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10 Gilberto Velho e Karina Kuschnit ¢ pela Financiadora de Estudos e Pesquisas (Finep), do Ministério de Cigncia e Tecnologia, coordenada por Gilberto Velho, com a colaboragao de Karina Kusc Gilberto Velho e Karina Kuschnir O desafio da proximidade Gilberto Velho A antropologia ampliou de tal forma o seu campo de atuagao nas ultimas décadas que se torna cada vez mais dit cil indicar tema ou fendmeno sociocultural que nao tenha sido objeto de pesquisa ou pelo menos de algum tipo de reflexao. A cidade é em grande parte responsdvel por essa expansio, & medida que os antropélogos cres centemente identificam e constroem objetos de investigagao no meio urbano. No Brasil — embora haja alguns antecedentes importantes foi sobretudo a partir do inicio dos anos 1970 que, de modo mais sistematico, se incorporou a cidade ao campo da investigasio antropolégica. Esse movimento significou uma mudanga em rela so aos eixos de preocupagio até entdo dominantes, que eram a ctnologia, as relagdes interétnicas e 0 estudo de grupos campone- ses e/ou de situagdes tradicionais, como os que constitufram © objeto dos estudas de comunidade. Desde Nina Rodrigues, na passagem dos séculos XIX para 0 XX, 0s cultos afro-brasileiros ¢ as populagdes de origem africana em geral tém sido objeto de atengao dos antropslogos brasileiros ¢ estrangeiros, como Edison Carneiro, Roger Bastide, Artur Ramos, Ruth Landes e Melville Herkovitz. Na maior parte dos casos, trata- va-se de enfocar populagdes urbanas. Os autores mencionados atuaram sobretudo entre 0s anos 1930 1960 do século XX. A tematica dos cultos afro-brasileiros e outras manifestagdes religio- sas nao s6 continuam sendo importantes, mas tornam-se, no inte- rior dos estudos urbanos, uma das éreas mais produtivas. $6 que agora, a partir dos anos 1970, estdo associados a significativas alteragbes de enfoque e de perspectiva.! Gilberto Velho Os antropélogos que pesquisam nas cidades passaram pro- ¢gressivamente a voltar seu interesse para a investigacao de sistemas e redes de relagoes. Também as favelas, outra 4rea de investigaga0, de raizes mais antigas,? passaram a estimular a elaboragao de tra- balhos em que elas faziam parte de situagdes € processos sociais, mais amplos, envolvendo, portanto, outros atores.? Os antropélo- {g0s comegaram a se aproximar cada vez mais, entre outros movi- mentos, de seus universos de origem. Cabe registrar, nesse sentido, importincia de Carnavais, malandros e herdis, de Roberto Da Matta,‘ que constituiu um marco nesse desenvolvimento, com suas andlises de rituais da sociedade brasileira. Sem diivida, no largo espectro de investigacao, as jé mencionadas favelas, os cultos afro- brasileiros, a classe trabalhadora, as camadas populares em geral, 3 grupos desviantes, entre outros, foram temas privilegiados. Po- 1ém, de virias maneiras, os antropélogos brasileiros foram se de- frontando com situagoes préximas e mais ou menos “conhecidas” Foi assim que se redescobriu Gilberto Freyre, autor durante muitos anos relativamente marginalizado ou esquecido das instituigdes universitarias. Sobretudo o livro Sobrados e macam- bos* passou a ser visto como pioneiro na pesquisa das relagdes centre diferentes categorias sociais no meio urbano. Freyre,em toda 4 sua obra, certamente também foi precursor na investigagéo de seu préprio meio. A partir dos anos 1970, os pesquisadores que estudam a umbanda, por exemplo, passaram a reconhecer suas ‘empregadas domésticas® e, em centros espiritas, comegaram a en- contrar conhecidos e vizinhos.’ Alids, esses pesquisadores chega- ram a diferentes grupos ¢ a diferentes locais por intermédio de pessoas que faziam parte de suas relagdes mais ou menos intimas. Nao € essa a situagdo de um pesquisador que, em uma terra estra- nha, consegue se aproximar de informantes que poderio, com maior ou menor facilidade, promover novos encontros. O pesqui- sador brasileiro, geralmente em sua propria cidade, vale-se de sua rede de relagoes previamente existente e anterior a investiga¢ao, Minha experiéncia pessoal comegou com uma pesquisa em Copacabana, realizada no contexto da dissertacao de mestrado que gerow o livro A utopia urbana.*Bu era morador de Copacabana jd 4 16 anos e, ao me casar, fui residir no mesmo bairro, em um 0 desafio da proximidade B prédio de apartamentos conjugados. A casa de meus pais ficava a duas quadras dali, em um edificio habitado sobretudo por oficiais superiores das Forgas Armadas, profissionais liberais e suas fam lias. A partir dessa primeira experiencia de pesquisa, tenho procu- rado refletir — em meus proprios trabalhos e nas discussdes com meus alunos — sobre proximidade e distancia, familiaridade e estranhamento. No artigo “Observando o familiar’, procurei explicitar alguns problemas te6rico-metodolégicos advindos da experiéncia da pes- ‘quisa em Copacabana e com 0 universo estudado em minha tese de doutorado, Nobres e anjos."° Se, em Copacabana, eu pesquisara uma pequena classe média espacialmente pr6xima, mas relativa- mente distanciada de meu universo de origem, no segundo caso, lidei com pessoas nao s6 de grande proximidade sociol6gica, mas ue, em significativa proporgdo, faziam parte do meu circulo de amizades Vale salientar que a distincia que me afastava do universo white-collar copacabanense ndo era similar A que aparta aristocra- cia feudal e servos da gleba. Fui morar no prédio de apartamentos conjugados porque o recebera de meu pai, como precioso presente de casamento dado a um casal de estudantes de graduagao que dependia de bolsas modestasc irregulares para sobreviver. Ou seja, minha familia possufa naquele prédio um apartamento para renda € passou-o as minhas maos. Minha av6 paterna, inclusive, ali pas- sara alguns meses depois que enviuvara. Assim, nossa estada naquele prédio por cerca de um ano meio colocava-nos em principio numa situagio de transito para um lugar melhor. Nao éramos os tinicos nessa categoria, mas segu- ramente integravamos a minoria, Predominavam no prédio ban- citios, comerciérios, funciondrios ptiblicos que ocupavam no mé- ximo uma posigao intermedia em seus trabalhos. Contudo, as- sim como minha avé, havia também uma populagio de idosos casados, solteiros ou vitivos, de niveis variados dentro do universo das camadas médias urbanas. Por outro lado, em alguns aparta- mentos viviam mogas classificadas como prostitutas ou garotas de programa. O mais fascinante no prédio era essa heterogeneidade de figuras ¢ estilos."! Nesse ponto, havia um flagrante contraste Gilberto Velho com a relativa homogeneidade sociocultural do edificio de meus pais. As vezes penso se nossa conviccio de que a permanéncia no prédio era transitéria nao se matizava por uma leve preocupagio sobre a possibilidade de que, se as coisas nao dessem certo, pode- réamos ali ficar por um tempo bem maior do que inicialmente imagindramos. [sto é na dindmica dos processos de mobilidade da sociedade brasileira moderno-contemporanea, as distincias nao so como as da sociedade de castas da India chissica J4 na pesquisa para o doutoramento, dediqu das camadas médias superiores na fronteira com as elites. Esses limites eram um tanto complexos porque envolviam renda, status, educagao e estilo de vida. Em certas situagdes, poderiam conviver familias de banqueiros com artistas ¢ intelectuais de situagao fi- nanceira modesta, embora com algum prestigio ou notoriedade social. Essas diferengas nao eram ignoradas, mas colocadas entre uma espécie de paréntese, Quando decidi pesquisar a “aristocracia de estratos médios', j tinha nogdo das peculiaridades da tarefa. Alguns dos membros dessa camada tinham ligagéo com minha familia, e outros haviam sido colegas meus de curso secundétio. Assim, 08 vinculos que havia dentro do universo envolviam rela- ‘g0es de parentesco por descendéncia e alianga, além de antigos lagos de amizade e coleguismo. No Edificio Estrela, em Copacabana, baseei-me sobretudo na observagio direta ¢ no contato permanente com os moradores ¢ coma vida do prédio em geral. Conversei com as pessoas ¢ assist a conflitos e dramas de todos os tipos. Mas o tempo todo sentia-me como alguém de fora daquele mundo, embora hoje possa até rela- tivizar um pouco essa visao, No caso de Nobres e anjos, eu via-me, em relagao aos “nobres’, como um par, como um professor e pes- quisador, assim como os outros eram artistas, jornalistas, diploma- tas ete. Jé em relagao aos “anjos’,a distancia geracional produzi diferensas significativas em termos de ethos e linguagem, ainda mais acentuadas pelas caracteristicas proprias do mundo dos sur. fistas usuérios de drogas e seu entorno. O auxilio de um assistente de pesquisa mais jovem ajudou-mea lidar com essas dificuldades. No entanto, o foco principal do trabalho estava nos “nobres’, com 1e ao estudo (© dlesafio da proximidade rn quem eu convivia com regularidade. Entrevistei varios deles, as vezes mais de uma vez, complementando a observacio participan- te, meu ponto de partida. Na verdade, transformei parte significa~ tiva de minha rede de relagoes sociais em objeto de pesquisa, em ‘um movimento um tanto heterodoxo para os padrdes tradicionais da antropologia. Portanto, eu jé possuia um tipo de conhecimento ede informagio apreciavel sobre parte do universo que me propus investigar. Foi importante e crucial o movimento de estranhar 0 familiar — tarefa nada tr zmente, creio que nunca tive idéias onipotentes e equivocadas de estudar amigos e conhecidos como se fossem formigas. Havia uma consciéncia da dificuldade de desnaturalizar nogdes, impres- sbes, categorias, classificagdes que constituiam minha visio de mundo. Cabe no entanto mencionar que, por raz6es de formagao € trajet6ria pessoais, o exercicio de um certo distanciamento nao me era estranho, E possivel que isso passe por um interesse em literatura e hist6ria anteriores & propria opgao pela pesquisa an- tropolégica. Creio que esta veio acentuar e fortalecer certas carac- teristicas de meu perfil intelectual. © fato € que, hoje, estudar 0 proximo, o vizinho, 0 amigo, jé nao é um empreendimento tao excepcional. Ao contrério, multi plicam-se os trabalhos de pesquisa sobre camadas médias, género, geragdo, vida artistica e intelectual, familia e parentesco, religido, politica etc., que implicam lidar com a problematica da familiati dade ¢ do estranhamento. Creio que este é um movimento muito forte e caracteristico da produgdo antropolégica brasileira, que — pelo menos desde meados dos anos 1960 — procurou responder a desafios ¢ questdes produzidas pelo golpe de 1964 e pela instaura- sa0 do regime militar. Nesse sentido, era importante ampliar e aprofundar o campo de pesquisa antropolégica. Era interessante, politica ¢ cientificamente, estudar os grupos dominados mais ex- plorados ¢ oprimidos. Contudo, as investigagdes de outros seg- mentos € categorias, como as camadas médias e as elites, também. se revelavam importantes. Uma outra subarea dentro dos estudos urbanos que teve grande desenvolvimento no mesmo periodo foi a das pesquisas ¢, com certeza, nem sempre bem-sucedida,

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