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Heroísmos

Eu temo muito o mar, o mar enorme,


Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.

Eu temo o largo mar, rebelde, informe,


De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.

Contudo, num barquinho transparente,


No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n'água quase assente,

E ouvindo muito ao perto o seu bramar,


Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!

Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'

A um Amigo
Fiel ao costume antigo,
Trago ao meu jovem amigo
Versos próprios deste dia.
E que de os ver tão singelos,
Tão simples como eu, não ria:
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.

Que sobre a flor de seus anos


Soprem tarde os desenganos;
Que em torno os bafeje amor,
Amor da esposa querida,
Prolongando a doce vida
Fruto que suceda à flor.

Recebe este voto, amigo,


Que eu, fiel ao uso antigo,
Quis trazer-te neste dia
Em poucos versos singelos.
Qualquer os fará mais belos,
Ninguém tão d’alma os faria.

Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'

Raios não Peço ao Criador do Mundo


Raios não peço ao Criador do mundo,
Tormentas não suplico ao rei dos mares,
Vulcões à terra, furacões aos ares,
Negros monstros ao báratro profundo:

Não rogo ao deus do Amor, que furibundo


Te arremesse do pé de seus altares;
Ou que a peste mortal voe a teus lares,
E murche o teu semblante rubicundo:

Nada imploroem teu dano, ainda que os laços


Urdidos pela fé, com vil mudança
Fizeste, ingrata Nise, em mil pedaços:

Não quero outro despique, outra vingança,


Mais que ver-te em poder de indignos braços,
E dizer quem te perde, e quem te alcança.

Bocage, in 'Rimas'

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,


Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,


Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,


Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,


Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões

Poveiro
Poveirinhos! meus velhos pescadores!
Na Agoa quizera com vocês morar:
Trazer o lindo gorro de trez cores,
Mestre da lancha Deixem-nos passar!

Far-me-ia outro, que os vossos interiores


De ha tantos tempos, devem já estar
Calafetados pelo breu das dores,
Como esses pongos em que andaes no mar!

Ó meu Pae, não ser eu dos poveirinhos!


Não seres tu, para eu o ser, poveiro,
Mail-Irmão do «Senhor de Mattozinhos»!

No alto mar, ás trovoadas, entre gritos,


Promettermos, si o barco fôri intieiro,
Nossa bela á Sinhora dos Afflictos!

António Nobre, in 'Só'

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