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OS PRIMORDIOS DO FEMINISMO EM PORTUGAL: A 1." DECADA DO SECULO Xx Jodo Esteves Sem quaisquer direitos politicos e confinadas ao tradicional, e imutével, papel de esposas, maes, irmas ou filhas, as mulheres portuguesas, na transi¢ao do século XIX, estavam remetidas para um plano de inferioridade legal, social e cultural, pois eram consideradas umas menores perante a lei, sujeitas a tutela dos pais ou dos maridos, e enfrentavam uma elevada taxa de analfabetismo — 85,4%, em 1890; 85%, em 1900; 81,2%, em 1911 — que as condicionava nas j4 escassas escolhas profissionais. Aanilise, a deruincia e a tentativa de inverter este panorama insustentavel, comegou entao a mobilizar adeptas entre a pequenissima elite feminina, composta por escritoras, médicas, professoras e educadoras, que ndo s6 questionavam os preceitos ancestrais que procuravam fundamentar a subordinaco das mulher aos homens, como aspiravam a desempenhar um papel interveniente na sociedade, em consonancia com as suas reais capacidades. Num primeiro momento, expuseram-se os principais males que as afectavam e 86 progressivamente, com o despertar da consciéncia feminina, é que as suas reivindi- cages ganharam forma, tornaram-se mais explicitas e inevitaveis, até que se fizeram sentir junto dos poderes politicos. No acirrar da intervenc&o combativa das mulheres nao se pode ignorar a divulgagao dos ideais feministas, em crescendo no Mundo, ea pronta adesio de intelectuais, de ambos os sexos, que passaram a reflectir em amitide sobre eles, dando-lhes credibilidade e projecgao. Sobressaem, neste micleo, as dentin- cias de Alice Pestana (Caiél),? de Bernardino Machado, de Carolina Michaélis de Vas- concelos, de Fernao Botto Machado, de Louise Ey‘ e de Magalhaes Lima. Além disso, também se foram reforcando os contactos, pessoalmente ou através das suas obras, com activistas francesas e espanholas, como Jeanne Oddo-Deflou, Concepcién Arenal, Concepcién Gimeno de Flaquer e Carmen de Burgos y Segui. Se ja vai sendo possivel tracar com precisao o percurso das organizacoes femi- ninas’ e das suas protagonistas, a partir da fundacdo da Liga Republicana das Mu- Iheres Portuguesas, em Agosto de 1908, continua a ignorar-se o periodo imediata- mente anterior, sem o qual nao é possivel compreender’o dinamismo que o movi- mento feminista acabou por ter nas décadas de 10 e.20. E 4 medida que vao sendo mais numerosos os Estudos Sobre as Mulheres,* em particular sobre as origens do feminismo portugués/ e que o investigador submerge nas fontes dispontveis (pe- riédicos® e correspondéncia),’ torna-se notério que ele foi mais influente, diversifi- cado e dinamico do que tem transparecido quando estdo em causa os anos que an- tecederam o derrube da Monarquia. Jofo Esteves, Instituto Pluridisciplinar de Hist6ria das Ideias, Faculdade de Citncias Socials e Humans, Universidade Nova de Lisboa. PENELOPE, N*25, 2001, pp. 87-112 88 Jodo Esteves No entanto, prevalece ainda a auséncia de uma visdo de conjunto de comoo fendémeno feminista se desenvolveu no pais, com as contradigées e inevitaveis di- ficuldades, e nem as suas protagonistas tem merecido maior destaque, apesar da qualidade intelectual e da capacidade combativa que evidenciaram nas primei- ras décadas do século XX. Sem ignorar as contribuicées historiogréficas de Regi- na Tavares da Silva,’ Ivone Leal," Vanda Gorjao” ou Rosmarie Wank-Nolasco Lamas," escasseiam desde os estudos biogrdficos a dissecagao e andlise das pers- pectivas feministas,*algumas delas antagénicas, sendo mesmo inexistente qual- quer pesquisa em torno das primeiras utilizagdes dos vocdbulos ‘feminista’ e ‘fe- minismo’.'* Ora em 1888, j4 Oliveira Martins se lhes referia, ainda que de forma pouco lisonjeira.* Este texto, embora com as limitagdes inerentes ao facto da investigagaoestara decorrer, procura reflectir sobre a emergéncia do fenémeno feminista até a consti- tuigao da LRMP, sabendo-se que foi nesse perfodo que comegou a ganhar visibili- dade, mediante intensa e regular publicacao de artigos na imprensa, promogao de conferéncias, sessGes e reunides e formacdo das primeiras agremiagdes. Em 1905, editou-se o livro As Mulheres Portuguesas,’” de Ana de Castro Os6- rio, considerado por Regina Tavares da Silva “o manifesto do movimento feminista portugués”,’* por abordar, “de forma muito clara e radical questdes relacionadas, por.um lado, com a situacao da mulher, o seu estatuto legal e os condicionalismos culturais inerentes e, por outro lado, questées de indole mais teGrica, sobre o femi- nismo, a igualdade dos sexos, o direito 4 educagao e ao trabalho, o direito a salario igual’.” Seguidamente, o triénio 1906-1908 revelou-se decisivo, devido & conjuga- go de intimeras ocorréncias: constitui-se a Secgao Feminista da Liga Portuguesa da Paz (1906); multiplicam-se os escritos da autoria de mulheres nos periddicos re- publicanos; os vocdbulos ‘feminino’, ‘feminismo’ e ‘feminista’ encimam muitos dos respectivos titulos e subtitulos; o jornal O Mundo passa a conter a secgao Jornal da Mulher (1906); Ana de Castro Os6rio funda o Grupo Portugués de Estudos Femi- nistas (1907); uma delegacao de mulheres participa no Congresso Nacional do Li- vre Pensamento (1908); e, no mesmo ano, procede-se a realizacao do plebiscito as mulheres republicanas e a organizacao da LRMP. Assim, e ao contrario da ideia comummente generalizada, o movimento fe- minista ndo se ter desenvolvido somente a reboque do republicanismo e da maco- naria, contou coma participacdo, numa primeira fase, de mondrquicas e republica- nas e esteve também associado ao fenémeno pacifista. Em parte, as sementes desse impulso germinaram nos saldes literarios que persistiam desde finais do século XIX, onde as mulheres cultas se reuniam para de- bater textos da sua autoria, nao tendo sido por acaso serem as escritorasa transpor- tar para o debate piiblico a questo feminista e a integrarem as direccdes das pri- meiras associagdes: Albertina Paraiso,” Ana de Castro Osorio, Aureliana Teixeira Bastos, Beatriz Pinheiro de Lemos, Claudia de Campos, Domitila de Carvalho,” Maria Veleda e Olga Moraes Sarmento da Silveira. Outro nticleo que comungou do entusiasmo pelos mesmos ideais foi o das médicas, entre as quais pontificavam Adelaide Cabete, Carolina Beatriz Angelo, Emilia Patacho, Maria do Carmo Lo- pes” e Sofia Quintino. Jé as professoras iniciaram-se através dos Centros Escolares (08 PRIMORDIOS DO FEMINISMO EM PORTUGAL: A 1." DECADA DO SECULO Xx 89 Republicanos, onde leccionavam, ea sua importancia foi crescendo ao mesmo tem- po que diminufa a das escritoras.> Se a princfpio o idedrio feminista englobou apenas uma minoria, pertencente Aelite, chegou a envolver, entre 1906 e 1916, quando teve maior projeccao, centenas de activistas e cerca de dois milhares de inscritas em associagdes que entretanto fo- ram proliferando, estando em curso o seu recenseamento ea reconstitui¢ao dos res- pectivos percursos. Envolvendo contribuicées tao heterogéneas, desde mondrquicas (Domitila de Carvalho, Olga Moraes Sarmento), a republicanas (Adelaide Cabete, Ana de Castro Osério, Maria Veleda) e libert4rias (Ermelinda Rodrigues,“ Lucinda Tava- res,” Deolinda Lopes Vieira”),” era natural que o movimento contivesse concep- g6es diferentes, estando ainda por analisar os varios feminismos em confronto. Por exemplo,em Fevereiro de 1907, Virginia Quaresma™ considerava que o feminismo, em Portugal, tinha de se adaptar a realidade do pais, onde se registava o assustador niimero de 2.406.245 analfabetas, nao se podendo, pois, “incitar a mulher portu- guesa a reclamar 0 direito do voto, a investir-se na autoridade de magistrado, a cair no erro desastroso de proclamar o amor livre e de tudo querer sernos dominios po- Ifticos e morais da nossa sociedade”,” tanto mais que “ideias excessivamente avan- cadas em meios acanhados, dao resultados contraproducentes”.* Atendendo aes- tes condicionalismos, a mesma jornalista defendia que “é necessdrio que as femi- nistas portuguesas tracem um programa criterioso de acc&o pratica”,® pondo de parte “exaltacdes ridiculas, ideias prematuras, combates téo violentos como inti- teis e coliguem-se fraternalmente as intelectuais portuguesas, a fim de contribuf- rem para que decresca este ntimero aterrador de analfabetos”,™ e alvitrava que “nao é, positivamente, em entrar no campo da politica e perder todas as ilusdes reli- giosas, que deve consistir a propaganda do feminismo nas condigées actuais da mulher portuguesa”.* “Fundem-se primeiro do que tudo escolas femininas, equi- libre-se o espfrito da mulher com uma educa¢o moral forte e orientada, levan- te-se-Ihe bem alto a nogao da dignidade, inocule-se-lhe o dever da virtude eo amor da caridade. Em campo pratico, sem discursos espalhafatosos, sem correrias des- norteadas é esta a miss4o, a verdadeira e nobre missdo a que se deve por enquanto impor o feminismo em Portugal”.* Ora neste mesmo perfodo, Maria Veleda n4o sé era uma das vozes criticas do clericalismo, como tinha outra interpretagao sobre a actuagéo das mulheres, atri- buindo-lhe um cunho acentuadamente polftico, quando apelava a transformagao do regime através do recurso a fora. E foi talvez por Maria Veleda se ter embrenha- do cada vez mais no discurso polftico, com posi¢des de afrontamento directo aos governantes e 4 Monarquia, que Virginia Quaresma, em Fevereiro de 1908, se de- marcou daquele feminismo onde a mulher, devido as aridas paixées da politica, “ataca entidades pessoais, que vai gesticular e combater na tribuna os representan- tes dos regimes governativos — essa mulher, para n6s, despiu-se totalmente de to- dos os encantos femininos, para se converter num dragao de saias”.” Depois de uma primeira polémica, em 1906, entre Maria Veleda e Virginia Quaresma, explanada nas paginas do jornal Vanguarda, a coexisténcia pacifica de concepgées diferentes aproximava-se do fim, n&o sendo de excluir que foi a

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