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Adeline Rucquoi HISTORIA MEDIEVAL DA PENINSULA IBERICA OO cofmais oula3 2~A RECONQUISTA COMO MITO UNIFICADOR Se no século Xit ainda cxistia uma «Espanhan, esta desapareceu na realidade no decurso do periodo seguinte. A unidio das coroas de Castela e de Aragio s6 péde ser feita sob a forma de uma justaposigdo dos reinos ¢ das entidades territoriais que os constituiam; a da coroa de Portugal com a coroa de Espanha em 1580'acabou numa guerra ¢ cisdo definitiva dos dois Estados em 1640. Os reis da Peninsula Ibérica, no decorrer da Idade Média, ndo pensa- ‘vam no poder em termos de fixagdo territorial, como o puderam fazer os seus vizinhos do Norte, que chegaram a unir indissoluvelmente uma dinastia ¢ um territério, © poder dos principes hispnicos vinha-lhes sobretudo de uma missdo divina, a da reconquista da peninsula aos infigis para a entregar A cristandade. Fosse em Aragio, em Castela ou em Portugal e, indirectamente em Navarra, 0s reis eram justificados por essa tarefa, ¢ a extensio do seu territério as terras retomadas aos Mu- gulmanos constituia apenas a prova da sua submissdo a Deus e aos seus mandamentos. Esta concepedo de poder, que é igualmente uma justifica- ‘do para os principes que 0 exercem, foi elaborada no decorrer do século XIL e deve muito ao direito romano ¢ 4 nog&o de imperium. Tinha por corolério um desenvolvimento precoce dos meios fiscais, administrativos, militares ¢ mentais que asseguravam aos seus detentores um poder rara- mente contestado € tendente ao-absoluitismo. A unificagZo ou, mais exactamente, a «uniformizecton'dos territérios submetidos aos princi- pes, 86 exerceu um papel primordial na medida em que s6 era procurado ‘© reconhecimento desse poder: o poder central queria ser reconhecido obedecido por todos, independentemente da lingua, dos costumes, dos sistemas politicos, da representagao, da organizacao social ou econdmica ¢, mesmo, do regime fiscal de cada um, A formula instaurada nos privi- Lgios ¢ edictos reais dos séculos XV e XVI em caso de litigio e de ordens contraditérias: Obedézcase pero no se cumpla — «que soja obedecido, mas no posto ém pritica» -, indica perfeitamente que o primado cabia & submissio a vontade real, porque emanava do rei e este devia ser obede- cido, mesmo que depois 2 ordem no pudesse ser cumprida. A guerra contia.o infiel, a reconquista, que se torna uma guerra santa a partir dos fins do século Xi, é uma realidade e tem uma histdria. Mas foi igualmente um mito em que se baseou a justificagao do poder dos reise tem uma fungdo unificadora. Para além das diferencas ¢ das rivalidades, das guerras entre Portugal e Castela, entre Castela ¢ Aragio ou Navarra, para além ainda da flutuago das relagdes de uns e outros com o reino de Granada, todos os cristés do Norte da peninsula se identificavam na luta contra o Isldo, participando de um mesmo «projecton militar, reli- wioso © econémico, projecto «existencial» que se tornou «essencialo. A reconquista, mito ¢ realidade, fundou assim ao mesmo tempo um conceito de poder e.uma pratica deste, uma hierarquizagao da sociedade em fungdo de critérios militares, a organizagao de um espago que no era fechado, ¢ uma visdo especifica das relagdes entre 0 cristdo e 0 seu Criador, que colocava a Igreja numa situag30 de sujeigdo ao poder civil. Se-o tema da reconquista & comum aos reinos eristios do Norte da peninsule, os muculmanos de Granada compartilharam-no, a maioria das ‘vezes como seu objecto, mas também como actores de um ideal de guerra santa que thes iria deixar a gléria passada de Al-Andalus. Existia, ndo obstante, uma excepgdo a esta regra, que é de monta, Os antigos condados dos Pirenéus orientais reunidos pelo conde de Barcelo- ra, que taviam criado uma identidade sob 0 nome de Catalunha depois de se unirem ao reino de Aragio, nio participavain deste projecto. Fitis a uma longa tradigio, os seus interesses levararm-nos a norte dos Pirenéus ¢ a bacia do Mediterrineo, Meso quando os Cataldes utilizaram a capa- idade militar dos Aragoneses para levar a bom termo a sua politica econdmica e comercial, ou transformaram-os reinos de Valéncia e de Aragio em mercado interno onde escoavam as suas mercadorias, nao conseguiram integrar:se no conjunto hispanico; a reconquista como tal foi-lhes alheia e ndo exerceu qualquer papel na estruturagao social ou no conceito de poder, como foram definidos a partir do século XII A constituigao ¢ a evolucdo posterior da Catalunha no podem ser com- preendides fora da sua unidio a coroa de Aragio, mas foram feitas fora dela ou contra ela, 1, Uma sociedade organizada para a guerra Embora a formula de «uma sociedade organizada para a guertay tivesse ja sido escolhida por duas vezes pelos historiadores anglo-saxdes, para definir as sociedades ibéricas medievais, a guerra como tal e as suas, consequéncias ndo foram objecto de profundos estudos, a no ser nos 216 seus aspectos de flutuagio das fonteiras, de organizagdo das financas reais e no caso de Portugal. A guerra, no entanto, € o facto dominante que estrutura a sociedade e sua economia na Peninsula Ibériea medieval a tal ponto, que Jean Gautier Dalché nao hesita em falar de «a guerra como indistrian.'A guerra, como vimos, ndo é uma situagdo permanente, ¢ 0s periodos de tréguas em que se estabelecem ou restabelecem relagdes comerciais ¢ politicas sio entrecortados por fases de luta declarada, operagdes militares continuas ou periédicas, ou de inquietago, consoante 08 casos. Estd, todavia, sempre presente na vida quotidiana e no horizonte mental hispénicos: a sociedade ibérica é uma sociedade de fronteiras e, como tal, caracteriza-se por uma forte mobilidade social, onde as possibi- lidades de ascenséo sio tao numerosas como os riscos incorridos. Na medida em que a guerra de reconquista é um cometimenito proprio de todos os Espanhéis, no pode ser considerada uma arte reservada aos todo-poderosos, ao grupo de detentores de parcelas de poder que adop- taram progressivamente um cédigo de valores cavalheirescos. Todos nela participavam fisicamente, com ou sem cavalo, ou financeiraménte pela concessio de contribuigdes ao rei, servicios castelhanos, ayudas navarras, de dois nonos da dizima eclesidstica, quando nao era o titulo das bulas de cruzadas. Em troca, todos tiravam proveito dai, proveito que ndo era s6 0 ‘orgulho nacional, embora este nao deva ser esquecido; nos principios do século XIll, 0 glosador Vicente de Expanha afirmou bem alto que os Espanhdis ndo deviam nada a ninguém - ou seja, ao papa e ao impera- dor -, pois haviam conquistado'o seu’solo com 0 proprio sangu © proveito econémico nao deve ser desprezado, na medida em qué aqueles que server 0 rei dividem os despojos obtidos depois de retiradé tum quinto que reverte para a coroa, 4 razdo de duas partes para aquele que possui um cavalo ~ 0 caballero ~ e uma parte para aquele que serve & pé~0 pedn. Por outro lado, tanto no século XII como no XY, as terras reconquistudas so «repartidas» entre os cristaos, grandes ¢ pequenos. Quanto aos proveitos religiosos, foram acrescentados a estes quando, em 1102, o papa Pascoal II assimilou a reconquista as cruzadas ¢ proibiu 0s Espanhiis de atacar os infigis em Terra Santa, As indulgéncias atribuidas 4 partida em cruzada podiam ser ganhas «no lugarn, ¢ aqueles que perdiam a vida durante as campanhas contra os infigis tinham 0 paraiso assegurado, pois, tratando-se de uma guerra santa, beneficiava de uma justificagéo importante, peso da nobreza As campanhas desencadeadas pelos reis a partir de Oviedo, Ledo, Compostela ou Barcelona durante a Idade Média interessavam essencial- 217 mente a uma nobreza que, possuindo as terras, vivia frequentemente no meio da realeza. Estes criados do rei — que, no vocabulério novo intro- duzido no fim do século XI pelos cluniacenses por altura da reforma gregoriana, fara deles vassalos (vasallos), constituem 0 niicleo mais anti- go da nobreza na Espanha dos fins da Idade Média Esta nobreza, que reagrupava 0s poderosos ow magnates, os ricos hombres, exercendo um cargo pliblico - uma honor -, ¢ os nobres em geral ou infanzones, possuia dominios sobre os quais exercia direitos senhoriais e para quem trabalhavam os dependentes. No entanto, grande parte dos seus recursos provinha da coroa, isto nos séculos XII e XIIL O servigo militar que prestava através dos homens dos seus dominios era, com efeito, um servigo assalariado: as contas reais na época de Sancho IV de Castela, no final do século Xt, mostram que os nobres recebiam um soldo durante as campanhas militares, sold que podia ser reduzido ou no concedido se 0 nobre deixava as hostes reais antes do fim das ope- rages ou se ndo participava nelas, O servigo militar nao era, portanto, prestado ao rei em resultado de um contrato de ajuda mitua: era remu. nerado por este sob forma de salirio e de participagdo nos despojos. Por outro lado, a coroa forneciz 4 nobreza nos séculos XII e XIN, tanto em Castela como em Aragio e em Portugal outros recursos, confiando-Ihe sob forma de honores e de fenencias 0 governo de certas circunscrigdes territoriais, quer se tratasse de cidades quer de regides por vezes extensas nos limites dos antigos reinos; mesmo que, neste iltimo caso, os benefi- ciitios destes cargos tendessem a patrimonializd-los, em particular att vés de estratégias matrimoniais, levando a constituigdo de verdadeiras linhagens, a coroa acabava por controlar 0 processo e manter a mio, pelo menos formalmente, sobre a nomeacdo destes representantes do poder real. A privanza, ou familiaridade com o rei era, pois, um elemen- to essencial nas relagdes entre este ¢ a sua nobreza: a privanza, que tinha por cena a curia regis, permitia por seu lado, ao titular da coroa, exercer um, gontrolo sobre uma nobreza que dependia dele para a obtengio de cars e de soldos; portanto, de rendas. Mais uma vez.o vocabulério deve ser levado em conta neste caso, porquanto, se se vé aparecer, sob influén- cia cluniacense, palavras como vassallos ¢ malos usos, outros vocabulos proprios da lingua da Franga setentrional, como fief‘ou pheudus, fazem 0 seu aparecimento na obra de autores que tinham efeetivamente estudado cm Paris ~ & 0 caso do arcebispo de Toledo Rodrigo Jiménez de Rada Mas nao reflectem forgosamente uma semelhanga das razies de depen. déncia. De facto, a autoridade real ndo parece ter sido mediatizada por uma rede de dependéncia estruturada, como no Norte da Europa, 20 asso que o sistema sucess6rio que reconhecia uma perfeita igualdade entre todos os herdeiros, masculinos e ferininos, nfo permitia nem a instituipio da primogenitura nem a constituigao de senhorias indivisiveis 218 ¢ transmissiveis de primogénito para primogénito, $6 0 norte da penin- sula, que conhecera uma ocupagao crist# antiga, foi o lugar da implant ao privilegiada de uma nobreza fundidria que tinha nas redes de dependéncia uma parte do seu poder. Mas as regiées setentrionais dos reinos de Portugal, de Castela e de Navarra caracterizavam-se'iguaimente pela presenga de uma pequena nobreza rural que s6 alguns privilégios distinguiam do resto dos camponeses, grupo de hidalgos que, no Libro de Fuegos de Navarra de 1366, formavam cerca de 20% do conjunto da populagio. ‘A fraqueza do poder «de-referéncia» ~.0 reimto dos Francos ~ no condado de Barcelona no século X e a substituigao dos Carolingios pelos Capetos em 987, tinha ai criado em contrapartida todas as condigdes para que li se instalasse uma verdadeira «anarquia» feudal. Os condes prosse- guiram no seu esforso durante os séculos seguintes, unindo aos seus dominios os pequenos principados'e condados pirenaicos & medida da extingdo das linhagens;-Os titimos a ser integrados fram os condados de ‘Ampirias em 1314, de Urgel em 1325 e de Pallars no século XV. Os textos dos séculos X1 e XIt revelam que o poder central s6 conseguiu impor-se a estrutura piramical dos feudatarios, senhofes e'casteldos, ¢ a substituir a jjustica privada pela’ justiga pilblica no decorrer da segunda metade do século XII e principios do século seguinte. Para a nobreza, o século XIt! foi um periodo de crise ¢ de readaptagio, 0 fim das operagdes de reconquista aps @ ocupagio da maior parte do Algarve, das reinos de Valéncia, das Baleares e de Miircia, beth como da maior parte da Andaluzia, teve por corolirio 0 esgotamento desta fonte de diversos proveitos que a guerra representava: prisioneitos vendidos como escravos ou que se tomam por resgate, cavalos e gado apreendidos ‘ou roubados, despojos de pilhagens ou tributo exigido contra a promessa de poupar uma dada cidade ou regido. A ocupagio do espago conquista- do nfo deu tio-fouco 4 nobreza os resultados esperados: se recebeu bens fem cidades e seus territdrios préximos, ¢ em maior quantidade que os outros colonos, nio teve ocasiao de se apropriar de grandes dominios ou de senhorias a expensas dos antigos habitantes:muculmanos. Um estudo recente mostra que, no principio do século XIV, as senhorias nobilidrias constituiam apenas 14,1% do territdrio do antigo reino de Sevilha, 8,8% do de Cordova e4,2% do de Jaén, ao passo que no reino de Valéncia, s6 a parte setentrional passou para control da. nobreza. Nos comegos do século XVI, metade do territério e dos habitantes da Andaluzia dependia ainda directamente da coroa. As possibilidades-de oferta dos territorios novamente conquistados airaiam, por outro lado, uma parte da popula io rural, diminuindo na mesma proporgao o rendimento das terras senhoriais, rendimento ainda por cima minorado pela extensio do siste- ma monetério. Finalmente, 0 poder real, apoiado no direito romano, 219

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