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Clarice Lispector, a travessia da linguagem


Dezembro 11, 2014 por Milton Hatoum

Em 1320, aos dois meses de idade, Clarice Lispector fez sua primeira grande travessia da distante
Rússia ao nordeste do Brasil. Filha de imigrantes judeus ucranianos, Clarice cresceu sob o calor de
Recife (Pernambuco), onde viveu dez anos; perdeu a sua mãe em 1930 e, dez anos depois, se mudou
com seu pai e suas duas irmãs para o Rio de Janeiro.
A partir de 1944, quando se casou com um diplomata, viveu em Belém (Pará), nos Estados Unidos e
em vários países da Europa; durante sua larga permanência no exterior, com temporadas no Brasil,
escreveu e publicou dois romances (O lustre e A cidade sitiada) e um livro de contos. Em 1959,
quando voltou definitivamente ao Rio, já era considerada uma das mais notáveis escritoras
brasileiras.
Recife, a cidade da infância e da juventude, foi a fonte dos primeiros escritos, de vários contos de
Felicidade Clandestina (1971) e de cronicas publicadas no Jornal do Brasil. O drama desgarrador do
imigrante nordestino aparece também na figura de Macabéa, uma pobre moça de Maceió (Alagoas), cujo
destino trágico no Rio de Janeiro è um dos temas de A hora da estrela, publicado em 1977, quando a escritora
morreu, aos 56 anos.
Clarice estreou em 1943 com o romance Perto do coração selvagem, título que extraiu do Retrato do artista
quando jovem, de James Joyce. Naquela época, a literatura brasileira já contava com uma tradição, de
Machado de Assis à arte vanguardista do movimento modernista de 1922. Na década seguinte reforçaram
essa tradição pelo menos dois livros: O quinze (1930) de Rachel de Queiroz, e São Bernardo (1934), de
Graciliano Ramos. Mas, quando Clarice Lispector e Guimarães Rosa apareceram na década 1940, a prosa
brasileira deu um giro. Já em 1943, António Cândido advertiu imediatamente a novidade e a ousadia do livro
da jovem autora.
Linha divisória das aguas na literatura brasileira, Perto do coração selvagem foi considerado por Cândido
“uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios pouco explorados, forçando-
a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou
uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos
labirintos mais retorcidos da mente”.
Esse comentário se ajusta praticamente a toda obra de Clarice, marca pela busca do sentido da vida, na qual
o feito mais prosaico pode desencadear um sentimento patético, vertiginoso, atravessado por imagens
cadentes e ideias abstratas.
Quase tudo o que ela escreveu parece sondar o coração selvagem da vida, reino de ambiguidades latentes,
de transgressões insuspeitas, com a barata morta que a protagonista transforma em hóstia consagrada no
romance A paixão segundo G.H. Busca também de uma linguagem, não menos dramática que a vida, na
tensão e intensidade com a qual os narradores se submergem no poço obscuro da paixão e do desejo, do
amor e do destino do ser, inseparáveis da morte.
Os dramas dos narradores e personagens de Clarice são também dramas de uma linguagem que expressa,
com o ritmo e a cadencia de um estilo muito pessoal, o lado agónico ou extático dos seres que evoca; dramas
quase sem trama, porque a Clarice interessa menos o enredo e o tempo cronológico que a forma descontinua
e fragmentada de expressar uma experiencia interior, um transe visionário ou, inclusive, um pensamento ou
conceito.
É provável que o fluxo de consciência e a fina ironia devam algo à obra de Joyce e à de Virgínia Woolf; mas
nenhuma escritora brasileira foi tão longe e de uma maneira tão radical em direção ao abismo da
interioridade.
Benedito Nunes, o mais notável critico de Clarice Lispector, sublinha que “o ímpeto transgressor dos
personagens femininos de alguns romances – Perto do coração selvagem (1943), A cidade sitiada (1949), A
maça no escuro (1961) e certos contos de Laços de Família (1960) – talvez seja a marca invertida da submissão
feminina”. Por outro lado, “o despojamento pessoal de G.H. neutraliza a diferença entre o masculino e o
feminino, absorvida numa condição humana geral em contraste com a animalidade e a vida orgânica. O
romance póstumo Um sopro de vida (1978) narrado por dois personagens – um homem e uma mulher –
persegue o mesmo pathos da morte e a loucura que recorda os personagens dos outros romances.
A mulher que em 1975 participou de um congresso de bruxaria na Colômbia era esquiva, terna, belíssima, de
uma beleza estranha, com seu rosto anguloso, os olhos pouco rasgados, vivos e perplexos, que parecia olhar
para fora, para o céu e o inferno, mas sobretudo para dentro.
A linguagem foi, de fato, sua travessia maior e a mais arriscada: a paixão pela linguagem, a tendência tenaz,
incessante e obsessiva ao dizer o inefável, o que nos toca mais a fundo e fugazmente: o sentido mesmo da
nossa existência. “A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto
com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível” (A paixão segundo G.H.).
“A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A verdade é irreconhecível. Portanto não existe?
Não, para os homens não existe”. (A hora da estrela).

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