STEVEN JOHNSON
Complexidade urbana e enredo romanesco
1. O enigma da forma urbana
Numa passagem famosa de A condigao da classe operéria na Inglaterra, Engels
conduz o leitor por um passeio em Manchester e mostra como uma determinada
politica se sedimenta na propria topografia das ruas:
A cidade & construida de tal maneira que uma pessoa pode residir nela anos e anos
¢ percorré-la diariamente sem deparar com um baitro operario ou ter contato ape-
nas com operdrios ~ quer andando a passeio ou indo para o trabalho, Isso se deve
sobretudo ao fato de que, seja por um acordo técito e inconsciente, seja por inten
‘os bairros habitados pela classe operaria sao nitidamente se-
_] Sei que este modo hipécrita de construgio é mais
des cidades: sei também que os varejistas, devido
consciente ¢ explicita,
parados dos da classe média. (
ou menos comum a todas as gran‘
A natureza de seus negécios, devem tomar conta das ruas principais; sei que nessas
fe que o valor do terreno nas redondezas € maior do que
tuas hd casas bastante boas,
i, como em Manchester, uma exclusdo tao sistematica
um véu téo delicado sobre tudo 0
nas ruas afastadas; mas nunca
da classe operdria em relagao as ruas principals,
que pode ofender os olhos ¢ os nervos da burguesia. Eno entanto Manchester nao é866
Narrar a modernidade
construida muito regularmente nem segundo prescrigdes oficiais, obedecend, py,
contririo, mais ao acaso do que qualquer outra cidade; ¢ levando em conta 6 que 5
classe média afirma com grande zelo, a saber, que 08 operirios passam bem, ging,
assim creio que os fabricantes liberais, os big wigs de Manchester nao sao totalmente
inocentes deste vergonhoso método de construgio.
contradi¢ées, em unissono com as
Nesse trecho, quase ouvimos o ribombar das
“manufaturas sombrias ¢ satanicas” de Manchester. A cidade ergueu um cordon
sanitaire para separar os industriais capitalistas e a miséria por eles criada, iso.
lando a sordidez dos bairros operarios; mesmo assim, esse ocultamento vem 4
luz, sem “intengéo consciente e explicita’, Manchester parece deliberadamente
projetada para esconder suas atrocidades; no entanto, seu desenvolvimento fo)
muito mais fortuito do que o de qualquer cidade anterior. Como escreve Steven
Marcus em sua fundamental reconstituigao do periodo de permanéncia do jovem
Engels em Manchester:
0 ponto & que essa disposigao urbana espantosa e cruel ndo pode ser plenamente
entendida como resultado de uma conspiracao, e nem de um projeto deliberado,
s. E um estado de coisas grande ¢
mesmo sendo controlada por seus benefici
complexo demais para que pudesse ter sido pensado previamente, para que preexis-
tisse como ideia.
Lendo as descrigdes de Engels cerca de 150 anos mais tarde, a combinagao de ordem
anarquia se mostra imediatamente familiar. Na verdade, dispomos de uma termi-
nologia para descrever esse tipo de comportamento; o que Engels observa nas ruas
de Manchester é, utiliz istema de
auto-organizagao. Como escreve Thomas Schelling em seu classico tratado sobre a
teoria dos jogos, trata-se de um macrocomportamento gerado pelas micromativa-
indo linguagem da teoria da complexidade, um
goes de milhares de atores inconscientes. Desde Lewis Mumford e Jane Jacobs, 0s
estudiosos da urbanizacio sabem que as cidades possuem vida propria, com bairtos
que se adensam sem que nenhum Robert Moses imponha um projeto de cima.
4 F-Engels, La condizione della classe operaia in Inghilterra, Roma: Luigi Mongini, 1899, PP. 3637
(ed. bras. A condigio da classe openiria na Inglaterra, trad, Rosa Camargo Artigas ¢ Regina
do Forti, Sio Paulo: Global, 1986).
2S. Marcus, Engels, Manchester e la classe lavoratrice, Tarim: Bi
audi, 1980, p. 173-Complexidade urbana e enredo ramanesco
Quais sao os tracos que os sistemas de auto-organizagao tem em comum? Em
termos mais simples, sio sistemas que resolvem os problemas recorrendo nao a
um Unico “executivo” inteligente, e sim a grandes quantidades de elementos rela-
tivamente esttipidos. Sao sistemas que se configuram de baixo para cima, e nao o
contrario. Para usar uma linguagem mais técnica, sao sistemas de atores difusos
que dao vida a comportamentos coletivos nao previsiveis a partir do comporta-
mento delimitado de c:
ida ator individual. Cada um deles segue regras simples,
e utiliza os encontros acidentais ¢ a retroalimentagao para modificar sua propria
ago. A retroalimentagao geralmente consiste em identificar esquemas de acdo no
comportamento do outro. Assim, para compreender esses sistemas, & necessario
mudar de escala: os atores operantes numa determinada escala geram um com-
portamento que se coloca numa ordem de escala superior. As formigas dio vida
a col6nias; os habitantes urbanos dao vida a bairros,
Essa maneira de ver as coisas se tornou patriménio comum apenas em data
recente; Engels, percorrendo as ruas de Manchester em 1840, ha mais de um século,
procurava se orientar na hegeliana “noite em que todos os gatos sio pardos’, em
busca de um culpado por aquela diabélica organizacio urbana, onde, porém, re-
conhecia a evidente falta de planejamento. Se das ruas da cidade surge uma ordem,
raciocina Engels, deve existir alguma forga inteligente que a cria: neste caso, os
industriais de Manchester, os poderosos nao “totalmente inocentes”.
‘A desorientacao de Engels em Manchester também ocupa um papel fundamen-
tal no romance, seja nas epopeias urbanas oitocentistas de Dickens e Flaubert, seja
em obras mais experimentais, como Mrs. Dalloway e Nadja, Essas obras podem ser
consideradas tentativas engenhosas de resolver 0 enigma exposto por Engels em
A condigao da classe operdria na Inglaterra: tomar a nova experiéncia e coloca-la
em forma narrativa, tal como os romances de Jane Austen haviam codificado a
experiéncia do capitalismo agrario no come¢o do século xx, ou como os romances
cyberpunk dos anos 1980 propuseram uma nova forma literdria adaptada ao mundo
desencarnado ¢ mutavel da revolugio dig
diante das cidades em processo de auto-organiza¢ao, o problema era grave porque
a forma do romance havia se especializado em apresentar a multiplicidade dos
destinos individuais ou a vida de familias interligadas. Como escreveu Raymond
Williams, os romances tradicionais eram “comunidades cognosciveis”: narravam
. Para os romaneistas que se viam.
histérias de namoros e casamentos, acompanhando de perto as vissicitudes de uma
duzia de personagens que se conheciam entre si. O paradigma austeniano consiste
em encontros e conversas pessoais. Mas 0 que Engels viu nas ruas de Manchester
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