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Deus joga aos dados

SOL ONLINE, 21 de Maio, 2012 por Carlos Fiolhais

Um artigo recente da Nature assinado por um jovem estudante de


doutoramento britânico e pelos seus dois supervisores está a fazer correr
rios de bits numa boa parte da comunidade dos físicos (Matthew Pusey,
Jonathan Barrett e Terry Rudolph, On the reality of the quantum state,
6/5/2012).

Trata-se de um teorema (isto é, de uma afirmação demonstrada


matematicamente) relativa à chamada ‘função de onda’, o meio matemático
que os físicos usam para descrever de modo probabilístico a realidade no
quadro da teoria quântica. O teorema diz que é verdade uma de duas coisas:
ou a função de onda é real, isto é, corresponde directamente a um estado da
realidade física, não se limitando a reflectir a nossa ignorância sobre uma
realidade escondida, ou então existem acções à distância entre estados
separados no espaço e no tempo que a teoria quântica não descreve e que
nunca, aliás, foram vistas.

As discussões sobre a teoria quântica são tão velhas como a teoria. Nos
anos 20 e 30 do século passado, Albert Einstein contestou activamente a
visão probabilística proporcionada por essa teoria. Foi por isso que afirmou
metaforicamente: «Deus não joga aos dados com o Universo». Para ele
devia haver uma realidade objectiva da qual a função de onda só dava uma
pálida ideia. Não se cansou de apresentar dificuldades sucessivas à teoria
quântica. Mas outro génio, Niels Bohr, conseguiu responder sempre, criando
uma escola que acabou por prevalecer. Um dos feitos de Bohr consistiu,
ironicamente, em usar a teoria da relatividade de Einstein para apontar um
erro nos argumentos do seu rival. Eram dois sábios à altura um do outro.

A teoria quântica parecia de início estranha, mas foi-se entranhando (como


disse Fernando Pessoa da Coca-Cola: «Primeiro estranha-se e depois
entranha-se»). Hoje, os físicos estão a procurar novas aplicações
(computadores quânticos e criptografia quântica) da velha teoria, aplicações
baseadas precisamente nos aspectos mais estranhos. O artigo britânico não
vem ressuscitar a visão de Einstein, mas lança nova luz sobre a
interpretação de Bohr. Ficamos a saber que, se a função de onda não for
real, então a teoria quântica fica em polvorosa. Ninguém acredita que uma
teoria que tem dado tão boas provas seja assim tão frágil...

tcarlos@uc.pt

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