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Introducao aos Discursos sobre a primeira década de Tito Livio de Nicolau Maquiavel Maquiavel tinha 29 anos em 1498, quando iniciou sua articipacao na vida publica. Eleito pelo Grande Conselho, 6rgio maior da estrutura de governo de sua cidade, foi nomeado secretério da Segunda Chancelaria, e também secreticio dos Dez da Liberdade e da Paz. Eram empregos com fungées diversas. Assim, o Primeiro devia ser exerci- do em Florenca junto aos gabinetes da aclministracao, en- quanto segundo implicava viagens e visitas a outras ter- tas, Nosso autor soube se valer dos dois para adquirit umn extenso conhecimento da politica, Conheceu papas ¢ reis, freqiientou homens audazes e violentos, como César Borgia, sobre quem escreveri mais tardle, Nesses anos de atividade intensa e viagens, o secretério florentino, como gostava de ser chamado, praticamente ndo escreveu. Co- nhecemos desse periodo, além de relatos de trabalho, apenas dois poemas politicos: 0 Primeira Decenal ¢ o Segunda Decenal, Fazer versos, no entanto, era quase uma obrigagio para o funciondrio de uma cidade como Florenga, que tivera como ocupantes de cargos publicos humanistas famosos, os quais legaram muitos escritos para a posteridade. Exercitar-se como poeta enguanto rea- lizava complexas tarefas politicas nao prenunciava neces- i uma catreira de escritor. xix A primetra década de Tito Hivio © ano de Gidouxe noticias desageadaveis para nosso jé experiméntado funciondtio. Dessa vez eram as tropas espanholas que ameagavam invadir Florenca. Ma~ quiavel tentou organizar uma milicia de cidadaos, de acordo com sua concepcao de que cabe aos moradores de uma cidade defendé-la contra os perigos externos. Mas 0 inimigo era forte e bem armado. Em 31 de agosto, Piero Soderini, que governava a cidade na condigio de Gonfaloneiro, cargo vitalicio da Reptblica, aceitou aban- dlonar seu posto para evitar © saque da cidade pelos exér- citos estrangeiros. Os partidarios dos Medici, familia que no século anterior havia governado a Gdade por muitas décadas, rapidamente se apossaram dos postos-chave da administragao da cidade, até decretarem 0 fim do regime republicano em ibro do mesmo a, ENT ho- vertibro, Maquiavel foi destituido de suas funcdes. No comego, ele ainda guardou a esperanca de ser aproveitado pelos novos senhores da cidade, uma vez que servira lealmente & patria durante muitos anos e se mostrara um 6timo funciondrio. Em 19 de fevereiro de 1513, no entanto, suas expectativas mais imediatas se des- fizeram. Acusado de ter participado de uma conspirac2o contra os Medici, Maquiavel foi preso ¢ torturado. Ao sair da prisdo, em 13 de margo de 1513, refugiou-se em sua pequena propriedade de Santa Andrea e escreveu a seu amigo Vettori: “Quero que tenhas, em relacio a meus problemas, 0 prazer de saber que os enfrentei de forma tdo franca que eu proprio me aprecio por isso.” Embora nao tenha abandonado nunca a esperanca e avontade de voltar a servir a patria, Maquiavel canalizou pata a escrita seu imenso talento. No periodo que se se- guiu a sua destituicao, Vettori € o destinatario de uma cor- x Introdugé. respondéncia rica ¢ Nosso autor fala de po- ica e de sua nova vida; 0 amigo responde prudente- mente, nao alimentando a ilusdo de que seria possivel ajuda-lo em seus projetos. Nesse periodo de desgraca ¢ isolamento foi concebida uma das obras mais instigantes da filosofia politica: O principe, De seu refigio, Maquiavel escreveu para Vettori: “Por- que Dante disse que nao hé ciéncia sem que seja regis- trado 0 que se aprendeu, anotei aquilo que em sua con- versacdo me pareceu capital e compus um opiisculo, De Principatibus, no qual aprofundei o quanto pude as re- flexdes sobre esse objeto, discutindo o que é um prin- cipado, de quantas espécies sio, como sao adquiridos e como sao mantidos por que so perdidos.”* A desgraca pessoal, que © condenaria a se distanciar dos locais de decisao dos destinos de sua cidade, foi matéria para uma reflexdo cada vez mais lécida sobre a politica de seu tem- po € sobre a natureza dos negécios humanos em todos 0s tempos. Quando ficou claro que o funciondrio nao te- ria lugar no novo poder, 0 escritor ganhou terreno e Ma- quiavel se consolidou como uma das maiores inteligén- cias de sua época, Ao terminar O principe, Maquiavel ja se lancara em uma’ Outra tarefa de grande folego. Se, no aff de recupe- rar seu lugar, ele acreditara poder influenciar 0s novos se- nhores de Florenga € mostrar-lhes suas capacidades de- 2. Cara a Francesco Vettori, 10 de dezembro de 1513, In: MACHIAVEL- UL Letere Milio, Fleinelli, 1981, pp, 301-6 Xx A primeira década de Tito tio anos seguintes 0 piiblico dos Discursos sobre a primeira ' década de Tito Livio (1513-1517) seria completamente di- ferente. Na casa da familia Rucellai, em Florenga, reunia-se uum grupo de jovens ¢ in is que discutia os mais di- versos assuntos: poesia, literatura, politica, o passado glo- rioso de Roma ¢ as agruras dos tempos sombrios do co- meco de século, Nesse ambiente, conhecido como Orti Oricellari, Maquiavel foi introduzido em 1516) Nele leu e discutiu seus Discursos e mais tarde seu Arte da guerra se lembrarao desse encontro como um fato decisivo para sua formagao € para a construgdo dos caminhos politicos que procurardo trilhar nos anos seguintes. Qs Discursps, como sera conhecida sua obra depois, tém, no entanto, raizes muito mais profundas do que as situadas na crise pela qual passava ‘no comego do iT, DesileG S€culo XIIL as discusses em torno da melho# Giganizacdo institucional para as cidades do- minaram o pensamento de juristas, professores de retorica. As cidades geral submetidas 40 poder do Império, mas essa depen- déncia ndo significava que ndo gozassem de relativa li- berdade em face dos poderes enfraquecidos do imperados, beneficiando-se da disputa constante entre 0 Impétio ¢ a Igreja catolica, Nesse quadro, era necessario encontrar uma saida para a ordenacio institucional, que a0 mesmo tempo refletisse © equilibrio precirio de forcas que dominavam a Itdlia e respondesse a0 desejo afirmado por muitas cidades de se governar de modo independen- te. Muito cedo a referéncia a escritores da At lade ea discussiio sobre a origem das instituigSes politicas se be- —— Inerodugao neficiaram do recurso a autores que até entao haviam sido deixados de lado pelos pensadores medievais, como Tito Livio, ou eram conhecidos vagamente, como Aristételes ¢ Platio. Com 0 impulso inicial dado por aqueles que se preo- cuparam em formular uma saida para o impasse vivido elas cidades que reivindicavam sua independéncia mas permaneciam ligadas as forcas decadentes da politica ita- liana, recorrer a0 passado para pensar 0 presente trans- formou-se na estratégia do Renascimento. Desde Petrarca (1304-1374) iniciou-se um movimento de retorno aos classicos do pensamento greco-romano, que alimentou a revolucao operada pelos italianos em campos tdo variados quanto literatura, pin- tura, escultura € filosofia’. Autores como Cicero serviram para mostrar que era possivel pensar a politica a partir de valores diferentes daqueles que dominaram a Idade Mé- ~ dia. Embora nao possamos reduzir 0 periodo a apenas um autor e a uma maneira de compreender os assuntos humanos, nao podemos desconhecer que, para uma boa parte da filosofia medieval, a forma de vida superior era a daqueles que se dedicavam 4 contemplacao das verda- des eternas ¢ as obras de glorificagao de Deus, Homens dedicados 4 agio e a tatar da organizacao das instituigées as cidades eram importantes apenas na medida em que garantiam a ordem e a paz, para que aqueles que se de- dicavam & contemplacio pudessem viver de maneira dig- na e sem perigo excessivo. A aco politica era necessaria, 3-0 estudio mais influente sobre 0 movimento segue sendo: HANS BA- RON, The Crisis ofthe Early laltan Renaissance, Princeton, Princeton Univer- sity Press, 1966,

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