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html 28/11/2018
Em 1320, aos dois meses de idade, Clarice Lispector fez sua primeira grande travessia da distante
Rússia ao nordeste do Brasil. Filha de imigrantes judeus ucranianos, Clarice cresceu sob o calor de
Recife (Pernambuco), onde viveu dez anos; perdeu a sua mãe em 1930 e, dez anos depois, se mudou
com seu pai e suas duas irmãs para o Rio de Janeiro.
A partir de 1944, quando se casou com um diplomata, viveu em Belém (Pará), nos Estados Unidos e
em vários países da Europa; durante sua larga permanência no exterior, com temporadas no Brasil,
escreveu e publicou dois romances (O lustre e A cidade sitiada) e um livro de contos. Em 1959,
quando voltou definitivamente ao Rio, já era considerada uma das mais notáveis escritoras
brasileiras.
Recife, a cidade da infância e da juventude, foi a fonte dos primeiros escritos, de vários contos de
Felicidade Clandestina (1971) e de cronicas publicadas no Jornal do Brasil. O drama desgarrador do
imigrante nordestino aparece também na figura de Macabéa, uma pobre moça de Maceió (Alagoas), cujo
destino trágico no Rio de Janeiro è um dos temas de A hora da estrela, publicado em 1977, quando a escritora
morreu, aos 56 anos.
Clarice estreou em 1943 com o romance Perto do coração selvagem, título que extraiu do Retrato do artista
quando jovem, de James Joyce. Naquela época, a literatura brasileira já contava com uma tradição, de
Machado de Assis à arte vanguardista do movimento modernista de 1922. Na década seguinte reforçaram
essa tradição pelo menos dois livros: O quinze (1930) de Rachel de Queiroz, e São Bernardo (1934), de
Graciliano Ramos. Mas, quando Clarice Lispector e Guimarães Rosa apareceram na década 1940, a prosa
brasileira deu um giro. Já em 1943, António Cândido advertiu imediatamente a novidade e a ousadia do livro
da jovem autora.
Linha divisória das aguas na literatura brasileira, Perto do coração selvagem foi considerado por Cândido
“uma tentativa impressionante para levar a nossa língua canhestra a domínios pouco explorados, forçando-
a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou
uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar em alguns dos
labirintos mais retorcidos da mente”.
Esse comentário se ajusta praticamente a toda obra de Clarice, marca pela busca do sentido da vida, na qual
o feito mais prosaico pode desencadear um sentimento patético, vertiginoso, atravessado por imagens
cadentes e ideias abstratas.
Quase tudo o que ela escreveu parece sondar o coração selvagem da vida, reino de ambiguidades latentes,
de transgressões insuspeitas, com a barata morta que a protagonista transforma em hóstia consagrada no
romance A paixão segundo G.H. Busca também de uma linguagem, não menos dramática que a vida, na
tensão e intensidade com a qual os narradores se submergem no poço obscuro da paixão e do desejo, do
amor e do destino do ser, inseparáveis da morte.
Os dramas dos narradores e personagens de Clarice são também dramas de uma linguagem que expressa,
com o ritmo e a cadencia de um estilo muito pessoal, o lado agónico ou extático dos seres que evoca; dramas
quase sem trama, porque a Clarice interessa menos o enredo e o tempo cronológico que a forma descontinua
e fragmentada de expressar uma experiencia interior, um transe visionário ou, inclusive, um pensamento ou
conceito.
É provável que o fluxo de consciência e a fina ironia devam algo à obra de Joyce e à de Virgínia Woolf; mas
nenhuma escritora brasileira foi tão longe e de uma maneira tão radical em direção ao abismo da
interioridade.
Benedito Nunes, o mais notável critico de Clarice Lispector, sublinha que “o ímpeto transgressor dos
personagens femininos de alguns romances – Perto do coração selvagem (1943), A cidade sitiada (1949), A
maça no escuro (1961) e certos contos de Laços de Família (1960) – talvez seja a marca invertida da submissão
feminina”. Por outro lado, “o despojamento pessoal de G.H. neutraliza a diferença entre o masculino e o
feminino, absorvida numa condição humana geral em contraste com a animalidade e a vida orgânica. O
romance póstumo Um sopro de vida (1978) narrado por dois personagens – um homem e uma mulher –
persegue o mesmo pathos da morte e a loucura que recorda os personagens dos outros romances.
A mulher que em 1975 participou de um congresso de bruxaria na Colômbia era esquiva, terna, belíssima, de
uma beleza estranha, com seu rosto anguloso, os olhos pouco rasgados, vivos e perplexos, que parecia olhar
para fora, para o céu e o inferno, mas sobretudo para dentro.
A linguagem foi, de fato, sua travessia maior e a mais arriscada: a paixão pela linguagem, a tendência tenaz,
incessante e obsessiva ao dizer o inefável, o que nos toca mais a fundo e fugazmente: o sentido mesmo da
nossa existência. “A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto
com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível” (A paixão segundo G.H.).
“A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A verdade é irreconhecível. Portanto não existe?
Não, para os homens não existe”. (A hora da estrela).