se pretendia alcançar através do processo alcança-se, na
pendência da acção, por uma via extrajudicial. Exemplos: na pendência do processo, o devedor paga ao
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
credor; ou, na pendência de uma acção de investigação de paternidade, o réu perfilha o autor.
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O conceito de objecto de instância aparece referido em vários artigos do CPC, por exemplo, no art.
92.º/1, no art. 279.º/1 e no art. 156.º/1.
Podemos assim, até em face da nossa lei, fazer uma distinção entre:
1. Objecto mediato ou material;
2. Objecto imediato ou processual (é o que interessa).
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O art. 552.º do CPC é uma norma crucial que nos diz quais os elementos que a petição inicial deve conter,
sendo um deles é precisamente o pedido (n.º 1, alínea e)). O pedido é o efeito jurídico que o autor pretende
alcançar através da acção. Mas não faz sentido apresentar o pedido sem explicar os fundamentos desse
pedido, o que o leva a formulá-lo: o pedido tem de ter uma causa, a causa de pedir, que se define como os
factos concretos em que assenta o pedido. O n.º 1, alínea d) diz-nos que o autor deve expor os "factos
essenciais" (este adjectivo é uma novidade do novo Código, face às inúmeras petições iniciais demasiado
extensas que os juízes recebiam) que constituem a causa de pedir.
Que pedidos pode, à luz do nosso CPC, o autor apresentar no tribunal? O art. 10.º/3 diz-nos que são três
os pedidos admitidos no processo declarativo, sendo que a lei permite, no art. 555.º, que o autor formule
vários pedidos – cumulação de pedidos, que têm de ser compatíveis.
O art. 10.º/3/a) prevê as acções de simples apreciação, nas quais o autor pede ao tribunal que declara a
existência ou inexistência de um direito ou de um facto jurídico. Estas são acções de utilização rara, cuja
admissibilidade geral foi durante muito tempo discutida. Podemos ter uma acção de simples apreciação
positiva ou negativa.
Acção de simples apreciação positiva: o autor pede ao juiz para declarar, através da sentença a
existência de um direito ou de um facto juridicamente relevante. Mas isto só é possível se na base do
pedido houver um litígio, ou seja, se houver interesse processual (ver acima).
Acção de simples apreciação negativa: o autor pede ao juiz para este declarar a inexistência de um
direito ou de um facto juridicamente relevante.
Qual o relevo desta distinção? Se alguém propõe uma acção de simples apreciação positiva, o autor tem
de provar que é titular do direito que se arroga, ou seja, tem o ónus de prova. Todavia, se o pedido é de
simples apreciação negativa, quem tem o ónus de prova é o réu – art. 343.º do CC.
As acções de condenação ou condenatórias já representam a grande massa de acções que entram nos
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nossos tribunais, todos os dias. Aqui, o que o autor pede é também que o juiz aprecie e declare um certo
direito; mas, sem prejuízo de o tribunal dever emitir aquele juízo declarativo, o autor pede ainda que o
juiz ordene condene o réu a realizar uma prestação. O pedido de declaração prévia do direito pode ser
expresso, caso em que teremos cumulação de pedidos, art. 555.º (por exemplo: o autor pede que o
tribunal declare que ele é proprietário da coisa e condene o réu na sua restituição); ou pode o autor
limitar-se a formular um pedido condenatório, caso em que o juízo prévio de apreciação é apenas um
pressuposto lógico do juízo condenatório. Através destas acções, faz-se valer um direito subjectivo. O
pressuposto destas acções é assim a violação de um direito, mas não é necessário que essa violação se
encontre consumada: a acção de condenação pode ter lugar na previsão da violação de um direito,
traduzindo-se numa intimação do réu para que se abstenha de o violar (por exemplo, art. 1276.º CC,
acção possessória de prevenção) ou à sua condenação a satisfazer a prestação no momento do
vencimento (art. 557.º e 610.º).
Qual a importância prática destas acções? O réu, na maior partes dos casos, uma vez intimado para
cumprir, obedece à sentença; e, se o réu não cumprir a sentença, o autor tem um título executivo e pode
propor uma acção executiva.
Pela acção constitutiva, exerce-se um direito potestativo, ou seja, este é o meio judicial através do qual se
exercem judicialmente os direitos potestativos (direitos potestativos de exercício judicial). Através destas
acções, o autor pede ao juiz que, através da sentença, que decrete um efeito jurídico novo. Em que se
traduz este efeito jurídico novo? Pode ser:
1. A constituição de um direito (fazem-se valer direitos potestativos constitutivos);
2. A extinção de um direito (direitos potestativos extintivos);
3. A modificação do direito (direitos potestativos modificativos).
As acções constitutivas através das quais o autor faz valer um direito potestativo constitutivo são muito
frequentes. São exemplos:
1. Acção para constituição para a servidão legal de passagem. O art. 1547.º do CC diz-nos que se
podem constituir servidões legais de passagem através de contrato; mas, se as partes não
chegarem a acordo, o n.º 2 do art. 1547.º diz-nos que pode ser constituída por decisão judicial.
2. Acção para investigação da paternidade (ou maternidade): faz-se valer o direito potestativo
constitutivo do vínculo da filiação, art. 1847.º do CC.
3. Acção de execução específica de um contrato-promessa: é uma acção declarativa, não executiva
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– art. 830.º do CC. A sentença declarativa do juiz substitui a escritura pública de compra e venda.
Já nas acções constitutivas, através das quais o autor faz valer um direito potestativo extintivo, o juiz
destrói alguma coisa. Em rigor, quando o autor faz valer um direito extintivo, a acção é "desconstitutiva".
São exemplos:
1. Acção de divórcio;
2. Acção de despejo:
3. Acção de impugnação da perfilhação;
4. Acção de impugnação de um contrato;
5. Acção de extinção da servidão de passagem.
Finalmente, entre as acções constitutivas para fazer valer um direito potestativo modificativo,
encontramos a acção de modificação da servidão de passagem, art. 1568.º.
Assim, a sentença tem assim efeito constitutivo, modificativo ou extintivo, consoante o tipo de direito. O
efeito que o juiz decreta é um efeito que o se impõe por si mesmo, contra o qual o réu não pode lutar,
nem sequer é necessária a sua colaboração. Enquanto que na acção de condenação espera-se a
colaboração do réu, isto é, espera-se que este cumpra a sentença, na acção constitutiva o efeito impõe-se
ao réu – é esta a principal diferença entre a sentença constitutiva e a condenatória. Uma sentença
constitutiva não é jamais seguida de uma acção executiva, não há nada para executar uma vez que o
efeito da sentença se impõe ao réu (isto a não ser que a sentença tenha uma parte condenatória em anexo,
ligada a uma qualquer obrigação acessória). Imaginemos que há uma sentença constitutiva de uma
servidão de passagem: se o réu se opuser à servidão, então o autor vai ter de avançar com uma nova acção
declarativa, desta vez condenatória.
4. A causa de pedir
Ao autor não basta formular o pedido; este tem também de indicar a causa de pedir (art. 552.º/1/d)). A
causa de pedir é composta pelos factos concretos, juridicamente relevantes, em que o autor fundamenta
o pedido; ou seja, é um conjunto de factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer,
no sentido de que, alegando aqueles factos, à luz do direito consegue-se o efeito pretendido (factos que
integram a previsão da norma). Note-se que o art. 552.º fala dos factos essenciais: este adjectivo não
constava do Código anterior (art. 467.º). Assim, o autor deve apenas expor os factos que traduzem a
hipótese normativa e que sejam relevantes para o autor alcançar aquele efeito; se o tribunal entender que
o autor foi demasiadamente prolixo (não se limitou ao essencial), o art. 530.º diz-nos hoje que o autor
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poderá ter de pagar. Note-se que os factos que constituem a causa de pedir têm de ser factos concretos e
não abstractos (teoria da substanciação).
Discutiu-se na doutrina se esta indicação da causa de pedir na petição inicial era ou não necessária. Para a teoria da
individualização, bastaria ao autor indicar o pedido, sendo os factos concretos em que se baseiam o pedido
considerados ao longo do processo processo; enquanto que, para a teoria da substanciação, o autor tem de alegar os
factos concretos em que se baseia o pedido, que teriam o efeito de individualizar a pretensão, ou seja, de delimitar o
pedido. É esta, inequivocamente, a tese consagrada no nosso ordenamento jurídico: os factos que servem de fundamento
ao pedido constituem a causa de pedir e esta delimita o objecto. Nos sistemas que, em determinadas áreas, aceitam a
teoria da individualização (é o que sucede no direito alemão, em relação à acção de divórcio e à acção de despejo), não se
forma caso julgado em relação à causa de pedir, o que significa que o autor fica impedido de instaurar nova acção
baseada em factos verificados à data da acção anterior. Nas outras áreas, em que é necessário indicar a causa de pedir, a
tendência da doutrina alemã é a de defender uma variante mitigada: a dedução do pedido deve ser acompanhada da
indicação de pedir, mas esta dispensa a alegação imediata de todos os factos necessários, permitindo que se complete ao
longo do processo.
Outro aspecto discutido prende-se com a definição da causa de pedir: a doutrina mais antiga, alemã, definia a causa de
pedir como o facto desencadeador da norma; porém, isto veio a ser posto em causa pelo confronto com casos concretos
debatidos com tribunais. Sempre que o efeito jurídico pudesse ser retirado de várias normas, teria de ser alargado,
começando-se a deslocar o conceito de causa de pedir para o próprio acontecimento natural do qual o autor retira o
efeito jurídico. Isto começou a dificultar a aplicação de certas normas processuais que implicam a individualização da
causa de pedir em termos jurídicos, pelo que a doutrina mais recente tende a voltar à posição original, porém moderada
com a seguinte ideia: o acontecimento da vida narrado pelo autor é susceptível de redução a um núcleo fáctico essencial,
tipicamente previsto por uma ou mais normas materiais. A causa de pedir terá assim uma dupla função: uma função
individualizadora (a identificação da causa de pedir permite verificar se a petição é apta, ou inepta, para fundamentar o
pedido, e se há ou não repetição da causa para efeito de caso julgado), conseguida com a alegação daquele núcleo fáctico;
e uma função de fundamentar o pedido, possibilitando a procedência de acção, que porém só será conseguido se o autor
alegar todos os factos constitutivos, que integram a previsão da norma e desencadeiam o efeito pretendido.
E se o autor fizer o pedido sem formular a causa de pedir, ou a causa de pedir for ininteligível? A lei diz
que a petição inicial sofre de ineptidão, art. 186.º. Quando a petição é inepta, a consequência é a
nulidade do processo, que determina a absolvição do réu da instância (art. 186.º/1, 278.º/1/b) e 577.º/b)).
Isto revela a importância que o legislador atribui à causa de pedir.
A nossa lei não dá a possibilidade de correcção de petição inicial inepta, algo que M IGUEL M ESQUITA
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critica – em certos casos, o juiz deveria poder corrigir, evitando que se tivesse de apresentar nova petição.
Uma vez citado o réu, o objecto da instância torna-se estável, isto é, o pedido e a causa de pedir ganham
estabilidade – princípio da estabilidade da instância, consagrado no art. 260.º. No entanto, estabilidade
não significa imutabilidade e inalterabilidade, pelo que o art. 260.º ressalva “as possibilidades de
modificação consignadas na lei”. Com efeito, a lei permite modificações do objecto:
1. Por acordo: se houver acordo entre as partes, o art. 264.º permite que o pedido e a causa de pedir
sejam livremente alterados em qualquer altura.
2. Na falta de acordo: o art. 265.º permite ainda, em certas circunstâncias e ainda que não haja
acordo, para que o processo não seja demasiado rígido, a alteração do pedido e causa de pedir.
Por exemplo, num caso de acidente de viação, na pendência do processo o autor tem
conhecimento que os danos que sofreu afinal são bem mais gravosos do que aquele que ele
imaginava. O autor quer assim ampliar o pedido; nesta situação, é possível a ampliação do
pedido ainda que não haja acordo por parte do réu.
Há ainda uma terceira possibilidade, de dedução pelo réu, na contestação, de pedidos (reconvencionais)
contra o autor, em ampliação do objecto do processo – art. 266.º.
A) O objecto como limitador da sentença: Causa de pedir: à luz do princípio do dispositivo, sobre o
autor recai o ónus de alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir, ficando o juiz circunscrito
a esta (artigo 5.o).
Em primeiro lugar, o pedido limita a sentença. O art. 609.º/1 consagra o princípio do pedido, na sua
segunda vertente: a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso daquilo
que foi pedido. A ideia de que o juiz está limitado ao pedido que o autor faz na petição inicial remonta ao
século XIX, estando já consagrada no Código de 1876. E a ideia que está por detrás desta solução é uma
ideia liberal, de que as partes cuidam dos seus interesses, sendo que se o juiz não for limitado pelo pedido
corre o risco de se tornar uma das partes, parcial. Para além de um fundamento liberal de não ingerência
do juiz nos interesses privados das partes, podemos também encontrar a intenção de não apanhar as
partes de surpresa, principalmente o réu, cumprindo a ideia de contraditório.
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
Uma sentença para além do pedido diz-se extra petitum, constituindo uma sentença inválida – a
consequência é a nulidade da sentença, art. 615.º/e). No entanto, o Professor entende que devemos
distinguir aqui entre duas situações:
1. A sentença deve ser nula apenas quando condenar o réu em objecto diverso.
2. Quando a sentença condenar em quantidade superior, a consequência deve ser antes a
anulabilidade, podendo ser objecto de redução ou por via de reclamação para o juiz que proferiu
a sentença, ou por via de recurso para um tribunal superior (se a sentença for susceptível de
recurso), pode-se invocar a nulidade da sentença.
Mas também a causa de pedir limita a sentença. A causa de pedir pode ser compreendida à luz do
princípio do dispositivo, art. 5.º/1: o autor tem o ónus de alegar, na petição inicial, os factos que
constituem a causa de pedi, ficando o juiz circunscrito a esta. Assim, o juiz não pode basear a sentença
numa causa de pedir diversa; se o fizer, a sentença será inválida. O que pode acontecer é que o juiz
procure esclarecer-se em relação à causa de pedir exposta. O art. 411.º, que consagra o princípio do
contraditório, prevê precisamente que o juiz possa ir à procura de provas, para se esclarecer sobre os
factos apresentados na causa de pedir – mas apenas "quanto aos factos essenciais apresentados".
No fundo, tem de haver no processo uma garantia de que a sentença será congruente com o objecto da
petição inicial, conferindo segurança às partes, sob pena de o processo se tornar caótico.
A litispendência é um fenómeno que está previsto na lei, nos arts. 580.º, 581.º e 582.º (prevêem
igualmente a litispendência e o caso julgado). A litispendência significa uma repetição de processos, ou
seja, dizemos que há litispendência quando, na pendência de uma acção, há uma nova acção, idêntica
que é proposta. Quando é que há uma acção idêntica à outra, para efeitos de litispendência?
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
Quando há litispendência, continua a correr o processo iniciado em primeiro lugar, ou seja, aquele para
o qual o réu foi citado primeiro – art. 582.º. A litispendência é, nos termos do art. 577.º/i) e tal como o
caso julgado, uma excepção dilatória ou processual, que conduz à absolvição do réu da instância. A
litispendência, tal como todas as excepções dilatórias, é de conhecimento oficioso (art. 578.º), logo pode
ser arguida pelas partes ou conhecida oficiosamente pelo juiz.
A litispendência (tal como o caso julgado) visa evitar que o tribuna seja colocado na alternativa entre
contradizer ou reproduzir uma decisão anterior (art. 580.º/2).
O caso julgado traduz, à semelhança da litispendência, uma repetição da causa; mas esta repetição dá-se
em condições diferentes. Enquanto que a excepção da litispendência consiste na alegação de que está
pendente causa idêntica aquela que se propôs, o caso julgado consiste na alegação de que a acção
proposta é idêntica a outra já decidida por sentença de mérito transitada em julgado – art. 589.º/1, in
fine Dizemos que a sentença transita em julgado logo que, nos termos do art. 628.º, não seja susceptível de
recurso ou reclamação. Se a sentença não transitar em julgado, a decisão não se torna definitiva: por uma
questão de segurança jurídica, é necessário que esta se torne insusceptível de alteração. O caso julgado é
um efeito processual que funciona como um "escudo protector" da decisão (note-se que não existe em
todos os ordenamentos jurídicos).
É também através do objecto que conseguimos determinar se há ou não caso julgado, ou seja, os critérios
para aferir se há ou não repetição da causa são os mesmos que na litispendência – identidade dos sujeitos
e identidade do objecto (art. 581.º). À semelhança da litispendência, o caso julgado é uma excepção
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
dilatória que, quando julgada procedente, determina a absolvição do réu da instância (art. 577.º/i e art.
278.º/1e)).
Mas será que uma decisão transitada em julgado nunca pode ser alterada? Sim, pode, em situações
excepcionais, através do recurso de revisão, art. 696.º.
Sobre o caso julgado, ALBERTO DOS REIS afirma que este exerce duas funções: uma função positiva, quando faz valer a
sua força e autoridade; e uma função negativa, quando impede que a mesma causa seja apreciada pelo tribunal. Desta
forma, rejeita a orientação defendida pelo STJ na altura, segundo a qual a autoridade do caso julgado seria uma figura
diferente da excepção do caso julgado, apenas sendo necessário a identidade subjectiva e objectiva no segundo caso. No
entanto, estas são apenas duas faces da mesma figura, pressupondo sempre a identidade das acções; apesar de se poder
dizer que, mesmo quando funciona como excepção, por trás desta está sempre a força e a autoridade do caso julgado.
Qual a razão da força e autoridade do caso julgado? É a necessidade de certeza do direito, de segurança nas relações
jurídicas: se uma sentença não se tornasse definitiva, não haveria confiança e segurança as relações sociais. Porém, a
força e autoridade não derivam de uma presunção de verdade, ou seja, da justeza da decisão – depois de esgotados todos
os meios que a lei processual põe à disposição, a sentença fica revestida de força obrigatória, por mais contrária que seja
à verdade dos factos, pois a necessidade se segurança sobreleva à justiça. Assim, a presunção de verdade resulta do
próprio caso julgado: este deve aceitar-se como verdadeiro.
Apesar de a lei indicar como explicar o caso julgado pela conveniência de evitar que o tribunal seja colocado na situação
de se contradizer ou se repetir, esta razão é uma razão secundária, posta em confronto com a segurança-
Os pressupostos processuais são os requisitos cuja existência se torna indispensável para o conhecimento
do pedido e da causa de pedir, isto é, para a apreciação do mérito ou do fundo da causa. Para se saber se o
autor tem interesse em agir, se as partes têm legitimidade ou mesmo se o tribunal é competente, torna-se
fundamental perscrutar o objecto. É à luz do objecto que podemos averiguar se, num processo, estão ou
não verificados os pressupostos processuais.
E) O objecto como ponto de apoio para a enunciação das grandes questões de prova
À luz da nova versão do Código, o objecto tem uma outra função, que resulta do art. 596.º. Com a
Reforma de 2013, o juiz deixa de ter de elaborar uma lista pormenorizada dos factos controvertidos do
processo, mas o art. 596.º dispõe que o juiz, “após identificar o objecto do processo”, tem de “enunciar os
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
temas da prova”. Este artigo mostra a importância reforçada do objecto do processo, e diz-nos que, a
seguir à fase dos articulados, o juiz tem o dever de identificar o objecto. Ou seja, é necessário fazer uma
síntese do objecto, tendo em conta a petição, a eventual contestação, etc.; e ainda relacionar o objecto
com os temas da prova: dentro daquele objecto, quais são as grande questões que têm de ser provadas?
No fundo, deve identificar genericamente as grandes questões polémicas, que carecem de prova – por
exemplo, numa acção indemnizatória baseada num acidente de viação, o condutor quando atropelou o
autor em certa passadeira, ia com velocidade excessiva?
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
São partes o autor e o réu. O conceito de parte recorta-se formalmente, ou seja, as partes são os sujeitos
da relação jurídica processual designados na petição inicial como autor (quem propõe a acção) e réu
(contra quem é proposta a acção), independentemente da relação jurídica material. A determinação da
relação jurídica material controvertida não interessa à configuração das partes processuais.
Com efeito, na petição inicial, o autor tem de identificar as partes, art. 552.º/1/a): identificando-se a si e ao
réu, indicando os seus nomes, domicílios ou sedes, números de identificação, local de trabalho, etc.
A lei normalmente utiliza a expressão “autor” e “réu” no seu sentido estrito, ou seja, na perspectiva da
relação jurídica processual tal como ela resulta da petição inicial; no entanto, podemos ter casos de
modificações subjectivas que levem a considerar como autor ou réu outros sujeitos que não os
identificados na petição: no caso de intervenção de terceiros a título principal (por intervenção principal
ou oposição, arts. 311.º a 320.º e 333.º a 341.º); ou no caso de habilitação do sucessor, mortis causa ou
inter vivos. Para além das partes principais, temos ainda as partes acessórias – trata-se normalmente de
pessoas que têm um interesse dependente do de uma das partes principais e por isso intervêm na causa
para auxiliar essa parte (art. 321.º/1 e 326.º/1), mediante o exercício de actividade probatória.
Sobre as partes recaem alguns deveres e direitos processuais, mas sobretudo uma série exponencial de
ónus, que exercem ou não segundo a sua vontade (ónus de alegar, contestar, provar, etc.).
Mas sobre as partes recai ainda o dever de pagamento das custas do processo, previsto no art. 529.º e
regulado no Regulamento das Custas Processuais (a não ser que uma das partes, pela sua situação
económica, peça o apoio judiciário à Segurança Social, pois aí quem suporta as custas é o Estado). A lei
distingue as custas em três modalidades, englobando uma realidade tríplice (art. 529.º):
1. Taxa de justiça, art. 529.º/2: a taxa de justiça é uma quantia pecuniária que está ligada ao impulso
inicial do processo, e que o autor e o réu têm de pagar: pelo autor quando apresenta a petição
inicial, e pelo réu quando apresenta a contestação. O tribunal não aceita a petição inicial se o
autor não provar que já pagou a taxa de justiça.
2. Encargos, art. 532.º: são despesas que as partes fazem ao longo do processo, nomeadamente
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
Posto isto, temos de nos perguntar: quem pode ser parte no processo? Somente pode ser parte no processo
aquela entidade que gozar de personalidade judiciária (em Itália, fala-se da “capacidade para ser parte”).
Assim, a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte no processo, art. 11.º/
Mas o que como se afere a personalidade judiciária? A lei diz-nos, no art. 11.º/2, que pode ser parte
quem tiver personalidade jurídica, ou seja, quem tiver personalidade jurídica goza de personalidade
judiciária – princípio da equiparação entre a personalidade judiciária e a personalidade jurídica.
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Laura Nunes Vicente – Ano Lectivo 2013/2014
faleceu, pode requerer-se a habilitação dos herdeiros. Para além das pessoas singulares, também as
pessoas colectivas com personalidade jurídica têm personalidade judiciária.
Todas as pessoas colectivas públicas (Estado, Autarquias Locais e Regiões Autónomas) possuem
personalidade judiciária, sendo, todavia, representadas em juízo por um dos seus órgãos. Assim, por
exemplo, o Estado é representado em juízo pelo Ministério Público, art. 24.º.
Todavia, a nossa lei, responder a certos problemas práticos, consagra desvios ao princípio da
equiparação da personalidade judiciária à personalidade jurídica, isto é, atribui personalidade
judiciária a entes desprovidos de personalidade jurídica. Esta solução foi sendo aperfeiçoada,
nomeadamente pelas reformas de 95 e 96, estando vertida no art. 12.º. Quais são os desvios?
A herança jacente: a herança jacente é um acervo de bens e de direitos que pertenceu a uma pessoa
falecida e que ainda não foi objecto de partilha (art. 2046.º CC), e portanto é um património sem sujeito,
normalmente administrado por alguém. Uma herança jacente pode ser parte no processo, representada
pelo administrador da herança. Esta é uma solução muito antiga no direito processual português, e tem
utilidade prática – enquanto que não se faz a partilha, há muitas vezes a necessidade de a herança intentar
uma acção contra alguém.
Por exemplo: alguém, sabendo que A tinha falecido e os bens não tinham sido objecto de partilha, decide
ocupar uma propriedade pertencente a A. Esta propriedade pertence à herança jacente, logo quem vai
propor a acção de reivindicação é a herança de A, representada por um dos herdeiros, reivindicando a
propriedade de um bem que lhe pertence. Mas podemos imaginar um caso contrário: um indivíduo era
credor de A, que faleceu. Não pode propor uma acção contra A, mas pode demandar a sua herança.
As associações sem personalidade jurídica: são pessoas colectivas sem finalidade lucrativa e não
constituídas por escritura pública ou por outro meio legalmente admitido.
As comissões especiais: estão previstas no art. 199.º CC. Uma comissão especial é um grupo transitório
de pessoas que se formou para se alcançar um fim, que é um fim isolado e concreto, efémero. Por trás da
comissão, temos os comissionados, que são os membros da comissão. A comissão não tem
personalidade jurídica, mas pode ser parte activa ou passiva num processo.
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As sociedades civis: as sociedades civis prosseguem fins lucrativos mas não praticam actos de
comércio, como uma sociedade comercial. O que é que caracteriza a prática de actos de comércio? É
uma actividade incessante de intermediação nas trocas, isto é, compra-se para vender. Uma sociedade
civil, apesar de isto ser bastante discutido, não tem personalidade jurídica; no entanto, goza de
personalidade judiciária.
As sociedades comerciais irregulares: são pessoas colectivas que visam, através de uma actividade
comercial, alcançar lucros. Faltando o registo do contrato de sociedade, a sociedade comercial é
desprovida de personalidade jurídica (ver artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais). Assim, uma
sociedade comercial irregular é uma sociedade comercial que ainda não adquiriu personalidade
jurídica, pois ainda não foi alvo de registo na conservatória.
O condomínio (mais importante): em linguagem comum, a palavra é usada com o sentido de edifício
ou prédio urbano, não se distinguindo a realidade jurídica. Juridicamente, a palavra condomínio traduz-
se num complexo conjunto de propriedades que incidem sobre um edifício sujeito ao regime da
propriedade horizontal. Este regime é instituído normalmente através de escritura pública e está previsto
no art. 1414.º do CC. O que caracteriza a propriedade horizontal?
1. Por um lado, existem propriedades exclusivas ou direitos privativos dos condóminos sobre certas
partes desse edifício, ou seja, sobre as fracções autónomas existem propriedades exclusivas
(andares, apartamentos, garagens, etc.). Os condóminos são os proprietários dessas fracções
autónomas.
2. Por outro lado, existem também as partes comuns, que estão definidas por lei. Estas partes
comuns estão previstas no art. 1421.º - exemplos: escadas, átrio, telhado, elevador, etc. Os
proprietários das fracções autónomas são comproprietários das partes comuns.
O condomínio que resulta da propriedade horizontal goza de personalidade judiciária, art. 12.º/e), mas
apenas relativamente às acções que têm a ver com o âmbito dos poderes do administrador (2ª parte). Quem
administra as partes comuns do edifício é o administrador, logo o condomínio só goza de personalidade
judiciária se o litígio disser respeito às partes comuns (arts. 1421.º, 1436.º e 1437.º CC). Os condóminos
não podem ser testemunhas no processo pois, apesar de não serem directamente partes no processo, são
partes por baixo da “capa” do condomínio.
Antigamente, o condomínio não tinha personalidade judiciária, não havia esta extensão: o que acontecia
era que o autor tinha de propor a acção contra todos os condóminos, que podiam ser representados pelo
administrador. Era assim necessário identificar na petição inicial todos os condóminos, o que era muito
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trabalhoso. Assim, a reforma de 95/96 veio fazer esta extensão, que facilita bastante a propositura acção.
Discute-se mesmo, em certos países, se o condomínio não deverá ter personalidade jurídica.
As sucursais, agências, filiais e delegações: trata-se de meros órgãos de desconcentração (todos estes
termos designam uma entidade idêntica) de uma pessoa colectiva desprovidos de personalidade jurídica,
que, nos termos do artigo 13.º, gozam de personalidade judiciária sempre que o facto em que se
fundamenta a acção tenha sido praticado pela sucursal, agência, filial ou delegação (n.º 1). Sempre que,
ainda, o facto em que se baseia a acção tenha sido praticado pela sociedade sedeada no estrangeiro com
um português ou com um estrangeiro domiciliado em Portugal, a sucursal, agência, filial ou delegação
existente no nosso país goza de personalidade judiciária e, assim sendo, não é necessário demandar a
sociedade sedeada no estrangeiro (n.º 2).
A falta de personalidade judiciária das agências, sucursais ou filiais pode ser sanada mediante a
intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado (art. 14.º).
O pressuposto da capacidade judiciária está regulado no art. 15.º, que diz que a capacidade judiciária
consiste na susceptibilidade de estar por si no processo.
Como é que se afere a capacidade judiciária? O art. 15.º/2 estabelece, à semelhança do que sucede na
personalidade, um princípio de equiparação: a capacidade judiciária tem por base a capacidade de
exercício de direitos, que é a capacidade de, por um acto praticado pelo próprio, praticar actos jurídicos
válidos (art. 67.º CC). Isto significa que só podem estar sozinhos no processo os maiores não
incapacitados e os menores emancipados (art. 132.º e 133.º CC).
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Não tem, por isso, capacidade judiciária os incapazes, ou seja, os menores, interditos e inabilitados.
Porém, os menores têm capacidade de exercício, logo capacidade judiciária, nas situações previstas no
artigo 127.º do CC; o mesmo sucedendo com os inabilitados quanto aos actos não abrangidos na sentença
de inabilitação (art. 16.º/1, in fine).
Como se supre a incapacidade? O art. 16.º diz-nos que os incapazes só podem estar em juízo por
intermédio dos seus representantes (representação) ou autorizados pelo seu curador (assistência).
1. Menores: devem ser representados pelos respectivos progenitores ou, subsidiariamente, pelo
tutor ou administrador de bens (arts. 124.º, 1877.º, 1921.º e 1922.º CC). A representação dos
menores em juízo assegurada pelos respectivos progenitores exige, porém, o acordo de ambos,
art. 16.º/2. Ver também art. 16.º/3 e 17.º.
2. Interditos: os interditos têm de estar representados pelo seu tutor, sendo a interdição sempre
total (art. 139.º CC).
3. Inabilitados: a incapacidade dos inabilitados é suprida através de curador que o assiste ou
representa (art. 153.º e 154.º CC). Nos termos do art. 19.º, os inabilitados podem intervir em
todas as acções (ainda que representados pelo curador), devendo ser citados. Se o incapaz não
tiver ainda representante legal aquando da propositura da acção, deverá ser nomeado um
curador provisório (art. 17.º).
Enquanto que a falta de personalidade judiciária não é sanável, tem-se entendido que a falta de
capacidade judiciária pode ser sanada. É admissível a sanação, pelo juiz, de uma falha ao nível da
capacidade judiciária, que se pode traduzir num de três vícios: incapacidade judiciária strictu sensu;
irregularidade de representação e falta de autorização, deliberação ou consentimento exigido por lei.
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O regime da sanação da falta de autorização, deliberação ou consentimento está previsto no art. 29.º.
legitimidade enquanto pressuposto processual traduz a intenção da lei de não querer que outras pessoas
não ocupem o lugar da parte, sendo este é o único mecanismo de afastar partes ilegítimas do processo. A
falta de legitimidade origina uma excepção dilatória, que determina a absolvição do réu da instância (art.
278.º/1/d) e 577.º/e)), e é insanável.
Mas como é o que o juiz afere que o autor ou o réu são as partes no processo? Qual o critério para aferir a
legitimidade das partes? Determinar a legitimidade do autor não se confunde com a questão de
determinar se o autor é efectivamente o titular do direito subjectivo material que alega. A legitimidade
processual não se confunde com a titularidade do direito subjectivo material: aí, estaríamos a confundir
um aspecto adjectivo com um material, isto é, seria necessário descer ao mérito da questão para aferir de
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É, pois, necessário aferir a legitimidade processual com base em critérios também processuais, que não
implicam descer ao mérito. Esta é uma questão complexa, tendo o legislador estabelecido como primeiro
critério aferidor da legitimidade o critério do interesse directo – art. 30.º/1. O critério do interesse directo
diz-nos que o processo tem de correr entre as partes em relação às quais o objecto diga directamente
respeito: o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, e o réu é parte legítima
quando tem interesse bastando, para se ter legitimidade, um interesse material, meramente indirecto,
reflexo ou derivado. O n.º 2 densifica o critério: o interesse em demandar consiste na utilidade derivada
da procedência da acção; e o interesse em contradizer, no prejuízo que dessa procedência advenha.
Não basta, por isto, que a parte tenha um interesse indirecto, reflexo, ou meramente derivado na acção,
é necessário um interesse pessoal e directo.
Caso prático 1: A é casado com B, vivendo numa casa arrendada. São inquilinos de C, senhorio. C tinha o
dever de fazer obras e não o fez; pelo que D, filha de A e B, intenta uma acção contra C. Acontece que D
não tem, à luz do critério do interesse directo, legitimidade processual para propor a acção contra C:
quem deveria propor a acção seria A e B, que são os arrendatários. D é titular de um interesse reflexo,
indirecto ou derivado.
2) Critério dos sujeitos da relação material controvertida, tal como ela é configurada, de forma
unilateral, pelo autor, na petição inicial
No entanto, há situações em que o critério do interesse directo se presta a algumas dificuldades, logo é
necessário recorrer a um segundo critério, que desempenha por isso uma função auxiliadora ou
coadjuvante.
Caso prático 2: M fez uma doação a A. B, filho de M, quando soube da doação, propôs uma acção de
anulação do contrato de doação contra M com base no art. 257.º (incapacidade acidental). B tinha
legitimidade singular activa? B alegava ter interesse directo uma vez que era filho único, e era seu herdeiro
legitimário; o advogado da outra parte alegou que B tinha uma mera expectativa de vir a ser herdeiro de
M.
O critério do interesse directo presta-se a dificuldades na sua aplicação prática, pelo que o n.º 3 do art.
30.º consagra um critério auxiliar, o critério da relação jurídica material controvertida tal como ela é
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apresentada na petição inicial: as partes legítimas são os sujeitos invocados na petição pelo autor como
titulares da relação material controvertida. Trata-se de um critério formal que permite determinar a
legitimidade singular das partes, sem averiguar se o autor é efectivamente titular do alegado direito
subjectivo material ou se o réu é o efectivo titular do dever ou da sujeição. O que importa, em síntese, é
levar em linha de conta a fisionomia da alegada (hipotética) relação material controvertida, tal como ela é
apresentada ao tribunal pelo autor, averiguando se, na instância, se encontram os protagonistas daquela
relação. Este critério foi defendido, na segunda década do século XX, por BARBOSA DE M AGALHÃES
(contra A LBERTO DOS REIS), e acabou por ser consagrado pela Reforma de 1995/1996.
O problema colocou-se pela primeira vez em Portugal, em 1918, por um caso julgado pela Relação de Lisboa. Tratava-
se de um contrato de compra e venda de 60 toneladas de chumbo, que o vender não cumpriu integralmente; o autor
demandou um comerciante português, tendo o réu alegado que se limitara a ser um mero intermediário de uma
sociedade espanhola, sendo esta a verdadeira vendedora. Este problema gerou uma querela entre dois professores,
ALBERTO DOS REIS e BARBOSA DE MAGALHÃES: apesar de haver consenso quanto à necessidade de um segundo
critério, da relação material controvertida, não o havia quanto a saber qual deveria ser a relação jurídica controvertida
que deve atender-se para a aferição da legitimidade. ALBERTO DOS R EIS defendia que deveria ser a relação realmente
constituída ou estabelecida entre as partes, enquanto que BARBOSA DE MAGALHÃES contrariava, defendendo que
deveria ser a relação jurídica tal como o autor a apresenta ou configura na petição inicial.
Para ALBERTO DOS REIS, o juiz deveria tentar averiguar relativamente à conformação da verdadeira relação jurídica
material entre as partes. Esta seria assim uma solução de celeridade da acção, que se extinguia logo na fase inicial.
BARBOSA DE MAGALHÃES defendia que esta tese não fazia qualquer sentido: o tribunal, nesta fase, não conhece do
mérito da causa, está a conhecer apenas de questões processuais; para além disto, o juiz pode não ter elementos
suficientes para averiguar a titularidade da relação material controvertida, arriscando-se a tomar uma decisão errada.
Assim, o tribunal deveria olhar antes para a relação tal como o autor a configura, limitando-se a esta e não fazendo
averiguações materiais.
Apesar de a tese de BARBOSA DE MAGALHÃES ser a mais correcta, não é isenta de críticas: a principal sendo a de
deixar tramitar acções dotadas ao fracasso. Ainda que seja mais fiel à natureza desta fase e dos pressupostos
processuais, tem a desvantagem de se deixar tramitar acções dotadas ao fracasso quanto ao mérito – no final, o juiz irá
absolver o réu do pedido e tramitou-se a acção até ao final. Mas isto é o preço a pagar pelo decurso natural do processo.
As correntes modernas tentam ultrapassar esta crítica, dizendo que se devem encontrar mecanismos que
permitam a intervenção de terceiros com interesse na causa - o chamamento de terceiros interessados na causa. A
acção poderá assim continuar em relação ao terceiro e não em relação ao demandado. Na nossa lei, um exemplo destes
mecanismos é o do art. 39.º. A sua redacção não foi muito feliz, pois apenas permite ao autor, no caso de ter dúvida em
relação ao sujeito da relação controvertida, chamar terceiros ao processo. Só se dá esta possibilidade ao autor, mas será
que também não se pode dar também ao réu? Alguns autores defendem que se deveria ler esta norma neste sentido, até à
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luz de princípios como o da gestão processual e do princípio da preferência da decisão de mérito sobre a decisão formal.
Sintetizando, o réu será sempre parte legítima se for sujeito da relação controvertida tal como a
configurou o autor, o que restringe drasticamente as hipóteses de ilegitimidade singular. Estas apenas se
levantarão naqueles casos restritos de divergência entre as pessoas identificadas pelo autor e as que
realmente foram chamadas a juízo (erro de identificação), pois só aí as pessoas citadas não coincidirão
com os sujeitos da relação alegada. Assim, basta uma legitimidade simplesmente aparente para que se
torne possível conhecer do mérito do pedido.
Porém, a lei atribui, excepcionalmente, legitimidade a pessoas que não fazem parte da relação material
– legitimidade extraordinária, art. 30.º, 1ª parte). Exemplos:
1. O art. 286.º do CC permite que a nulidade seja invocável por qualquer interessado, que pode por
isso ter um interesse meramente reflexo.
2. O art. 1640.º/1 do CC alarga a legitimidade para arguir a anulação do casamento simulado para
além dos cônjuges, que são os sujeitos da relação material controvertida.
3. Finalmente, o art. 606.º/1 permite ao credor exercer contra terceiros os direitos de conteúdo
patrimonial do credor.
Na maioria das situações, encontramos em juízo dois sujeitos; porém, podemos encontrar acções que se
desenrolam com uma pluralidade de partes processuais, que pode ser activa (vários autores), passiva
(vários réus) ou mista (vários autores e vários réus). Nestas situações, ocorre ilegitimidade quando não se
associarem do lado activo ou passivo todas as partes que a lei, a natureza da relação ou uma eventual
convenção exigirem. A figura da legitimidade plural tem duas espécies: o litisconsórcio e a coligação. O
litisconsórcio está regulado nos arts. 32.º a 35.º do CPC; enquanto que a coligação está tratada nos arts.
36.º a 38.º.
A) O litisconsórcio
Conceito
O litisconsórcio caracteriza-se por uma pluralidade de partes no processo (activa, passiva ou mista),
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sendo que esta pluralidade assenta na unicidade da relação material controvertida. Ou seja, há apenas
uma relação material controvertida, apresentada no objecto do processo; mas essa relação tem uma
titularidade pluri-subjectiva, ou seja, nela intervieram vários sujeitos.
O litisconsórcio voluntário
A questão que se coloca é a de saber se, uma vez que a relação material é só uma, todos os intervenientes
nessa relação têm de estar no processo, sob pena de ilegitimidade. A regra é a seguinte: o grande princípio
nesta matéria, e que resulta do art. 32.º do CPC, é o de que quando uma relação material tem vários
intervenientes não têm de estar todos presentes no processo. Isto significa que, em regra, o litisconsórcio é
voluntário. Em casos excepcionais, de litisconsórcio necessário, têm de estar todos presentes no processo,
sendo que este pode ser legal, convencional ou natural.
A falta de citação de qualquer um dos réus que devam intervir em litisconsórcio necessário não gera
anulação do processado anterior (art. 190.º/b)); a desistência, confissão ou transacção limitar-se-ão ao
interesse do respectivo agente (art. 288.º/1) e o recurso interposto por uma das partes só aproveita aos
seus compartes nas hipóteses do art. 634.º/2.
O litisconsórcio necessário
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No litisconsórcio necessário, a falta de alguma das partes, pelo lado activo ou passivo, é sanável mediante
intervenção, espontânea ou provocada, da parte cuja falta gera a ilegitimidade (art. 261.º), até ao trânsito
em julgado da sentença. Se não sanada, a ilegitimidade de qualquer das partes originará a absolvição da
instância. (No caso de litisconsórcio necessário entre os cônjuges, a sanação da ilegitimidade activa é feita
seja pelo consentimento espontâneo do outro cônjuge, seja pelo respectivo suprimento judicial regulado
no art. 1000.º).
1) O litisconsórcio necessário legal: é aquele que resulta da própria lei. A imposição legal do
litisconsórcio funda-se no objectivo de assegurar uma uniformidade decisória relativamente a todos os
interessados numa relação jurídica controvertida de carácter indivisível. São exemplos de litisconsórcio
necessário legal:
a. Art. 419.º/1 CC: quando pertencente a vários titulares, o direito de preferência tem de ser
exercido por todos (litisconsórcio necessário activo).
b. Art. 34.º CPC: diz respeito às acções que têm de ser propostas por ambos os cônjuges, quando
digam respeito à sua esfera patrimonial (n.º 1). Exemplo: A e B são casados e compraram um
terreno na pendência do casamento. C ocupa o terreno, sendo que a acção de reivindicação tem
de ser proposta por A e B contra C. Já o n.º 2 estabelece que devem ser propostas conta ambos os
cônjuges as acções do n.º 1, bem como as relativas a factos praticados por ambos os cônjuges (ou,
quando praticado por um deles, se pretenda obter decisão susceptível de ser executada sobre
bens próprios do outro).
Outros exemplos de litisconsórcio necessário activo: art. 500.º/1, art. 535.º, art. 611.º, art. 1822.º/1, art. 1824.º/1 e 2, art.
1846.º/1 e art. 2091.º do CC. De litisconsórcio necessário activo: art. 1819.º, art. 1873.º, art. 1831.º/3 e art. 2091.º do
CC.
2) O litisconsórcio necessário convencional: neste caso, o negócio ou o contrato exigem que certo direito
seja judicialmente exercido por várias pessoas ou contra várias pessoas. Em certos negócios, encontramos
assim uma cláusula que cria um litisconsórcio necessário.
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Para determinação do âmbito desta figura, temos de atender ao regime das obrigações divisíveis e indivisíveis. Se a
obrigação for divisível, o litisconsórcio é voluntário, pelo que se não estiverem presentes todos os interessados o
tribunal conhece apenas da quota-parte do interesse ou da responsabilidade dos sujeitos presentes em juízo. Podem,
porém, as partes estipular que o litisconsórcio é necessário (litisconsórcio necessário convencional). Se a obrigação for
indivisível (por natureza, estipulação das partes ou convenção), temos de distinguir entre uma pluralidade de devedores
e credores. Se forem vários os devedores, é necessário a demanda simultânea de todos (art. 535.º/1 CC). Se houver uma
pluralidade de credores, qualquer um deles pode exigir a prestação por inteiro (art. 538.º/1 CC), pelo que na falta de
estipulação em contrário o litisconsórcio é voluntário. Porém, podem as partes acordar que o cumprimento apenas
pode ser exigido por todos os credores em conjunto, caso em que teremos um litisconsórcio necessário convencional
(caso do depósito no banco). Sintetizando, esta figura aplica-se aos casos de obrigações divisíveis e obrigações indivisíveis
com pluralidade de credores.
3) O litisconsórcio necessário natural (art. 33.º, nos 2 e 3): estamos perante situações em que a lei não
impõe expressamente o litisconsórcio e ele não resulta também de um contrato. No entanto, para que a
sentença consiga resolver definitivamente o litígio (produza o seu «efeito útil normal»), impõe-se,
naturalmente, a presença, no processo, de todos os intervenientes na relação material controvertida.
Note-se que a sentença, em princípio, só vincula os intervenientes no processo (artigos 619.º e 581.º). Se
não estiverem todos os intervenientes no processo, a sentença não irá resolver cabalmente o litígio, pois
esta só vincula os presentes e, estando um dos intervenientes de fora, este poderia intentar uma nova
acção, ficando a primeira inutilizada.
Reclamam litisconsórcio natural as relações jurídicas indivisíveis por natureza, que têm de ser dirimidas
de modo unitário para todos os interessados, a fim de que a decisão a proferir surta a sua eficácia normal.
Pretende-se assim prevenir a prolação de decisões que venham a ser, na prática, inutilizadas por outras,
proferidas em face dos restantes interessados.
Exemplo 1: C tem um prédio encravado, podendo ser uma situação de entrave relativo (tem muita
dificuldade em aceder) ou absoluto (não consegue aceder ao seu prédio, a não ser pelo de A e B). Neste
caso, imaginemos que o terreno pelo qual C quer passar pertence em compropriedade a A e a B. C quer
valer o seu direito potestativo de criação de uma servidão de passagem: se fosse a regra, poderia intentar
ou A ou B; mas neste caso temos uma situação de litisconsórcio necessário, apesar de isto não estar
expressamente previsto nas normas sobre servidões. Esta é uma situação de litisconsórcio natural: se C
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intentar apenas a acção contra um dos comproprietários, a acção não irá resolver o litígio, pois a pessoa
que ficou de fora pode opor-se à servidão.
4) Figura do litisconsórcio subsidiário: a lei admite ainda a figura da pluralidade subjectiva subsidiária , no caso de
dúvida fundada sobre o sujeito da relação controvertida, como forma de prevenir a ilegitimidade singular (art. 39.º). A
dúvida sobre a responsabilidade passiva pode resultar da ignorância, incerteza ou dúvida quanto à qualidade em que o
sujeito a demandar interveio na relação material controvertida. Nessa eventualidade, o autor poderá deduzir um pedido
principal contra quem considera ser o provável obrigado e um pedido subsidiário contra o presuntivo ou hipotético
sujeito passivo, pedido este para apenas ser tomado em consideração em caso de insubsistência do primeiro. A lei
também admite o litisconsórcio subsidiário relativamente à parte activa da relação processual, permitindo que a acção
possa ser proposta por dois autores, um a título efectivo ou principal e outro a título eventual ou residual.
B) A coligação
Exemplo: duas pessoas vão a atravessar uma passadeira e são atropeladas por um carro. Processualmente,
existe a possibilidade, mas não o dever, de essas pessoas se juntarem no mesmo processo, demandando o
condutor que causou o acidente. Cada pessoa atropelada tem o direito de indemnização contra o
condutor, logo há várias relações materiais controvertidas.
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