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2 0 Rio de Anacleto “O povo assistiu aquilo bestializado, atoni- to, surpreso, sem conhecer 0 que significaya, Muitos acreditavam que estavam assistindo uma parada.” Anistipes Lon, politico da época ANACLE ‘0 Aucusro br Mi ‘DI IROS passou a conviver mais inlensamen- te coma cidade do Rio de Janeiro em 1883, ano em que se tomou aluno do Conservatrio de Miisica. Ein 1889, a Reptiblica seria proclamada pelo marechal Deodoro da Fonseca. Mas se no plino politico 0 Brasil mudaria de sistema de governo, no cotidiano da cidade 0 joven mnisico perceberia que a estrutu- ra socioccondmica herdada do Segundo Império permaneceria praticamente intacta. Poucos eram os que participavan do novo poder ¢ apenas alguns “eleitos” conseguiam algar voos politicos. A Repiiblica nao era pior do que a Monarquia, mas es yer i baila uma sociedade mais justa, que servisse wa Tonge do sonho de tra- ao bem priblico, ao interesse comum, ‘Também, pudera, nascet de uma quairtelada a que © povo assistin “bestializado”, como afinnou o politico Aristides Lobo.' Nossos dois primeiros presidentes foram mili- Marechal Deodoro tares: Deodoroda Fonseca e Floriano Peixoto. Seus da Fonseca, governos de punhos fortes combateram a revollas primeiro presidente de monarquistas saudosos do Lmpério (a exemplo |e Republica PT da Revolta da Armada, que vimos no primeiro capitulo) ¢ consolidaram a Reptiblica. Prudente de Morais, 0 primciro presidente civil do Brasil, deu inicio a politica que ficou conhecida como “café com leite”, segun- do a qual o pats era comandado pelas oligarquias de Sao Paulo e Minas Gerais, que se alternavam no poder. A primeira Constituigdo republicana foi promulgada cm 1891 ¢ tra- zia algumas mudangas com relagdo a monarquista, de 1824. Agora, todos podiam votar. Menos, é claro, mulheres, analfabetos, soldados ¢ padres, ou seja, 95% da populagao! Essa Constituigao, com voto aberto ¢ contro- lado pela forga dos grandes fazendeiros — voto de cabresto -, consolidou 0 poder dos coronéis do café até os anos 1930. Nesse perfodo de afirmacdo politica ¢ econémica da Reptiblica, 0 maestro Anacleto desenvolveu suas atividades musi passou a sintetizar os principais tragos de nossa brasilidade. Vamos, en- ais na capital, que to, apresentar um pouco desse Rio marcado por fortes antagonismos: pobreza e riqueza, ruelas € avenidas, beleza ¢ sujeita, cosmopolitismo ¢ provincianismo. 0 atraso 36 mesmo uma cidade assim, bonita e envolvente como uma mulher apaixonada, é que tem o direito de nos fazer sofrer como estamos sofrendo ... Sem isso, jd teriamos desertado.” BexjaMin Costatiat Nos primeiros anos do século XX, a cidade do Rio de Janeiro ainda manti- nha fortes tragos do perfodo colonial. Com uma populagao que passava de 800 mil habitantes, sua geografia era marcada por ruas estreitas, vielas sujas © becos onde se avolumavam grandes quantidades de lixo. As pragas eram pouco arborizadas, dificultando a protegao contra o sol arrebatador O carioca mais enriquecido fugia da confusdo ¢ da insalubridade do Centro, indo residir no tagado urbano que hoje chamamos de Zona Sul: Gloria, Catete, Laranjeiras, l'lamengo, Botafogo. Os antigos casardes 28 O Rio Musical, DE ANAGLETO DE MEDEIROS abandonadbos pela “nobreza” fugidia e os galpdes de madeira freqiiente- mente pertencentes a portugueses passaram a ser habitados pela popu- lagao mais humilde. A maioria das moradias sequer possuifa janela nos quartos Jo tinha rede de esgoto € Chamadbs de cortigos, esses espagos eram subdivididos internamente e alugados por seus proprietarios. O mais famoso deles era 0 Cabega de Porco (propriedade do conde d’Eu, entre outros donos), que chegou a ter milhares de moradores. Seu nome se devia ao fato de sua entrada ter um grande portal em arcada, ornamentado com a figura de uma cabega de porco. Era um verdadeiro bairro, com so- brados, térreos, quartos, oficinas, barbearia e criagdo de anima is domésticos. Rapida- mente, percebeu-se que os cortigos eram ninhos privilegiados para a proliferagao de doengas. E elas eram muitas. No calor do vero, a febre amarela fa ia-se presente em toda a cidade. Transmitida por um mosquito que adorava 0 ambiente insalubre, a febre dizimava trupes inteiras de companhias teatrais que desembarcavam no porto do Rio de Janeiro. No inverno, havia varfola, doenga infecciosa que causa febre ¢ deixa marcas pelo corpo. A multiplicagao dos ratos levava a surtos de peste bubdnica Nos cortigos favelas, proliferava ainda" - stiam para Caricatura de Angelo Agostini representando 0 Carnaval de 1876. A morte, | com sua foice, observa | 0s folides contaminados bem provsivel que Anacleto no tenha mo- | que nao brineardo mais a a tuberculose. As doengas ex todos, mas era a populagao pobre, como sempre, que mais sofria com elas. Apesar de ser de origem humilde, é rado em tais residéncias. Sua condigao de | proxima festa de Momo. O Rio pe ANacLETO 29

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