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O HOMEM QUE DECIDIU

ABRIR TODAS AS JANELAS

Acordou um dia mais tarde do que o de costume e se


sentiu sufocado, com um calor infernal. Fizera frio, à noite.
Fora dormir de janela fechada. Mas agora, que o sol já subira,
sentia como se estivesse preso em uma fornalha. Correu e
abriu a janela, aproveitando a brisa que entrou no quarto do
apartamento do 6º andar. Mas não era o suficiente. Percorreu
a casa inteira abrindo todas as janelas que encontrou.
– Agora tudo bem – disse em voz alta para ninguém,
morava sozinho. Entrou para o banho e saiu fresco e
renovado. Ao deixar a casa para ir ao trabalho, não se
preocupou em fechar janela alguma.
A caminho do elevador, percebeu que nunca vira o
minúsculo basculante do corredor completamente aberto.
Enervou-se. Em um dia sufocante como esse, era o mínimo
possível. Afastando os potes e jarros de plantas do beiral,
esforçou-se com a alavanca para que a abertura se
aumentasse. Não achou o suficiente. Forçou mais um pouco,
e nada. Apanhou um dos jarros de flor, o que lhe pareceu
mais resistente, e arrebentou com ele o vidro da pequenina
janela.
– Agora, sim – disse – tudo bem.
Estava suando bastante quando cumprimentou o
zelador na saída. Se não estivesse já atrasado para o
trabalho, teria uma conversa com o sujeito. É inadmissível,
diria, que em um dia tão quente uma janela que seja
permaneça fechada nesse prédio. É crueldade!, diria.

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Desumano. Mas não tinha tempo. Se deu por satisfeito que a
janela do térreo estava aberta e tomou o primeiro ônibus que
passou em frente ao prédio, qualquer um ali lhe servia. Entrou
e se acomodou no banco logo após a roleta, abrindo a janela
do seu lado. Afrouxou a gravata. Olhou em volta. O ônibus
estava quase inteiramente vazio e a maioria das janelas
estava completamente fechada. Levantou-se e se dedicou a
abrir uma a uma, meticulosamente, pedindo com licença e
agradecendo educadamente quando era preciso incomodar
algum dos outros passageiros. Quando terminou, reparou que
a janela do motorista era a última a estar fechada. Da roleta,
chamou:
– Ei! Motorista!
– O que é – foi a resposta.
– Será que o senhor se importaria de abrir a sua
janela? Está um dia muito quente.
O motorista aproveitou que estavam parados no sinal
para lançar ao homem um olhar de desprezo. Olhou de volta
para frente, ignorando-o completamente. Ele insistiu.
– É muito rápido. Você verá que vai se sentir muito
mais confortável. O dia está quente.
O motorista continuou ignorando. O homem deu de
ombros para o trocador e com um impulso saltou por sobre a
roleta. Antes que alguém pudesse fazer alguma coisa, chegou
até o motorista. Antes que ele percebesse o que estava
acontecendo, o homem o arrancou do assento com um só
puxão e abriu completamente a janela. O outro, caído no
chão, balbuciava confuso, tentando se levantar. Decidindo que
já estava perto o suficiente do trabalho, o homem ativou as
portas, atravessou por cima do pobre sujeito caído e chegou
até a rua, dizendo:
– Não vê? Como agora está bem melhor?
Os outros passageiros olhavam espantados pelas
janelas que o homem havia aberto por eles, enquanto o
trocador ajudava o motorista a retornar ao seu lugar. Não
tinham muito a dizer. Um dos passageiros até se arriscou a
comentar, em voz baixa, que o dia, realmente, até que estava

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mais quente do que o normal e não é que é verdadeiramente
horrível se sentir assim tão abafado?
– Pelo menos, é um rapaz muito educado – disse
uma senhora.
Chegando à porta do edifício onde trabalhava, o
homem olhou para cima e se sentiu enjoado. Em todos os
andares, não havia uma única janela que estivesse aberta.
Com desespero, pensava em um jeito de resolver aquele
problema. Viu o andaime de limpeza vazio próximo a janela do
segundo andar. Abrindo janelas e desviando de pessoas que
o cumprimentavam, alcançou o tal andar, e o tal andaime, e,
pacientemente, começou a se balançar pelos 20 andares do
prédio, abrindo todas as janelas, cuidadosamente. O calor já
estava infernal, mesmo do lado de fora. Imagine dentro.
Nesse processo, alcançava uma calma quase
monástica.
– Agora tudo bem – dizia, assim que abria cada
janela. As pessoas dentro dos escritórios o olhavam. Estavam
por um segundo assustadas demais para dizer qualquer coisa
e ocupadas demais para fechar novamente as janelas.
Quando finalmente chegou às janelas do último andar, o
homem já estava sem o paletó e com as mangas enroladas
até os cotovelos. Nem sinal da gravata. Estava quase
terminando. Espiou o prédio de baixo até em cima e notou que
no topo havia uma pequena casinha. Era uma casinha
minúscula reservada à manutenção da antena de para-raios
que ficava espetada no alto do prédio. Havia nela também
uma pequena janela que estava fechada.
Puxou as cordas do andaime, movimentou manivelas,
mas era impossível. Não chegaria até lá em cima dessa
forma. Entrou mais uma vez em desespero. O que fazer?
Sabia, somente, que não poderia descansar até que aquela
janela também estivesse aberta. Tudo ficaria bem melhor, não
é? Todos tem direito a uma boa ventilação, mesmo o pobre
coitado que vinha ocasionalmente cuidar da manutenção da
antena de para-raios.
Retirando os sapatos e depois as meias, com todo o
cuidado, o homem começou a escalar pela corda que

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sustentava o andaime. Abaixo dele, a cidade inteira.
Balançando, empurrado pela força do vento, ele se mantinha
firme, mas não era tarefa fácil. Nunca fora excepcional em
atividades que exigissem força física. Suas mãos logo
fraquejariam. Ele olhava a janela fechada e era só o que via,
ignorava todo o resto.
A vida na cidade embaixo de seus pés dependurados
no ar continuava. Não demorou muito e algum transeunte o
avistou e a polícia foi acionada. E os bombeiros. Então, um
amontoado de pessoas se juntou na calçada abaixo dele para
observar o homem que se dependurava feito louco do lado de
fora de um dos edifícios mais altos da cidade. O que ele fazia
ali? Qual era seu objetivo? O que poderia querer?
– É uma tentativa de suicídio – disse um.
– Mas se é suicídio por que é que ele não se solta da
corda? – argumentou outro.
– É uma tentativa frustrada. – resolveu o primeiro.
Lá em cima, o homem perdia cada vez mais a força
das mãos e para cada dez centímetros que subia,
escorregava o dobro. Logo abaixo dele, bombeiros se
empoleiravam no andaime que ele deixara para trás. Queriam
motivos, queriam que voltasse, queriam salvá-lo. Moeriam o
homem de pancada, caso fosse preciso. O homem não deu
ouvidos, seus olhos vidrados só enxergavam a pequena janela
da casinha de manutenção. O ar se encheu com o som das
hélices de um helicóptero. Era de uma rede de TV, queriam
fazer a cobertura em primeira mão.
O vento das hélices o fazia balançar violentamente,
mas foi o barulho que lhe chamou a atenção e ele virou a
cabeça. O homem viu a câmera do cinegrafista se projetando
pela porta aberta do helicóptero, enquanto o repórter se
posicionava ao lado com o microfone em punho. Na cabine,
estava somente o piloto. Apertando os olhos, o homem notou
outra coisa. As janelas da cabine estavam fechadas.

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De dentro do helicóptero, o repórter tentava gritar
perguntas para o louco que se dependurava no prédio à sua
frente, mas o homem não parecia ser capaz de ouvir. Notou
que ele tentava dizer alguma coisa, apurou os ouvidos e abriu
bem os olhos. Anos cobrindo notícias de dentro de um
helicóptero haviam-no feito um especialista em ler lábios
quando o barulho das hélices se tornava insuportável.
Conseguiu identificar o que o louco dizia, mas não entendeu
muito bem. Não fazia sentido.
– O que ele disse? – quis saber o cinegrafista.
– Ele disse que está um dia muito quente – respondeu
o repórter – E perguntou uma coisa. Quis saber se não nos
importaríamos de abrir nossas janelas. O que...
Não completou a frase. Nesse momento, vira que o
homem louco, sem gravata, sem sapatos, com as mangas
arregaçadas até os cotovelos, havia saltado em direção ao
helicóptero.

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