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Segunda, 20 de setembro.

Uma manhã fria


no subúrbio. O plano era ir até o Cam-
po de Sant’Anna. Lá perguntar a qual-
quer mendigo em potencial a direção da
rua Santa Luzia. É claro que eu sabia
onde era a rua e isso era apenas um
bom pretexto. Começar a conversa & fa-
zer o trabalho sujo. Simples assim. Posto
o velho casaco vermelho e a calça jeans
azul, parti rumo ao cinza desconhecido.
Sabe quando você sai de casa e um men-
digo está a poucos metros de você? Foi
assim. Em qualquer outro dia seria normal. No máximo talvez, eu sentisse medo. Hoje não. Trajava um moletom laranja e
uma calça azul escuro. Ia sujo como todos os mendigos. A barba por fazer com fiapos brancos. Levava nas costas um saco
de lixo desses azuis clarinho com suas coisas, como se fosse um papai noel. Na esquina da pizzaria, a poucos metros de
onde eu moro. E agora? O destino havia posto no meu caminho um confortável acaso, mas com o qual eu não sabia como
lidar. O jeito foi ser presa. Com o passo mais lento, fui caminhando ao seu lado por algum tempo. Ia quase desistindo, indo
adiante, quando ele toma a iniciativa e começa a entrevista pela resposta para a pergunta que eu não precisei fazer.
_Você sabe que o motorista do ônibus aprontou uma comigo? Era para eu ter saltado em Madureira, ali na Igreja de
São Brás. Você sabe onde fica a Igreja de São Brás? Ali do outro lado? Pois então, o cara me deixou lá em Rocha Mi-
randa, naquela praça lá e eu tive de vir andando de lá até aqui. Não custava nada ter me deixado no ponto certo.
Estamos em Madureira, esquina da Estrada do Portela com a Rua Guarapari. Para a noção dos distintos - certamente leigos
em matéria dos subúrbios da Central - a distância entre esse ponto e a citada procedência de nosso amigo talvez seja algo
como o mundo que há entre o Flamengo e
Copacabana. Um perto que é muito longe,
um longe que é meio perto. Tomei as dores
do coitado. Esses motoristas não têm amor
à profissão, não fazem seu trabalho direito.
Com tantos aí querendo trabalhar e eles
nessa sem-vergonhice. Raramente digo essa
palavra. Ossos do ofício.Tudo pela entrevista.
_O pior é que eu estou com o dinheiro
da passagem aqui, está aqui no meu bolso.
Mas a gente tem que ver o lado deles
também, muitas vezes trabalhando em más
condições (o meu mendigo fazia bom uso
das leis da concordância e tinha um certo
sotaque de interior, não caipira mas per-
feccionista). A maioria, graças a Deus, é
boa, trata a gente bem. Só alguns que des-
respeitam. O senhor está indo para onde?
– pergunto. Estou indo para a Igreja de
São Brás, eles distribuem uma comida lá.
É gente muito boa, de muito bom coração.
Rezo muito por todos eles. Por eles e por

Com fé em Deus,
todo mundo. Rezo pelo bem de todo mundo.

Nada é Impossível
M
e impressiona como né? – lhe pergunto e me pergunto com toda Irmão: paro para pensar. Somos mais pare-
alguém que passa por sinceridade. Tem muita maldade por aí, ele me cidos do que qualquer palavra possa descre-
tantas dificuldades diz. Mas tem muita bondade também, graças ver nesse momento. Nossa cor é muito mais
possa querer o bem a Deus. Com fé em Deus, nada é impossível. que melanina, é uma história em comum.
daqueles que deve- Atravessar a Carolina Machado é sempre um Irmão: essa palavra me comove e me con-
riam ajudá-lo. Definitivamente, trata-se aqui teste de atenção. Ônibus e carros seguem seu forta. Às vezes nos esquecemos que somos
de um homem de bem. Um homem de bem fluxo rumo ao Centro da cidade, seus traba- todos iguais. São momentos como esse que
é aquele que quer o bem sem importar a lhos e suas angústias. Ele é quem me diz o nos recordam a lição básica que precisamos
quem. Seguimos conversando. Ele me conta momento certo de fazer a travessia. Vou em aprender. Somos todos irmãos, rezando um
mais uma de suas histórias de fé e oração. direção à velha escadaria e ele avisa: Não, pelos os outros nesse mundo de incertezas.
_Você sabe que ontem eu estava com uma vamos pela escada rolante. E fomos. Tá vendo Ali fica a igreja do Poder de Deus. Tem culto
dificuldade de evacuar tão grande que pensei aquela igreja ali do outro lado da linha do às sete horas, todos os dias. Que bom, logo cedo
que estava com as fezes endurecidas - ele trem? A Deus é Amor? Ali o pastor prega até – disse eu. O senhor vai ficar aí? – pergunto.
disse bem assim “fezes endurecidas” e con- quando só tem duas pessoas. Pouco antes de Vou, vou sim. Chegamos à frente da casa com
fesso que aí me segurei para não rir. Mas eu atravessar, ele estava me contando de igrejas telhas de alumínio pintada de azul. Há vários
rezei o salmo 91, pedi a Deus, ele me atendeu em que pastores se negam a pregar na falta banners na parede, com fotos do apóstolo Val-
e tudo ficou bem. Para quem como eu não se de fiéis. Igrejas boas e igrejas más, tal qual demiro e horário dos cultos. Aqui, tem culto às
lembra, o salmo 91 é aquele do “Mil cairão as pessoas. Subimos a escada enquanto ele 8h, 15h e 18h – ele lê para mim. Me ajuda a
ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não me conta das boas igrejas, onde os pastores arrumar as coisas aqui – seguro pela última
chegará a ti.”. Uma boa para prisão de ventre. sempre pregam e os fiéis não lhe tratam mal. vez a sua sacola. A alça rasgou. Pois é – digo.
_Você sabe que esse ônibus que está vin- É aqui que eu deveria ficar. Mas penso duas A sacola esteve esse tempo todo muito cheia e
do aí, esse 294, lá na Pavuna é terrível, ele vezes e sigo com o andarilho sem nome em isso era inevitável – penso. Um misto de tris-
também não pára. O ônibus que vejo vindo seu caminho tortuoso, cheio de trevas e de luz, teza e compaixão – sinto. Cai lá de dentro um
é um 261, Marechal Hermes - Praça Quinze, pelas ruas desertas e serenas de Madureira. trapo cinza sujo de amarelo, que ao repor na
longe de passar perto da Pavuna. Comecei a bolsa, sinto que encobre um chinelo. Deus lhe
desconfiar da sua sanidade. Depois, percebi, “Tem abençoe – ele me diz. O senhor também. Onde
por puro preconceito. Ontem eu fiz sinal para o o senhor mora? – pergunto. Na Nova Holanda.
ônibus, ele parou, subiram as três pessoas que muita malda- Qual é o nome do senhor mesmo? Luís Fernando
estavam na minha frente e na minha vez, ele – diz. Tudo de bom pra você aí, Luís Fernan-
arrancou. Covardia – digo. Estamos chegando de por aí. Mas tem do. E com um tapinha nas costas me despeço.
ao fim do nosso caminho – penso. Você anda Me afasto a passos breves e calmos, tal qual
bem também. Digo a ele que estou indo pegar muita bondade também, me aproximei. Quase chegando na esquina, um

graças a Deus. Com


o trem da Central na estação de Madureira. homem gordo que nunca tinha visto me cum-
A passarela de Magno dá acesso ao outro lado primenta: Fala garotinho! Boa aula! Não sei se

fé em Deus, nada é
de Madureira e aqui devia ser o ponto final da a boa aula era a que estava por vir ou a que
nossa conversa. Cheguei a ensaiar uma breve eu havia tido. Uma aula de fé, perseverança,

impossível.”
despedida, mas ele me ignora e acompanha. generosidade, humildade e tantos outros sen-
Decido seguir. Agora estamos em frente à uma timentos bons. A flor nasceu no asfalto: em
lanchonete na avenida Ministro Edgar Romero. meio à podridão da cidade e a ressaca da
Esse Mc Donald’s tem no Brasil todo? No mundo segunda-feira, conheci Luís Fernando, o meu
todo, eu acho. – respondi. Será que eles tra- Do lado de lá do bairro, de quem atravessa a breve amigo. Nunca saberei se fiz uma en-
balham de carteira assinada? Devem trabalhar passarela da estação do ramal da Central, ele trevista ou se fui entrevistado. Ele me deu
sim. – falei. É americano, né? É sim - disse-lhe. segue me falando das suas peregrinações por todas as respostas e fez nascer outras per-
Então deve ser tudo direitinho, dentro da lei. esses templos. O meu mendigo é um homem, guntas. Por isso, lhe serei eternamente grato.
Mais à frente, uma barraquinha de petiscos e acima de tudo, de muita fé. Ele vai cumprimen- E certamente nunca mais reconheceria Luís
cerveja segue aberta após a noite de domingo. tando as pessoas que conhece, que o respondem Fernando se o visse por aí, andando pela rua.
A bebida é um mal terrível - diz . Destrói a ou não. Um vendedor de doces e outro. Pediu- Como o homem gordo, que meu desejou bom
vida de muita gente mesmo, graças a Deus me para segurar uma peça de roupa enquanto dia mas eu nunca vi. Reconheceria talvez o
não bebo – respondo. Eu também não, mas arrumava suas coisas. Vejo que sua bolsa está acaso, o fortuito que faz com que as palavras
você sabe que ontem o demônio me tentou? Me cheia de vestes, sujas ou não. Tem igreja em às vezes digam muito mais do que deveriam.
deram uma comida envenenada. Antes, deram que os fiéis olham torto para você. Eles estão Boa aula! – ele disse. Pela Domingos Lopes
uma bebida e depois um bolinho, um prato ali, rezam, mas não gostam de ver você lá. não tardo a chegar na estação. Na plataforma,
de comida, que se eu comesse tudo morria. A Você sabe que teve uma igreja em que o pastor ouço dobrarem os sinos. Sete horas. Tudo de
minha neta estava comigo e tudo. Foi terrível. era da nossa cor, irmão, mas quando eu fui fa- bom pra você aí, Luís Fernando! Que Deus o
Se podem fazer o bem, por que fazem o mal, lar com ele, ele não gostou não. Brigou comigo. abençoe, abençoe a você e a todos nós. Amém.
Técnicas de Reportagem - Profª Cristiane Costa - Saulo Pereira Guimarães - Dia de São Cosme & Damião - Jornalismo - ECo-UFRJ

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