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TRADUCOES ENTRE MEMORIA E HISTORIA* A problematica dos lugares Pierre Nora** Tradugao: Yara Aun Khoury*** 1. O fim da historia-meméria Accleragdo da historia. Para além da metafora, é preciso ter a nogdo do que a expressdo significa: uma oscilacdo cada vez mais rapida de um passado definiti- vamente morto, a percepgao global de qualquer coisa como desaparecida - uma ruptura de equilibrio. O arrancar do que ainda sobrou de vivido no calor da tradigao, no mutismo do costume, na repetigdo do ancestral, sob o impulso de um sentimento historico profundo. A ascensdo 4 consciéncia de si mesmo sob 0 signo do terminado, o fim de alguma coisa desde sempre comegada. Fala-se tanto de meméria porque ela ndo existe mais. A curiosidade pelos lugares onde a memoria se cristaliza e se refugia esté ligada a este momento particular da nossa historia. Momento de articulagdo onde a consciéncia da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memoria esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memédria suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnagdo. O sentimento de con- tinuidade torna-se residual aos locais. Ha locais de meméria porque nao ha mais meios de meméria. Pensemos nessa mutilagdo sem retorno que representou o fim dos camponeses, esta coletividade-meméria por exceléncia cuja voga como objeto da histéria coincidiu com o apogeu do crescimento industrial. Esse desmoronamento central de nossa * In: Les liewx de mémoire. I La République, Paris, Gallimard, 1984, pp. XVIII - XLII. Tradugo autorizada pelo Editor. © Editions Gallimard 1984, ** Diretor de estudos na “Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales” ***Departamento de Historia, PUC-SP. Proy, Historia, Séo Paulo, (10), dez. 1993 memoria sO é, no entanto, um exemplo. E 0 mundo inteiro que entrou na danga, pelo fenémeno bem conhecido da mundializagéo, da democratizagdo, da massifi- cacao, da mediatizagdo. Na periferia, a independéncia das novas nagdes conduziu para a historicidade as sociedades ja despertadas de seu sono etnologico pela vio- lentag4o colonial. E pelo mesmo movimento de descolonizagdo interior, todas as etnias, grupos, familias, com forte bagagem de memoria e fraca bagagem historica. Fim das sociedades-meméria, como todas aquelas que asseguravam a conservacao e a transmissao dos valores, igreja ou escola, familia ou Estado. Fim das ideolo- gias-memérias, como todas aquelas que asseguravam a passagem regular do passado para 0 futuro, ou indicavam o que se deveria reter do passado para preparar o futuro; quer se trate da reagdo, do progresso ou mesmo da revolugdo. Ainda mais: é 0 modo mesmo da percepgdéo histérica que, com a ajuda da midia, dilatou-se prodigiosamente, substituindo uma meméria voltada para a heranca de sua propria intimidade pela pelicula efémera da atualidade. Aceleragdo: 0 que o fenémeno acaba de nos revelar bruscamente, é toda a distancia entre a meméria verdadeira, social, intocada, aquela cujas sociedades ditas Pprimitivas, ou arcaicas, representaram 0 modelo e guardaram consigo o segredo - a hist6ria que é 0 que nossas sociedades condenadas ao esquecimento fazem do passado, porque levadas pela mudanga. Entre uma memoria integrada, ditatorial ¢ inconsciente de si mesma, organizadora e toda-poderosa, espontaneamente atuali- zadora, uma memoria sem passado que reconduz eternamente a heranga, conduzindo © antigamente dos ancestrais ao tempo indiferenciado dos herdis, das origens e do mito - ¢ a nossa, que sé € hist6ria, vestigio e tilha. Distancia que s6 se aprofundou a medida em que os homens foram reconhecendo como seu um poder ¢ mesmo um dever de mudanga, sobretudo a partir dos tempos modernos. Distancia que chega hoje num ponto convulsivo. Esse arrancar da memoria sob o impulso conquistador e erradicador da historia tem como que um efeito de revelacdo: a ruptura de um elo de identidade muito antigo, no fim daquilo que viviamos como uma evidéncia: a adequacao da historia e da memoria. O fato que sO exista uma palavra em francés para designar a historia vivida e a operacio intelectual que a torna inteligivel (0 que os alemaes distinguem por Geschichte ¢ Historie), enfermidade de linguagem muitas vezes salientada, for- nece aqui sua profunda verdade: 0 movimento que nos transporta é da mesma natureza que aquele que o representa para nds. Se habitassemos ainda nossa memoria, nao teriamos necessidade de Ihe consagrar lugares. Nao haveria lugares porque nao haveria meméria transportada pela histéria. Cada gesto, até 0 mais cotidiano, seria vivido como uma repetigdo religiosa daquilo que sempre se fez. numa identificagao 8 Proj. Histéna, Sdo Maule, (10), des. 1993 carnal do ato e do sentido. Desde que haja rastro, distancia, mediagéo, nao estamos mais dentro da verdadeira memoria, mas dentro da historia. Pensemos nos judeus, confinados na fidelidade cotidiana ao ritual da tradicdo. Sua constituigao em “povo da memoria” excluia uma preocupacdo com a historia, até que sua abertura para 0 mundo modemo Ihes impos a necessidade de historiadores. Memoria, histéria: longe de serem sindnimos, tomamos consciéncia que tudo opée uma a outra. A memoria € a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela esté em permanente evolugao, aberta a dialética da lembranga e do esquecimento, inconsciente de suas deformagdes succssivas, vulneravel a todos os usos e manipulagdes, suceptivel de longas laténcias e de repentinas revitalizagoes. A historia é a reconstrucdo sempre problematica e incompleta do que nao existe mais. A memoria ¢ um fendmeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a histéria, uma representagao do passado. Porque ¢ afetiva e magica, a meméria nao se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembrangas vagas, telescopicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbélicas, sensivel a todas as transferéncias, cenas, censura ou projegdes. A historia, porque operagao intelectual ¢ laicizante, demanda andlise e discurso critico. A memoria instala a lembranga no sagrado, a historia a liberta, e a torna sempre prosaica. A meméria emerge de um grupo que ela une, 0 que quer dizer, como Halbwachs o fez, que hd tantas memérias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, multipla ¢ desacelerada, coletiva, plural ¢ individualizada. A historia, ao contrario, pertence a todos ¢ a ninguém, 0 que Ihe da uma vocagio para o universal. A meméria se enraiza no concreto, no espaco, no gesto, na imagem, no objeto. A historia so se liga 4s continuidades tem- porais, as evolugdes e as relagdes das coisas. A meméria é um absoluto € a historia s6 conhece o relativo. No coragdo da historia trabalha um criticismo destrutor de meméria espon- tanea. A memoria é sempre suspeita para a historia, cuja verdadeira missdo é des- tmii-la e a repelir. A histéria é desligitimagao do passado vivido. No horizonte das sociedades de historia, nos limites de um mundo completamente historicizado, haveria dessacralizac4o ultima e definitiva. O movimento da historia, a ambigao hist6rica nao sdo a exaltag4o do que verdadeiramente aconteceu, mas sua anulagao. Sem divida um criticismo generalizado conservaria museus, medalhas e monumen- tos, isto ¢, 0 arsenal necessdrio ao seu proprio trabalho, mas esvaziando-os daquilo que, a nosso ver, os faz lugares de memoria. Uma sociedade que vivesse integral- mente sob o signo da historia nao conheceria, afinal, mais do que uma sociedade tradicional, lugares onde ancorar sua memoria. Proj. Historia, So Paulo, (10), dez. 1993 9

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