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I- DESENHANDO O CAMPO PROBLEMATICO 1. CIRCUITOS INVENTIVOS NA PESQUISA COM CEGOS Virginia Kastrup O belo livro Aveugles (Cegos) da artista francesa Sophie Calle (2011) feline Us projetos que abordam 0 problema da cegueira: Les aveugles (Os cegos), La couleur aveugle (A cor cega) e La derniére image (A tiltima imagem), desenvolvidos de 1986 a 2010. Na obra da artista, a cegueira nfo Comparece como uma metéfora: 0 cegamento moral ou a falta de elareza do ‘spirit. Ela busca investigar, traduzire reeriar, através de imagens, a experi- ocia da cegueira. No primeito projeto, Les avengles (Os cegos), realizado em 1986, Sophie Calle recolhe testemunhos de varias pessoas cegas congénitas sobre o que é para elas a imagem da beleza. Pessoas de diferentes idades e {isionomias do seu testemunho. O livro apresenta 23 respostas, organizadas em blocos de imagens. Cada bloco ¢ iniciado com uma fotografia em preto # branco do rosto da pessoa cega, seguida de seu testemunho. A composigio continua com uma ou mais fotografias coloridas, que evocam, sugerem, re- sriam e buseam traduzir, por meio de imagens equivalentes, visuais ¢ titeis, ® «ue foi narrado. O bloco de imagens é apresentado com papéis de texturas diferentes © formatos variados. Um homem diz.que a coisa mais bonita que ele viu foi o mar, “o mara perder de vista”, Outras pessoas também citam o mar como imagem da beleza ‘4s traduedes imagéticas sAo distintas para cada testemunho, Algumas falam tle coisas que conhecem pela descrigao dos videntes, como a Torre Eiffel, a Galeria dos Espelhos e os jardins do Chateau de Versailles, um homem louro le olhos azuis ou uma falésia numa colina deserta. Uma mulher diz que seu marido é belo e segue-se a imagem de seu casamento. Outros recorrem a ccnas, ‘ti literatura ou a coisas intangiveis, como um eéu estrelado, Para a beleza ‘aveada na Literatura, uma das imagens trazidas por Sophie Calle é uma pagina ‘le um livro em Braille. Uma jovem fala do pélo do lince —conhecido por seus ‘olhos poderosos —e uma menina evoca © cameiro, com sua pele caracteris- tica, As fotos procuram trazer tais texturas, de modo visual. Um homem diz {jue 08 cabelos so belos, sobretudo os cabelos das mulheres afticanas, Ele fhosta de se enrolar nos seus longos fios. Para uma das mulheres, bela é sua sa, que ela decorou sozinha. Sao também citadas as guirlandas de Natal ¢ f sonho que um pai teve com o filho. Somente um dos cegos airma que nifo tem necessidade da beleza, porque ndo pode anrecif_la. lim menine afiec.,, 2 que para ele a beleza é verde, pois toda vez. que ele gosta de uma coisa, dizem a ele que & verde: a grama, as arvores, as folhas, a natureza. B acrescenta: “Gosto de me vestir de verde”. Outro gosta do branco. Dizem que o branco € belo, a cor da pureza. Sto cegos congénitos habitando o mistério da cor. A segunda parte do livro¢ sobre 0 projeto La couleur aveugle (A cor cega), realizado em 1991. 0 problema da cor tinha aparecido de modo inesperado has falas dos participantes do projeto anterior. Muitas vezes 0 processo de perda da visto passa pela percepgao de diferentes cores ¢ a propria cegueira pode ser colorida, no sendo necessariamente pura escuriddo. Sophie Calle articula entao as narrativas dos cegos com aquelas de escritores cegos, como Jorge Luis Borges, e de artistas que trabalham com 0 monocromatismo, como Klein, Maleviteh, Manzoni, Rauschenberg, Reinhardt e Richter. Uma pessoa afirma que teve uma fase vermetha, seguida de uma azul, Hoje vé 0 preto ¢ 0 cinza. Outras citam 0 azul, o amarelo, o azul-verde, o marrom com reflexos cor de rosa. Hi referéncia a uma luminosidade vaga, fluida, frigil, quase incxistente, Fala-se também de um preto vazio, de uma espécie de bruma e de cintilagSes claro-escuro sem linhas ou contornos definidos. _ Na sequéncia do percurso investigative de Sophie Calle ha o terceiro projeto La derniére image (4 ilrima imagem), de 2010. Nele a artista se volta para a experiencia de pessoas que perderam subitamente a visdo e para o que clas viram pela ltima vez, Fotografias coloridas das pessoas entrevistadas sto seguidas de imagens fotogréficas que recriam a experiéncia narrada, Al- {gumas trazem o contetido da narrativa, outras os gestos do narrador, ou seja, as imagens motoras pelas quais ele expressou aquela experiéncia. As imagens iio entremeadas por piginas com o texto em Braille, branco sobre branco. AS falas sto diversas e se sueedem. Apos um conflito no trinsito, um motorista de taxi vé um homem descer do carro com uma arma na mio ¢ dar -Ihe friamente um tiro no oll esquerdo. Foi a iitima coisa que ele viu. Ele descreve a cena com grande precisio de detalhes. Outro homem conta que foi dormir sem prestar muita atengo a qualquer imagem. Quando acordou no dia seguinte, ndo via nada. Nao podia imaginar que aquela seria a ultima vez que enxergava, Outro brinca com seu filo, depois se deita ao lado de sua mulher. Antes de dormir, ele apaga a lampada, Ele acorda cego. A partir deste dia, ve apenas a luz, sem imagens definidas. Uma moga destaca a imagem que precedeu a cirurgia para a retirada de um tumor no eérebro. Fala do médico que a toma ‘nos bragos, como se ela fosse um bebé, ¢ canta uma cangao. O médico tem 03 olhos negros e um olhar duro, mas tem os gestos suaves. Ela desperta cega da anestesia, Outra mulher refere-se ao rosto de seu marido, cuja imagem ela guarda com riqueza de detalhes ¢ que é reativada quando ela o acaricia. Ela imagina que com o passar dos anos ele jé esteja grisalho, mas guarda sua imagem com GHGUEIRA E INVENGAO: cognigio, ate, pesquisa e aceasbiidade 2 cabelos castanhos, como quando ele tinha 39 anos. Ha também um homem que, antes de fazer uma cirurgia de risco, olha © nascer do sol pela varanda do quarto do hospital, como se fosse a tltima vez, Um jovem que nasceu cego dlosereve a imagem de um sonho. Ele dirige um automével preto conversivel, cont alta velocidade, em uma estrada & beira mar. Ele est de écuilos escuros, Jeans e camiseta. Do seu lado, uma mulher. No radio, 0 som de uma miisica jechno. Na sequéncia, a imagem trazida pela artista ¢ a de um menino de avental branco, andando na alameda de um jardim, Talvez seja a imagem do jovem sonhador. A cada situago narrada a artista propde uma espécie de visio, de liltima imagem, antes da perda da visio. Uma paisagem, uma Kimpada acesa, luna sequencia de imagens gestuais, A capa do livro, de um amarelo vivo, com o titulo em preto e em Braille, sem qualquer imagem, é o invélucro de um livro-obra de arte que pode ser experimentado e partilhado por pessoas que veem e que niio veem. Nos trés projetos, Sophie Calle experimenta diferentes modos de reinvengao ¢ tradugio (Jos relatos em imagens. Hé imagens embagadas, limpidas, opacas, fluidas, parciais. Imagens de imagens, sem que haja uma regra de traducao. 0 livro nos {iz perceber que os cegas, tanto congénitos quanto os que perderam a visio, (Gin imagens ¢ experiéncias singulares. Rostos tinicos, experiéncias diversas © extremamente concretas. Uma série de imagens bastante distintas atesta que filo ha um padro ou algo como “o cego” — uma figura identitaria. O livro revela uma multiplicidade de cegueiras e abre problemas importantes como ‘i presenga de imagens em pessoas cegas, imagens constituidas pelos diferen- {es sentides, a poténcia da linguagem para produzir imagens, 0 hibridismo dias imagens de cegos e de videntes e 0 ciclo que articula imagens mentais © fotogrificas, em um processo inventivo de produgao. Com seus textos e imagens, o livro faz pensar sobre o amplo e mesmo inesgotvel universo de cexperigneias que caracteriza a vida de pessoas cegas. Sophie Calle trabalha com cegos buscando compertilhar sua experiéncia estender a partilha ao leitor do livro. Vai de Paris a Istambul, do hospital ‘40 mar, do amor & dor, do tato ao sonho, da realidade a fantasia. Elementos estéticos, mnésicos, técnicos ¢ histéricos participam do processo de criagao imagética. Como uma artista-pesquisadora, a investigagao ¢ realizada por circuitos inventivos que exploram diferentes camadas e imagens da cegueita. Situada no campo da psicologia cognitiva, minha pesquisa com cegos nbém se faz por circuitos inventivos. Trabalhei de modo a evitar a iden- lificagdo com um iinico repertério de conhecimentos, cultivando a abertura para incorporar diferentes saberes, bem como a liberdade de hibridagio de fontes ¢ de experimentagéio permanente. Como aponta Suely Rolnik (2014) a0 discutir 0 procedimento antropoftigico inspirado em Oswald de Andrade,

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