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CULTURA CORREIO BRAZILIENSE


Brasília,domingo,29 de agosto de 2004
Editora: Clara Arreguy //clara.arreguy@correioweb.com.br
Subeditores: Hélio Franco,Sérgio Maggio e Teresa Albuquerque
e-mail: cultura@correioweb.com.br
Tels: 214 1178 • 214 1179

O DESCONCERTO DE
SAMUEL
RAWET VIDA, OBRA E ANGÚSTIA DE UM DOS ENGENHEIROS CALCULISTAS
DE BRASÍLIA: CONTISTA APLAUDIDO PELA CRÍTICA, FOI ENCONTRADO
MORTO EM SUA CASA, EM SOBRADINHO, HÁ 20 ANOS
Tadashi Nakagomi 22.3.1978
CONCEIÇÃO FREITAS tístico Nacional e membro da
DA EQUIPE DO CORREIO equipe de Niemeyer na constru-
ção de Brasília, o arquiteto Glau-

O
fim da tarde de sexta- co Campelo contou ao Arquivo
feira, 24 de agosto de Público que Rawet era ‘‘pessoa
1984, 20 anos atrás, che- de temperamento muito compli-
gou com anúncio de cado, muito delicado’’. Tinha bri-
morte por descompasso com a gas injustificáveis com Joaquim
vida. Samuel Rawet havia sido Cardozo. ‘‘Nós estranhávamos
encontrado mais que morto, em aquela briga, achávamos uma
estado de putrefação, aos 56 coisa quase picaresca.’’
anos, a cabeça caída sobre um Nas lembranças do jornalista e
prato de sopa Knorr, o cheiro de escritor Ézio Pires, 79 anos, apa-
carne podre manchando o ar e rece um Rawet de cabelos bran-
atraindo moscas. O escritor e en- cos, camiseta e calça branca, fa-
genheiro calculista de algumas zendo caminhadas próximo à
obras de Brasília havia sido víti- 103 Sul, parando na banca de re-
ma, segundo os jornais da épo- vista para conversar com Ézio,
ca, de aneurisma cerebral. Mo- sempre em desacerto com o
rava sozinho em sua casa, na mundo. ‘‘Diga lá no sindicato que
quadra 2 de Sobradinho. sou antiassoaciativo, quero per-
Quando soube da morte de tencer à minha companheira
Rawet, o crítico literário Assis solidão’’, disse ele certa vez ao jor-
Brasil fez a necrópsia da ferida: nalista, respondendo a convites
‘‘Ele carregava nas costas um para ele fazer parte do sindicato
sortilégio étnico e uma feroz in- dos escritores da cidade.
compreensão familiar em rela- De outra vez, a síndica do pré-
ção a ser um escritor’’. Sentia-se dio de Rawet procurou Ézio Pires:
‘‘um vagabundo, um errante, e ‘‘Você vai me ajudar a resolver
toda a sua obra, de ficção e en- um problema. Denunciei na de-
saística, é uma procura de legacia um colega seu escritor
identidade’’, continuou Assis, que vivia andando nu no corre-
que, em seguida, o comparou a dor do prédio. O delegado da
Guimarães Rosa, pela riqueza de 1ªDP vai chamá-lo pra depor’’. À
conhecimentos, e um ‘‘espírito época assessor de imprensa do
superior e universalista’’ como Supremo Tribunal Federal, Ézio
Jorge Luis Borges e Samuel Bec- foi à delegacia interceder em fa-
kett, porém — suprema infelici- vor ao amigo. ‘‘Doutor, o homem
dade — ‘‘exilado num país de fa- é um dos melhores contistas des-
chada dúbia e primária’’. se país, está citado em
Judeu-polonês nascido em enciclopédia’’, argumentou o jor-
Klimontow, a 23 de junho de nalista. ‘‘Ele cometeu atentado ao
1929, Samuel Urys Rawet veio pudor. Enciclopédia não vai re-
para o Brasil aos 7 anos. Filho de solver nada, não’’, contra-argu-
pequenos comerciantes judeus- mentou o delegado.
poloneses, já havia aprendido o O policial contou ao jornalis-
iídiche antes de chegar ao país. ta que Samuel Rawet chegou à
Teve infância suburbana, na Leo- delegacia com um de seus con-
poldina, Rio de Janeiro. ‘‘Aprendi tos para provar que quem ficara
português nas ruas, apanhando nu no corredor do bloco não
e falando errado e acho essa a havia sido o escritor, mas o per-
melhor pedagogia. Aprendi tudo sonagem. ‘‘Personagem não po-
na rua’’, disse em depoimento ao de responder processo pelo
jornalista e crítico literário Flávio senhor’’, respondeu o delegado,
Moreira da Costa, do extinto Cor- rindo, segundo relato de Ézio,
reio da Manhã. 20 anos depois.
Dentre as obras em concreto Muitos dos que conviveram
das quais Rawet participou como com Rawet se lembram de vê-lo
engenheiro calculista, a mais cé- andando com uma gaiola ‘‘pra
lebre delas é o Congresso Nacio- SAMUEL RAWET TINHA A SOLIDÃO COMO PRINCIPAL COMPANHEIRA: PERSONALIDADE FASCINANTE pôr rato judeu’’, segundo al-
nal. Também fez os cálculos da guns, ‘‘pra botar todos os ratos
estrutura do colégio Elefante de Brasília’’, de acordo com Car-
Branco, em Brasília, e do Monu- miliares judaicos e suas adja- se ele em entrevista a Danilo da construção da nova capital. Vida na 103 Sul los Magalhães. A essa altura,
mento aos Pracinhas, no Rio de cências, um bando de chatos, Gomes, em 1979, e reproduzida As obras de Niemeyer exigiam A convivência de Samuel Rawet eram cada vez mais frágeis os
Janeiro. Das obras em abstrato, tudo me leva à descoberta estra- em Rapsódia a Samuel Rawet, soluções estruturais incomuns. com Fadul e Cardozo teve topo- fios que o ligavam aos amigos.
destaca-se seu primeiro livro, pu- nha dessa coisa simples, um in- de Ezio Flavio Bazzo. ‘‘Oscar nunca projetou, pelo me- grafia acidentada, conta o arqui- Vendeu o apartamento da 103
blicado em 1956, Contos do imi- divíduo, um homem concreto Junto com Victor Fadul, Rawet nos naquela época, um edifício teto Carlos Magalhães, represen- Sul e, com o dinheiro, pagou a
grante — agudeza cortante dian- em seu dia-a-dia, com necessi- foi um dos principais auxiliares comum como todos os outros, tante do escritório de Niemeyer edição de livros seus e foi mor-
te do real do mundo. dades elementares, um prato de de Joaquim Cardozo nas obras que a gente já fazia automatica- em Brasília. ‘‘Samuel tinha ma- rer em Sobradinho.
‘‘Na verdade, me sinto um so- comida, uma cama debaixo de de Brasília. Começou a trabalhar mente’’, conta Victor Fadul, em nia de perseguição, achava que o
litário caminhante do mundo. algum teto, algum pano em ci- no escritório da Novacap no Rio depoimento ao Programa de Cardozo estava perseguindo ele’’, LEIA MAIS SOBRE

Circunstâncias pessoais, rompi- ma do corpo, e algumas histó- de Janeiro, em 5 de abril de 1957 História Oral do Arquivo Público revela. Ex-presidente do Institu- SAMUEL RAWET
mento de todos os vínculos fa- rias para registrar no papel’’, dis- — portanto, aos primeiros dias do Distrito Federal. to do Patrimônio Histórico e Ar- PÁGINA 3

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