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Christoph Nußbaumeder

No Avião de Pepinos para os


Mares do Sul
MIT DEM GURKENFLIEGER IN DIE SÜDSEE

Portugiesisch (Brasilien) von Tito Lívio,


Salvador-Bahia, 2007

Alle Rechte vorbehalten, insbesondere das der Aufführung durch Berufs- und Laienbühnen, des
öffentlichen Vortrags, der Verfilmung und Übertragung durch Rundfunk und Fernsehen. Das Recht
der Aufführung ist rechtmäßig zu erwerben vom:
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licence has been obtained. Application for performance etc., must be made before rehearsals begin,
to:

Suhrkamp Verlag, Theater und Medien, Pappelallee 78-79, 10437 Berlin,


Tel.: +49- 030/740744-391, Email: theater@suhrkamp.de

Die Rechte an der Übersetzung liegen bei:


Tito Lívio, Email: cruzromao@terra.com.br

Förderung der Übersetzung durch: / This Translation was sponsored by:


Christoph Nußbaumeder

No Avião de Pepinos para os


Mares do Sul
SuhrkampTheatertext

©Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 2005

Reservados todos os direitos, principalmente o direito de encenação por meio de


companhias teatrais profissionais e leigas, o direito de leitura dramática pública, de
adaptação cinematográfica e de transmissão por rádio e televisão, inclusive de partes
isoladas. O direito de encenação ou transmissão televisiva somente pode ser adquirido
através da editora Suhrkamp Verlag, endereço: Lindenstraße 29-35, 60325 Frankfurt am
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Até o dia da première / da estréia da peça em língua alemã / até a primeira exibição de sua
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com a Lei de Direitos Autorais alemã. Não é permitido, a partir deste momento, descrever a
obra ou excertos dela nem comunicar publicamente seu conteúdo de nenhuma forma nem
abordá-lo publicamente. A editora reserva-se o direito de tomar as devidas providências
judiciais contra publicações não autorizadas.
Dedicado a Martin Sperr
Personagens:

MARLIES, vinte e poucos anos


DENK, quase trinta anos
MINKA, trinta e poucos anos
LUPO, cerca de dez anos
HEROD, trinta e cinco anos
ALEX, quarenta e cinco anos
MINIK, dezoito anos
GROSCH, quase quarenta anos
FABRICANTE, quase cinqüenta anos
MEYER, quarenta e poucos anos
AGENTE DE POLÍCIA
HOMENS
MULHERES
TRANSEUNTES

Nas diferentes cenas, os papéis das personagens MULHER 1 e MULHER 2 podem


ser desempenhados por diferentes atrizes. MULHER 1 e MULHER 2 são representantes de
um tipo de caráter que se manifesta através da inveja, cupidez e submissão perante outras
pessoas.

É suficiente apenas insinuar os diferentes cenários, ou seja, utilizar elementos


visuais escassos. Desse modo, para dar a entender que se trata de um gabinete na
delegacia de polícia, basta que se utilize uma mesa; que se trata de um contêiner-banheiro,
basta mostrar o bocal de um chuveiro etc. O espaço deverá ser preenchido pelos atores, e
não pela decoração.
No palco, a língua falada pelos operários poloneses é o alemão. Esta língua não
deverá ser aceita como a língua natural dos operários, nem eles deverão falá-la com
sotaque. Apenas em determinados trechos de monólogos, serão superadas as restrições
impostas pela língua.

LOCAL: Uma plantação de pepinos no sul da Alemanha


TEMPO: Atualmente, no verão

Os “aviões de pepinos” são máquinas usadas na colheita industrial em grandes


fazendas onde são cultivados pepinos para picles. No verão, durante a temporada da
colheita, são utilizadas várias destas colheitadeiras de pepinos ao mesmo tempo.
Cerca de 20 pessoas trabalham em cada máquina. Os pepinos são colhidos por elas
e passados para uma esteira que os transporta para um reboque. Os trabalhadores
sazonais colocam-se estirados sobre duas plataformas de metal sustentadas por um trator
pesado. A máquina lembra as asas de um avião, por isso passou a ser conhecida como
“avião de pepinos”.
Na Alemanha, os “aviões de pepinos” são operados principalmente por
trabalhadores sazonais oriundos de países do Leste Europeu, onde há mão-de-obra barata.
Em grandes fazendas, normalmente também existe uma fábrica anexa onde é feito o
processamento dos pepinos colhidos.
Prólogo

Diante da cortina.

Protegidos pela sombra de um avião de pepinos, dois trabalhadores bebem água. Suam em
bicas.

HOMEM 1: Que calor!


HOMEM 2: Mal consigo trabalhar.
HOMEM 1: Por 10 centavos de euro, eu me agacho, e um alemão, não
HOMEM 2: Na nossa geração ainda não conseguiremos superar esse atraso.
HOMEM 1: Temos de nos agachar para que a próxima consiga andar de pé.

Homem 1 olha para cima.

HOMEM 1: Onde está a chuva?


HOMEM 2; Bebendo aguardente.

Homem 2 passa um cantil de uísque para Homem 1.

HOMEM 1: Se eu beber, caio na mesma hora. Quem é que vai se agachar por mim?
HOMEM 2: O campo precisa de adubos.
Primeiro Ato

Primeira cena

No pátio da fábrica.

Marlies, Minka e Lupo chegam. Junto com outras pessoas, os três permanecem em pé
esperando. Denk também se encontra entre os recém-chegados. Reinam agitação e
barulho.

MINKA: Ano passado não estava tão cheio.


MARLIES: Você quer dizer durante seis semanas.
MINKA: Aí você tem dinheiro para seis meses.
MARLIES: Não vejo a hora.

O fabricante e Grosch observam o movimento a uma certa distância.

FABRICANTE: Está um movimento e tanto, eu não havia contado com tantos. Se


bem que: alguns a mais, alguns a menos, eles não custam nada. Ao
contrário: dão lucro.
GROSCH: Os alojamentos não serão suficientes. E o Sr. conhece bem nossos
cálculos: para 40 pessoas, uma ducha, um vestiário...
FABRICANTE: Grosch, se você pensa assim, não vale mesmo um centavo. Estou
gerando trabalho, não me preocupo com o resto. Agora faça seu
breve discurso. Ensine-lhes democracia da maneira correta e deixe
logo claro quem é que bate o martelo por aqui.

O fabricante sai. Grosch posta-se perante a multidão.


GROSCH: Meus caros cidadãos, fico felizes por serem tão numerosos. Sou o
Grosch e já trabalho aqui há cinco anos. Mostrarei a vocês o trabalho,
as regras e a fábrica. Se tiverem perguntas e problemas, podem me
procurar.

DENK (para Marlies): Esse é um puxa-saco de primeira.


(para Grosch): Que coisa! Quando é que isso começa?
GROSCH: Vamos com calma, todos terão vez.
A fazenda é grande.
Vocês precisam me entregar os passaportes, vistos e atestados
de saúde. Também preciso dos dados pessoais e informações
sobre sua vida profissional e educacional, para então distribuí-
los. Depois lhes mostrarei os contêineres-dormitórios. À tarde
será a vez dos campos e da fábrica.
DENK (para Marlies): Como é o seu nome?
MARLIES: Marlies. E o seu?
DENK: Denk.
MARLIES: Como é, apenas Denk? Nome esquisito.
DENK: Todos me chamam assim.
MARLIES: Você conhece muita gente aqui?
DENK: A maioria não me conhece. Ainda não.
A gente se vê mais tarde.

Denk sai.

MINKA (para Marlies): Você viu o meu filho?


MARLIES: Não.

A pouca distância dali, trabalhadores fazem graça com Lupo. Dois homens empurram-no
levemente de um lado para o outro. Minka corre até lá.
MINKA: Parem com isso, ele está com medo! Soltem o menino!
HOMEM 1: Ele pegou minha bolacha sem me pedir.
HOMEM 2: Estamos-lhe ensinando a maneira certa, para ele dizer o que
está querendo quando alguém lhe perguntar.
MINKA: Ele não vai dizer nada, é mudo de nascimento.
Segunda cena

No contêiner-dormitório feminino.
Grosch mostra a um grupo de mulheres as dependências usadas como dormitório. Logo o
contêiner fica repleto com as mulheres recém-chegadas.

GROSCH: Isso aqui não é nenhum hotel. Mas dá para agüentar por umas
poucas semanas.

As mulheres começam a escolher os lugares onde dormirão. Guardam a bagagem e


passam a encher colchões infláveis.

GROSCH: Objetos de valor eu tranco num cofre.


MARLIES (para Minka): Por que você quer a sua dormida assim tão perto da porta?
MINKA: Às vezes o Lupo precisa ir ao banheiro durante a noite.
MARLIES (consigo mesma): Ainda mais essa! Pobre menino.
GROSCH: Fiquem à vontade. Volto dentro de uma hora.

Grosch caminha para a saída e passa diante de Minka. Vão juntos até a frente do prédio
da fábrica.

MINKA: Anatol.
GROSCH: Depois deste verão terei dinheiro suficiente. Mas sem a sua
ajuda...
MINKA: Confie em mim.
GROSCH: E o Lupo?
MINKA: Não será problema nenhum.
GROSCH: Breve não haverá mais problema nenhum.
Grosch sai.
Herod e Minik chegam diante do prédio da fábrica.

HEROD: Vocês ainda têm vaga?


MINKA: Você é mulher?
MINIK: Dá para esconder a diferença bem rápido.
(Dá uma risada.)
Como um sabre dentro de uma bainha.
HEROD: Minik, deixe de dizer essas tolices.
MINKA: Ele tem bastante lábia.
HEROD: Mas não tem cabeça.
MINKA: O dormitório masculino é do lado.
HEROD: A gente se vê.
MINKA: Certamente.

Minka volta para dentro de seu dormitório, e os dois homens entram no dormitório
contíguo.
Terceira cena

Alguns dias mais tarde, no pátio, pela manhã.


Marlies passa correndo pelo pátio e, enquanto corre, passa protetor solar. De repente, dá
um encontrão em Alex.

ALEX: Menina, abra os olhos!


MARLIES: Desculpe! O sol ofusca.

Alex limpa de sua camisa a mancha de protetor solar que caíra durante o encontrão.

ALEX: Então aproveite a luz do dia e vá trabalhar um pouco. A vida não é


feita apenas de nossos desejos.
MARLIES: Mas com o dinheiro ganho, satisfaço meus desejos.
ALEX: Saiba empregá-lo bem. Eu tenho de criar dois filhos. A fome deles
cresce a cada centímetro. Agora o maior vai começar uma faculdade.
MARLIES; Faculdade de quê?
ALEX: Que dê dinheiro.
MARLIES: E que curso ele quer fazer?
ALEX: O que o pai dele quiser, meu bem.

Alex deixa o palco, Marlies permanece.

MARLIES: Ficar o dia inteiro bronzeando e uma noite toda amando.


As mãos estão imundas, as unhas quebradas, a pele...
E isso já depois de alguns dias.
Vai trabalhar, vai, Marlies, faz o que dá para fazer, vai!
Cosméticos a gente encontra no supermercado. E as unhas voltam a
crescer.
Quarta cena

No campo.
Em cada uma das duas plataformas laterais do avião de pepinos, estão deitadas cerca de
dez pessoas. Deitam-se de bruços e colhem pepinos do solo, passando-os imediatamente
para uma esteira que transporta os pepinos para um reboque.
Marlies chega e é a última a deitar-se numa plataforma do avião.

DENK: Minik, você peidou.


MINIK: Eu não fui.
DENK: Por causa desta mentira, você vai ter três dias de diarréia.

Denk colhe um pepino e segura-o sob o nariz de Minik.

Além disso, desejo que seus braços fiquem deste mesmo tamanho.

MARLIES: Quando vai dar meio-dia?


MINKA: Estou sem relógio.
MINIK: Quem primeiro sentiu, foi daí que saiu.
DENK: A gente não precisa costurar apenas o teu cu.
HEROD: Nada de vento. Nos próximos dias haverá algo.

O fabricante e Grosch inspecionam o campo.

FABRICANTE: Não é bom ter estiagem. Teremos de fazer irrigação artificial.


GROSCH: Já vi outros verões. Vai melhorar.
FABRICANTE: A fábrica consome a maior parte da água. Não dá para eu evitar isto.
Terão de tomar banho de gato, o que é bom para o meio ambiente. De
qualquer modo, não é uma má idéia. Nenhuma prostituta costuma
sair uma segunda vez para fazer programa toda suada e com a barriga
cheia.
GROSCH: Já trazem isso no sangue. Quando sentem o cheiro de um centavo em
algum lugar, já vão abrindo as pernas.
FABRICANTE: Não estou nem aí. Já está decidido: desligaremos a água das duchas,
aos poucos, uma por uma.
GROSCH: Vou dizer que os canos estão com defeito.
MINIK: O chefe.
DENK: Não vá cagar nas calças.
MARLIES: Ainda falta quanto tempo?

MINKA: Eu lhe disse logo que isto não é trabalho para você.

Marlies começa a cantar em voz baixa. Canta um sucesso conhecido de todos. Aos poucos,
todos os trabalhadores estão cantando no avião de pepinos.

FABRICANTE: O que é isso?

GROSCH: É o calor.
Quinta cena

No contêiner-banheiro.
Duas mulheres esperam diante de uma cabine de ducha. Ouve-se o ruído de água corrente.
Também se ouve Marlies cantando.

MULHER 1: Que coisa para demorar!


MULHER 2: Ela pensa que é uma diva.
MULHER 1: Ei, moça, também queremos tomar uma ducha!

Marlies pára de cantar.

VOZ DE MARLIES: Faz apenas dois minutos que estou aqui.


MULHER 2: Se cada uma precisar de tanto tempo, amanhã de manhã ainda
estaremos esperando aqui.
VOZ DE MARLIES: A sujeira demora a sair da pele.
MULHER 1: Amanhã estará suja de novo. Não pense que você é assim tão
importante.
MULHER 2: Você e sua sujeira.
VOZ DE MARLIES: Mais um minuto.
MULHER 2: Não é por saber cantar que você vai ter regalias aqui.

Mulher 1 sacode a porta da cabine.

MULHER 1: Três minutos já se foram.


VOZ DE MARLIES: Está saindo muito pouca água do cano.
MULHER 2: Sua mãe não lhe ensinou que parte uma mulher deve lavar!

O barulho da água pára. O cano está “seco”.


MULHER 1: Finalmente.

A porta da cabine se abre. Marlies está de pé enrolada em uma toalha diante das
mulheres. Ao lado de Marlies, encontra-se Lupo.

MULHER 1: O menino.
MULHER 2: Como no chiqueiro de porcos.
MARLIES: Lupo também precisa ficar limpo.

Marlies veste Lupo com roupas limpas. Mulher 1 dirige-se à torneira da ducha e tenta
ligar a água.

MULHER 1: O cano secou.


MULHER 2: Ele e você, vocês roubaram nossa água.
MARLIES: Mas não é culpa minha.
MULHER 1: Sua egoísta!
MULHER 2: Agora temos de ir para uma outra cabine que está cheia como
um campo de concentração.

Mulher 1 e Mulher 2 saem. Marlies permanece no local com Lupo.


Sexta cena

No pátio.
Trabalhadores fazem fila diante de uma mesa, atrás da qual Grosch está sentado fazendo o
pagamento dos trabalhadores. Minik, Herod e Denk são, nesta ordem, os primeiros.

MINIK: Obrigado. E isso é tudo?


GROSCH: O que você está esperando? Pagamento de horas extras?
MINIK: No meu pensamento ...
GROSCH: Nada de pensamento, e sim agradecimento. Amanhã você fica no outro turno
na fábrica, de cinco a cinco.
MINIK: Já estou sabendo. Obrigado.

Minik sai.

GROSCH: Próximo.

Herod recebe seu pagamento.

HEROD: E a hora extra, como é que fazemos com ela? Só larguei a fábrica às onze.
GROSCH: Não foi hora extra, foi um defeito na esteira., 45 minutos, coisa que
acontece.
HEROD: Meu tempo também tem um preço.
GROSCH: Você preferia estar sentado numa esteira em casa?!
Aqui você ganha dinheiro, na sua terra, nada de grana.
Do socialismo você somente herdou a moral do trabalho, não é?
HEROD: De mim ninguém roubou meu orgulho.
GROSCH: Mostre aí seu contrato. Só há adicional a partir de uma hora.
ALEX (do final da fila): Meu Deus, Herod, vamos logo, você bem sabe como é lerdo!
Herod pega seu dinheiro e sai. Denk é o próximo na fila.

DENK: Também fiz uma hora extra.


GROSCH: Mais um que pensa que eu vou ficar enfiando dinheiro em vocês por trás e
pela frente!
MARLIES (do final da fila): Todos os que trabalharam além do horário precisam reclamar,
e então receberemos o que é nosso direito. Se não for assim,
qualquer palavra será em vão.
MINKA: Marlies, fique na sua.
MULHER 1: O que ela está querendo? Só faz confusão.
MARLIES: A gente não tem tempo nem para respirar.
Uma hora dura uma eternidade.
E por ela a gente só ganha queimadura de sol.
MULHER 2: A gente passou a vida toda trabalhando, agora vem uma qualquer nos
dizer que fizemos tudo errado.
MINKA: Marlies, eu lhe peço, fique calada.
DENK: Com a gente vocês podem fazer isso, mas com os alemães, não. Isso
não cheira nada bem.
GROSCH: Não fale demais. Você está aqui para trabalhar.
Ou está pensando que eu cheguei aqui, ao lugar onde estou, com
conversas?
DENK: Ainda vou receber meu dinheiro, Grosch. Tenho meus direitos. Isso é
diferente do socialismo.

Denk pega seu dinheiro e sai.


Sétima cena

No contêiner-dormitório masculino.
Herod, Minik e Alex jogam cartas. Estão sentados a uma mesa. Herod põe sobre a mesa a
primeira carta.

ALEX (para Minik): Vamos, mostre logo sua carta.

Minik põe uma carta sobre a mesa. Alex põe a última carta, completando a “vaza”.

ALEX: Agora vou ganhar mais 50 centavos de cada um.

Alex anota o saldo da dívida em um papel.

HEROD: Você só sabe jogar por dinheiro.


ALEX: Vai ler seus livros. Mas não vai ganhar nada com isso.
HEROD: Quando estou lendo, nada tenho a perder.
MINIK: O calor está tão forte que as cartas estão suando.
ALEX: Então já está na hora de você começar mesmo a suar.
Mais uma mão, no tudo ou nada!
MINIK: Herod, venha. Ele fala com tanta arrogância, como se fosse o Grosch
em pessoa.
ALEX: Nada de Grosch.
HEROD: Aquele agiota.
ALEX: Ele só faz o trabalho dele.
HEROD: Para você é isso, quando alguém faz pressão onde pode.
MINIK: Vamos jogar.
HEROD: Estou fora.
ALEX: Covarde.
Grosch passa em frente, pelo lado de fora.

HEROD: E por falar no diabo.


ALEX: Grosch, venha cá, jogue uma rodada com a gente.

Grosch se junta aos outros homens.

GROSCH: O que está havendo?


ALEX: Nossa mesa precisa de mais um homem.
GROSCH: Mas estou vendo três.
ALEX: Com você somos três. Ali está sentado meio homem e ali, um
molenga.
HEROD: Muito convencido.
ALEX: Melhor um convencido que um desertor.
Ofereci a ele tentar mais uma partida para reverter suas dívidas. E o
que faz ele? Começa a choramingar.
GROSCH: E quanto é a aposta?
ALEX: Para você, uma migalha.

Grosch reflete um pouco.

GROSCH: Antes que o Herod cague nas calças, vou jogar por ele.
O que está havendo com o menino?
MINIK: Eu não cago nas calças.
GROSCH: Você vai se tornar um homem.
HEROD: Alex, seu dinheiro.

Alex mete o dinheiro no bolso.

ALEX: Obrigado pela ajuda.


GROSCH (para Herod): Isso estaria abaixo da minha honra. Você joga como um
judeu. Você só faz negócios seguros, não é?
HEROD: Não é assim que você vai me derrubar, não, Grosch. Esse não é o
meu nível.
GROSCH: Amanhã quando eu estiver no despacho, falaremos, só nós dois, sobre
nível.
(para Minik) Rapaz, dê as cartas!

Minik distribui as cartas. Os três começam a jogar. Herod observa.

MINIK: O primeiro é meu.


GROSCH: Quem completa a primeira vaza, no final não arrasa.
ALEX: Nisso você é especialista.
GROSCH: Nisso você pode apostar.
ALEX: Um judeu só aposta quando precisa de dinheiro.

Alex põe uma carta sobre mesa.

GROSCH: Isso não mexe comigo.

Grosch apresenta uma carta e completa a vaza.

MINIK: Merda.
GROSCH: Agora você já está com a calça cheia.

Grosch coloca mais uma carta, completando mais uma vaza.

GROSCH: Quem vai dar dinheiro a quem, isso aqui sou eu quem decide.

Com a última carta, Grosch decide o jogo e sai vencedor.


GROSCH: Meus senhores, soltem a grana.
ALEX: Na tática você é bom.
GROSCH: Bom demais para vocês.

Minik passa o dinheiro para Grosch. Alex tira do bolso o dinheiro que antes havia pegado
de Herod e entrega-o a Grosch.

GROSCH: Herold, o dinheiro é como uma cadela no cio, nunca fica muito
tempo com o mesmo macho. Mais tarde passo esse dinheiro para o
homem do refeitório, aí ele me prepara um bom bife.
HEROD: Cuidado para não morrer engasgado.
GROSCH: Vou-me esforçar.
ALEX: Mais uma rodada, Grosch. Precisa nos dar uma chance.
GROSCH: Você disse uma rodada, que eu já joguei. Agora preciso ir. Tenho o
que fazer. Foi uma honra para mim.

Grosch sai.

MINIK: Foi-se.
ALEX: Com o nosso dinheiro.

Denk chega. Aparenta estar muito atarefado e remexe nos bolsos.

ALEX: Denk, jogue aqui com a gente.


DENK: Não tenho tempo, preciso resolver coisas importantes.
ALEX: Não somos importantes?
DENK: Mesmo ganhando no jogo, você continua a fazer parte dos
perdedores. Não quero ficar a vida toda em cima do avião.
ALEX: E o que você pensa fazer?
DENK: Estou negociando com alemães. Nada para o bico de vocês.
HEROD: Preste atenção, para não se animar demais. Muitos saíram daí com
uma grande perda.
DENK: Minha idéia de ganho é tão certa quanto a morte.
HEROD: Mas a morte custa a vida, o que acaba sendo uma perda.
DENK: Estou sem tempo para jogos de palavras.
Somente uma coisa é certa: vivemos num tempo em que as cartas
estão sendo rebaralhadas. Quem ficar sentado, ficará debaixo.

Denk sai segurando uns papéis. Os outros permanecem sentados.


Oitava cena

Quatro transeuntes passam na rua, dois homens, duas mulheres. De uma certa distância,
vêem Marlies e Lupo. Ouve-se barulho de veículos.

O TRANSEUNTE 1: Olhe, uma mulher dos aviadores de pepinos.


A TRANSEUNTE 2: Bronzeada como está, nem é preciso gastar com férias na
praia.
O TRANSEUNTE 1: Nem com o vôo.

Os quatro transeuntes dão risadas.

O TRANSEUNTE 1: Com certeza não é um bronzeado sem marca.


O TRANSEUNTE 2: Vamos dar uma olhada.
A TRANSEUNTE 2: Atrevam-se.
O TRANSEUNTE 2: Era só brincadeira.
A TRANSEUNTE 1: Com uma dessas aí você consegue tudo.
A TRANSEUNTE 2: Tem cara de quem faz ponto tarde da noite do lado da capela.
O TRANSEUNTE 1: Vamos passar em frente dela e olhar.
A TRANSEUNTE 2: Vocês são impossíveis.

Dando risadas, os quatro transeuntes saem.

MARLIES: Como será quando você tiver minha idade?


Estará em meio a contêineres poeirentos e repletos de barracas decadentes?
Ou numa varanda, ao sabor do vento que sopra dos álamos, tendo ao fundo o
Cruzeiro do Sul?
Desejo e sonho cultivados uma vida inteira, interpretação da felicidade! Até
mesmo uma criança como você anseia por isso, sem se cansar de peregrinar
em busca de novas fontes.
Ou, no espírito, abrigo encontrará e o seu corpo só para a higiene usará.
E sua terra natal, onde será? Em sua cabeça muda ou no sexo de mulheres
estrangeiras?
VOCÊ VEM NÃO VAI SE MATAR NA SALA DE MÁQUINAS
Sua terra deverá ser bela. Sua morte, consciente. Sua vida, anterior.
Onde nasci, não quero estar morto, diz toda criança em nosso país. E aqueles
cuja mão nos permite viver não precisam ficar estirados em cima de um
avião, onde o sol não passeia, mas apenas queima como um estopim no
rosto, como uma avalancha de pedras que cai sobre você, meu filho.
Por nem mesmo saber falar, você tem pouco valor, não é nada.
Mais você ainda aprenderá, acredito firmemente.
Assim sendo, aprender é a sua esperança.
Quando estou estirada no avião, penso em um atol nos Mares do Sul.
Para cada um, uma natureza.
Nada de camadas, apenas mato natural que você possa arrancar, se você
ousar. Assim sendo, ousar é a minha esperança.

Volta-se a ouvir levemente o barulho do tráfego.

Lupo, saia da rua, eles dirigem como loucos.


Nona cena

No pátio.
O fabricante desce de seu carro falando ao telefone. Marlies passa em frente a ele. O
fabricante dá a entender que ela tire uma bolsa que se encontra no assento do carona e
que o siga carregando a bolsa. Ela obedece.

FABRICANTE (ao telefone): ... mais ou menos 200. Todos poloneses, sem exceção.
Que história é essa de o Sr. querer mandar alguém
fazer uma fiscalização? O Sr. não acredita em mim? ...
Não me encha a paciência com seus desempregados.
Para eles trabalharem no campo, só apanhando... E, no
terceiro dia, o mais tardar, todos já se mandaram...
Não me venha com essas histórias. Ação social é
quando a gente participa... Mas na reforma da capela o
Sr. acredita. Portanto não perturbe o meu trabalho.
Tenha um bom dia.
FABRICANTE: Você pode deixar a bolsa aí.

Marlies deixa a bolsa. O fabricante tira uma cédula de dinheiro de sua carteira.

FABRICANTE: Tome, é para você.


MARLIES: E por quê?
FABRICANTE: Pelo serviço prestado!
MARLIES: Não.
FABRICANTE: Você deve ter desejos.
MARLIES: Meus desejos não podem ser satisfeitos com esse dinheiro.
FABRICANTE: Deixe de ser hipócrita. Talvez eu possa te ajudar.

Marlies sorri com auto-suficiência.

MARLIES: Eu nunca voei na minha vida ...


FABRICANTE: Se souber fazer direito, qualquer um voará para cima de você...
Agora pegue o dinheiro. Não se faça de magoada.

O fabricante põe o dinheiro na mão de Marlies. Ela guarda o dinheiro. Marlies está sendo
observada por Denk e Alex que estão sentados a uma mesa próxima.

DENK: Marlies, venha cá.

Marlies vai até a mesa.

DENK: O que ele queria?


MARLIES: Ah, nada.
DENK: Beba uma cerveja comigo.
MARLIES: Não com esse calor.
DENK: Mas hoje à noite.
MARLIES: Certo. Chegue na hora.

Marlies sai.

ALEX: Denk, álcool não é permitido no local de trabalho.


DENK: Bebo nossa cerveja polonesa, isso é bom para a nossa economia.

Denk tira um bom gole da garrafa.

DENK: Comprar e vender mantém o mundo vivo.


ALEX: Denk, você tem educação. Mas ela lhe serve para quê?
Assim como nós, você só vive estirado no avião, apesar de ter feito
faculdade. Mas não consegue ser melhor.
DENK: Aqui a educação só faz perturbar. Por isso me faço de idiota.
E o trabalho, por seu turno, não torna ninguém inteligente. Olhe para
si mesmo.
ALEX: Salário é salário, cale essa boca!
DENK: Comer, trepar, cagar, qualquer pessoa também pode fazer essas
coisas.
Mas dê uma alma ao dinheiro, aí você terá ambas as coisas a salvo.
ALEX: O que você está dizendo?
DENK: A religião, aquilo em que se crê.
Como ser humano, como homem, um dia será a vez de cada um.
ALEX: Não pense tanto.

Denk dá uma cuspida diante dos pés de Alex.

DENK: Olhe aí, creme para as suas mãos.


Sua cabeça só serve para pegar sol.
ALEX: Seu bafo vem na direção da minha cara mesmo a três metros de
distância e com vento contrário.
DENK: Consegue ler o que está escrito nele?
ALEX: Quando alguém é obrigado a saltar, para todos o ônibus irá parar.
Trabalhe e não converse tanto.
DENK: Cada metro é uma obrigação.
Comer, trepar, cagar.
ALEX: Denk, você não é diferente.
Décima cena

No contêiner-banheiro.
Marlies está em pé diante de um espelho e cantarola uma canção.
Passa os dedos pelos cabelos e contempla-se com rigor.
Minka chega com um saco plástico na mão.
Mexe dentro do saco e retira diversos cosméticos.

MINKA: Batom para seus finos lábios.


MARLIES: Se alguém nos vir.
MINKA: Uma bela moça, pensarão os que a virem.
Ponha sombra, ela aviva o olhar.
MARLIES: Você quer dizer que os olhares para mim serão mais vivos.
MINKA: Isso também. Você ainda precisa de um belo vestido.
Tão jovem e bonita.
MARLIES: Onde anda o Lupo?

Minka passa maquiagem.

MINKA: Está brincando lá fora. Finalmente está dando sossego.


Preste atenção para ninguém a engravidar.
Sua juventude passa rápido.
Com criança você somente vale a metade.
MARLIES: E caso aconteça, que seja então com o homem certo.
MINKA: Ele deverá cuidar de você, e somente conta se ele pagar a conta.
E se ele, após alguns anos, ainda quiser transar com você, então você
teve sorte.
MARLIES: Ou azar, se não for o homem certo.
MINKA: A maioria deles um dia pára de querer.

De súbito, o fabricante está em pé atrás delas. As duas mulheres tomam um susto e tentam
esconder os cosméticos.

FABRICANTE (para Minka): Você é homem?


MINKA: Não.
FABRICANTE: Mas fala como se fosse um.
FABRICANTE (para Marlies): O que vão fazer hoje à noite?
MARLIES: Sair para dançar um pouco, nada mais.
FABRICANTE: Às 12, a ordem é silêncio total, já estão sabendo.
MARLIES: Estamos cansadas até os ossos, portanto não temos que
ficar tanto tempo fora.
FABRICANTE: Só estou informando. Muitos dormem no trabalho.
MARLIES: Não é o nosso caso.

O fabricante contempla Marlies mais detidamente. Parece absorto.

FABRICANTE: Minha esposa também gostava de sair ... E dançava até


de manhã... Nunca conseguiam derrubá-la...
MARLIES: O que o Sr. está olhando assim? Não tenho nada a ver
com isso.
MINKA: Deixe de ser atrevida com ele.
FABRICANTE: Vou parar de incomodá-las por aqui. Vistam-se bem
bonitas. E se quiserem, na minha casa tenho bastante
espaço.
MINKA: É muito simpático de sua parte.

Vão com o fabricante até a sua casa. Trabalhadores que se encontram na área observam a
cena e cochicham entre si.
Décima-primeira cena

Em uma boate do lugarejo.


Marlies dança com Minka em uma pista de dança, na qual não se vêem outras pessoas
dançando. São observadas pelos olhares cobiçosos de alguns homens. As duas mulheres se
dão conta dos olhares.

MINKA: Precisa agarrar um daqueles, eles têm dinheiro.


MARLIES: Mas nenhum é bonito o bastante.
MINKA: Vai-se a beleza, fica a riqueza.
Quero um bom futuro para você.

A música cessa, e as duas mulheres sentam-se. Um homem aproxima-se e senta-se junto


delas. Ele segura dois copos de espumante na mão e coloca-os diante delas. As duas
mulheres agradecem fazendo um gesto com a cabeça.

MINKA (para Marlies): A coisa é sempre assim.


MARLIES (para o homem): Obrigada.
HOMEM: E aí?
MINKA: Um “Sex on the beach”
HOMEM (para Marlies): E para você?
MARLIES: Nada.

O homem levanta-se e sai. As duas seguem-no com o olhar.

MARLIES: Agora ele vai obedecer, vai ficar bem quietinho no seu lugar.
MINKA: Está agindo como um cachorrinho.
MARLIES: Um cocktail-bobtail.
MINKA: Com o penteado de Howard Carpendale.
Ambas riem.
MARLIES: Pior.
Ambas riem ainda mais.

O homem volta com dois coquetéis. Torna a sentar-se. Olha as duas com insegurança.

HOMEM: Por que estão sempre rindo de mim?


MINKA: Você é tão refinado.
HOMEM: Não vejo graça nisso. Vamos lá, bebam, aí as coisas ficarão
engraçadas.
MARLIES: Você é daqui?
HOMEM: Você não é, dá logo para ver.
MARLIES: Como é que você vê isso?
HOMEM: Você é bonita.
MARLIES: Minha prima é uma mulher bonita.
HOMEM: Eu não a quero, ano passado eu a vi junto à capela. A metade da
aldeia já a conhece.
MARLIES (para Minka) Onde foi que ele a viu? O que é que ele está falando?
MINKA: Olhe para ele, está bêbado. Ele está-me confundindo com uma outra.
HOMEM: Ei, sua vagabunda, será que eu preciso trepar com você, para você
deixar de mentir?
MINKA: Somente quem não tem nada dentro das calças faz ameaças a uma
mulher.

O homem agarra Minka pela blusa e puxa-a por cima da cima.


Em seguida, Marlies morde o homem no braço.
O homem solta um grito e dá uma bofetada em Marlies.
Pouco antes da briga, Denk e Herod haviam entrado no estabelecimento.
Acorrem à mesa e puxam o homem para longe das mulheres.
Outros homens sentem-se incitados a intervir.
Começa uma pancadaria.
Segundo Ato

Primeira cena

Na delegacia de polícia.
Minka, Marlies, Herod e Denk são interrogados pelo oficial de polícia Meyer.

MINKA: Como estou dizendo, ele me confundiu com outra mulher.


HEROD: Ele a confundiu, será que o Sr. não entende?
MEYER; Se eu entendesse tudo, estaria na profissão errada.
MARLIES: O alemão queria espancá-la.
MEYER: E foi assim que a briga começou?
MINKA: O motivo foi uma confusão. Não pudemos evitar.
MEYER: E os dois?

Meyer aponta para Denk e Herod.

MARLIES: Eles chegaram separados de nós.


MEYER: Mas chegaram os dois juntos?
MARLIES: É o que estou dizendo.
MEYER; A gente sempre tem estresse com vocês! Deixarei passar mais essa.
MARLIES: Sr. Delegado, precisa acreditar em nós.
Estamos aqui para ganhar o nosso pão. Não queremos confusão.
MEYER: Fabriquem o pão de vocês em casa, aí não terão nenhuma confusão!
DENK: Qual é o alemão que vai fazer esse trabalho que fazemos?
Somos os negros da nação alemã.
MEYER: Cuidado aí, meu jovem, senão acaba caindo rapidinho na minha cela!
No meu país você não passa de um convidado.
Mas você também não sabe dizer não para a grana.
Segunda cena

À beira da lagoa.
Alguns dos trabalhadores da fazenda estão nadando, outros estão sentados à margem,
bebendo.

MARLIES: Semana passada, eu ainda queria fazer umas compras e cheguei cinco
minutos antes de o supermercado fechar. A caixa da loja não queria me
deixar entrar, dizendo: “se manda, você chegou muito tarde”. “Mas só
preciso de algo para beber”, disse eu, “e de duas latas de ervilhas para matar
a fome”. A mulher disse “não, por hoje está fechado”, e apontou com o dedo
para o relógio no seu pulso. Aí eu saí.
Fiquei em pé na porta, aí veio uma outra mulher do lugar. Elas se saudaram
normalmente, e a mulher foi empurrando calmamente o seu carrinho
passando em frente às prateleiras. Eu me virei e olhei para a caixa da loja.
Acredite, nunca mais na vida ela esquecerá o meu olhar.

DENK: Você tem que agüentar isso. Algum dia nós estaremos empurrando o
carrinho, e outros estarão lá fora esperando.
MARLIES: Mas não é isso que eu quero.
DENK: E você quer o quê?

Marlies sorri contente.

MARLIES: Se você pergunta ... Quero é voar, algum dia, para os mares do sul. Ali estão
as pessoas mais puras. E continente nenhum. Lá eles fazem tudo juntos,
entende? Não existem hierarquias. Ninguém sabe como chegaram por lá ... E
você? Quer o quê?
DENK: É difícil de falar, mas na verdade é bem simples.
Imagino uma firma própria.
Para tanto, preciso de um pouco de capital e contatos.

Alguns rapazes, dentre os quais Minik, aproximam-se e divertem-se. Estão com produtos
de furtos realizados em lojas da cidade. Como troféus, exibem as coisas roubadas e
comparam os preços das mercadorias. Fazem disso uma competição, põem-se a rir e a
beber.

MARLIES: Não gosto dessa história de eles furtarem. Isso nos deixa com uma
fama ruim.
DENK: Eles têm um direito de brincar com isso.
MARLIES: A coisa precisa ser diferente.
DENK: A vida ainda não a traiu, Marlies. Eu a invejo por isso.
MARLIES: Se você for honesto, ela não o trairá.

Surgem Herod e Minka.

MINKA: Bonita essa história daquele juiz. Como era o nome dele?
HEROD: Azdak.
MINKA: Azdak. Nome esquisito.
HEROD: Ele sabia exatamente que mãe ampararia melhor a criança... Onde é
que está mesmo o pai do seu filho?
MINKA: O doador de esperma, aquele porco. Em algum lugar da Istria.
Um homem de negócios que, durante suas viagens, fez seu negócio
comigo.
HEROD: E o menino?
MINKA: Eu o amo acima de qualquer coisa. Mais do que a mim mesma.
HEROD: Agora estamos aqui.
MINKA: Não por prazer.
HEROD: A gente pode arranjá-lo também. Posso também ajudá-la com o seu
filho...
MINKA: Obrigado, mas a Marlies já me ajuda onde pode.
HEROD: É uma boa pessoa.
MINKA: Ali está ela. Sente lá com ela e diga-lhe que vou ficar ainda um pouco
na aldeia, vou telefonar para a Polônia. A tarifa agora está ótima.
A gente se vê amanhã. Você me conta mais uma bela história na
próxima vez?
HEROD: Conto sim.

Minka dá um beijo em Herod e desaparece.


Nesse ínterim, Denk e Marlies pularam na água. Herod aproxima-se da margem.

DENK: Oi, Herod, jogue sabonete na água para a sujeira largar da minha pele.
HEROD: Vocês estão poluindo toda a lagoa com sabonete.
DENK: E eu pensava que sabonete servia para limpar. Que me importa! Não gosto
de cheirar mal, mesmo sendo polonês.

Denk ri com descaramento. Marlies sai da água.


Terceira cena

Na fábrica de picles de pepinos.


Marlies, Minka e Herod estão diante da esteira e separam os pepinos por tamanho,
colocando-os em diferentes vidros. Usam uma máscara protetora e luvas.

MARLIES: Onde fica essa capela de que todos falam?


MINKA: Não sei.
HEROD: A capela fica às margens de um riacho, onde uma virgem morreu de forma
deplorável. Seu pai a amarrou no rabo de um cavalo e pôs o animal em fuga
pelo vale afora.
MINKA: Como é que você sabe isso?
HEROD: É o que diz uma lenda.
MARLIES: Mas por que um pai faz isso com uma filha?
HEROD: É que ela não queria se libertar da fé justa.
MARLIES: E o que é mesmo a fé justa, Herod?
HEROD: Uma fé que vem do coração.
MINKA: Segundo você acredita.
HEROD: Também é o que diz a lenda. E agora ela é uma santa, porque seu pai não
conseguiu mudá-la.
MARLIES: Como é o nome dela?
HEROD: Esqueci.
MARLIES: E onde fica a capela?
MINKA: Não faça sempre tantas perguntas. E com esse ar, sua boca vai ficar seca.
HEROD: Marlies, pode pegar algo para bebermos?
MARLIES: Vou pegar água.
MINKA: Mas volte logo, o trabalho não espera.
Marlies sai. Após ter dado dois passos, vê duas mulheres no lado oposto do setor de
despacho.
As mulheres não estão usando máscara protetora. Marlies passa diante delas.

MARLIES: Meu Deus, aqui está um fedor! Como é que agüentam sem usar máscara?
MULHER 1: Quem diz que agüentamos?
MULHER 2: Sofremos para agüentar.
MULHER 1: Como um castigo de Deus.

Ambas as mulheres riem.

MARLIES: Não quero conhecer esse Deus.


MULHER 1: Você acredita que ele a conhece?
MARLIES: Não é preciso todo o mundo me conhecer.

Mulher 2 tira de sob a saia um absorvente higiênico usado e coloca-o na água que será
colocada nos vidros de conservas.

MULHER 2: Para o tempero.


MARLIES: Sua porca.
MULHER 2: Atreva-se a me dedurar.
MULHER 1: Nenhum porco daqui está preocupado com isso.
Quarta cena

No pátio.
Fabricante e Meyer conversam.

FABRICANTE: O resto eu lhe dou na próxima semana. E você me deixa livre, nada
de fiscalizações, nada de enchimento de saco. Nem com a Prefeitura,
nem com teu pessoal.
MEYER: Não posso lhe dar mais que a minha palavra, o que já é muito. Os tempos
mudaram, está vindo cada vez mais gente de lá do outro lado. Os moradores
locais ficam umas feras, e não é apenas por casa da história da capela. É que
a lagoa está cheia de algas azuis, pois seus trabalhadores se lavam lá e
urinam dentro da água até não poderem mais.
E durante a noite, ficam bêbados e saem por aí fazendo muito barulho. Um
dia o pote vai estar cheio, da mesma forma que a lagoa, só que ela agora está
poluída.
Eles saem por aí alegando que você os emprega ilegalmente, e que ninguém
pode ver as condições reinantes por aqui.

Marlies passa pelo pátio carregando dois baldes. Meyer observa-a.

Embora algo possa ser visto. Sempre gosto de dizer uma coisa sobre a raça
do Leste: é o melhor que a Europa tem a oferecer.
FABRICANTE: Já há outros fazendo negócios com as mulheres do Leste. Vá se
preocupar com as suas coisas.
As algas desaparecem sozinhas, e ali atrás da capela nós também
ainda vamos dar uma arrumada.
Até logo, Meyer.
Meyer sai. Fabricante vai até Marlies.
Marlies atravessa o pátio carregando dois baldes cheios de pepinos.

FABRICANTE: Posso ajudá-la?


MARLIES: Dá para eu levar, obrigada.
FABRICANTE: Às vezes precisamos de alguém que nos ajude.
MARLIES: É melhor termos alguém que nos dê algo.
FABRICANTE: Minha mulher morreu num acidente de carro, desde então estou só.
MARLIES: Não sabia.
FABRICANTE: Um de vocês entrou com toda a velocidade na frente do carro dela.
Nosso filho também estava junto.
MARLIES: Mas o Sr. facilmente encontrará uma nova esposa.
FABRICANTE: Sou empresário.
(sorri envergonhado) Eu raramente posso empreender algo.
Não sei o que é lazer.
MARLIES: O Sr. está vendo, é igualzinho a mim. Tenho o que fazer.

Marlies quer desvencilhar-se do fabricante. Ele a impede de passar.

FABRICANTE (sincero, carente): Por você eu faria tudo.


MARLIES: Que é isso? É melhor o Sr. parar.
FABRICANTE: O que estiver ao meu alcance.
MARLIES: O Sr. não é onipotente.
FABRICANTE: Moça, não sou mais tão jovem...
MARLIES: Tenho de trabalhar, senão vão logo me chamar de morta de preguiça.
Até mais.

Marlies simplesmente sai e dá de cara com duas mulheres.

MULHER 1: O trabalho no campo é duro.


MULHER 2: E com pepinos de verdade você ganha pouco...
MARLIES: O que eu tenho de fazer?
MULHER 1: Seja como é...
MULHER 2: Dando passadas abertas, você atravessa a vida com mais facilidade.
MARLIES: Vocês não me levam junto?
MULHER 2: E por acaso somos putas?
MULHER 1: Você transa com o chefe, nós não.

As duas mulheres deixam Marlies plantada no mesmo lugar e saem.

MARLIES: Isso é uma mentira.


Quinta cena

Às margens da lagoa. Marlies e Denk estão deitados um ao lado do outro.

MARLIES: A lagoa está fedendo.


DENK: Me enganaram. Eu queria abrir um pequeno negócio com peças de carro.
Agora meu dinheiro se foi. Fui tolo e toquei fogo na minha parte, com o
primeiro transporte para a Polônia... Não se pode acreditar nas pessoas.
MARLIES: Vou sair mais cedo. Isso aqui está me deixando doente.
DENK: Eu a ajudo.
MARLIES: E quem o ajuda?
DENK: Você.
MARLIES: O que sou eu para você?
DENK: Esperança.
MARLIES: É preciso ter autonomia.

Marlies dá as costas para Denk.

MARLIES: Para mim isso é escravidão.


DENK: O luxo precisa da escravidão. E vivemos por luxo.

Marlies volta a virar-se para Denk.

MARLIES: Denk, queria que uma vez você fosse claro. Sempre diz coisas decoradas.
Não entendo nada de você.
DENK: Talvez possamos construir algo juntos.
MARLIES: Do tanto que você bebe, talvez uma fábrica de aguardente.
DENK: Algo para a vida.
MARLIES: Você me ama?

Denk beija Marlies na boca.

DENK: Você é linda.


MARLIES: Se não pode mais dizer, é melhor não dizer nada.
Sexta cena

No pátio.
Um barril de cerveja está em cima de uma mesa. Os preparativos para uma festa estão na
fase final. Minik monta uns bancos. Algumas mulheres cozinham salsichas numa panela e
cortam pão.

MULHER 1: O convite do chefe é um luxo.


MULHER 2: Mas claro, ele é um homem tão elegante. Está com um carro novo, super
legal isso... Certamente conseguiu tudo com o seu trabalho.
MULHER 1: Foi o Grosch que conseguiu o contato com a Polônia.
MULHER 2: O Grosch está com dívidas, aquele babaca. Está endividado até os cabelos
com o chefe.
MULHER 1: Quem disse?
MULHER 2: O próprio Grosch me contou, ele estava bêbado e chorava como um bezerro
desmamado. Também tem uma namorada e quer se mandar com ela depois
de saldar todas as suas dívidas. Mas não fale nada, ele não tem culpa.

Chegam algumas pessoas e sentam-se nos bancos. Minik e as mulheres passam a distribuir
cerveja e salsichas entre os trabalhadores. Comem e bebem. Ao fundo, pode-se ouvir
música tocando. Aos poucos, o ambiente vai ficando divertido.

DENK: Marlies, quero ser o seu piloto.


MARLIES: Denk, pare com isso.
DENK: Vou voar até você.
MARLIES: Nem hoje nem nunca, por favor.
DENK: Você também está querendo um alemão, como todas as outras!?
MARLIES: Você está falando de um jeito.
HEROD: Quer mais uma cerveja?
MINKA: Vou dar uma passeada. Muita gente junta me deixa nervosa.
HEROD: Posso ir com você?
MINKA: Herod, você tem um bom coração, mas preciso ir sozinha. Amanhã...
(para Marlies) Marlies, vou dar uma voltinha lá na aldeia, vou telefonar. Por favor,
dê uma olhada no Lupo.
MARLIES: Mas claro, eu lhe prometi.

Minka sai. Lupo junta-se a Marlies. Herod esvazia seu copo, depois sai na outra direção.

DENK: Relaxe. Nossa festa está bem legal.


MARLIES: Sim, Denk, você já tomou todas. A cerveja, as salsichas, tudo isso foi o chefe
que providenciou, e você não quer entender. A intenção dele é encher nossa
pança, é nos tornar obedientes, nos deixar com a consciência pesada, para
calarmos a boca e depois de amanhã voltarmos a pôr a máscara, em troca de
alguns euros por hora. Na sua ganância, você não percebe nada.

Marlies se levanta e sai. Lupo fica para trás.

DENK: Fique, Marlies...

Os outros riem de Denk.

ALEX: Denk, ela tem gênio forte. Você ainda precisa aprender muito para ganhá-la.
Sétima cena

No campo. É noite. Ao longe, ouve-se o barulho do trânsito. Os faróis dos carros não
param de piscar. Depois de chegar ao ponto máximo, cessa o barulho dos carros.

HEROD E MARLIES: A dureza do trabalho no campo nos maltrata e nos transforma


em chumbo. Sem você, meu coração é tão pesado.
Carne colada em carne e anestesia bombeada para a barriga.
BEM-AVENTURADO ORFEU QUE NUNCA CANTOU O
TRABALHO
BEM-AVENTURADOS NÓS NA PLANTAÇÃO
SEM KALACHNICOV E MUNIÇÃO
BEM-AVENTURADOS OS SENSATOS QUE EVITAM
DERRAMAR SANGUE
Amante no sonho, por quem vale a pena parar quando os
ossos simplesmente estalam. Com você sozinho em uma
enseada de sonhos, uma tempestade de mar me joga de volta à
terra. Acorde-me quando for dia, para eu estar aqui quando
você se for.

Marlies se levanta com uma garrafa de cerveja na mão diante de Herod.

MARLIES: O que você está fazendo por aqui?


HEROD: Também poderia fazer a mesma pergunta a você.
MARLIES: Queria ver um avião na noite.
HEROD: Onde prefere ficar, no avião ou na fábrica?
MARLIES: Entre peste e cólera, o que prefere?
HEROD: A morte.
MARLIES: Não diga uma coisa dessas. Precisa ter fé.
HEROD: O ser humano é um músculo, e há anos sofro de dores musculares.
MARLIES: Mas deve haver algo.

De repente, estão diante de um avião de pepinos.

MARLIES: Vamos subir?


HEROD: Com certeza está trancado a chave.
MARLIES: Venha.

Os dois sobem os degraus de acesso à cabine. De forma inesperada, a porta encontra-se


aberta. Os dois entram e sentam um ao lado do outro no assento do motorista.
Alternadamente, tiram goles da mesma garrafa de cerveja.

HEROD: Às vezes penso na minha terra.


MARLIES: Breve você poderá voltar para lá.
HEROD: Uma vez um filósofo disse que a terra natal é um lugar onde a gente nunca
esteve.
MARLIES: Como o céu.
HEROD: Ele também não existe. Eles só contam essa história para você ficar calada.
MARLIES: Você acredita que nunca houve santos?
HEROD: Não da forma como está escrito. Ninguém vive dessa maneira... Mas santos
sempre precisam fazer sacrifícios.
MARLIES: Você a ama.
HEROD: A gente sente cada coisa quando está amando.

Herod tira uma cigarreira de prata do bolso.

Queria dar isto de presente a ela, com cigarros franceses...


Você tem fogo?
MARLIES: Tenho.

Marlies tira um isqueiro do bolso da calça e uma cédula de dinheiro. Ela toca fogo no
dinheiro e acende dois cigarros nele.

HEROD: Você está louca? Isso é dinheiro!


MARLIES: Também é um presente, e tão sem valor quanto o seu.

Os dois fumam.

HEROD: Ela está na aldeia.


MARLIES: Ela faz isso pelo filho.
HEROD: Como é que você sabe isso?
MARLIES: Ela não fala nada, mas eu sei fazer contas. Um mais um dois. Por isso ela
precisa fazer um extra.
HEROD: Então ela é uma santa.
MARLIES: Herod, você está maluco.
HEROD: Talvez, mas preciso ir.

Herod desce rápido do trator e deixa Marlies para trás. Ele corre pelo campo de pepinos.
Marlies toma o último gole da garrafa e desce do trator. Ela caminha sozinha pelo campo.
Denk vem em sua direção.

DENK: Estava procurando você.


MARLIES: Agora estou sem tempo. Preciso ir ver o Lupo.
DENK: Ele está com os outros.
MARLIES: Preciso tomar de conta dele.
DENK: Para você, aquele cagão é mais importante do que eu.
MARLIES: Ele não fala tanto.
DENK: Você fica aqui!
MARLIES: Saia do meu caminho!
DENK: Nunca mais ouse me humilhar na frente dos outros.
MARLIES: Não sei do que você está falando.
DENK: Você me deixou num papel ridículo.
MARLIES: Mas você é assim mesmo.
DENK: Você sabe vender bem a sua inocência!
MARLIES: Por que é que você é assim?
DENK: Dizem aos quatro ventos que o chefe lhe paga um extra.
MARLIES: Você acredita em tudo que você não entende.
DENK: Fique aí, sua puta. Vou arrancar fora esse seu orgulho!

Denk puxa uma faca e ameaça Marlies. Ele a derruba no chão e abre a braguilha da calça.
Ao longe se ouve o barulho de carros.

Vagaba convencida, de onde você tira esse orgulho?


Não corra, pois não conseguirá escapar.
Aqui só encontrariam uma cópia ruim de você.
E olhe que você não tem nada de especial, basta olhar para você.
Suas pernas, por exemplo, são curtas demais para jogar na Série A.
E sua cara é de segunda, mas só depois de eu ter passado por aí.
Olhe aqui meu testemunho para você, madame:
Nunca será uma mulher de luxo.
Mas já falei demais. Vá tirando logo a roupa.
Cuide do meu pepino, aeromoça, e dobre as duas perninhas para se ajoelhar.

O barulho de carro cessa. Do escuro, surge o fabricante.

FABRICANTE: O que está acontecendo aqui no meu campo?

Denk deixa cair a faca. Marlies se levanta do chão e se recompõe.


Oitava cena

Numa beira de estrada.


Herod está de pé por trás de uma árvore. Faróis de carros piscam de vez em quando.
Pode-se ouvir um leve barulho de trânsito.

HEROD: É ali que ela fica em pé quando diz que vai passear.
São os famosos interurbanos que vai fazer na aldeia.
A mulher que eu amo, na beira da estrada, tal qual uma puta, sozinha no
meio da noite.
Vou até lá pegá-la.
Está vindo um homem.
É o Grosch!
O que aquele diabo está fazendo aqui?
Está indo até as mulheres e está dizendo algo.

Está vindo um carro, não, um furgão.


As mulheres estão no meio do clarão dos faróis.
Um homem, um alemão, desce.
O que ele está negociando com o Grosch?
Grosch enfia dinheiro no bolso.
Todas as mulheres entram no furgão, e somente fica ele.
Ele as vende. Vende nossas mulheres como gado. Como gado de corte!

Ouve-se o grande barulho do motor de um carro, e um jato de luz acaricia as árvores.


Herod se esconde por trás das árvores. Ele reza.

QUANDO DESAPARECE A ÚLTIMA LUZ


DESPENCA
A ESCURIDÃO
CÉU ABAIXO
PENETRANDO ENTRE ESQUELETOS ESTALEJANTES
PREENCHENDO CRÂNIOS ENFERRUJADOS
ENCASULANDO ÓRBITAS OCULARES EXTINTAS
UMA NOVA LUZ SE JUNTA NESSA ESCURIDÃO
PARA FORMAR A HORA GESTANTE
MAIS CLARA QUE ANTES
E APONTA O CAMINHO

Cessa o barulho de motor.

Grosch, vou arrancar os seus olhos, e você vai se afogar como um miserável
dentro da sopa feita com os seus olhos. No futuro você olhará para o mundo
debaixo para cima.

Por trás da árvore, Herod dá um salto e desaparece no meio da noite.


Terceiro Ato
Primeira cena

Diante da delegacia. Marlies se contorce e vomita. Em seguida, recompõe-se, limpa a boca


na ponta de sua saia rasgada e entra na delegacia. Senta numa cadeira e espera que
chegue alguém. Um jovem funcionário chega no recinto.

AGENTE: Mas em que estado você se encontra! Vou chamar um médico.


MARLIES: Nada de médico.

O agente traz um copo d’água para Marlies. Ela toma a água com sofreguidão.

AGENTE: O que aconteceu?


MARLIES: Estuprada em pleno campo.
AGENTE: A Sra. tem testemunhas?
MARLIES: Apenas a noite.
AGENTE: Conhece o autor do estupro?
MARLIES: Conheço.
AGENTE: Quando aconteceu isso?
MARLIES: Há uma eternidade ou mais. Não sei mais.
AGENTE: Vou buscar um médico. A Sra. espera aqui.

O agente levanta-se e faz menção de dirigir-se à porta. Nesse momento entra Meyer.

MEYER: Eu conheço aquela ali.


AGENTE: Vou buscar um médico para ela. Ela foi seviciada.

Meyer puxa seu colega para o lado.


MEYER: Primeiramente vamos constatar o que houve. Pode ir que eu assumo esse
caso.
AGENTE: Mas olha o estado da mulher.
MEYER: Isso é o curso básico de arte dramática. Minha filha também faz isso.
AGENTE: Esse sangue não é sangue de mentirinha.
MEYER: Tenho bastante experiência com esses trastes. Sei do que estou falando. Mas
agora tenho de ir até a fábrica. Há alguém morto por lá. Na ida, levo-a um
médico. Satisfeito?
Segunda cena

Num celeiro. Minka está diante de um caixão. Outras pessoas estão saindo e mais uma vez
dão os pêsames a Minka. Quando ela se encontra sozinha, chega Marlies.

MARLIES: Soube muito tarde.


MINKA: Quando se fica sabendo de uma desgraça, sempre já é demasiadamente tarde.

Marlies cai no chão diante de Minka.

MARLIES: Não sei onde eu estava, eu estava fora.


MINKA: Sozinha você não estava.
MARLIES: Eles quiseram me levar, eu não quis.
MINKA: Por que se recusou?
MARLIES: Mais que isso você nada sabe. E de nada teria adiantado!
MINKA: Você prometeu tomar conta do meu menino.
MARLIES: A morte de Lupo é mais dolorosa que a minha própria morte.
MINKA: Lupo saiu correndo para a rua, no meio da noite. Um carro foi mais rápido.

Marlies volta a ficar de pé.

MARLIES: Eles certamente estão alegres, pois agora é um a menos entre nós.
MINKA: Falando assim, sua culpa não diminui.
MARLIES: A sua também não.
MINKA: Tínhamos combinado que nesse período nos revezaríamos tomando conta do
menino.
MARLIES: Onde você estava, já que está dizendo isso?
MINKA: Pelo nosso futuro, estava abrindo as pernas. Agora me deixe sozinha.
Marlies sai. Minka chora baixinho. Do outro lado, surge Herod.

MINKA: Quem está aí?


HEROD: Sou eu.
MINKA: Eu pensava que era um outro.
HEROD: Sinto muito.
MINKA: Sente o quê? Que o meu único filho está morto ou que você nada pode
mudar no curso normal das coisas?
HEROD: Ambas as coisas.
MINKA: Ah, seu nome é apenas Herod, não por culpa sua.
HEROD: E agora?
MINKA: Antes queríamos fugir a três, agora seremos dois.
HEROD: Com quem você vai fugir?
MINKA: É um segredo, mas vou lhe contar, pois você faz parte das pessoas boas.
Com o Grosch. Eu o amo, e ele me ama, há muito tempo.
HEROD: Mas...
MINKA: Ainda não o vi hoje.
HEROD: Ele certamente dará tempo para você velar seu filho.
Terceira cena

Num quarto vazio.


Diante de um espelho de bolso, Denk arruma o cabelo.

VOZ DO FABRICANTE: No Mar Cáspio está enterrado um ouro, parecido com o trigo
de antigamente, só que não é dourado.
Nenhum de nós irá colhê-lo.
Mas a colheita também trará frutos para cá. É só ficarmos do
lado dos vencedores, do mesmo modo que agora você está do
meu lado.

De repente, o fabricante posta-se diante de Denk.

DENK: Até o momento fiquei do outro lado.


FABRICANTE: Denk, você tem cérebro dentro do cérebro, o que é raro. Preciso de
você para alcançar meus fins. E não apenas aqui, pois você também
poderia, por mais tempo e em outro lugar, ser-me útil.
DENK: Como eu deveria ser útil?
FABRICANTE: Regra número um: cada um cumpre a sua parte.
O Grosch largou o campo, e eu preciso de um braço direito forte.
Regra número dois: aqui eu lhe faço um pedido especial.
Faça apenas o que eu lhe disser, mas não diga a ninguém o que eu
faço.
Você me entendeu?
DENK: Entendi, claro.
FABRICANTE: Preciso de alguém que faça compras para mim no Leste, até lá
embaixo, no Mar Cáspio. Está ocorrendo uma erosão nos litorais.
Denk, você ainda é jovem.
Ou prefere sempre suar como um porco no meio do campo?
DENK: Não, ou melhor, sim. O Sr. tem razão.
FABRICANTE: Preciso de confiança, e não de inimigos. Aqui está um adiantamento.
Mais tarde você vai querer ser autônomo. Eu aprovo essa sua idéia, é
uma coisa boa.
DENK: Isso é uma chance?
FABRICANTE: Denk, deixemos de cerimônias. Pode me chamar de Hartmut.
DENK: E eu sou o André.
FABRICANTE: Faça a coisa bem feita, André. Não existe uma segunda chance.
Quarta cena

No pátio.
De pé, Minik e Alex conversam.

ALEX: Você não abre o bico.


MINIK: Certo.
ALEX: O menino era deficiente, totalmente perturbado da cabeça. Não vá quebrar a
sua cabeça com isso.
MINIK: Mas ainda chegamos a brincar. Bem que dava para rir.
ALEX: Não vá cair em desgraça por causa de um bastardo desses.
MINIK: Mas...
ALEX: Nada de mais nem de menos. Dentro de alguns dias, a coisa já estará
esquecida. Ninguém mais voltará a falar do garoto. Não haverá nenhuma voz
para lembrar. Não quero mais falar sobre isso!

Alex sai, ao ver que Marlies se aproxima. Alex faz um gesto com a cabeça para saudá-la.
Marlies passa diante de Minik. Ele corre atrás dela.

MINIK: Marlies, onde está a Minka?


MARLIES: Não sei.
MINIK: Preciso contar uma coisa.

Marlies dá a impressão de estar muito ausente. Parece não estar disponível para
conversas. Minik pega-a na altura dos braços e a sacode.

MINIK: Marlies, você está me ouvindo?


MARLIES: Estou.
MINIK: Preciso fazer uma confissão.
MARLIES: Confissão.
MINIK: Você não pode contar a ninguém.
MARLIES: Certo.
MINIK: Nós demos cerveja ao Lupo, antes de ele sair para a rua.
MARLIES: Cerveja?
MINIK: Não foi má atenção, apenas uma intenção... Queríamos ver se ele falava.
A cerveja solta a língua...
MARLIES: Conte isso à mãe dele.
MINIK: Ela vai me matar.
MARLIES: Ela está com ódio de mim.
MINIK: Agora também você me odeia?
MARLIES: Não estou mais conseguindo.
MINIK: Então isso fica entre nós.
MARLIES: Entre nós.

Minik dá uma batida no ombro de Marlies e sai.


Quinta cena

No pátio.
Alguns dias mais tarde.
Duas trabalhadoras conversam durante a folga.

MULHER 1: Há quatro dias que o Grosch não aparece.


MULHER 2: Mas as coisas dele estão todas lá.
MULHER 1: Ele não daria tanto duro para depois simplesmente se evaporar.
MULHER 2: Agora já se sabe quem é a namorada dele.
MULHER 1: Ela passa o dia deitada por aí chorando. E a polícia nada faz, pois
ainda não passou tempo suficiente para considerá-lo desaparecido.
MULHER 2: O chefe queria mandar Minka para casa. Mas o Denk acabou
intervindo em seu favor, para que ela possa ficar até o Grosch voltar.
MULHER 1: Após a jornada de hoje, Denk quer sair para procurar o Grosch, e
todos deverão ajudar.
MULHER 2: Agora que a Marlies está doente, ninguém mais canta no avião.
MULHER 1: É mesmo uma pena.
MULHER 2: A moça está acamada com febre, só fala coisas sem nexo. Assim que
ela se recuperar, terá de voltar para casa.
MULHER 1: Minka não está dando a mínima atenção à prima.
MULHER 2: O Herod está cuidando dela.
MULHER 1: O chefe a fez cair.
MULHER 2: Quanto maior a altura, maior a queda.
MULHER 1: Bem-aventurados os pobres de espírito. No seu paraíso celestial há
mais caos.

As duas saem para trabalhar com um sorriso nos lábios.


Sexta cena

No pátio.
Denk está sentado a uma mesa fazendo o pagamento dos trabalhadores. Há uma fila de
pessoas diante da mesa.

DENK: Horas extras agora são pagas normalmente, como deve ser.

Denk faz o pagamento de Minik.

MINIK: Obrigado. Assim dá gosto trabalhar.

Minik sai. Alex é o próximo.

ALEX: As duchas voltaram a funcionar. Você fez uma coisa legal. Eu havia me
enganado com você. Pois com você as coisas andam.
DENK: Está bom, pegue seu dinheiro. Também há outros querendo ver algum fruto
do próprio trabalho.

Alex sai.
Marlies atravessa o pátio correndo. Está nua e molhada de suor. Grita com as pessoas.

MARLIES: Vocês ainda querem colher muitos pepinos!


MULHER 1: Está totalmente louca, eu sempre soube.
MARLIES: Quantos ainda!
Com suas mãos, suas mãos sujas.
Defendam-se ou então se acabem.
É tudo o que vocês mereciam, poloneses!
HOMEM 1: Ponham alguma roupa nessa moça, ou ela acaba pegando uma doença grave.
MINKA: Ponham uma cobrindo o cérebro dela, pois está louca!

Homem 2 sorri ironicamente.

HOMEM 2: Deixem-na como Deus a criou.

Outros riem.

MARLIES: Não vou mais calar a boca.


Eles maltratam vocês, como fazem comigo.
Fui a primeira e não serei a última!
MULHER 2: Todos os fusíveis queimaram.
MULHER 1; Essa idiota!
MARLIES: Vocês não são seres humanos. Apenas os cães estão latindo dentro de vocês.
Ataquem com mordidas! De tanto ficarem sentados, seu sangue ficará
cinzento! Levantem-se!

Algumas pessoas tentam pegar Marlies, mas ela consegue fugir e corre até a mesa onde
está sentado Denk. Ela pula para cima da mesa.

MARLIES: Pisoteiem o orgulho deles e deixem-nos aturdidos com a criminalidade de


vocês. Eles não têm direito de tratá-los como porcaria!

Marlies pega o envelope com dinheiro que está em cima da mesa. Denk agarra o envelope,
e ambos puxam de cada lado, de modo que as cédulas de dinheiro se rasgam.

DENK: O dinheiro! Levem essa vagabunda daqui e prendam-na! Ela está louca!

Alex e Minik agarram Marlies e puxam-na da mesa. Minka a amordaça com um lenço de
cabelo. Amarram-na e levam-na dali. Contorcendo-se, em meio à violência que lhe
aplicam, Marlies solta gritos.
DENK: Amanhã irá para o asilo.
Sétima cena

No contêiner-dormitório.
Num canto, Marlies está deitada amarrada e amordaçada. Herod chega com os pertences
de Marlies dentro de uma bolsa.

HEROD: Marlies, vou soltá-la. Mas você precisa ficar calada.

Marlies não se move. Apenas fita um ponto perdido no teto. Herod começa a desamarrar
Marlies.

HEROD: Está tudo limpeza. Os outros saíram.


Estão à procura de Grosch.
Você está com uma aparência! Está me ouvindo?
Não olhe assim.
Estou com nossos passaportes e dinheiro.
Vamos viajar para os Mares do Sul. Você sempre quis ir até lá.
Não encontrarão Grosch. No próximo ano, nascerão pepinos em cima dele.
Agora venha.

Herod põe um casaco em Marlies, em seguida a conduz até seu carro no pátio.

HEROD: Entre no carro e sente-se. Providenciei lanche para a viagem, vou buscar.
Espere.

Herod sai.
Marlies fica sozinha no carro. Olha em torno de si e descobre um galão de gasolina. Pega
o galão e derrama gasolina no prédio da fábrica. Em seguida pega um fósforo do bolso do
casaco e toca fogo.
Tudo fica em chamas.
As chamas refletem-se em seu rosto.
Silêncio, labaredas ardendo.
O fabricante sai do prédio correndo.

FABRICANTE: Sua louca! Agora conseguiu! É a sua morte!

Marlies não se move dali.


Nas chamas surge a imagem votiva da santa que é arrastada por um cavalo até a morte. O
fabricante empurra Marlies para dentro do fogo.
Com os braços abertos, ela recebe o fogo.
Herod chega correndo.
Derruba o fabricante no chão e lança-se nas chamas, logo atrás de Marlies.
Silêncio.
Barulho de trovões.
Há o prenúncio de chuva.
Em off, ouvem-se as vozes de Marlies e Herod.

VOZ DE MARLIES: Eis os Mares do Sul.


VOZ DE HEROD: Que não sabem o que é pecado.
VOZ DE MARLIES: Sua maré é uma maldição para os poderosos.
VOZ DE HEROD: Seu azul celeste é a beleza em plena revolta.
VOZ DE MARLIES: Aos explorados no calor do dia.

Desce a cortina.

(Tradução de Tito Lívio Cruz Romão)

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