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Aviação

Spotters

Os caça-aviões
Adoram pássaros-de-ferro. Adoram fotografia. Juntaram as paixões e tornaram-se spotters.

F im de tarde de um dia de final de Agos-


to, ali nas redondezas do aeroporto de
Lisboa. Homens ainda de gravata posta de-
máquina. Há muito que não tem tempo para
contar os cromos da sua colecção, mas apon-
ta para uns quatro mil. Organiza-os primeiro
pois de um dia de trabalho, famílias em cal- por matrícula, depois por companhia aérea. O
ções de praia, uma senhora com ar distinto e especial, aquele de que mais gosta, até nem é
composto. Todos com a mesma semelhança: uma grande fotografia. Foi tirada da sua va-
na mão uma máquina fotográfica, a esprei- randa ao A380, na única passagem desta ae-
tar pela objectiva à frente da qual desfilam ronave pela capital portuguesa. O seu avião
aviões. Estão ali concentrados num canti- preferido é o A310. “Se me puserem um avião
nho estratégico, bem de frente para a pista comercial e um militar de cada lado, viro-me
onde os aviões aterram e descolam. Lá ao para fotografar primeiro o comercial.”
fundo avistam-se as luzes de mais um avião O spotting é feito nos finais de dia e aos fins-
que se prepara para aterrar. Levantam as de-semana. Quando esteve desempregado, às
máquinas, esticam as lentes. E voltam a vezes vinha o dia todo. A família vai perceben-
baixar. Lá se foi o entusiasmo. É um TAP. do este amor e de vez em quando até acompa-
Fotos destes já têm muitas. Mas não tarda nha. Mas Carlos Moreira tem a noção de que
em aparecer um avião que os entusiasma a tira tempo à família para fazer spotting. “Con-
todos. Este é novo por aqui. Os spotters que sigo explicar o que me traz até aqui, mas mui-
vieram até à cabeceira sul da pista levam tas vezes não me compreendem. Só quando
um cromo novo para a sua colecção. trazemos aqui a pessoa para ver uma aterra-
Spotters: pessoas que fazem registos dos gem ou uma descolagem é que percebe. Uma
aviões que passam, seja através da matrícu- coisa é falar, outra é estar aqui, cheirar o com-
la ou da companhia aérea a que pertencem, bustível do avião, ver o fumo a sair das rodas.
sejam registos escritos ou fotográficos. Esta é Todos esses pormenores fazem diferença. Não
a definição, mas a realidade é muito menos quer dizer que as pessoas passem a vir para
crua do que estas palavras. Os spotters andam aqui, mas entendem”, refere Carlos Moreira
“atrás” dos aviões por pura paixão, pelas ae- É vício, mas é um vício saudável. Há quem
ronaves e – maioritariamente – pela fotogra- vá para o café até à hora de jantar. Carlos vem
fia. “Tenho a minha própria definição de fa- para aqui para o aeroporto, ao ar livre e a fa-
zer spotting, que é no final do dia, nas férias, zer uma coisa que lhe dá prazer até à hora de
quando tenho um espaço de tempo livre, vir jantar. Hoje já vai feliz, quando enfrentar o
aqui ter com os amigos, fazer um registo dos trânsito da ponte para voltar para casa, já leva
aviões novos que aparecem, fazer um pouco mais um cromo para a sua “caderneta”.
Saem do trabalho de fotografia”, explica Carlos Moreira, o pre- Gil Cardoso vai ainda mais feliz. Leva dois
sidente da Associação Portugal Spotter. Mas novos cromos a juntar a uma colecção que
e vêm até ao
os aviões estão sempre em primeiro nesta ronda os quatro mil. E até podiam ser mais se
aeroporto, ordem de preferência. Trauma, conta. A mãe tivesse aproveitado outros tempos em que an-
tirou-lhe a chucha e disse que foi um avião dou pela Europa fora. “Era miúdo, andava na
o melhor local
que a levou. Nunca mais parou de olhar para escola primária, vivia numa aldeia com uma
para fazer o gosto eles. Cresceu de olhos postos no céu até que base militar perto e recordo-me de que nas
em 2004 descobriu o spotting. Primeiro com férias, enquanto os meus amigos iam jogar à
ao dedo e juntar
uns binóculos, depois com um scanner para bola, eu subia para o telhado da casa dos meus
cromos à colecção ouvir as comunicações, mais tarde com a sua pais com um pacote de bolachas e deliciava-

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Associação Portugal Spotters
Nasceu em 2008 como um local de partilha de informações
Com 153 associados, a APS foi o País com um único objectivo que
criada como uma forma de oficiali- é fotografar aviões. Como institui-
zar o spotting junto das entidades ção, em que todos os elementos
aeronáuticas e aeroportuárias. estão identificados, conseguem
Desde a sua criação têm “nascido” aquilo que sozinho é dificil: passar
muitos spotters graças à divulga- para lá da rede, fazer visitas à pla-
ção desta actividade. O principal ca e ficar por ali a fotografar, tudo
ponto de encontro é o aeroporto, com a devida autorização, desde
mas não faltam encontros por todo que criaram a APS.

A Focus encontrou três homens que passam o tempo livre a ver passar aviões

-me a ver os aviões a passar.” À época não maior número possível das matrículas, na com-
percebia nada de aviões, agora sabe tudo e panhia A, B ou C com a pintura X ou Y. Outro
quando não sabe procura saber. A fotografia exemplo, os aviões que estavam na TAP e ago-
andou sempre a par. Desde sempre que é o seu ra estão na White, também quero fotografá-los
hobby. Há uns anos juntou a fotografia com os com esta pintura.” O seu cromo especial é um
aviões. “O spotting não é uma coisa linear. Há Ilyushin 18 que fotografou em Cuba, mas o seu
pessoas que só querem fotografar o avião não avião de sempre é o Boeing 747.
importa em que companhia, nem onde. Eu, Arranjar cromos novos torna-se mais difícil
por exemplo, fotografo sempre na base de ter o quando já se leva alguns anos no spotting. 

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Aviação

“O sonho
de qualquer
spotter é voar
e tirar fotografias
a outros aviões
a partir do ar.
Já tive a sorte
e o privilégio
Nuno Moreira

de o fazer"
Jorge Ruivo

 Quando se é novato, tudo é novo, tudo é de aviões. Jorge tem uma verdadeira paixão
para fotografar. Depois a experiência vai-se por aviões militares, por máquinas de guer-
tornando diferente. Gil Cardoso revê muitas ra. A beleza e as manobras destes aviões são
vezes a sua colecção, partilha-a. Este é o seu um desafio para a sua lente. Não colecciona
escape à rotina, é a sua forma de recarregar as matrículas, ao contrário do que acontece com
baterias. Mas nem sempre é um hobby fácil. a maioria dos spotters que seguem a aviação
“Enfrentam-se as intempéries” conta Gil. “A comercial. Jorge Ruivo não colecciona apenas
minha máquina faleceu num dia de chuva a fotografias de aviões. Da sua colecção tam-
fotografar um Air France. Actualmente esse bém fazem parte as boas memórias de estar,
avião passa aqui três ou quatro vezes por se- ele próprio, dentro de um caça. Esperou anos
mana, mas naquele dia era novidade e como até ver o seu pedido atendido, mas conseguiu
era novidade valeu a pena.” o bilhete dourado para a realização de um dos
maiores sonhos da sua vida ao ser integrado
Um avião, um sonho, milhares de fotos numa missão. “O meu sonho era ser militar
Quando era miúdo vinha com os amigos e não foi possível. Passar uma hora como se
Colecção montado na sua bicicleta da Marinha Gran- fosse é um gozo tremendo e uma sensação
Na próxima semana, de até Monte Real só para ver os aviões que brutal. Estar com um capacete na cabeça den-
com a Focus, aterravam e descolavam na pista da Base Aé- tro do avião e ouvir a ordem para descolar é
pode adquirir rea. Por vezes traziam o almoço e ficavam ali indescritível.” Como única bagagem levou a
o segundo volume mesmo no pinhal ao lado da pista, ao lado das sua máquina. Fez várias fotos. A mais saboro-
de A História máquinas de que tanto gostava. Nessa época, sa delas todas? “Uma que tirei a mim próprio
da Aviação não havia redes, nem instalações ultraprotegi- dentro do avião.” Todas as outras que tirou
das. Isso é coisa dos tempos modernos. Nesses nesse dia ofereceu-as à Esquadra 201 – uma
tempos em que Jorge era miúdo andavam por das esquadras de voo que opera os F16. Aliás,
ali, o entusiasmo de ver de perto era tanto que essa é uma prática comum: dar as fotografias
um dia teve de ser o próprio piloto a mandá- aos seus protagonistas. Outro dos elementos
lo sair dali, tal era a proximidade. À hora de da sua colecção é ter as fotos assinadas pelos
almoço, à sucapa, andavam de bicicleta pelo pilotos. Oferece-lhes uma e fica com outra as-
meio da pista. Se a paixão pelos aviões é bem sinada.
velhinha, o amor à fotografia não é mais re- A primeira foto que fez de um avião em 1979
cente. Aliou uma à outra e há 31 anos que faz já lhe valeu uma página no livro dos 50 Anos
spotting. Continua a conhecer os limites da da Base Aérea de Monte Real e muitas outras
base como a palma da sua mão, sabe todos os fotos suas já foram publicadas na revista Mais
bons sítios para fotografar em função da hora Alto – a revista da Força Aérea Portuguesa –,
ou da meteorologia, mas os tempos são outros: com honras de capa e poster.
agora há uma rede e, para lá dessa rede, já Fazer spotting é mais do que um hobby.
não há os velhinhos F-86 a rolarem na pista, Para Jorge Ruívo é um escape, um vício. “Há
mas os F-16 são “os melhores aviões do Mun- colegas meus que tiram dias para irem à caça,
do”. Mas vamos ser precisos, Jorge não gosta eu tiro dias para caçar estas aeronaves. Gos-

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to de começar e acabar as férias com um dia fotos – muitas – e ficou por ali. Quem conhece
inteiro a fotografar aviões.” Para fazer a von- o ruído dos F como este spotter conhece per-
tade ao gosto, desloca-se a qualquer lado pa- cebia que algo não estava bem. E não estava,
ra fazer fotografias a aviões militares. Todos um pouco depois assistia à ejecção do piloto e
os anos vai “em peregrinação” a Ingraterra, ao avião a embrenhar-se no pinhal. Não cap-
ao Festival Aéreo de Fairford, o “santuário” tou o momento, a máquina estava desligada –
para todos aqueles para quem a aviação é mas acorreu ao local. Também não conseguiu
uma religião. Por cá, os dias das bases aére- lá chegar. Pelo caminho, encontrou o piloto
as, os exercícios militares com esquadras de e garantiu-lhe ali mesmo que todas as fotos
voo estrangeiras e os festivais em que a Força seriam entregues à FAP e a mais ninguém.
Aérea participa obrigam a deslocações pelo “Para uma pessoa que gosta de aviões não há
País todo com a sua máquina às costas e os nada pior do que vê-los a cair.”
olhos voltados para os céus em busca de uma O investimento foi crescendo à mesma me-
preciosidade, de um momento único, de um dida que a sua paixão e à medida que as suas
disparo daqueles que valem prémios em con- poupanças foram permitindo. Depois das fo-
cursos de fotografia, mas o que lhe importa tografias em rolo, veio a era do digital e Jorge
mesmo é o gozo que lhe dá estar ali, estar a deu ainda mais largas a este seu hobby. O seu
disparar com a sua máquina. A família enten- objectivo é sempre captar a beleza das má-
de, tem de entender. Mas Jorge conta que faz quinas de guerra de que tanto gosta e, quem
um esforço para conciliar a sua paixão com as sabe, conseguir ver as suas fotos serem publi-
paixões deles e vai-se desdobrando. cadas. Aliás, outro dos seus sonhos passa pela
“O sonho de qualquer spotter é voar e tirar fo- publicação de um livro com fotografias suas.
tografias a outros aviões a partir do ar. Já tive Jorge Ruivo faz parte da Associação Portu-
a sorte e o privilégio de o fazer.” Amarrado guesa de Entusiastas da Aviação (APEA). Os
"Quando era miúdo
lá no cimo de um avião conseguiu cumprir seus 31 anos de spotting fazem dele um ve-
mais esse desafio. Uma forma de captar os terano nesta actividade, sobretudo por se de- subia para
seus F16 de uma pespectiva única, sem estar dicar ao spotting militar. Entre os spotters é
o telhado da casa
a tocar com os pés no chão. No livro das boas conhecido como o Jorge “Nuvem Negra” Rui-
recordações, este spotter guarda muitos mo- vo. Dizem que sempre que está presente nos dos meus pais
mentos, mas entre os momentos mais fortes – a eventos traz o mau tempo com ele. “Isto nas- com um pacote
par do seu voo – está um a que nunca espe- ceu porque sempre tive boas fotos de F16 com
rou assistir. Nem era muito comum andar pe- sol e quando os F16 iam a eventos onde esta- de bolachas
las imediações da Base pela hora de almoço. vam outros spotters o tempo não estava bom e e deliciava-me
Mas naquele dia de Janeiro de 2008 andava a a malta só conseguia fotos com chuva.”  
tentar caçar umas imagens de uns aviões es- a ver os aviões
trangeiros que sabia que ali estavam e assis- Carla Jesus (texto) a passar"
tiu a um voo de teste de um avião. Fez umas e Jorge Firmino (fotos)
Gil Cardoso

"A minha máquina


faleceu num dia
de chuva
a fotografar
um Air France.
Agora passa aqui
três ou quatro vezes
por semana,
mas naquele dia
era novidade"
Carlos Moreira

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