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COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA

MATIZES, REPRESENTAÇÕES E RECONFIGURAÇÕES


Organizadores

Dafne Pedroso
Lúcia Coutinho
Vilso Junior Santi

COMUNICAÇÃO MIDIÁTICA
MATIZES, REPRESENTAÇÕES E RECONFIGURAÇÕES

GEISC\PUCRS

Porto Alegre
2011
© EDIPUCRS, 2011

Capa: Rodrigo Oliveira


Diagramação: Rodrigo Valls
Revisão Linguística: Julia Roca dos Santos

EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS


Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C741 Comunicação midiática : matizes, representações e


reconfigurações [recurso eletrônico] / org. Dafne
Pedroso, Lúcia Coutinho, Vilso Junior Santi. –
Dados eletrônicos. – Porto Alegre: EDIPUCRS,
2011.

Modo de acesso: World Wide Web


<HTTP://www.pucrs.br/edipucrs>
ISBN 978-85-397-0074-5

1. Comunicação. 2. Imaginário. 3. Cultura.


4. Sociedade. I. Pedroso, Dafne. II. Coutinho, Lúcia.
III. Santi, Vilso Junior.

CDD 301.161
Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS.

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COLABORADORES

Ana Carolina Escosteguy


Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da
PUCRS/RS/BR. E-mail: carolad@pucrs.br

Bruna do Amaral Paulin


Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail:
brunapaulin@gmail.com

Camila Garcia Kieling


Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail:
camila.kieling@gmail.com

Camila Pereira Morales


Publicitária. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.
E-mail: camilapmq@yahoo.com.br

Caren Adriana Machado de Mello


Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.
E-mail: carenmm@gmail.com

Carolina Conceição e Souza


Publicitária. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.
E-mail: carolsouzaa@gmail.com

Caroline Delevati Colpo


Relações Públicas. Doutoranda em Comunicação Social pela PUCRS/
RS/BR. E-mail: carolcolpo@bol.com.br

Cristiane Freitas Gutfreind


Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da
PUCRS/RS/BR. E-mail: cristianefreitas@pucrs.br

Dafne Reis Pedroso da Silva


Jornalista. Doutoranda em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.
E-mail: dafnepedroso@gmail.com
Eduardo Campos Pellanda
Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da
PUCRS/RS/BR. E-mail: eduardo.pellanda@pucrs.br

Isabel Almeida Marinho do Rêgo


Publicitária. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.
E-mail: bel_marinho@hotmail.com

Karine dos Santos Ruy


Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.
E-mail: karine.ruy@acad.pucrs.br

Lúcia Loner Coutinho


Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail:
lucialoner@gmail.com

Samara Kalil
Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR. E-mail:
samarakalil@gmail.com

Sandro Adalberto Colferai


Graduado em Letras. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/
BR Email: sandrocolferai@hotmail.com

Vilso Junior Santi


Jornalista. Doutorando em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.
E-mail: vjrsanti@yahoo.com.br
AGRADECIMENTOS

À Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e ao


Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social pela estrutura e
apoio oferecidos.
Aos professores do PPGCOM/PUCRS Ana Carolina Escosteguy,
Cristiane Freitas Gutfreind, Eduardo Campos Pellanda, Antônio Hohlfeldt
e Juremir Machado da Silva pelas contribuições, incentivo e inspiração.
À EDIPUCRS pelo acolhimento da proposta.
SUMÁRIO

Prefácio ................................................................................................10

Parte I
Matizes do cinema brasileiro e sociedade

1. A multiplicidade da pesquisa em cinema ..........................................13


Cristiane Freitas Gutfreind

2. Circuito de exibição periférico: cineclubismo e itinerâncias ..............16


Dafne Reis Pedroso da Silva

3. Traços da indústria do cinema brasileiro contemporâneo .................31


Karine dos Santos Ruy

4. O jogo cinematográfico de Cama de Gato ........................................45


Isabel Almeida Marinho do Rêgo

Parte II
Cultura e representações midiáticas

5. Em defesa de uma perspectiva analítica sócio-cultural .....................63


Ana Carolina Escosteguy

6. Favela-Movies e Favela-Series: novas representações na produção


audiovisual brasileira ............................................................................66
Lúcia Loner Coutinho

7. Estereótipos do Britpop através dos enquadramentos da revista New


Musical Express ...................................................................................82
Bruna do Amaral Paulin

8. Amazônia à margem da sociedade em rede: imigrantes em busca de


comunidades imaginadas ...................................................................103
Sandro Adalberto Colferai
9. A fotografia de moda e a produção de sentidos ..............................118
Samara Kalil

10. Revolução Farroupilha: uma leitura do manifesto de 1838 através da


Política de Aristóteles ..........................................................................134
Camila Garcia Kieling

11. O pensamento complexo e os estudos culturais na pesquisa em Jor-


nalismo: por uma intersecção teórico-metodológica ...........................148
Vilso Junior Santi

Parte III
Imaginário e reconfigurações da publicidade

12. Consumo e experiência de uso em um contexto de ubiqüidade de


informação ..........................................................................................172
Eduardo Campos Pellanda

13. Pistas hipermodernas para alterações da mensagem publicitária


contemporânea ...................................................................................182
Camila Pereira Morales

14. A teoria culturológica na campanha da Arezzo .............................198


Carolina Conceição e Souza

15. A convergência de funções: publicidade e entretenimento. Duas


indústrias, um fim: o game ..................................................................213
Caroline Delevati Colpo

16. A hipótese de agenda-setting no comercial da Brahma


Caren Adriana Machado de Mello ...........................................226
PREFÁCIO

A proposta deste livro surge a partir da ideia de estimular a divul-


gação e a circulação de pesquisas realizadas por estudantes de pós-
graduação. A publicação inclui-se no âmbito das atividades do Grupo
de Estudos sobre Imaginário, Sociedade e Cultura (GEISC/PPGCOM/
PUCRS), o qual procura estimular a autonomia e a cooperação direta
entre os acadêmicos.
O grupo, que é organizado e coordenado pelos próprios alunos,
surgiu em 2008 com o propósito de compreender os efeitos dos proces-
sos midiáticos e suas implicações culturais sobre o imaginário nas áreas
de jornalismo, publicidade, relações públicas e produções audiovisuais.
Nele, tem destaque a socialização contínua e sistemática dos projetos
de investigação do corpo discente, promovida através de encontros
quinzenais, onde são realizadas discussões de textos, apresentações e
debates relacionados às pesquisas desenvolvidas.
Os participantes do grupo têm consciência da necessidade de
divulgação e circulação de textos acadêmicos e por isso deram início à
organização coletiva desta obra. Durante o processo de organização da
publicação, os artigos circularam entre os membros do grupo, os quais
revisaram as produções dos seus pares e deram sugestões aos seus
colegas-autores.
A multiplicidade de olhares marca esta obra, já que os interesses
de pesquisa dos integrantes do grupo são bastante diversos. De todo
modo, há elementos em comum que permeiam esses escritos, sejam
temáticas, objetos e/ou perspectivas de análise. Ao todo são 13 artigos,
os quais foram agrupados em três eixos, cada um apresentado por um
professor do PPGCOM/PUCRS.
A primeira parte, “Matizes do cinema brasileiro e sociedade”,
apresentada pela Profa. Dra. Cristiane Freitas Gutfreind, conta com três
textos: “Circuito de exibição periférico: cineclubismo e itinerâncias”, de
Dafne Reis Pedroso da Silva; “Traços da indústria do cinema brasileiro
contemporâneo”, de Karine dos Santos Ruy; e “O jogo cinematográfico
de Cama de Gato”, de Isabel Almeida Marinho do Rêgo.
O segundo eixo, “Cultura e representações midiáticas”, apresen-
tado pela Profa. Dra. Ana Carolina Escosteguy, conta com seis textos:
“Favela-Movies e Favela-Series: novas representações na produção
Prefácio

audiovisual brasileira”, de Lúcia Loner Coutinho; “Estereótipos do Brit-


pop através dos enquadramentos da revista New Musical Express”, de
Bruna do Amaral Paulin; “Amazônia à margem da sociedade em rede:
imigrantes em busca de comunidades imaginadas”, de Sandro Adalberto
Colferai; “A fotografia de moda e a produção de sentidos”, de Samara
Kalil; “Revolução Farroupilha: uma leitura do manifesto de 1838 através
da Política de Aristóteles”, de Camila Garcia Kieling; e “O pensamento
complexo e os estudos culturais na pesquisa em jornalismo: por uma
intersecção teórico-metodológica” de Vilso Junior Santi.
A terceira e última parte do livro, “Imaginário e reconfigurações da
publicidade”, é apresentada pelo Prof. Dr. Eduardo Campos Pellanda e
conta com quatro textos: “Pistas hipermodernas para alterações da men-
sagem publicitária contemporânea”, de Camila Pereira Morales; “A teoria
culturológica na campanha da Arezzo”, de Carolina Conceição e Souza; “A
convergência de funções: publicidade e entretenimento. Duas indústrias,
um fim: o game”, de Caroline Delevati Colpo; e “A hipótese de agenda
setting no comercial da Brahma”, de Caren Adriana Machado de Mello.
É para o exercício deste olhar múltiplo sobre a comunicação que
convidamos os leitores a passear pelas contribuições aqui apresenta-
das. Boa leitura a todos!

Os organizadores.

11
Parte I
Matizes do cinema
brasileiro e sociedade
A MULTIPLICIDADE DA PESQUISA EM CINEMA

Cristiane Freitas Gutfreind

Professora do PPGCOM/ PUCRS e pesquisadora do CNPq.

O Grupo de Estudos sobre Imaginário, Sociedade e Cultura –


GEISC - é um dos grupos de pesquisa do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação da PUCRS, gerenciado pelo corpo discente. Fundado
em 2008, o GEISC se consolidou ao longo desses anos com estudos
e pesquisas relevantes acerca de três eixos temáticos: imaginário, so-
ciedade e comunicação, que se relacionam com a linha de pesquisa do
PPGCOM intitulada “Práticas culturais nas mídias, comportamentos e
imaginários da sociedade da comunicação.”
Por esses eixos temáticos perpassam os estudos de cinema que
no PPGCOM acolhem um importante número de dissertações e teses,
que tem os seus projetos, métodos e textos discutidos junto ao grupo do
GEISC. Entre alguns desses trabalhos merece destaque as pesquisas
aqui apresentadas: “Circuito de exibição periférico: cineclubismo e iti-
nerâncias” de Dafne Pedroso (doutoranda), “O jogo cinematográfico de
Cama de Gato” de Isabel Marinho (mestre) e “Traços da indústria do ci-
nema brasileiro contemporâneo” de Karine Ruy (mestre). Três pesquisas
que representam a diversidade do campo do cinema em seus diferentes
interesses e formas de compreensão e apreensão metodológica.
Em “Circuito de exibição periférico: cineclubismo e itinerâncias”,
Dafne Pedroso nos apresenta uma discussão sobre a exibição perifé-
rica dentro do contexto cinematográfico brasileiro através das sessões
itinerantes e suas relações com o cineclubismo. Para percorrer esse ca-
minho, a autora serve-se do aporte teórico empreendido por João Gui-
lherme Barone no texto “Exibição, crise de público e outras questões
do cinema brasileiro”, onde é discutida a clássica questão do cinema
brasileiro: a receptividade do público em relação ao filme nacional.
Pedroso recorre aos primórdios do cinema para contextualizar as
apresentações itinerantes atuais no Brasil, objeto de sua pesquisa de dou-
toramento, o que permite a construção de um imaginário que reflete na ma-
neira diversificada de se assistir filmes na atualidade, como afirma a autora:
Cristiane Freitas Gutfreind

Contemporaneamente, a experiência de recepção ci-


nematográfica pode se dar nas salas comerciais de
cinema, em casa, em cineclubes, mostras itinerantes,
festivais, entre outros. E a reconfiguração do mercado
cinematográfico passa a refletir-se na construção do
espectador, nas suas maneiras de consumo, nos seus
gostos e na recepção dos filmes.

Em seguida, Pedroso desenvolve uma reflexão sobre cineclu-


bismo e itinerância, ilustrados com exemplos de experiências concre-
tizadas na área para finalizar com “provocações” e “tensionamentos”
sobre a formação do público. Percebemos, então, a complexidade da
formação de um público que tem encontros esporádicos com o filme
e a necessidade da construção do mesmo de forma pragmática com
o que é possível.
Passa-se do espectador para análise fílmica, é o que evidencia
“O jogo cinematográfico de Cama de Gato”. O texto de Isabel Marinho
reflete sobre o jovem contemporâneo tendo como caso emblemático o
filme Cama de Gato (Alexandre Stockler, 2002), apropriando-se da análi-
se fílmica para compreender, através da hibridização da linguagem cine-
matográfica, a ideia de tribalização (Michel Maffesoli). A escolha do filme
é justificada pela sua linguagem, comprovada na seguinte afirmação: “no
mesmo filme há a sensação de ter assistido a vários tipos de obras e ex-
perimentado uma diversidade de linguagens”. A relação com a tribaliza-
ção aparece nessa nova forma comunitária contemporânea que reflete
a efemeridade e a diversificação dos laços sociais alterando conceitos
como indivíduo e identidade, promovendo uma hibridização cultural pela
tecnologia. O texto mostra a sua atualidade, principalmente, em uma
época em que o cinema brasileiro volta-se para a temática jovem, algo
esquecido no nosso cinema desde os anos 80, iniciado por Deu Pra Ti
Anos 70 (Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, 1980).
Finalmente, essa sessão intitulada “Matizes do cinema brasileiro
e sociedade” é fechada com “Traços da indústria do cinema brasileiro
contemporâneo”. Karine Ruy reflete sobre os filmes brasileiros de maior
bilheteria nas salas entre 2003 e 2008, tentando compreender o porquê,
sob o ponto de vista do mercado, alguns filmes brasileiros possuem visi-
bilidade em detrimento de outros. A autora sugere uma pista importante
para esse panorama, que pode ser resumida na seguinte ideia:

14
A multiplicidade da pesquisa em cinema

A formulação de políticas públicas específicas deu


suporte ao setor e vem viabilizando sua produção
através de mecanismos como mecenato e renúncia
fiscal. A distribuição e exibição, contudo, não foram
abarcadas pelo Estado, deixando a grande maioria
dos filmes nacionais desprovidos de qualquer espécie
de auxílio estratégico para se inserir no disputado cir-
cuito de exibição tradicional.

Assim, os filmes que apresentam um diferencial justamente em


termos de produção e exibição são, segundo Ruy, aqueles que contam
com uma presença representativa do público nas salas. Essa ideia é
sustentada por uma amostra de seis filmes que se associaram a majors,
ou a Globo Filmes, para efetivar a ponta da cadeia cinematográfica, a
exceção de um deles, que também tem a sua singularidade analisada. A
bilheteria dos filmes nacionais estaria, então, vinculada ao apelo midiáti-
co que passa pelo espetacular e pelo consumo. Porém, a autora afirma
a importância de se manter uma indústria com diversidade em termos de
produção e estética.
A leitura desses textos oriundos de pesquisas sobre o cinema tor-
na-se necessária à medida que nos deparamos com objetos diversos que
se complementam: a experiência “apaixonada” da itinerância de filmes,
o interesse pela linguagem e as escolhas do mercado refletem questões
que compõem toda a cadeia cinematográfica - produção-distribuição-exi-
bição - e suas questões técnicas e estéticas. Percebamos, assim, a mul-
tiplicidade da pesquisa em cinema, que a primeira vista parece tratar de
temas específicos, mas que são imbricados entre si e que, finalmente, nos
coloca sempre diante de uma questão maior, que segundo Kracauer, é a
relação do cinema com o mundo, portanto com o social e o imaginário, te-
mas que fazem do GEISC um interessante grupo de pesquisa com textos
como esses que em muito contribuem para o avanço da área.

Ótima leitura!

15
CIRCUITO DE EXIBIÇÃO PERIFÉRICO:
CINECLUBISMO E ITINERÂNCIAS

Dafne Reis Pedroso da Silva

Jornalista. Doutoranda em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: dafnepedroso@gmail.com

RESUMO
O trabalho problematiza e discute alguns elementos do contexto cinema-
tográfico brasileiro, considerado como base constituinte e geradora de
certas condições que configuram o fenômeno pesquisado: a prática dos
cineclubes e das sessões itinerantes de cinema. A contextualização aqui
traçada procura abarcar e definir essas duas atividades (cineclubista e
itinerante) estabelecendo relações com a discussão proposta por Baro-
ne (2008) a respeito do circuito de exibição periférico. Dentre os resul-
tados, evidencia-se que essas duas práticas surgiram em decorrência e
em reação ao cenário comercial cinematográfico que se instituiu no país.

PALAVRAS – CHAVE
Itinerâncias
Cineclubismo
Contexto cinematográfico brasileiro

ABSTRACT
This paper discusses and reviews some aspects of the Brazilian cinema
context, considered as a constituent base and generating certain condi-
tions that shape the studied phenomena: the practice of film clubs and
itinerant film sessions. The context here looks to draw cover and set these
two activities (film clubs and itinerant exhibitions) establishing a relationship
with the discussion proposed by Barone (2008) about the exhibition circuit
device. Among the results, it is evident that these two practices arose as
a result and reaction to the film business scenario instituted in the country.

KEYWORDS
Film itinerant exhibitions
Film Clubs
Brazilian’s context cinema
Circuito de exibição periférico

A proposta deste artigo é a de discutir elementos do contex-


to cinematográfico brasileiro, problematizando acerca do chama-
do circuito de exibição periférico (BARONE, 2008)1, estabelecendo
relações com as sessões itinerantes de cinema e o cineclubismo.
A escolha destas duas práticas se deu pelo meu interesse de pes-
quisa, pois desde o mestrado2 venho abordando tais questões e sigo
nesta perspectiva em minha tese de doutorado. Para além de um
interesse pessoal/acadêmico, penso que são práticas de exibição e
de consumo relevantes, com uma trajetória histórica de experiências
no Brasil, e que são importantes para reflexão sobre as transforma-
ções da indústria audiovisual nacional. A intenção é discutir e levantar
questões a respeito de outros possíveis desenhos da clássica tríade
produção-distribuição-exibição de cinema no cenário brasileiro.
Barone (2008) nos lembra que a tríade produção-distribuição-
exibição necessita ser compreendida a partir das atividades correspon-
dentes aos campos fundadores do espaço audiovisual. Esses campos
estabelecem relações que não são lineares, mas sim processos onde
se dão tensionamentos, antagonismos, assim como interdependências.
A exibição, por sua vez, funciona em torno do ato essencial que seria a
projeção na tela para o consumo/desfrute do espectador. Para isso, ela

opera os meios físicos e os sistemas necessários ao consumo


final do produto audiovisual. Neste esquema simbólico, o se-
tor de exibição corresponde ao campo responsável pela última
mediação entre o produto e o público (BARONE, 2008, p. 4-5).

A exibição de cinema, como a entendemos hoje, possui dois mar-


cos fundadores. Um, que data do início da década de 1900, nos Estados
Unidos, onde havia os nickelodeons (se pagava um níquel como ingresso)
e os filmes eram exibidos em grandes galpões e depósitos. O segundo

1 
Aproprio-me da expressão circuito de exibição periférico, utilizada por Barone (2008), em texto
que serviu como base para esse artigo, intitulado “Exibição, crise de público e outras questões do
cinema brasileiro”. O autor, entretanto, utiliza ainda o termo digital (circuito de exibição digital perifé-
rico) e se refere às experiências baseadas na tecnologia do vídeo doméstico, tais como os Pontos
de Cultura, a Programadora Brasil, as pequenas salas, os cineclubes, entre outros. Optei por “reti-
rar” o digital, já que algumas propostas de itinerâncias, tais como Cine Tela Brasil e Rodacine RGE
ainda projetam filmes em 35mm. De todo o modo, a expressão parece manter sua proposta inicial.
2 
Mestrado em Ciências da Comunicação pela UNISINOS, com dissertação intitulada “Hoje tem ci-
nema: a recepção das mostras itinerantes organizadas pelo Cineclube Lanterninha Aurélio” (2009),
sob a orientação da Profª. Drª. Jiani Bonin.

17
Dafne Reis Pedroso da Silva

marco, a partir de 1925, refere-se às exibições nos chamados cines-tea-


tro, já então elitizadas. Entretanto, antes que as sessões de cinema e o
mercado exibidor se instituíssem, havia as itinerâncias.
As primeiras exibições caracterizavam-se pelo nomadismo, e nas
projeções em cafés, parques de diversões e feiras o cinema foi sendo co-
nhecido. Nos fins do século XIX, os filmes eram exibidos de forma impro-
visada pelos ambulantes, sendo que não havia a separação e a autonomi-
zação dos campos de produção, distribuição e exibição. O empreendedor
detinha todos os âmbitos do processo, dominava as técnicas, filmava, re-
velava, copiava e exibia os filmes.
É nos primórdios do cinema que as atuais sessões itinerantes se
inspiram, porém com objetivos reformulados. Atualmente, grupos ambu-
lantes passam de cidades em cidades, ou de bairros em bairros, proje-
tando nos mais diversos espaços. O público destinado são pessoas que,
em tese, não têm acesso ao cinema nacional. São projetos que surgem
por iniciativa de coletivos, compostos por cineclubistas, cineastas, produ-
tores culturais, entre outros, e muitas vezes são financiados por projetos
públicos ou leis de incentivo à cultura. Além das itinerâncias, o cineclubis-
mo brasileiro, que completará 83 anos em 2011, reafirma sua proposta
ancorada na cinefilia, ou seja, no gosto pelo cinema, e também busca a
formação de demanda para o cinema nacional.
Para abordar essas duas práticas de exibição de cinema, me parece
importante compreender as condições ambientais em que elas surgem e
funcionam. Barone (2008) elenca uma série de constatações sobre o cená-
rio de circulação e de exibição no Brasil, que têm como consequência o res-
trito espaço para os filmes nacionais. Algumas das constatações seriam “as
mudanças no aparato técnico da exibição, a pouca regulação e a ocupação
do circuito nacional pela produção hegemônica distribuída pelos grandes
conglomerados de mídia norte-americanos” (BARONE, 2008, p. 6).
Por conta disso, ele nos lembra que “(...) a pouca frequência dos
filmes nos circuito comercial compromete aspectos simbólicos da for-
mação do imaginário social” (BARONE, 2008, p.6). Este diagnóstico do
autor é elemento de preocupação para cineclubistas e exibidores itine-
rantes, sendo que essas práticas têm em comum a busca pela exibição
de filmes nacionais em seus circuitos.
O espaço limitado para as produções nacionais nas salas de cine-
ma se revela também pelos números. Se, em 2003, os filmes nacionais

18
Circuito de exibição periférico

ocuparam 22% das salas de exibição, em 2008 passaram a ocupar 6,9%


(BARONE, 2008. p. 6). E, se a permanência depende dos ingressos ven-
didos, o autor nos lembra que há também uma falta de interesse do pú-
blico pelos filmes nacionais.
Outro elemento do cenário cinematográfico nacional é a redução
no número de salas nos últimos trinta anos. Em 1970 e 1980 havia cerca
de 4 mil salas, mas hoje são aproximadamente 2.100, sendo que 92%
dos municípios não possuem salas de exibição, as quais estão concen-
tradas nas grandes cidades (BARONE, 2008). Ou seja, no interior do
país quase não há a possibilidade da experiência da recepção coletiva
nas salas de cinema.
Entretanto, o consumo se dá de outras maneiras, seja pelo que
é exibido na televisão, ou pelos filmes comprados/locados/baixados da
internet. Ainda que a referência de projeção sejam as salas de cinema,
nas últimas décadas viu-se a transformação do campo com novas tec-
nologias, ocasionando o desmonte destes espaços de exibição. Nesse
sentido, há a crescente desnaturalização da sala de cinema como o úni-
co local de recepção de filmes.
Contemporaneamente, a experiência de recepção cinematográfica
pode se dar nas salas comerciais de cinema, em casa, em cineclubes,
mostras itinerantes, festivais, entre outros. E a reconfiguração do merca-
do cinematográfico passa a refletir-se na construção do espectador, nas
suas maneiras de consumo, nos seus gostos e na recepção dos filmes.
Novamente, neste sentido, se vê a atuação das práticas aqui abordadas,
ou seja, da promoção de diferentes experiências de recepção de cinema.
Conforme Barone (2008), com o aumento do valor do ingresso,
o público C e D, que ia com frequência ao cinema em outros períodos,
acabou afastando-se das salas. A ida ao cinema tornou-se uma ativi-
dade elitista. Por conta disso, percebe-se que o público das sessões
itinerantes atuais é, principalmente, de sujeitos de classes populares.
As projeções itinerantes parecem se organizar em reposta ao cenário
cinematográfico que se instituiu ao longo dos anos.
Esses são alguns dos elementos do mercado nacional que se
constituiu e onde operam as práticas cineclubista e itinerante. No texto
que segue, a proposta é a de resgatar origens sobre essas experiências,
assim como trazer exemplos atuais concretos de como as projeções iti-
nerantes têm atuado no cenário brasileiro.

19
Dafne Reis Pedroso da Silva

SOBRE O CINECLUBISMO E AS ITINERÂNCIAS

O consumo de filmes em clubes de cinema surge na França, no


início do século XX, com Riccioto Canudo, que fundou o Club des Amis du
Septiène Art, o primeiro cineclube de que se tem registro, conforme nos lem-
bra Lunardelli (2000)3. No momento em que foram criados esses primeiros
cineclubes, o cinema ainda estava afirmando-se como arte. Como os filmes
costumavam ser exibidos nas feiras de variedades, o cinema era despreza-
do por ser uma diversão das classes populares. O cineclubismo, inserido
nesse contexto, contribuía para uma nova possibilidade de recepção de ci-
nema, que privilegiava um pensamento crítico em relação ao que se assistia,
para além do entretenimento. As elites intelectuais foram as responsáveis
pelo desenvolvimento dos cineclubes e “Revestiam-se de um dissimulado
papel educativo, que está na gênese do cineclubismo, evidenciado na linha
doutrinária adotada pelos cineclubes católicos” (LUNARDELLI, 2000, p.18).
De lá para cá, o cineclubismo foi praticado de diversas formas,
de acordo com o período histórico, com o contexto de cada país e re-
gião e com os propósitos dos grupos que organizam seus cineclubes.
Não há um cineclubismo único, já que este é reformulado ao longo dos
anos. Sem dúvida existe um órgão maior, no caso brasileiro, o Conselho
Nacional de Cineclubes, que cria diretrizes de ação, mas os cineclu-
bes, por sua vez, recriam essas propostas de acordo com seus próprios
objetivos. É possível perceber alguns eixos de propostas cineclubistas
desde o seu início no país, tais como: uma defesa estética em relação
ao cinema arte, que deveria ser apreciado; uma ideia de cineclube en-
quanto espaço de formação de sujeitos críticos e competentes nas ló-
gicas cinematográficas; uma proposta de educação do olhar, difundida
pelos cineclubes católicos durante as décadas de 1950 e 1960; uma
proposta de utilizar o cinema como possibilidade de mobilização social
em torno de uma causa, como foi durante o período militar; um eixo de
ação do cineclube enquanto um espaço de discussão acerca do cenário
cinematográfico instituído, como um local de difusão de filmes que não
são exibidos nas salas comerciais de cinema e/ou disponibilizados em
vídeolocadoras e veiculados em canais de televisão.
3 
Entretanto, foi Louis Delluc, um seguidor de Canudo quem inventou o termo ciné-club. Ele fundou,
em 1920, o Cine-Club e, após sua morte, o Cine-Club uniu-se ao CASA (Club des Amis du Septiène
Art) de Canudo e criou-se Le Club Français du Cinema, entidade que deu base para a constituição
do que viria a ser o movimento cineclubista.

20
Circuito de exibição periférico

Atualmente, a bandeira levantada pelo cineclubismo nacional


atua no sentido de criar circuitos alternativos de filmes, em especial os
brasileiros, e formar platéias para tal. Por conta disso, frequentemente
encontram-se cineclubes que desenvolvem também sessões itineran-
tes, unindo a proposta cineclubista ao cinema itinerante.
Quanto às origens e trajetória das sessões itinerantes de cine-
ma, percebe-se que, se no início das exibições de cinema no Brasil o
caráter ambulante se dava pela falta de público e de um mercado cons-
tituído, as sessões itinerantes contemporâneas se dão também pelas
consequências do mercado que se construiu. A falta de espaço para
exibição e de demanda para o consumo dos filmes brasileiros faz com
que surjam atividades como as projeções ambulantes. Com o quase
total desaparecimento dos cinemas de calçada e a transferência das
salas de cinema para os shopping centers dentro dos grandes com-
plexos, ou multiplex, a possibilidade de recepção coletiva de cinema
torna-se cada vez mais difícil.
Os projetos atuais têm a proposta de democratização do aces-
so aos filmes nacionais, assim com a formação de platéias para estas
produções. Entretanto, cada atividade itinerante tem características
particulares: algumas são organizadas por cineclubes; outras por em-
presas ou órgãos públicos; existem as que só exibem filmes brasileiros,
enquanto há as que também projetam produções norte-americanas de
grande distribuição; algumas atividades possuem grande estrutura, já
em outras, as sessões acontecem de forma improvisada; ainda há as
projeções que reúnem filmes e variadas apresentações artísticas. As
sessões itinerantes de cinema se caracterizam também pela gratuida-
de e por serem feitas, principalmente, em cidades em que não haja sa-
las comerciais de cinema ou em regiões periféricas de cidades que têm
salas de cinema, mas que os moradores dessas regiões não teriam
possibilidades financeiras de frequentá-las. As itinerâncias possibilitam
a experiência coletiva de recepção de cinema, mas uma experiência
diferenciada, em que o contexto de recepção tem papel fundamental.
Parece-me que esses projetos se propõem à divulgação do ci-
nema, à abertura de possibilidade da recepção coletiva, em especial
para um público popular que tem pouco acesso às salas de cinema e
às produções feitas no país. Das atividades mapeadas a partir da déca-
da de 90, destaco alguns projetos. Há os que possuem grande financia-

21
Dafne Reis Pedroso da Silva

mento, principalmente a partir de Leis de Incentivo à Cultura e outras


formas de financiamento público tendo, consequentemente, uma maior
estrutura, com equipe fixa, grandes telas, projetores, cadeiras confor-
táveis, transporte próprio e uma maior circulação, percorrendo diversas
cidades. Assim como existem os de menor estrutura, que funcionam de
uma maneira mais improvisada, mas que compartilham do propósito de
formação de platéias, exibição de filmes nacionais e de proporcionar a
experiência da recepção coletiva.
O Cine Tela Brasil4, por exemplo, possui uma grande estru-
tura e é possível ver uma preocupação com o espaço de recepção
de modo que este simule uma sala comercial de cinema. O projeto
tem o objetivo de exibir filmes, brasileiros e estrangeiros, em diversos
municípios do país. O “cinema” permanece por três dias na periferia
das cidades e oferece quatro sessões diárias, duas para crianças e
duas para adultos, sendo que já exibiu filmes para mais de 600 mil
espectadores desde 1996.
Em 2007, foi incluída ao projeto a Oficina Itinerante de Vídeo Tela
Brasil. Cineastas-educadores ensinam noções sobre produção de cine-
ma para os moradores das comunidades por onde passam os caminhões
do projeto. Percebe-se aqui mais um movimento desse cenário cinema-
tográfico, que é o de formação de sujeitos nas lógicas de produção, com
o propósito de inclusão audiovisual. Algo que se vê também em projetos
como o “Revelando os Brasis”5, que alia a formação de sujeitos compe-
tentes na lógicas audiovisuais à problemática da exibição de cinema no
país, com o propósito de realizar sessões itinerantes.

4 
Em 1996, por exemplo, os cineastas Laís Bodanzky e Luiz Bolognese criaram o Cine Mambembe,
com um projetor 16mm, uma tela montável e uma Saveiro. Eles exibiam filmes brasileiros em praças
e em escolas de São Paulo. O projeto seguiu até 2004, ano em que, com apoio da Lei de Incentivo
à Cultura (LIC), da CCR Controladora da AutoBan e Nova Dutra, entre outras concessionárias, ele
passou a se chamar Cine Tela Brasil. Em 2005 foram somadas 504 sessões e um total de 100.000
espectadores. Em 2006 somavam-se 200 mil espectadores.
5 
O Revelando os Brasis, projeto do Ministério da Cultura em parceria com a Petrobrase o Institu-
to Marlin Azul, promove a produção de curtas-metragens por moradores de cidades com até 20 mil
sobre os locais onde vivem. Nesse sentido, além de uma proposta de consumo coletivo de filmes
brasileiros, o projeto parece promover a inclusão desses sujeitos no cenário cinematográfico de
modo que possam expressar elementos de suas culturas audiovisualmente. Há a capacitação de
sujeitos para que possam contar suas histórias audiovisualmente. Pontos de Cultura, produções
da CUFA (central única das favelas), Nós do Morro, são também organizações que possuem
atividades nesse sentido.

22
Circuito de exibição periférico

Figura 1: Estrutura externa do Cine Tela Brasil.

Figura 2: Parte interna do Cine Tela Brasil.

23
Dafne Reis Pedroso da Silva

Figura 3: Exibição na cidade de Vinhedo6.

No Rio Grande do Sul, desde 2001, existe outro projeto de gran-


de estrutura chamado RodaCineRGE, que percorre várias cidades do
estado. O projeto é uma iniciativa do Governo do Estado do RS, atra-
vés da Secretaria Estadual da Cultura e do Instituto Estadual de Cine-
ma (IECINE) e é realizado pela Fundação de Cinema RS (FUNDACI-
NE). Desde 2001, o público acumulado supera 372 mil pessoas, em
360 municípios. O RodaCineRGE, diferentemente do Cine Tela Brasil,
faz as sessões ao ar livre ou em espaços cobertos, utilizando a estru-
tura do local, o que possibilita um outro tipo de recepção de acordo
com o espaço adaptado. Além disso, o projetor 35 mm utilizado (raro
nas itinerâncias que utilizam, em sua maioria, projetores digitais) fica
exposto ao fundo, possibilitando que os sujeitos tenham contato com
um equipamento que possivelmente não conheciam.

6 
Disponível em: <http://www.cinetelabrasil.com.br/>. Acesso em: 10 de abr. 2008.

24
Circuito de exibição periférico

Figura 4: Sessão do RodaCineRGE na Praça Saldanha Marinho, em Santa Maria,


durante o 4º Santa Maria Vídeo e Cinema.

Figura 5: Sessão do RodaCineRGE, na cidade de Arvorezinha,


em 13 de setembro de 20057.

Outro projeto, este de menor estrutura, desenvolvido por um coleti-


vo e que suscita a discussão sobre espaços de projeção, é o projeto Acen-
da uma Vela. Criado em 2005 pela Ideário (organização cultural sem fins
lucrativos, de Alagoas), mostra que os filmes podem ser exibidos em telas
pouco usuais. Realizando exibições em localidades litorâneas, Hermano
7 
Disponível em: <http://www.rge-rs.com.br/rodacine_rge>. Acesso em: 10 de abr. 2008.

25
Dafne Reis Pedroso da Silva

Figueiredo projeta os filmes nas velas das embarcações. A programação


do Acenda uma Vela é composta de filmes brasileiros de curta-metragem
com ênfase em temas da cultura popular. O projeto é financiado pelo Mi-
nistério da Cultura, através do Fundo Nacional de Cultura (FNC) e da Se-
cretaria do Audiovisual, e conta, também, com apoios em cada localidade
na mobilização do público, além da parceria dos realizadores que enviam
seus filmes. Essa proposta é um exemplo emblemático do desmonte que
a sala de cinema vem sofrendo enquanto espaço legitimado de exibição
de cinema. As itinerâncias trazem em sua gênese a problematização so-
bre o espaço, sobre a materialidade do consumo.

Figuras 6 e 7: exibições do projeto Acenda uma Vela. Fotos de Nataska Conrado8.

8 
Disponível em: <http://www.acendaumavela.blogspot.com />. Acesso em: abr. 2010.

26
Circuito de exibição periférico

Fotos 8: Exibição do Cineclube Lanterninha Aurélio itinerante em uma escola


rural na cidade de Formigueiro, RS.

Foto 9: Exibição do Cineclube Lanterninha Aurélio itinerante. Fotos: Dafne Pedroso

27
Dafne Reis Pedroso da Silva

O cineclube Lanterninha Aurélio, de Santa Maria, Rio Grande


do Sul, é um exemplo de proposta cineclubista que se mescla às ex-
periências itinerantes. Financiado pela Lei de Incentivo à Cultura, ele
possui uma pequena estrutura. As sessões não têm uma agenda feita
com antecedência e acontecem de acordo com as possibilidades dos
locais de exibição e dos cineclubistas. O projeto se inclui nas sessões
que privilegiam o cinema nacional para receptores de classes popula-
res, e se assemelha a propostas de pequena estrutura que têm uma
preferência pela exibição de curtas-metragens brasileiros.

TENDÊNCIAS E QUESTÕES

Após essa contextualização e relato com exemplos de sessões


itinerantes e de elementos sobre o cineclubismo, uma série de questões
surgem, tais como:
- Em que medida essas práticas contribuem para transformar a
estrutura clássica produção–distribuição–exibição?
- Até que ponto cineclubes e projetos itinerantes são periféricos,
já que no interior do país sequer existem salas de cinema?
- Que implicações esse circuito pode ter no sentido de configurar
as competências cinematográficas do público?
- Como formar platéias com sessões itinerantes esporádicas?
A ideia, nestas considerações finais, não é a de responder, mas
justamente provocar. Pois, se em uma primeira passada de olhos pode
nos parecer que essas propostas promovam a recepção coletiva, a cria-
ção de platéias, é preciso observar, problematizar, tensionar. Digo isso,
porque muitas das atividades itinerantes, por exemplo, não retornam
mensalmente aos mesmos locais para exibição. Sendo assim, como for-
mar público para o cinema brasileiro com espectadores que parecem
consumir, majoritariamente, filmes estrangeiros? Ou seja, não basta pro-
mover o acesso esporádico, mas sim o consumo sistemático, algo que é
visto, por exemplo, no trabalho de muitos cineclubes que possuem ses-
sões semanais de exibição de filmes. Mas como aumentar o número de
pessoas que frequentam essas sessões? É preciso investir em projetos
de exibição de cinema nacional que pensem no espectador de cinema,
que o conheçam. E que conheçam o contexto em que ele está inserido.

28
Circuito de exibição periférico

É necessário considerar, por exemplo, que um sistema de exibi-


ção importado dos Estados Unidos, o qual estabelece a noção de su-
cesso de bilheteria em dezenas de milhões de espectadores, passa a
sedimentar no imaginário do público a ideia de que o blockbuster é o
verdadeiro cinema (BARONE, 2008). Conforme Barone
É impossível construir uma “indústria” ou mesmo dimensionar a
atividade cinematográfica em busca da sua sustentabilidade, com base
apenas nos filmes de grande público. É necessário e importante assegu-
rar a diversidade dos lançamentos para os diferentes públicos (BARO-
NE, 2008, p. 3).
Ou seja, em tempos de audiências fragmentadas, não seria hora
de pensar em pequenos lançamentos? Em cineclubes, itinerâncias, pon-
tos de cultura, pequenas salas?
Para isso estão os circuitos periféricos de exibição, título deste
artigo. Tendência, como trata Barone (2008), que confronta as propos-
tas das majors, pois muitas vezes utilizam cópias de uso doméstico,
não permitidas para sessões públicas, mas que poderiam estar apon-
tando outro caminho, uma nova possibilidade para o cinema nacional.
Ou seja, considerar não somente as grandes salas, mas a projeção
na vela do barco, a igreja que vira cinema (e não o contrário), a praça
cheia de pessoas e iluminada com a projeção em um muro. Pequenas
sessões, que multiplicam platéias e retomam a experiência do coletivo
e do encontro. Não seria o desmonte do cinema a favor do cinema?

REFERÊNCIAS

BARONE, João Guilherme. Sessões do Imaginário. Exibição, crise de público


e outras questões do cinema brasileiro. Porto Alegre, nº 20, Dez. 2008.

LUNARDELLI, Fatimarlei. Quando éramos jovens: história do Clube de Cine-


ma de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/EU da Secretaria
Municipal de Cultura, 2000.

Sites consultados

Cine Tela Brasil


Disponível em: <http://www.cinetelabrasil.com.br/>. Acesso em 10 de abr. 2010.

29
Dafne Reis Pedroso da Silva

Cineclube Lanterninha Aurélio


Disponível em: <http://www.cineclubelanterninhaaurelio.blogspot.com>. Acesso
em 10 de abr. 2010.

Conselho Nacional de Cineclubes


Disponível em: <http:// www.cnc.utopia.com.br>. Acesso em 10 de abr. 2010.

Programadora Brasil
Disponível em: <http://www.programadorabrasil.org.br>. Acesso em 10 de
abr. 2010.

RodaCine RGE
Disponível em: <http://www.rge-rs.com.br/rodacine_rge>. Acesso em 10 de
abr. 2010.

30
TRAÇOS DA INDÚSTRIA DO CINEMA
BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO

Karine dos Santos Ruy

Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: karine.ruy@acad.pucrs.br

RESUMO
O objetivo deste trabalho é traçar um breve perfil dos filmes brasilei-
ros que alcançaram as maiores bilheterias no circuito interno de salas
entre 2003 e 2008, levando em consideração, para isso, elementos
relativos ao esquema de produção e distribuição, próprio da indústria
cinematográfica. Para interpretar tais indicadores, utilizamos nesse ar-
tigo as contribuições teóricas de autores da linha da Economia Política
da Comunicação, sobretudo no que se refere ao estatuto das indústrias
culturais na sociedade contemporânea.

PALAVRAS – CHAVE
Cinema brasileiro
Indústrias culturais
Globo Filmes

ABSTRACT
The intent of this paper is to project a compact profile of Brazilian’s
cinema biggest box office successes in the intern circuit of theaters
between the years of 2003 and 2008, by observing elements of produc-
tion and distribution scheme. To interpret such information, we’ll use
in this paper the theoretical contributions of the Political Economy of
Communication, especially about the statute of cultural industries in
contemporary society.

KEYWORDS
Brazilian cinema
Cultural industries
Globo Filmes
Karine dos Santos Ruy

Em 1960, em uma de suas críticas publicadas no Suplemento


Literário do jornal O Estado de São Paulo, Paulo Emílio Salles Gomes
mostrou seu descontentamento com o modo de se fazer cinema no
Brasil. Num dos trechos do texto anunciado com o sugestivo título Uma
situação colonial?, afirmava o autor que:

O denominador comum de todas as atividades relacio-


nadas com o cinema em nosso país é a mediocridade.
A indústria, as cinematecas, o comércio, os clubes de
cinema, os laboratórios, a crítica, a legislação, os qua-
dros técnicos e artísticos, o público e tudo mais que
eventualmente não esteja incluído nesta enumeração
mas que se relacione com o cinema no Brasil, apre-
senta a marca cruel do subdesenvolvimento (SALLES
GOMES, 1979, p. 11).

Trazendo as palavras do crítico para o cenário cultural brasileiro


da virada do século XX para o XXI, percebemos que a opinião dese-
nhada há 40 anos não empresta sentido para interpretar a realidade do
cinema nacional contemporâneo. Atualmente, o eixo da problemática
enfrentada pelo cinema nacional deslocou-se de questões referentes à
qualidade e às suas especificidades narrativas e de gênero para ques-
tões próprias ao ciclo da cadeia produtiva do cinema. Assim, o conceito
de subdesenvolvimento não parece ser mais uma categoria coeren-
te para se pensar o cinema brasileiro contemporâneo. Uma análise
que mude o foco para os aspectos industriais do cinema nacional e
sua performance no circuito interno de salas nos últimos anos é capaz
de apontar elementos sintomáticos para se compreender a inserção e
consumo dessa espécie de bem cultural no mercado interno.
Desde que o fenômeno Cidade de Deus (Fernando Meirelles,
2002) ganhou destaque fora do país com sua indicação à disputa do
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2004, chamando consequente-
mente a atenção da audiência brasileira para as produções nacionais,
diversos filmes made in Brasil conseguiram lugar ao sol – leia-se um
espaço no disputado circuito de exibição. São títulos como Carandiru
(Hector Babenco, 2002), Os dois Filhos de Francisco (Breno Silveira,
2005) e Tropa de Elite (José Padilha, 2008), exemplares que superaram
a marca dos dois milhões de espectadores no mercado interno. Em
contrapartida, muitas obras cinematográficas produzidas aqui são com-
32
Traços da indústria do cinema brasileiro contemporâneo

pletamente desconhecidas do público por não terem a força comercial e


apoio necessário para entrar nesse circuito.

(...) o cinema brasileiro nestes anos recentes teve mo-


mentos fortíssimos em certas obras, em meio às pou-
cas chances dadas aos muitos estreantes e aos es-
quemas predominantes entre is veteranos do mercado.
Dentro das limitações trazidas por esta pretensa diver-
sidade, é possível encontrar jóias tanto em alguns dos
formatos que a década viabilizou como em outros que
ela praticamente esgoelou (CAETANO, 2005, p. 239).

Posto isso, interessa-nos aqui procurar traços de semelhança e


continuidade nas maiores bilheterias do cinema brasileiro contemporâ-
neo, ao qual este trabalho delimita como o período que vai de 2003 (pós
Cidade de Deus) a 2008. O objetivo é analisar características pontuais
do título que conquistou a maior bilheteria em cada ano dentro do pe-
ríodo sugerido, com a intenção de evidenciar suas especificidades na
tríade produção – distribuição – exibição (BARONE, 2005)1.
Essa breve pesquisa parte do pressuposto da existência de uma
indústria cinematográfica no Brasil – centrada, sobretudo, na etapa de
produção e calcada em mecanismos institucionais de apoio – mas cuja
estrutura ainda carece de investimentos estratégicos para que consiga
se transformar em um agente capaz de proporcionar uma diversidade
cultural ao setor audiovisual brasileiro. As contribuições teóricas que me-
lhor se integram à proposta de estudar o cinema, a partir dos agentes
da tríade referida por Barone, são tomadas, sobretudo, da Economia
Política da Comunicação, linha que se caracteriza por “focalizar fatores
estruturais e processo de trabalho na produção, distribuição e consumo
da comunicação” (SERRA, 2007, p. 68).
Primeiramente, para compreender as especificidades do cinema
em sua tríade produção – distribuição – exibição, devemos lançar um
olhar para além do território da chamada sétima arte, indo em direção aos
condicionamentos próprios das indústrias culturais. Como avalia Sadoul
1 
Embora não faça parte do recorte temporal escolhido para este artigo, é necessário chamar a aten-
ção para alguns fatos relevantes do mercado cinematográfico brasileiro em 2010. Nesse ano, Tropa
de Elite 2, dirigido por José Padilha, se tornou o filme brasileiro mais visto da história, registrando
11.023.475 espectadores entre outubro e dezembro. Até então, o ranking era liderado por Dona flor e
seus dois maridos (Bruno Barreto, 1976), que foi visto no circuito de salas por 10.735.524 pessoas. Em
2010, houve um crescimento de 56,77% no público do cinema brasileiro em relação a 2009.

33
Karine dos Santos Ruy

Não se pode imaginar um cineasta realizando gran-


des filmes desconhecidos de todos. A necessidade de
empregar capitais consideráveis impõe aos criadores
condições precisas para a elaboração de suas obras.
É, portanto, impossível estudar a história do cinema
como arte (...) sem evocar os seus aspectos indus-
triais. E a indústria é inseparável da sociedade, de sua
economia e sua técnica (1964, p. 8).

Tendo consciência que nos referimos a uma sociedade em rede


e globalizada, é imprescindível levar em consideração o contexto em
que esse cinema é produzido, abrangendo a atuação e interação en-
tre diversas espécies de agentes – econômicos, culturais e políticos,
por exemplo – na configuração desse cenário. Como alerta Moraes,
tornou-se importante perceber que a cultura

(...) está imersa na lógica do lucro que preside a


expansão da forma- mercadoria a todos os campos
da vida social. Integrada, como as demais áreas
produtivas, ao consumismo, a esfera cultural torna-
se componente essencial na lubrificação do siste-
ma econômico, a ponto de o setor do entretenimen-
to, juntamente como o se software, liderar a pauta
de exportações dos Estados Unidos (MORAES,
2003, p. 37).

Foi, afinal, a concentração de capital e o acesso às tecnolo-


gias os fatores preponderantes para que os Estados Unidos e sua
Hollywood se consagrassem como maior produtor/exportador/distribui-
dor de produtos audiovisuais do mundo, detendo hoje 85% do mercado
cinematográfico global. Levantamento realizado pela Screen Digest,
em outubro de 2000, mostrou que a produção dos Estados Unidos ocu-
pou aproximadamente metade do mercado exibidor em 90% do mundo
(BARONE, 2005, p.125). Tal competência influencia diretamente nas
cinematografias realizadas fora do eixo norte-americano. O relatório da
Agência Nacional do Cinema (Ancine)2 oferece um exemplo: em 2008,
dos 89.960,164 espectadores que compareceram às salas de cinema
no país, somente 9.143,052 assistiram filmes brasileiros.
2 
Criada em 2001 e vinculada ao Ministério da Cultura, a Ancine tem como atribuições o fomento, a
regulação e a fiscalização do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil.

34
Traços da indústria do cinema brasileiro contemporâneo

A disparidade se deve à própria estrutura da indústria cinemato-


gráfica, sobretudo ao poder estratégico conferido ao setor de distribui-
ção, indispensável para que o produto filme encontre uma audiência.
Barone define a distribuição como o sistema que

Opera os canais e os meios necessários a circu-


lação o produto audiovisual, visando ao seu con-
sumo pelo maior número possível de pessoas. É o
setor que responde pela efetiva comercialização do
produto igualmente caracterizado pela grande con-
centração de capital e alto grau de especialização
(Ibidem, p. 35).

Bustamante também destaca o papel da distribuição no siste-


ma cinematográfico, afirmando que “somente com seu domínio avan-
çado se pode garantir tais operações, facilitadas pela concentração
também travada nas cadeias de salas – multiplex, megaplex, prefe-
rencialmente” (BUSTAMANTE, 2003, p. 32).
Chegamos ao ponto-chave da proposta deste trabalho: a ca-
pacidade do cinema nacional fazer-se visto. A formulação de políti-
cas públicas específicas deu suporte ao setor e vem viabilizando sua
produção através de mecanismos como mecenato e renúncia fiscal.
A distribuição e exibição, contudo, não foram abarcadas pelo Esta-
do, deixando a grande maioria dos filmes nacionais desprovidos de
qualquer espécie de auxílio estratégico para se inserir no disputado
circuito de exibição tradicional. Ao não atrair o interesse de majors3 do
setor, e consequentemente condenados a um espaço limitado na ca-
deia de exibição – ou a espaço algum –, uma leva de filmes brasileiros
é desconhecida de seus espectadores em potencial.
Mas há uma contrapartida. Analisando dados da Ancine sobre a
atuação do cinema brasileiro desde 2003, vemos em cada ano a exis-
tência de filmes que conseguem se inserir com sucesso nas cadeias
de distribuição e alcançar um público considerado alto para os padrões
nacionais (mais de 1 milhão de espectadores). As perguntas a [tentar]
responder são: o que difere esses filmes da grande maioria dos títulos
lançados no país e quais foram suas práticas de produção-distribuição?
3 
O termo é utilizado para se referir aos grandes estúdios e distribuidoras de cinema, com atu-
ação global no mercado audiovisual. Empresas como Fox Filmes, Warner e Sony Pictures são
exemplos de majors.

35
Karine dos Santos Ruy

OS SUCESSOS DO CINEMA BRASILEIRO RECENTE

O primeiro passo para traçar um breve perfil sobre os sucessos


de bilheteria do cinema brasileiro contemporâneo é observar alguns
dados relativos à produção e distribuição, reunidos na tabela 1. Nela,
vemos a presença de grandes produtores e distribuidores associados
aos filmes brasileiros de maior rendimento do período.
O destaque são as majors internacionais: Columbia Tristar, Fox
Film, Universal Pictures e Sony Pictures. A Columbia Tristar, por exem-
plo, participou como co-produtora e distribuidora exclusiva de Carandi-
ru, Cazuza – O Tempo não para (Sandra Werneck e Walter Carvalho,
2004) e Os dois filhos de Francisco. Ou seja, ela esteve presente em
três das seis maiores bilheterias do cinema nacional entre 2003 e 2008.
Apenas Tropa de Elite não se associou a uma empresa estrangeira
durante sua produção, mas deixou a etapa da distribuição sob os cui-
dados da Universal Pictures e da The Weinstein Company. Vemos aí

(...) uma espécie de transnacionalização cultural na


qual os canais fluem todos para uma única direção,
dos centros para periferia, concentrando sempre seu
domínio em elites ou grupos que monopolizam ou
compartilham, em feroz concorrência, seus meios de
capital e sua capacidade tecnológica para fortalecer
sua influência sobre o pensamento e os valores da
população (LÓPEZ e ORTEGA, 1997, p.177).

Mais interessante ainda é constatar a presença maciça da Globo


Filmes. Nessa listagem, o braço da Rede Globo no cinema aparece em
cinco dos seis filmes relacionados, sempre associada a outros co-produ-
tores. Novamente, somente Tropa de Elite não foi incluído na regra.
Essas informações, mesmo superficiais, são válidas e eficazes
para qualquer proposta de se compreender o mercado cinematográfico
do Brasil da última década. Tal relato nos mostra que os filmes nacionais
com uma trajetória satisfatória no mercado interno seguiram um padrão
de produção/comercialização próprio à indústria audiovisual norte-ame-
ricana: associação a monopólios com o aporte financeiro e midiático ca-
paz de fazer o produto circular de forma eficiente (distribuição) e atrair a
atenção da audiência consumidora desse meio (marketing/divulgação).

36
Traços da indústria do cinema brasileiro contemporâneo

Filme Ano Produção Direção Distribuição Público

Carandiru 2003 HB Filmes/Globo Hector Columbia TriStar 4.693.853


Filmes/ Columbia Babenco
TriStar
Globo Filmes/ Sandra
Cazuza –
Lereby Produções/ Wernech
O Tempo 2004 Columbia TriStar 3.082.522
Cineluz Produções/ / Walter
não para
Columbia Tristar Carvalho
Globo Filmes/
Os dois Conspiração Filmes/
Breno COLUMBIA
filhos de 2005 ZCL Produções 5.319.677
Silveira TRISTAR
Francisco Artísticas/ Columbia
Tristar
Globo Filmes/ Total
Se eu
Filmes/ Lereby
fosse 2006 Daniel Filho Fox Film do Brasil 3.644.956
Produções/ Fox Film
você
do Brasil
Universal
Tropa de Pictures do Brasil
2007 Zazen Produções José Padilha 2.417.193
Elite / The Weinstein
Company
Globo Filmes/
Meu Atitude Produções/ Downtown
nome não 2008 Sony Pictures Home Mauro Lima Filmes/ Sony 2.000.000
é Johnny Entertainment/ Pictures
Teleimage/ Apema

Tabela 1: Maiores bilheterias do cinema brasileiro entre 2003 e 2008, segundo a Ancine4

Resumindo, a relevância da participação de grandes produtoras


e distribuidores nos longas brasileiros – assim como em qualquer cine-
matografia – é sua capacidade de operar em duas frentes cruciais para
a carreira de um filme: torná-lo disponível aos espectadores e trabalhar
para despertar o interesse desse público consumidor.
E é justamente pelo quesito “despertar o interesse do público”
que faz necessário olhar com atenção ao papel da Globo Filmes no
cinema brasileiro contemporâneo. Trata-se, afinal, de uma produto-
ra ligada ao maior grupo midiático do país. Na prática, isso significa
poderosas campanhas de marketing e propaganda dos lançamentos
em questão. Mesmo atuando como produtora associada, e sendo as
ações de marketing etapa abrangida pela distribuição, a Globo Filmes
usa seu aporte midiático para divulgar os filmes do qual participa,
4 
As estatísticas sobre o mercado cinematográfico nacional são disponibilizadas pelo Observatório
Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (O.C.A.) no portal da Ancine: http://www.ancine.gov.br/oca/.

37
Karine dos Santos Ruy

incluindo merchandising no roteiro de novelas e outros programas


de boa audiência do grupo. Segundo Butcher, “o ‘capital’ que a Glo-
bo Filmes oferece aos produtores não é dinheiro, mas uma moeda
ainda mais valorizada no mercado do audiovisual: espaço na mídia”
(2005, p. 90).

O importante é que a Globo dá a certeza de uma es-


trutura nacional de divulgação que pode se dar nos
formatos tradicionais (anúncios e spots de TV) ou na
chamada cross media citação e promoção nos progra-
mas da casa). Dessa maneira, a Globo demonstrou
imenso poder para alavancar o filme nacional naqui-
lo que ele tem maior fraqueza e relação ao produto
norte-americano: os altos investimentos em marketing
(BUTCHER, 2005, p. 75).

O pesquisador conclui, ainda que, ao projetar-se na área do cine-


ma, o objetivo da Rede Globo era

(...) manter o controle sobre a produção e sustentar a


hegemonia no campo da produção de narrativas au-
diovisuais do país, posição que a TV globo assumiu a
partir de meados da década de 70, mas que começou
a se desestabilizar, principalmente, com o surgimento
de novas tecnologias de difusão e consumo da ima-
gem (Ibidem, p. 88).

O primeiro longa-metragem a levar o selo da Globo Filmes foi O


Auto da Compadecida (1999), de Guel Arraes. Mas o filme que definiria
de vez a participação do grupo no setor foi Cidade de Deus (2002). A
parceria foi acertada somente no período de lançamento do filme, a
cargo da distribuidora Lumière. Na época, até as previsões mais oti-
mistas, que previam 1 milhão de espectadores, foram desbancadas.
Cidade de Deus tornou-se um fenômeno no mercado cinematográfico
brasileiro, ultrapassando a marca de 3,3 milhões de ingressos vendi-
dos. Trata-se de um marco qualitativo, responsável por despertar nova-
mente o interesse do público brasileiro pelos filmes nacionais.

O filme foi capaz de atrair espectadores que esta-


vam longe dos cinemas, lotando os multiplex mais

38
Traços da indústria do cinema brasileiro contemporâneo

elitizados e os “cinemas de rua” mais populares.


Cidade de Deus instaurou-se no centro do deba-
te nacional ultrapassando o nicho dos cadernos
culturais e configurando-se como um “filme even-
to” brasileiro. A violência urbana deixou de ser um
tema tabu para o cinema de retomada (BUTCHER,
2005, p. 90).

O efeito Cidade de Deus estende-se a Carandiru, primeiro fil-


me apresentado pela tabela 1 deste trabalho. Além de ser a segunda
maior bilheteria do período, o longa dirigido por Hector Babenco se
destacou em um cenário peculiar dentro do mercado cinematográfico
brasileiro: o número de espectadores voltou aos 100 milhões (marca
não ultrapassada desde 1989), sendo que os filmes brasileiros repre-
sentaram 21,4% deste total. O filme, que seguiu a trilha de Cidade de
Deus e mergulhou na temática social da criminalidade e da violência,
ganhou altos investimentos em distribuição da Columbia, um reflexo do
sucesso do antecessor.
As particularidades do ano de 2003 na esfera do cinema nacio-
nal não se resumem às cifras de Carandiru; a participação da Globo
Filmes também não. No mesmo ano, outros seis filmes brasileiros ultra-
passaram a marca de 1 milhão de espectadores. Em um único final de
semana, três títulos nacionais - Os Normais (José Alvarenga Jr, 2003),
Maria – Mãe do Filho de Deus (Moacyr Góes, 2003) e Lisbela e o Pri-
sioneiro (Guel Arraes, 2003) - ocuparam as posições inicias no ranking
das maiores bilheterias, atingindo 70% do mercado (BUTCHER). A Glo-
bo Filmes estava associada às seis produções.
Essas informações indicam que o cinema brasileiro comercial-
mente sustentável vem seguindo o padrão hollywoodiano no que diz
respeito à participação de conglomerados da comunicação e investi-
mentos generosos em marketing para atrair o consumidor-espectador.
Mas seguindo essa lógica, o que justificaria o sucesso de Tropa de Eli-
te? Primeiramente, um filme deve ser apreendido como um espetáculo,
e uma vez assim o considerando é necessário levar em consideração
a imprevisibilidade de fenômenos dessa ordem. Como argumenta Dou-
glas Kellner em sua crítica a Guy Debord, “as políticas do espetáculo
são imprevisíveis e os espetáculos nem sempre conseguem manipular
o público e podem falhar” (KELLNER, 2003, p. 138).

39
Karine dos Santos Ruy

No caso de Tropa de Elite o espetáculo não falhou; pelo con-


trário, foi superdimensionado. O filme sobre as intervenções do BOPE
nas favelas cariocas não foi divulgado por vias tradicionais, com es-
paços pagos por propaganda nos veículos de comunicação. A fórmula
foi muito mais eficaz. A pirataria do filme entrou na pauta da mídia
jornalística, e logo foi a vez do conteúdo do longa ser polemizado.
Ao invés de ocupar espaço somente nas editorias de Cultura dos jor-
nais e revistas, Tropa de Elite ganhou capas e reportagens especiais.
Quando o filme venceu o Festival de Berlim, em 2008, novamente
agendou a mídia.
Percebe-se, assim, que para conquistar um público acima da
média e concorrer com o arsenal hegemônico norte-americano as
produções nacionais precisam se destacar aos olhos do especta-
dor. E em tempos que as decisões de consumo são mais práticas
que ideológicas, a fórmula é destacar-se midiaticamente, seja pelas
ações articuladas das majors envolvidas ou por particularidades que
despertem o interesse do campo jornalístico, como a pirataria de
Tropa de Elite.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O quadro recente do mercado cinematográfico brasileiro indica


a formação de uma hegemonia dentro do próprio cinema brasileiro.
Trata-se de uma hegemonia das bilheterias, portanto comercial, mas
nem por isso menos importante de ser analisada. Afinal, estamos dian-
te de um modelo de autossustentação de projetos cinematográficos al-
tamente exclusivos, à disposição de muito poucos. A maioria dos filmes
realizados no Brasil é financiada por mecanismos públicos de incentivo
à cultura, por intermédio da Ancine. Essa mesma maioria também não
conta com distribuidores, restringindo sua exibição a um circuito limita-
do de espectadores. Outros títulos sequer conseguem pleitear espaço
em uma sala de exibição.
Diante de cenários tão opostos, a questão a ser observada da-
qui pra frente é como esses mecanismos de produção sustentável via
majors e Globo Filmes poderão interferir nos gêneros típicos de uma
cinematografia nacional. Na lista de filmes que foi apresentada no de-
correr deste trabalho, as temáticas enraizadas na sociedade brasileira
contemporânea foram praticamente constantes. Aparecem ali a crimina-
40
Traços da indústria do cinema brasileiro contemporâneo

lidade (Carandiru, Tropa de Elite e Meu nome não é Johnny) e biografias


de personagens conhecidos do grande público (Cazuza – O Tempo não
para e Dois Filhos de Francisco, sobre a história dos cantores sertanejos
Zezé Di Camargo e Luciano). Foge à regra a comédia romântica Se eu
fosse você (Daniel Filho, 2006), cujo roteiro trabalha em um tema já co-
mum no cinema: pessoas que passam por uma experiência sobrenatural
de troca de corpos. A autenticidade do filme, no que diz respeito a esse
caráter regional, fica por conta dos protagonistas Glória Pires e Tony
Ramos, atores de sucesso em telenovelas da própria Globo. A temática
e o gênero, por sua vez, são recorrentes no cinema hollywoodiano norte-
americano consumido pelos espectadores brasileiros, sobretudo na gra-
de da televisão aberta – Sexta-feira muito louca (Mark S. Waters, 2003),
De repente 30 (Gary Winick, 2004), Tal pai, tal filho (Rod Daniel, 1987) e
Vice versa (Brian Gilbert, 1988), por exemplo.
Levando em consideração que na sociedade de massa a cultura
em escala industrial é produzida para tentar conquistar a maior audiên-
cia possível, o potencial de consumo em busca de um retorno financeiro
satisfatório sempre será explorado ao máximo. No campo do cinema,
esse esquema não se atém à pós-produção, com seus sofisticados me-
canismos de promoção e venda; ele pode determinar a escolha do rotei-
ro, não por critérios de qualidade narrativa, mas de potencial econômi-
co. Como bem coloca Achille, “a ordem não é vender o que se produz,
mas produzir o que se pode vender” (ACHILLE apud BUSTAMANTE,
2003, p. 32). Diante disso, é relevante tentar proteger das especifici-
dades mercadológicas da linha de produção cultural a originalidade da
cinematografia nacional.
Isso não significa a condenação da indústria cinematográfica que
dá sinais de fortalecimento no país. Em um mercado tão competitivo
como o cinematográfico, todas as iniciativas de dar espaço e atrair aten-
ção para o cinema nacional são válidas e devem ter continuidade. Mas
o cinema tem que continuar sendo nacional, e não apenas nos crédi-
tos apresentados ao final da exibição, mas em seu caráter cultural de
representação e construção de imaginários que nos são próximos, co-
nhecidos. É essa sua especificidade, é esse seu diferencial, é esse seu
argumento mais eficiente para conquistar o público.
Em um mercado que ainda tenta se estruturar, produzir filmes
seguindo apenas um padrão de consumo capaz de garantir seu “suces-

41
Karine dos Santos Ruy

so” em termos de bilheteria pode ser entendido como uma prática cons-
trangedora à diversidade das narrativas audiovisuais que historicamen-
te diferencia as cinematografias nacionais. Contudo, pelos movimentos
que se observam nos últimos anos, essa reprodução interna de um
modelo de indústria cinematográfica assimétrica, no qual os grandes
investimentos em distribuição e marketing transformam-se em compo-
nentes quase imprescindíveis para mobilização de espectadores, está
conseguindo se consolidar como um novo padrão para o mercado de
cinema brasileiro.

REFERÊNCIAS

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Disponível em <http://www.ancine.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=804>.
Acesso em 20 de maio de 2009.

BARONE, João Guilherme. Comunicação e Indústria Audiovisual: Cená-


rios Tecnológicos & Institucionais do cinema brasileiro na década de
1990. Dissertação apresentada a Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, 2005.

BUSTAMANTE, Enrique (org.). Hacia um nuevo sistema mundial de comuni-


cación. Barcelona: Editorial Gedisa, 2003.

BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje. São Paulo: Publifolha, 2005.

CAETANO, Daniel. Cinema brasileiro 1995 – 2005 – Ensaios sobre uma déca-
da. Rio de Janeiro: Contracampo, 2005.

KELLNER, Douglas. “Cultura da mídia e triunfo do espetáculo”. In: MORAES,


Dênis de. (org.). Por uma outra comunicação – Mídia, mundialização cultural
e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003.

LÓPEZ, Silvana Levi de., ORTEGA, Graciela Uribe. “Globalização e frag-


mentação. O papel da cultura e da informação”. In: SANTOS, M. et al.
(org.). O novo mapa do mundo – Fim de século e globalização. São Paulo:
Hucitec, 1997.

MORAES, Dênis de. “A tirania do fugaz: Mercantilização cultural e saturação


midiática”. In: MORAES, Dênis de. (org.). Por uma outra comunicação –
Mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003.

42
Traços da indústria do cinema brasileiro contemporâneo

SADOUL, Georges. A História Mundial do Cinema. São Paulo: Martins, 1964.

SALLES GOMES, Paulo Emílio. Uma situação colonial. Arte em Revista: anos
60. Ano 1. nº.1, São Paulo: Centro de Estudos de Arte Contemporânea/Kayrós.
jan./mar. 1979, p.11-14.

SERRA, Sônia. “Vertentes da economia política da comunicação e jornalis-


mo”. In: Metodologias de Pesquisa em Jornalismo. Petrópolis, RJ: Editora
Vozes, 2007.

FILMES CITADOS

2 FILHOS de Francisco – A História de Zezé di Camargo & Luciano. Breno Sil-


veira, 2005, 132’, Colorido. Produtora: Conspiração Filmes. Roteiro: Carolina
Kotscho e Patrícia Andrade. Origem: Brasil. Elenco: Ângelo Antônio, Dira Paes,
Márcio Kieling, Thiago Mendonça, Paloma Duarte.

CARANDIRU. Hector Babenco, 2003, 145’, Colorido. Produtora: HB Filmes. Ro-


teiro: Hector Babenco, Fernando Bonassi, Victor Navas. Origem: Brasil. Elenco:
Luiz Carlos Vasconcelos, Milton Gonçalves, Maria Luisa Mendonça, Lázaro Ra-
mos, Wagner Moura, Rodrigo Santoro.

CAZUZA – O Tempo não para. Sandra Werneck e Walter Carvalho, 2004, 98’,
Colorido. Produtora: Lereby Produções. Roteiro: Fernando Bonassi e Victor Na-
vas. Origem: Brasil. Elenco: Daniel de Oliveira, Dudu Azevedo, Andréa Beltrão,
Débora Falabella, Maria Flor.

CIDADE de Deus. Fernando Meirelles, 2002, 132’, Colorido. Produtora: O2 Fil-


mes. Roteiro: Bráulio Montovani. Origem: Brasil. Elenco: Alexandre Rodrigues,
Matheus Nachtergaele, Leandro Firmino.

DONA flor e seus dois maridos. Bruno Barreto, 1976, 120’, Colorido. Produtora:
Carnaval Unifilm, Cia Sr e Coline. Roteiro: Bruno Barreto, Eduardo Coutinho e
Leopoldo Serran. Origem: Brasil. Elenco: Sônia Braga, José Wilker, Mauro Men-
donça, Débora Brillanti.

DE repente 30= 13 Going on 30. Gary Winick, 2004, 98’, Colorido. Produtora: Re-
volution Studios e Thirteen Productions. Roteiro: Josh Goldsmith, Cathy Yuspa.
Origem: Estados Unidos. Elenco: Jennifer Garner. Mark Ruffalo, Judy Greer.

LISBELA e o Prisioneiro. Guel Arraes, 2003, 106’, Colorido. Produtora: Natasha


Enterprises. Roteiro: Guel Arraes, Pedro Cardoso, Jorge Furtado. Origem: Bra-
sil. Elenco: Selton Mello, Selton Mello, Virginia Cavendish, Bruno Garcia.

43
Karine dos Santos Ruy

MARIA – Mãe do Filho de Deus. Moacyr Góes, 2003, 107’, Colorido. Produtora:
Diler & Associados. Roteiro: Thiego Balteiro, Marta Borges, Moacyr Góes, Mar-
co Ribas de Farias, Maria de Souza. Origem: Brasil. Elenco: Giovanna Antonelli,
Luigi Barricelli, Padre Marcelo Rossi, José Wilker, José Dumond.

MEU nome não é Johnny. Mauro Lima, 2008, 107’, Colorido. Produtora: Ati-
tude Produções e Empreendimentos Ltda. Roteiro: Mauro Lima (roteiro), Ma-
riza Leão. Origem: Brasil. Elenco: Selton Mello, Cléo Pires, Júlia Lemmertz,
Cássia Kiss.

O Auto da Compadecida. Guel Arraes, 1999, 104’, Colorido. Produtora: Glo-


bo Filmes. Roteiro: Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão. Origem: Bra-
sil. Elenco: Matheus Natchergaele, Selton Mello, Diogo Vilela, Denise Fraga.

OS Normais. José Alvarenga Jr, 2003, 88’, Colorido. Produtora: Missão Impossí-
vel Cinco Produções Artísticas. Roteiro: Alexandre Machado e Fernanda Young.
Origem: Brasil. Elenco: Fernanda Torres, Luiz Fernando Guimarães, Fernanda
Torres, Marisa Orth, Evandro Mesquita.

SE eu fosse Você. Daniel Filho, 2006, 108’, Colorido. Produtora: Total En-
tertainment. Roteiro: Adriana Falcão, Daniel Filho, Renê Belmonte e Carlos
Gregório. Origem: Brasil. Elenco: Glória Pires, Tony Ramos, Thiago Lacerda,
Danielle Winits.

SEXTA-feira muito louca= Freaky Friday. Mark S. Waters, 2003, 93’, Colorido.
Produtora: Walt Disney Pictures / Gunn Films / Casual Friday Productions. Roteiro:
Heather Hach e Leslie Dixon. Origem: Estados Unidos. Elenco: Jamie Lee
Curtis, Lindsay Lohan, Mark Harmon.

TAL pai, tal filho= Like Father Like Son. Rod Daniel, 1987, 96’, Colorido. Pro-
dutora: Imagine Films Entertainment. Roteiro: Steve Bloom, Lorne Cameron.
Origem: Estados Unidos. Elenco: Dudley Moore, Kirk Cameron, Margaret Collin,
Catherine Hicks, Sean Astin, Patrick O Neal.

TROPA de Elite. José Padilha, 2007, 115’, Colorido. Produtora: Zazen Filmes.
Roteiro: José Padilha, Rodrigo Pimentel e Bráulio Montovani.

Origem: Brasil. Elenco: Wagner Moura, Caio Junqueira, André Ramiro,


Maria Ribeiro.

VICE-Versa. Brian Gilbert, 1988, 98’, Colorido. Produtora: Columbia Pictures.


Roteiro: Dick Clement e Ian La Frenais. Origem: Brasil. Elenco: Judge Reinhold,
Fred Savage , Swoosie Kurtz, William Prince.

44
O JOGO CINEMATOGRÁFICO DE CAMA DE GATO

Isabel Almeida Marinho do Rêgo

Publicitária. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: bel_marinho@hotmail.com

RESUMO
O filme brasileiro Cama de Gato é o objeto deste artigo e, a partir da
análise fílmica, pode ser observado como a sinergia entre a lingua-
gem cinematográfica e os jogos representam a cultura dos jovens
contemporâneos. Jovens imersos em uma profusão de mensagens e
meios com diferentes tipos de linguagens que demonstram a carac-
terística cultural e social da atualidade denominada neotribalização,
por Michel Maffesoli.

PALAVRAS – CHAVE
Cultura juvenil
Cinema brasileiro
Jogos

ABSTRACT
The Brazilian movie Cama de Gato is the object of this article and,
through film analysis, we can observe how the synergy between cine-
matographic languages and games represent the contemporary youth
culture. Young people immersed in a profusion of messages and me-
dia with different kinds of languages which demonstrate cultural and
social characteristics of the present time named neotribalization by
Michel Maffesoli.

KEYWORDS
Youth culture
Brazilian cinema
Games

O cinema é um tipo de arte mídia que revela traços culturais da


sociedade em que está imerso, por isso o filme Cama de Gato foi esco-
lhido como objeto de estudo deste artigo. Ele representa em sua sinergia
Isabel Almeida Marinho do Rêgo

com a linguagem dos jogos a cultura jovem contemporânea, caracteriza-


da por Michel Maffesoli como neotribalização.
A presença de elementos característicos dos jogos no filme Cama
de Gato remete a traços da tribalização, entre outras razões, por ser um
tipo de atividade em que o estar-junto é importante; grupos se formam
em torno de jogos na busca da diversão em grupo, o hedonismo compar-
tilhado; pela descrença nos valores e tradições e busca por outros ideais
mesmo que temporários, pela evasão desta realidade que o jogo com
suas regras próprias proporciona; pela liberdade, tão valorizada atual-
mente, mas ainda buscada em seu sentido pleno, de liberdade radical,
fuga das regras, o livre arbítrio abordado pelos jovens no filme traz a
noção de liberdade para a realidade.
Os jovens apresentam uma cultura própria bastante influenciada
pelas ferramentas tecnológicas de que fazem uso, as obras de arte e
mídia que retratam esse público refletem diretamente essa influência e
revelam como a cultura jovem se mostra atualmente.
O cinema atual conta com vários recursos para representar e
atrair a atenção dos jovens, buscando muitas características típicas
dos quadrinhos, jogos, animações, videoclipes e programas de tele-
visão, linguagens habituais para os jovens, por isso o filme escolhido
consegue manter um diálogo bem próximo com a cultura juvenil. Não
é uma novidade o cinema dialogar e trazer características de outras
formas de arte e comunicação, mas as inovações nas tecnologias de
informação e comunicação trouxeram novos elementos para o cinema,
e a comunicação com os jovens atualmente requer uma diversidade de
formatos e técnicas.
A convivência diária com a televisão e os meios eletrônicos em
geral tem mudado substancialmente a maneira como o espectador se
relaciona com as imagens técnicas e isso tem consequências diretas na
abordagem do cinema.

A JUVENTUDE E A SINERGIA ENTRE AS LINGUAGENS

Por meio da caracterização da juventude como a fase intermedi-


ária entre a infância e a vida adulta, sem a delimitação baseada apenas
em idades, é simples perceber seu início. A transição entre infância, ado-
lescência e juventude é identificada pelas perceptíveis mudanças físicas
46
O jogo cinematográfico de Cama de Gato

e comportamentais, mas não há uma delimitação evidente entre juven-


tude e vida adulta, entretanto há comportamentos sociais e culturais que
sinalizam uma cultura dos jovens.
O jovem procura formar nos aspectos biológicos, psíquicos e so-
ciais uma identidade socialmente reconhecida mais ampla que a vivida
na família. Os jovens estão num período de escolhas, de experimenta-
ção, possuem vitalidade e disposição para viver os mais diversos tipos
de situações e correr riscos. Os adolescentes ainda estão numa fase de
descoberta do próprio corpo, de sua identidade, de suas afinidades e no
ingresso inicial em distintas esferas da vida.
Erikson (1987) caracteriza a juventude como uma “moratória
psicossocial” que antecede a entrada no mundo adulto, um período de
procura de alternativas e experimentação de papéis que permitem um
trabalho de elaboração interna, também caracterizada pelas necessi-
dades e exigências socioculturais.
Assim como a geração dos nascidos nas décadas de 60 e 70
contaram com o rótulo de geração X, os jovens nascidos entre 80 e 90
contam com a denominação de geração Y, e com o título vêm as carac-
terizações, que em sua maioria são estereótipos e generalizações, mas
há algumas ideias que ajudam a refletir sobre a contemporaneidade.
A primeira associação feita com a geração Y remete às tecnolo-
gias de informação, comunicação e entretenimento desenvolvidas nos
últimos anos. Os jovens estão acostumados a absorver as informações
com a lógica dos links da internet, alternando a navegação entre diversos
sites, comunicando-se pelos programas de conversa on-line enquanto
navegam na rede, ou ainda enquanto falam ao celular; não gostam ou
não têm paciência para processos muito longos, demorados. A capa-
cidade de dividir a atenção entre várias atividades é uma necessidade
decorrente do número de ferramentas de comunicação e informação, e
suas demandas de atenção.
O Blog Geração Y é escrito por vários jovens e aborda temas
relacionados a cinema, teatro, jogos, ecologia e tecnologia, a definição
sobre eles mesmos faz referência às tecnologias:

Falar no celular, dominar a internet e ouvir música...


tudo ao mesmo tempo! Jovens antenados, de mente
aberta e ambiciosos: essa é a Geração Y. Vivendo na
velocidade da cena pop e da tecnologia, somos a ge-

47
Isabel Almeida Marinho do Rêgo

ração capaz de se relacionar e até impactar o mundo


sem sair de casa. (BLOG GERAÇÃO Y, 2008).

A familiaridade dos jovens com as ferramentas tecnológicas


de comunicação, informação e entretenimento é uma das qualidades
da geração que acompanhou a ascensão meteórica da tecnologia em
uma sociedade cada vez mais dependente das máquinas.
O surgimento de diferentes tecnologias originou produtos artís-
ticos e culturais com várias linguagens e hibridização entre elas. A for-
ma que o filme Cama de Gato dialoga com as diversas linguagens e
tecnologias revela muitos traços da cultura jovem e do período atual:
a linguagem híbrida que traz características de jogos, programas de
televisão, internet e videoclipes; o ritmo da montagem acompanhan-
do a tendência atual de muitas informações transmitidas em pouco
tempo; a relação instintiva com o tempo, que não segue sempre uma
linearidade; os vários focos narrativos; as sequências sendo intensifi-
cadas pela trilha sonora.
Os recursos tecnológicos auxiliam na produção dos filmes e, as-
sim como a vida cotidiana está intimamente ligada às tecnologias de
informação e comunicação, essas ferramentas estão dentro do enredo
do filme Cama de Gato, sendo utilizados pelos personagens, e estão
por trás das telas auxiliando o realizador em várias etapas do processo
cinematográfico, influenciando duplamente a narrativa. Filmadoras e
câmeras de vídeo digitais, de circuito de segurança e webcams fazem
parte da narrativa do filme, e oferecem diferentes ângulos e texturas
para que o espectador acompanhe a história contada.
Há uma longa tradição de diálogo e colaboração entre os diver-
sos meios e suas linguagens características; nos anos 60 e 70 foram
realizados filmes voltados para a exibição na televisão e alguns cineas-
tas dirigiam séries de televisão, como Godard.
Historicamente anteriores ao aparecimento da televisão, do ví-
deo e da Internet, a linguagem e a narrativa cinematográficas, de acor-
do com Gerbase (2003), podem ser consideradas as bases sobre as
quais todas as outras linguagens e narrativas audiovisuais se estabele-
ceram. Mas no caminho inverso, os realizadores contemporâneos, que
conviveram com vários tipos de linguagens já diferenciadas do cinema,
trazem características específicas dos outros meios, atingindo o dina-
mismo necessário para atrair o público contemporâneo.
48
O jogo cinematográfico de Cama de Gato

O cinema começa a absorver, com a velocidade bai-


xa que lhe é própria, alguns componentes estéticos
do pós-modernismo. (...) resultado de um ambiente,
ou de uma “condição” (Lyotard) que faz alguns ro-
teiristas, diretores e montadores criarem filmes que,
além de retratarem seu tempo, acabam, em sua lógi-
ca narrativa interna, absorvendo os mecanismos de
uma época (GERBASE, 2003, p.172).

O filme escolhido está permeado pelo imaginário da socie-


dade contemporânea feito por uma equipe de pessoas, em grande
parte, vindas da televisão e publicidade, contando com os recursos
tecnológicos disponíveis nesse início de século XXI para retratar a
atual sociedade, que no Brasil é, em sua maioria, formada por uma
população jovem.
Maffesoli afirma que “Não é a imagem que produz o imaginário,
mas o contrário. A existência de um imaginário determina a existência
de conjuntos de imagens. A imagem não é o suporte, mas o resultado”
(MAFFESOLI, 2001, p.74).
A arte é um meio de fruição, mas também nos oferece um ima-
ginário no qual podemos ver refletidas as concepções acerca de nossa
sociedade e dilemas de nossa época.
Serge Toubiana, crítico, ex-redator chefe da revista Cahiers du
Cinéma, afirmou em entrevista: “o que me assusta é que para a nova
geração, o cinema virou uma linguagem lenta, incapaz de prendê-los”
(CARTA CAPITAL, 2007).

(...) o cinema adere, em parte, à estética dos games?


Serge Toubiana: É para tentar capturar a atenção
dessa geração que não tem mais paciência de olhar
uma cena, uma seqüência. A garotada é tão formada
pela imagem, que não se deixa mais levar por ela
(CARTA CAPITAL, 2007).

Para atrair a atenção através de imagens, em meio a tantos


apelos visuais, é preciso recorrer a vários recursos técnicos e estraté-
gicos. A hibridização de linguagens é um processo que se aprofunda
à medida que o tempo avança, e não vai deixar de se desenvolver
enquanto a imagem contar com tanta importância.

49
Isabel Almeida Marinho do Rêgo

No mesmo filme há a sensação de ter assistido a vários tipos de


obras e experimentado uma diversidade de linguagens. Depois de 92 mi-
nutos do longa-metragem Cama de Gato, foram vistos depoimentos reais
e espontâneos de jovens em lugares frequentados pela classe média alta
paulistana, fotos captadas por câmeras digitais, imagens de webcams, câ-
meras de segurança e momentos de convivência entre amigos numa mistu-
ra de jogo eletrônico e realidade com referência a Second Life e The Sims1.
A sinergia entre o cinema e os efeitos especiais desenvolvidos
pela animação, a técnica de transmissão de mensagens em poucos
segundos da televisão, as informações organizadas por meio de as-
sociações dos links de internet em vez de uma lógica temporal, a
volta ao mundo real e seu sistema formal de leis proporcionada pelos
noticiários de televisão e a profusão de imagens coloridas com luzes
intermitentes acompanhadas de músicas, como em um videoclipe,
representa os jovens tanto em seus comportamentos e vivências,
quanto em seus meios habituais de comunicação e entretenimento.
Demonstrando a tamanha importância que os meios de comunicação
exercem na vida social dos jovens contemporâneos, nas formas de
lazer e também nas outras esferas de suas vidas, que estão direta-
mente ligadas às linguagens desenvolvidas pelos diferentes objetos
culturais e ferramentas tecnológicas.

CAMA DE GATO: FILME E JOGO

Cama de Gato foi roteirizado e dirigido por Alexandre Stockler.


A obra foi apoiada por uma agência de publicidade e fez toda a sua
divulgação por meio da internet, meio que também serviu para escolha
da trilha sonora, com músicas de bandas desconhecidas inscritas na
seleção promovida na rede.
Antes do início da ficção e logo após a última cena são mostrados
depoimentos de jovens entrevistados em lugares badalados da noite paulis-
tana, os jovens falam sobre diversos temas e revelam valores pouco éticos.
Os protagonistas da trama são três jovens: Cristiano, Gabriel e
Chico. Cristiano se junta com seus dois amigos na casa de sua mãe,
1 
The Sims é um jogo eletrônico de estratégia no qual o jogador observa a vida de uma vizinhança
de pessoas simuladas, que são os Sims, o jogo é vendido em CDs. Second Life é o misto de jogo
eletrônico, realidade virtual e rede de relacionamentos, é jogado on-line em rede com outras pesso-
as reais mediante o pagamento de determinada quantia à empresa responsável pelo jogo.

50
O jogo cinematográfico de Cama de Gato

chama uma colega fingindo estar sozinho e a brincadeira acaba viran-


do um estupro, Joana morre nas mãos dos jovens. Quando a mãe de
Cristiano chega, cai das escadas com o susto e morre. Os garotos se
livram dos corpos no lixão, onde matam mais um homem. No fim, os
jovens conversam com Deus e escutam dele que tudo ficará bem.
O nome do filme faz referência direta a um jogo, e dá indícios
de como será o desenrolar da narrativa em que os jovens jogam, se
divertem, cada vez mais se fecham em uma armadilha e, finalmente,
nada de concreto que interfira nas suas vidas acontece. O tradicional
jogo da cama de gato envolve a habilidade de seus participantes, o
bom desempenho resulta em belas figuras, e a falta de destreza leva
ao fim do jogo, num emaranhado sem volta.
A marca registrada dos jogos é a interatividade, o desafio de
articular táticas e estratégias estimula os jogadores a raciocinarem ra-
pidamente e reagirem frente aos obstáculos. Toda a trama do filme
Cama de Gato assemelha-se a um grande jogo: requer estratégias dos
personagens e reações aos desafios impostos. Além da necessidade
de contornar os problemas que se colocam no caminho que eles deci-
dem percorrer, os jovens ainda se esforçam para se divertir. Eles esta-
belecem suas próprias regras, construindo um jogo específico, mas a
realidade acaba se impondo sobre o mundo ilusório dos personagens,
e as regras da vida real não são claras nem previsíveis.
A interatividade indica a gradação de influência que os usuários
possuem dentro da forma ou conteúdo de um ambiente mediado. As
vivências dos personagens alternam o domínio deles sobre os aconte-
cimentos e estratégias para programar os próximos eventos, com situ-
ações não esperadas, que fogem ao controle.
Os jogos também envolvem desafios, como os quebra-cabeças
(puzzles), e têm como objetivo resolver um problema, a solução de
peças caindo, algo embaralhado, a construção de pequenos mecanis-
mos, o vídeo-game se desenvolveu com a constante atualização dos
desafios tendo como norte a sensação de realidade.
A primeira sequência com elementos de jogos é mostrada nos mi-
nutos iniciais do filme. Os três jovens, Cristiano, Chico e Gabriel discutem
sobre política, sociedade, liberdade e segurança na casa de um deles,
quando a disputa de argumentos fica mais acirrada, Cristiano começa a
anotar os pontos de cada um numa folha de papel, cada personagem de-

51
Isabel Almeida Marinho do Rêgo

fende sua ideia e coloca uma nota de Dólar em cima da mesa. As ações
demonstram uma disputa de argumentos, um jogo que envolve raciocínio.
Outros elementos da sequência também reforçam a ideia de
jogo: a folha com as anotações dos pontos alcançados é mostrada em
detalhe, assim como a pilha onde os Dólares são apostados, o quadro
por trás do personagem remete ao mundo simulado do Second Life e
The Sims. À medida que a disputa fica mais acirrada, com os ânimos
exaltados, os argumentos e ataques mais agressivos, os cortes são
mais rápidos, a câmera treme e as tomadas subjetivas levam o espec-
tador para dentro da disputa.
Antes das tomadas subjetivas, há uma aproximação da câmera
em direção à cabeça do personagem, como se a câmera levasse o
espectador para ocupar o lugar daquele “jogador”. A disputa é dada
como encerrada quando Cristiano pergunta se Gabriel acredita em
Deus, há um corte, o título do filme é mostrado. Chico faz a contagem
regressiva, mas Gabriel não reage com nenhum argumento, Cristia-
no é declarado vencedor, merecedor do prêmio: os Dólares sobre a
mesa. Cortes rápidos acompanham a velocidade dos argumentos nos
dois minutos finais da sequência, há variação entre planos próximos
e médios, câmera fixa e movimentos da câmera subjetiva, ao fim da
ação há um efeito sonoro de luta, como a campainha que determina o
fim de um round na luta de boxe.
Os jogos eletrônicos apresentam interatividade, variação no de-
senvolvimento dos acontecimentos e de consequências decorrentes
das escolhas, diferente das formas da narrativa clássica, as histórias
se desenrolam de uma forma cheia surpresas e ações inusitadas quan-
do parte de um jogo.
Outra sequência que traz características de jogo ocorre depois
que a mãe de Cristiano caiu das escadas e morreu. Sentados no
chão, ao lado do corpo, os amigos tentam achar uma solução para se
livrar dos corpos da jovem e da mãe; a cada ideia uma nota é coloca-
da sobre a mesinha ao lado, Chico acha a melhor solução e pega o
dinheiro; a sequência alterna tomadas de câmera fixa com câmera na
mão em movimento, bem próxima dos personagens, demonstrando a
tensão do momento.
O uso de câmera na mão dá agilidade ao filme, os planos próxi-
mos subjetivos são alternados com planos de meio conjunto, aproximan-

52
O jogo cinematográfico de Cama de Gato

do o filme dos jogos eletrônicos modernos, em que a visão subjetiva do


jogador é alternada com perspectivas de conjunto, dando a dimensão do
cenário e da posição dos oponentes.
Como nos jogos em que há mais de um jogador, há cenas na
disputa de argumentos do filme em que a tela é dividida, mostrando de
modo simultâneo os jogadores.
O último combate se inicia quando Chico diz que a tentativa de
saírem impunes não vai dar certo porque todos viram que eles estavam
no carro da mãe de Cristiano. Depois de falar, Chico coloca uma nota
no chão, Cristiano coloca outra nota sobre a de Chico dizendo que isso
não é problema, a cada argumento mostrando como a situação está
incontornável outra nota é colocada na pilha, quando Cristiano lembra
que a webcam registrou o estupro, Chico o declara ganhador; essa foi
a pior pista que eles deixaram. No fim, com a situação cada vez mais
complicada, o jogo se inverte e como diz Cristiano, “A coisa tá tão grande
que se piorar, melhora.” A câmera movimenta-se de forma ágil, como as
perspectivas oferecidas pelos jogos, alternando câmeras subjetivas com
planos de meio conjunto.
Em algumas partes do filme, a mesma ação é mostrada mais de
uma vez, com tomadas de ângulos diferentes; muitos jogos eletrônicos
mostram o replay das ações mais importantes, assim como as transmis-
sões de jogos esportivos pela televisão.
O final do filme é uma grande ironia, os três garotos conversam
com Deus, ele diz que é só acreditarem que são inocentes, Chico diz
que eles pensaram em todas as possibilidades, mas a coisa foi ficando
cada vez mais complicada, Gabriel também se justifica dizendo que eles
não tinham como prever que ia acontecer tanta coisa. E tudo acaba bem,
surpreendendo até os três personagens, tudo não passou de um jogo.
Os jogos podem ter funções de aprendizado, num híbrido de en-
tretenimento e experiência, considerando as funções de aprendizagem
de uma forma ampla. Jogos também ensinam e constroem conhecimen-
to através de interação, não necessariamente sendo uma interface de
ensino, mas um meio de comunicação, o filme intensifica a narrativa por
meio dos elementos trazidos da linguagem dos jogos.
Jogos podem ser usados como reflexão das ações, porque dis-
tanciam a imaginação da ação; o ato não precisa ser feito, é simulado.
Os jogos se desenvolvem com imitação, são baseados na sensação

53
Isabel Almeida Marinho do Rêgo

de viver a experiência análoga à situação representada. No filme, os


personagens alternam momentos de encarar suas vivências como re-
alidade e momentos vividos de forma distanciada, como se parte de
uma simulação.
O jogo possui um caráter profundamente estético: é na intensi-
dade, fascinação e capacidade de excitar que está a essência e carac-
terística primordial do jogo. Os tipos e traços dos jogos são diversos,
em comum todos apresentam a tensão, alegria e divertimento que pro-
porcionam aos jogadores e muitas vezes aos que assistem ao jogo. O
jogo está numa posição oposta à seriedade. A busca do prazer é um
traço marcante dos jovens neste início de século XXI, a vivência de um
presente prazeroso está acima da preocupação com o futuro, do que
as regras impõem ou de um comportamento esperado. Faz parte do
jogo criado pelos personagens de Cama de Gato, prazer e divertimen-
to, acompanhados também de tensão, e conflito de interesses.

NEOTRIBALIZAÇÃO

A neotribalização, teorizada por Maffesoli, renova as teorias so-


bre o comportamento do jovem contemporâneo e atualiza a noção de
cultura jovem. A tribalização é uma reação ao individualismo e buro-
cratização, uma reativação do sentimento coletivo, grupal, uma forma
de estar junto encontrada por quem deseja fugir do princípio da funcio-
nalidade presente na maioria das relações contemporâneas. Os jovens
demonstram uma grande necessidade de identificação, de inclusão em
grupos que tenham visibilidade dentro da sociedade, as tribos são ca-
pazes de oferecer um sentimento de pertencimento por meio da afini-
dade de ideias com o grupo.
No prefácio da terceira edição francesa de O Tempo das Tribos,
em 2000, Maffesoli comenta sobre a cultura contemporânea em compa-
ração à cultura de um passado recente com ideias ultrapassadas, inade-
quadas se trazidas para entender a contemporaneidade:

Em vez da lengalenga, do sortilégio de que se tra-


tou: redizer, sempiternamente, as palavras-chave
do século XIX, é preciso saber se contentar com as
metáforas, analogias, imagens, todas coisas vapo-

54
O jogo cinematográfico de Cama de Gato

rosas, que seriam os meios menos piores possíveis


para dizer “o que é”, o que está em estado nascen-
te. De fato, é fácil “entoar a cantiga” democrática
ou republicana. E é a isso que se dedica a maior
parte dos intelectuais, jornalistas, políticos, assis-
tentes sociais e outras boas almas, que se sentem
“responsáveis” pela sociedade. Qualquer que seja
a situação, quaisquer que sejam os protagonistas,
eles só têm na fala as palavras cidadania, Repú-
blica, Estado, contrato social, liberdade, sociedade
civil, projeto. É, sem dúvida, honroso e mesmo bas-
tante gentil. Sim, mas são palavras que parecem
vir do planeta Marte para a maior parte dos jovens
que não sabem o que fazer da política e mesmo do
social (MAFFESOLI, 2006 p.5).

A comparação entre a representação dos jovens contemporâne-


os e de jovens de décadas passadas demonstra, à primeira vista, uma
perda de preocupação política, religiosa e social. Mas os dois tipos de
imaginários envolvem mais do que os comportamentos dos jovens; o
tipo de sociedade, seus desafios e perspectivas mudaram profundamen-
te, assim como o comportamento esperado dos jovens e suas funções.
Para uma visão mais livre de conceitos prévios, desenvolvidos com base
em outra época e outro tipo de sociedade, se faz necessário livrar-se de
certos paradigmas na tentativa de entender os fenômenos e comporta-
mentos contemporâneos a partir de exemplos e teorias atuais.
Mais do que político, econômico ou social, o tribalismo é um fe-
nômeno cultural, e ressalta a alegria da vida primitiva, nativa. São esses
valores nativos que estão na origem dessas rebeliões de fantasia, dessas
efervescências multiformes, dessa miscelânea dos sentidos de que os
múltiplos agrupamentos contemporâneos dão ilustrações e, na concepção
de Maffesoli (2006), tudo isso não pode ser pensado com um espírito de
seriedade, certo de seus preconceitos e da verdade de seu ponto de vista.
O jogo está ligado à formação de tribos, os agrupamentos sociais
estão intimamente ligados ao domínio lúdico.

As comunidades de jogadores geralmente tendem a


tornar-se permanentes, mesmo depois de acabado
o jogo. É claro que nem todos os jogos levam à fun-
dação de um clube. Mas a sensação de estar “se-

55
Isabel Almeida Marinho do Rêgo

paradamente juntos”, numa situação excepcional, de


partilhar algo importante, afastando-se do resto do
mundo e recusando as normas habituais, conserva
sua magia para além da duração de cada jogo (HUI-
ZINGA, 2004, p.15).

Huizinga aborda o caráter excepcional dos jogos nas antigas


tribos, onde a supressão temporária do mundo habitual acontecia nos
jogos rituais dos povos primitivos, e na grande festa de iniciação dos
jovens na comunidade dos homens havia uma suspensão da vida social
normal, o que não deixou de acontecer nas civilizações mais “evoluídas”.

Ainda recentemente entre nós, em época de costumes


locais mais rudes, privilégios de classe mais acentu-
ados e uma polícia mais tolerante, aceitavam-se as
orgias dos jovens de classe alta como estudantadas
(HUIZINGA, 2004, p.16).

Os jovens ainda contam com uma moratória reforçada, por serem jo-
vens, não-adultos e um pouco crianças, podem se refugiar numa tole-
rância ampliada, e os jogos permitem uma certa liberdade e distancia-
mento das regras “reais”.
O jogo se apresenta como uma atividade temporária, com uma
finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que
consiste nessa própria realização, um intervalo na vida cotidiana, mas
complementar, integrante da vida em geral. Ornamenta a vida, amplian-
do-a. A oportunidade de tornar-se outro, de desempenhar um papel di-
ferente, de pôr uma máscara que não seria possível na vida cotidiana
é um atrativo para os jogadores mergulharem num mundo recriado de
fantasia em que podem assumir diversas personalidades, em que cada
um pode ser vários outros.
Segundo Maffesoli (2006), acompanham o neotribalismo: o quoti-
diano e seus rituais, as emoções e paixões coletivas, simbolizadas pelo
hedonismo de Dionísio, a importância do corpo em espetáculo e do gozo
contemplativo e a revivescência do nomadismo contemporâneo.
O jogo oferece a oportunidade de sair desse mundo antiquado,
que às vezes parece não comportar o espírito livre e contestador dos
jovens, permitindo vivências e ações que não seriam possíveis na re-
alidade. “Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e ab-

56
O jogo cinematográfico de Cama de Gato

soluta, ele cria ordem e é ordem. Introduz na confusão da vida e na im-


perfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada” (HUIZINGA,
2004, p.13).
Os jogos estão em Cama de Gato demonstrando a ideia de liber-
dade, disputa, divertimento, regras específicas e recompensa. Embora
as ações dos protagonistas se aproximem de “jogadas”, as regras não
nos parecem claras; a liberdade está presente nesse aspecto, impedin-
do que haja restrições, os jovens negociam as regras a cada ação, a
cada argumento.
As regras determinam o que “vale” no mundo temporário do
qual o jogo faz parte. O jogo acaba, a vida real recomeça. O limite
de início e fim dos jogos e suas regras não ficam claros em Cama de
Gato. No meio de uma conversa séria, em que o clima está tenso, os
jovens começam a pôr notas em uma pilha, começa um jogo de apos-
tas e o vitorioso sorri.
“Era próprio dos jogos ter hora e lugar, começo, meio e fim, o
lugar da cena e o lado de fora. Tais limites vem perdendo a nitidez na
cultura contemporânea” (ACCIOLY, 2007, p.294). Se realçarmos as
distinções entre a subjetividade contemporânea e a tipicamente mo-
derna, observamos que é recorrente a ideia de jogo identitário na atu-
alidade. Os jovens fazem esse jogo no filme: o ateu diz graças a Deus
no final, eles choram de uma forma que não parece espontânea, assu-
mem papéis e máscaras, embaralham as fronteiras entre as esferas da
diversão, perversidade, obrigação.
Tensão e incerteza são típicas de jogos, a essência do espírito
lúdico é ousar, correr riscos, suportar a incerteza e a tensão. A tensão
aumenta a importância do jogo, e esta intensificação permite ao joga-
dor esquecer que está jogando. Os personagens alternam momentos
de prazer e alegria com choro, disputa, tensão e irritação em peque-
nos espaços de tempo.
O elemento de tensão desempenha no jogo um papel impor-
tante, de incerteza e acaso. É este elemento de tensão e solução que
domina os jogos de destreza, quanto mais estiver presente o elemento
competitivo mais apaixonante se torna o jogo. Embora o jogo, enquan-
to tal esteja para além do domínio do bem e do mal, o elemento de
tensão lhe confere certo valor ético, na medida em que são postas à
prova as qualidades do jogador.

57
Isabel Almeida Marinho do Rêgo

As ações dos jovens no filme são autodestrutivas, eles se com-


plicam a cada momento, cometem mais crimes, deixam mais pistas,
ficam mais desnorteados e desmoralizados à medida que a trama se
desenvolve, tentando se eximir da culpa, os jovens acabam se mos-
trando cada vez mais cruéis e incompetentes.
O jogo constitui uma preparação do jovem para as tarefas sé-
rias que mais tarde a vida lhe exigirá, mas no filme os jovens encaram
como jogo os problemas sérios e reais. O jogo apresenta um cará-
ter que permeia o mundo infantil, ainda muito latente nos jovens, de
brincadeira, fuga da realidade, fantasia, criação de regras próprias e
interpretação de personagens.
Entre outras funções, o jogo serve para representar (o termo
alemão spielen significa ao mesmo tempo “jogar” e “representar”, tanto
no sentido de figurar como no da representação teatral, tal como em
inglês to play e o francês jouer).
No filme estão presentes a disputa entre os amigos, o jogo inter-
pretativo, a diversão, mas também o diálogo com a realidade de jovens
inconsequentes, que chegam a ações cruéis pelo hedonismo.
Cama de Gato dialoga com a realidade nos minutos iniciais e fi-
nais, com declarações de jovens que estavam nas ruas de São Paulo,
mas não só nestas entrevistas: os jogos revelam elementos da sociedade
em que estão inseridos, os jogos eletrônicos modernos demonstram os
avanços tecnológicos desenvolvidos até o momento; os desafios apre-
sentados, as regras e as temáticas envolvidas demonstram o interesse
dos jogadores, os jogos podem, assim, ser compreendidos como fator
cultural de uma sociedade. Huizinga relaciona o jogo com o imaginário
social: “(...) o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa
certa ‘imaginação’ da realidade, ou seja, a transformação desta em ima-
gens” (HUIZINGA, 2004, p.7).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa realizada teve como norte identificar na sinergia en-


tre a linguagem do cinema com os jogos, elementos que esclarecem
um pouco do nosso tempo, da cultura contemporânea vivenciada inten-
samente pelos jovens. O filme demonstra o imaginário contemporâneo
por meio de experiências, numa metalinguagem dos valores juvenis tão

58
O jogo cinematográfico de Cama de Gato

próximos das sensações. A vivência dos jovens é impregnada pela es-


tética das obras de arte e comunicação atuais, breves, fragmentadas,
desfocadas, sem linearidade nem verdades absolutas, a estética trans-
mite algo, provoca sensações, o conteúdo nem sempre é a principal
fonte de comunicação das mensagens.
Os planos subjetivos, videoclipes dentro do filme, cenas gravadas
pelos personagens, câmeras de vigilância, webcams e imagens reais
aparecem nesse contexto como um dos dispositivos da percepção atu-
al. A explicitação dos dispositivos no cinema e arte contemporâneos é
o que explica a obra e ao mesmo tempo é o que deve ser explicado e
evidenciado. O filme evidencia a relação dos personagens e do próprio
espectador com a simulação, com a performance, com o espaço circun-
dante, e com a experiência do tempo real e seus recursos tecnológicos.
A estrutura narrativa do filme se assemelha à percepção de um olho
vigilante, de um espectador e ator, ficção, realidade e autorreflexão se mis-
turam. Pensar as obras e filmes contemporâneos é pensar as condições de
possibilidade das novas tecnologias. As ferramentas tecnológicas e as for-
mas apresentadas condicionam as narrativas e as sensações provocadas.
Os jovens sufocados pela poluição, presos pela violência, en-
curralados pela falta de esperança, levantam em comum a bandeira do
niilismo. Em metrópoles cinza, sem beleza nem coletividade, são como
molas cada vez mais contraídas sem grande força que as segure, e
quando se libertam são capazes de realizar coisas belas e de causar
grandes tragédias. A pressão pela excelência, pela beleza e perfeição
em vários setores pressiona os jovens que não se adéquam às inúme-
ras exigências, travestidas de liberdade extrema. Os jovens de Cama
de Gato liberam suas frustrações com ações inconsequentes e egoís-
tas, cometem um estupro e assassinatos.
Os comportamentos e tipos de situações vividas pelos jovens
no filme demonstra a busca de sensações intensas por meio do sexo,
das drogas, das festas e vivências de experiências ao lado de outros
jovens, o que caracteriza o comportamento hedonista. O desapego a
regras e limites é demonstrado nos crimes cometidos pelos persona-
gens e nas ações livres de limitações, guiadas pelos desejos momen-
tâneos, representando o niilismo.
A cultura jovem contemporânea se faz presente nesses compor-
tamentos na forma híbrida que o filme apresenta em sinergia com os

59
Isabel Almeida Marinho do Rêgo

jogos, sinalizando a ascensão dos valores relacionados à tribalização


observados por Michel Maffesoli na sociedade contemporânea.
A princípio parece paradoxal relacionar o comportamento tribal
aos avanços tecnológicos, mas como a cobra que morde sua própria
cauda, e o mito do eterno retorno, ao avançar na técnica, a sociedade
se aproxima do tribalismo, como uma forma de equilibrar seu instinto
humano, grupal e dionisíaco com a formalidade e racionalidade da
técnica. É nesse campo de influências antagônicas e complementa-
res que a cultura dos jovens contemporâneos se manifesta no filme
Cama de Gato.

REFERÊNCIAS

ACCIOLY, Maria Inês; BRUNO, Fernanda. Second Life: vida e subjetividade em


modo digital. In: FREIRE FILHO, João; HERSCHMANN, Micael (orgs.) Novos
rumos da cultura da mídia: indústrias, produtos, audiências. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2007.

BLOG GERAÇÃO Y. Disponível em <http://eptv.globo.com/blog/?http://eptv.glo-


bo.com/blog/blog.asp?id=17>. Acesso em 17 dez. 2008.

CARTA CAPITAL, Os filmes na clausura. São Paulo,v. 13, n. 467,


24 dez. 2007.

ERIKSON, Erik Homburger. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro:


Guanabara, 1987.

GERBASE, Carlos. Impactos das tecnologias digitais na narrativa cinema-


tográfica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Pau-
lo: Perspectiva, 2004.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas so-


ciedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade, Revista Famecos, Porto


Alegre, n.15, ago. 2001.

THE SIMS 2, Site oficial do jogo. Disponível em: <http://www.thesims2.br.ea.


com/products.view.asp?id=2>. Acesso em 20 nov. 2008.

60
O jogo cinematográfico de Cama de Gato

Filme
CAMA DE GATO. Direção, Produção e Roteiro: Alexandre Stockler. Intérpretes:
Caio Blat, Rodrigo Bolzan, Cainan Baladez, Rennata Alroidi, Cláudia Schapira.
Brasil: Prodigo Filmes, 2002.

61
Parte II
Cultura e representações
midiáticas
EM DEFESA DE UMA PERSPECTIVA ANALÍTICA
SÓCIO-CULTURAL

Ana Carolina Escosteguy

Professora do PPGCOM/PUCRS e pesquisadora do CNPq.

O campo de estudos sobre a comunicação desenvolveu-se um-


bilicalmente articulado aos avanços tecnológicos. E, nos últimos anos,
tem-se observado um excessivo retorno a formas de determinismo tecno-
lógico, fazendo com que outros tipos de análises soem um tanto descom-
passados e até mesmo anacrônicos. No entanto, nunca é demais reforçar
que a relação entre comunicação e meios/tecnologias não se restringe a
uma perspectiva desse gênero. Fazer frente ao pensamento instrumental
é indagar-se sobre o peso social do estudo da comunicação, e nada impe-
de que se dê o devido valor a presença das tecnologias nas nossas vidas
e que seja construída uma armação analítica sócio-cultural.
Os relatos reunidos nesta seção podem ser vistos dentro desse
último enquadramento. Embora todos tomem como ponto de partida
um determinado suporte tecnológico ou uma dinâmica implicada pela
presença de um determinado meio, estão mais interessados numa
elástica compreensão da esfera cultural, e dentro dessa a comunica-
ção, problematizando, mesmo que de forma indireta, seu entendimento
como fenômeno centrado nas próprias tecnologias. Portanto, a coerên-
cia entre eles não diz respeito a uma perspectiva teórica e metodoló-
gica comum nem a existência de um objeto empírico específico. Sua
unidade está dada pela sua estreita vinculação com a cultura, seja do
presente ou do passado.
Um único texto foge a esse princípio organizador. A exceção é o
trabalho de Vilso Junior Santi, que assume como foco central a própria
prática da pesquisa a partir da dinâmica que se estabelece entre produ-
tores, produtos e receptores, tentando discutir premissas teórico-meto-
dológicas que permitam construir um protocolo de análise mais comple-
xo e integrador para o estudo da comunicação.
Esse texto dialoga com um entendimento de uma prática em
estudos culturais, que foca na tensão entre a capacidade criativa e
produtiva do sujeito e o peso das determinações estruturais como di-
Ana Carolina Escosteguy

mensão substantiva na limitação de tal capacidade. Ou seja, a questão


é como falar das estruturas constituindo os sujeitos, sem perder de
vista a experiência desses mesmos sujeitos; manter na análise tanto
o peso objetivo das instituições, revelado nos seus produtos, quanto à
capacidade subjetiva dos atores sociais. Tomando essas ideias como
ponto de partida, aventa a possibilidade de mesclá-las com as bases
do pensamento complexo de Edgar Morin.
Podemos, também, considerar que, a partir das balizas lança-
das pelos estudos culturais, tornam-se visíveis intersecções entre três
temas-chave: o sujeito e sua ação num determinado marco histórico; o
reconhecimento de processos de exclusão, diferenciação e dominação
como historicamente construídos e não, naturais e/ou tans-históricos;
e a compreensão da comunicação, através da relação entre produto-
res, produtos e receptores. Dentro da segunda opção, enquadro os
trabalhos de Lúcia Coutinho e Sandro Adalberto Colferai, embora com
objetos bem distintos. No primeiro caso, a identificação de representa-
ções dos destituídos, especificamente dos favelados, dos moradores
das periferias, dos negros, na produção brasileira audiovisual recente
e, no segundo, as representações de “uma” sociedade amazônica, pre-
tensamente homôgenea, e seu acesso aos diferentes meios de comu-
nicação e informação.
Assume particular importância o estudo das representações pos-
tas em circulação pela mídia, pois estas organizam e regulam as mais
diversas práticas sociais. Genericamente, a representação é entendida
como a associação de significações a um determinado artefato/produ-
to, desse modo, o sentido não surge do “próprio objeto”, mas da forma
como ele é representado pelas linguagens. Assim, a realidade existe
fora da linguagem, mas é mediada por e através da linguagem – e o
que nós podemos saber e dizer tem de ser produzido no e através do
discurso. E, quando são examinadas as representações e seu impacto
na constituição das subjetividades dos atores sociais, adentramos na
problemática da identidade. Sendo assim, a partir do momento que
adotamos certas posições, construídas a partir dessas significações,
“nossas identidades” vão sendo formadas.
Daí a importância, tanto dos trabalhos de Coutinho quanto de
Colferai, que incidem sobre a visibilidade midiática de determinadas
representações de grupos sociais e lugares geográficos, expressando

64
Em defesa de uma perspectiva analítica ...

tensionamentos sociais existentes na sociedade brasileira contempo-


rânea. Em certa medida, a análise de fotografias de moda, apresentada
por Samara Kalil, também pode ser pensada como representações de
um universo muito específico de determinados tipos de mulheres em
contraste com a proposição da revista que veicula tais fotos que su-
postamente pretende apresentar “Moda para todas”. No entanto, este
viés está apenas esboçado na apresentação da matéria. Por último,
mas não menos importante, o trabalho de Camila Garcia Kieling que se
concentra na Revolução Farroupilha e em possíveis sentidos revelados
pela publicação do Manifesto de 1838, no jornal O Povo, afastando-se,
portanto, de situações contemporâneas, revela que diferentes siste-
mas de simbolização sempre existiram e que as tensões sociais não
são só deste tempo, mas também do passado.
A partir de distintas perspectivas interpretativas e com graus
diversos de elaboração, os trabalhos apresentados a seguir ilustram
uma diversidade de possibilidades para a pesquisa em comunicação.
Contudo, todos parecem convergir para a importância de sua vincu-
lação a uma tônica posta num repertório de significados, produzidos
tecnicamente, segundo determinados interesses, veiculados pelos dis-
tintos meios de comunicação.

65
FAVELA-MOVIES E FAVELA-SERIES:
NOVAS REPRESENTAÇÕES NA PRODUÇÃO
AUDIOVISUAL BRASILEIRA

Lúcia Loner Coutinho

Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: lucialoner@gmail.com

RESUMO
Neste trabalho versaremos sobre a volta do cenário das favelas e perife-
rias urbanas no cinema brasileiro, especialmente a partir da primeira dé-
cada do século XXI, com a consequente transposição desta temática e
estética para a televisão na forma de seriados. Veremos algumas ques-
tões sobre o envolvimento televisão/cinema e a relação destes filmes e
séries com novas representações e formações de identidade para popu-
lações de baixa renda. Para tanto, utilizaremos autores como Bentes e
sua crítica da “cosmética da fome”, Hamburguer e Oricchio situando o
cinema nacional.

PALAVRAS – CHAVE
Favela-movies
Séries brasileiras
Identidade

ABSTRACT
In this paper we will discuss the return of “favelas” and urban ghettos as a
scenario for Brazilian cinema, particularly since the first decade of the 21st
century, with the transition of its aesthetic and core themes to television se-
ries. We’ll address some issues concerning these TV series and movies re-
lations with the development of identity for underprivileged populations. For
that matter we’ll look for authors such as Bentes and her criticism on “hun-
ger cosmetics”, and Hamburguer and Oricchio placing Brazilian cinema.

KEYWORDS
Favela-movies
Brazilian TV series
Identity
Favela-Movies e Favela-Series

Na última década o cinema nacional redescobriu um antigo ca-


minho para mostrar o sofrimento do povo brasileiro: a representação
das favelas e periferias voltou à pauta do dia na produção brasileira; e
com novas facetas, a esses filmes foi dado o apelido de Favela-Movies.
Partindo destas películas que retratam as periferias urbanas e seu co-
tidiano, a televisão, mais especificamente a Rede Globo de Televisão,
incorporou esse tema a produções de sua programação que chamare-
mos de Favela-Séries.
Neste artigo vamos percorrer brevemente a favela como cenário
para nossa produção cinematográfica, e abordar questões que têm se
destacado a partir do cinema brasileiro com o encerramento do ciclo da
retomada1, como a migração do mesmo para a televisão e a represen-
tação de aspectos da pobreza na mídia, ponto que tem sido bastante
discutido entre críticos e acadêmicos, como Bentes (2007a, 2007b) e
Hamburguer (2007).
A seguir tomaremos como exemplo primeiramente o filme Cidade
de Deus, por compreender que esta película provocou uma mudança
na face do cinema nacional, conforme coloca Oricchio (2003), e lança
novamente luz sobre a posição das periferias no cinema. Concentrar-
nos-emos, então, nas películas e séries televisivas, as quais elas de-
ram origens, que transportaram a temática das favelas para a televisão,
estabelecendo desta forma representações mais plurais da população
favelada e também dos negros.

A FAVELA NA TELA DO CINEMA

A abordagem da miséria não é nova ao cinema brasileiro, em


1935 o cineasta mineiro Humberto Mauro levou as telas Favela dos
meus amores. Nas décadas de 50 e 60, as favelas já faziam parte dos
cenários habituais dos cineastas do país, em filmes como Rio 40 Graus
(1955) de Nelson Pereira dos Santos, Cinco Vezes Favela (1962), dirigi-
do por cinco diretores iniciantes, e Orfeu do Carnaval (1959) de Marcel
Camus. Nas décadas de 70 e 80, as periferias urbanas foram postas
de lado nas produções nacionais. É importante lembrar também que a
1 
Retomada é o termo utilizado para denominar a produção cinematográfica nacional que recome-
çou em meados dos anos 90, após a grave crise que no início desta mesma década terminou pela
extinção da Embrafilme.

67
Lúcia Loner Coutinho

produção fílmica brasileira sofreu progressiva diminuição na penúltima


década do século XX, culminando no fechamento da Embrafilme. A par-
tir da metade dos anos 90 o país voltou lentamente a ter uma produção
cinematográfica relevante.
A obra Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes, ganharia ou-
tra adaptação em 1999, com Cacá Diegues na direção. Ao confrontar o
Orfeu de Camus ao de Diegues, as mudanças sociais nos 40 anos de
intensa urbanização e inchaço das periferias ficam à mostra. A favela
deixa de ser idealizada romanticamente, a situação da violência urba-
na nas zonas desprivilegiadas toma espaço. Segundo Oricchio (2003,
p.151) até então a representação das favelas no cinema encaixava-se
em uma divisão:

Então, de um lado há a representação idílica dos


morros. Lugar onde se é irresponsavelmente feliz,
onde se ama e se samba pouco importando que as
pessoas estejam doentes ou morrendo de fome. O
antecessor de Cacá, o Orfeu de Marcel Camus, é o
mais significativo emblema desse tipo de atitude (...).
De outro, há a representação que a esquerda tra-
dicional faz do morro, imerso em profunda igno-
rância, ocupando-se em tarefas menores, em lugar
de, disciplinadamente, revoltar-se e organizar-se e
fazer a revolução.
Com sua nova versão de Orfeu, Cacá Diegues tentou
juntar as duas pontas dessa contradição e fazê-la in-
teragir em equilíbrio instável, que é o que ocorre no
país concreto. (ORICCHIO, 2003, p.151)

Também em 1999, o documentário Notícias de uma Guerra Par-


ticular, de João Moreira Salles, abordaria o cenário da favela. Em No-
tícias, a realidade da violência promovida pelo confronto entre o tráfico
de drogas e a polícia nos morros cariocas é escancarada sob os pontos
de vista dos criminosos, dos policiais e da população. As sequelas so-
ciais do subdesenvolvimento, concentração de renda, junto à urbaniza-
ção acelerada e à falta de políticas públicas, principiavam seus efeitos
também na representação da periferia pelo cinema.
Desta forma, se a marca da representação da favela nos filmes
até a década de 60 era o romantismo idealista, vendo a favela como
um lugar de pessoas humildes e trabalhadoras, espaço da pobreza,
68
Favela-Movies e Favela-Series

mas também da amizade e da família, a marca da favela no final


dos anos 90 e na primeira década do século XXI será a violência
(ROSSINI, 2003).
Assim formava-se então o cenário para o filme que podemos con-
siderar, de certa forma, como a epítome deste gênero. Cidade de Deus
(2002) foi baseado no romance homônimo de Paulo Lins, que cresceu
na favela de Cidade de Deus testemunhando a ascensão do crime or-
ganizado no lugar. Dirigido por Fernando Meirelles e produzido pela O2
Filmes em parceria com a Globo Filmes, Cidade de Deus teve um orça-
mento de US$ 3.3 milhões2 e levou 3.2 milhões de espectadores às salas
de cinema no Brasil, até então o maior sucesso de público da retomada.
No filme, a saga do avanço do crime no bairro é retratada ainda com cer-
to romantismo em seu início, nos anos 60. Com o tempo, no desenrolar
da história (nos fim dos anos 70 e começo dos 80) o romantismo dá lugar
à crueldade do mundo do crime.
Exatamente essa crueldade, que o filme mostra ser quase ine-
rente a favela, misturada à espetacularização da violência, foram os
traços mais criticados da produção. Para Bentes (2007b), o filme é, de
fato, um marco, interessante e bem construído, porém problemático em
sua narrativa. A pesquisadora, no entanto, destaca a violência contí-
nua, massacrante e estetizada que perdura por todo o longa. O banho
de sangue transforma a favela de Meirelles em um inferno do crime, a
película transforma esta violência e a pobreza em um espetáculo de
consumo. A “cosmética da fome”3, portanto, seria para Bentes (2007b)
uma forma vazia e estilizada de consumo das imagens da pobreza e da
violência. A autora promove o debate sobre a forma que a miséria está
sendo representada na mídia:

Cidade de Deus é um filme-sintoma da reiteração de


um prognóstico social sinistro: o espetáculo consu-
mível dos pobres se matando entre si. É claro que os
discursos “descritivos” sobre a pobreza (no cinema,
TV, vídeo) podem funcionar tanto como reforço dos
estereótipos quanto abertura para uma discussão

2 
Dados e números sobre a produção retirados do website: <http://cidadededeus.globo.com/>
3 
Em entrevista ao portal Brasil de Fato, Bentes coloca que esta expressão é uma paródia da ex-
pressão de Glauber Rocha “estética da fome” em que o cineasta pregava pela criação de imagens
menos estereotipadas da pobreza. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/
entrevistas/a-periferia-como-convem>

69
Lúcia Loner Coutinho

mais ampla e complexa, em que a pobreza não seja


vista somente como “risco” e “ameaça” social em si.
(BENTES, 2007a, p.252).

Outra crítica comum ao filme é a descontextualização da favela


frente ao mundo exterior. São poucas as referências do enredo ao resto
da sociedade, o bairro-favela no filme é estanque e quase autocontro-
lado, uma ilha de violência. Esta brutalidade não aparece na película
como tendo relação com a realidade sócio-econômica nacional, ou seja,
ao contrário dos filmes-favela dos anos 60 não existe discurso político
explicativo para a condição que é apresentada (BENTES, 2007a). Pode-
mos ver, no entanto, que embora parcas, existem alusões a influências
externas à comunidade favelada, um exemplo são os policiais que se
apresentam ao traficante Zé Pequeno para cobrar dívidas que o bandido
tem com eles, mais precisamente dívidas quanto ao tráfico de armamen-
to pesado. Dessa forma, a polícia aparece no filme com a única função
de conivência. O argumento de que a polícia, braço armado do governo,
é a única força do Estado que entra na favela é compartilhado com ou-
tros filmes que abordam o mundo das favelas e periferias, como nos já
citados Notícias de uma Guerra Particular e Orfeu (ROSSINI, 2003).
Alheio às críticas, Cidade de Deus foi um sucesso entre o público,
conforme mencionado anteriormente; grande parte desta repercussão
positiva tem origem na imagem e na linguagem que a direção compõe,
com clara relação com a publicidade e o videoclipe (ORICCHIO, 2003;
BENTES, 2007a). O filme mostra um ritmo vibrante, com a câmera em
constante movimento e cortes rápidos. A circularidade do enredo envol-
ve a narração e deixa claro um ponto: não há saída no crime. Para o mo-
rador da favela o envolvimento na criminalidade não abre portas a uma
vida melhor, leva somente à cadeia ou, como a maioria dos criminosos
no filme, à morte. Em Cidade de Deus tanto o criminoso cruel (Zé Peque-
no), quanto o bom malandro (Bené), ou o bandido querido pela comu-
nidade (Mané Galinha), três dos personagens de maior importância na
trama, têm o mesmo fim. Mostrando que não há honra entre criminosos,
os três são mortos por membros de seus grupos. O abandono ao crime e
o amor como redenção também não representam uma saída, tanto Bené
quanto Cabeleira, irmãos na trama, morrem às vésperas de abandona-
rem a favela e a vida criminosa com suas namoradas. Um irmão segue
os passos do outro e ambos têm a mesma morte.

70
Favela-Movies e Favela-Series

Em mais um exemplo da circularidade da história, a morte –


ainda que seja o final previsível daqueles que se envolvem no crime
– tanto de um dos chefes do tráfico quanto das crianças-soldados que
compõe a infantaria das facções, não resolve problema algum. Aque-
le que morre é imediatamente substituído, seja por outro combatente
anônimo, seja pelo próximo dono do tráfico na favela. O ciclo de violên-
cia continuará de uma maneira ou outra, fica claro ao final da película
quando os meninos da chamada “caixa-baixa” discutem como tomarão
o controle do tráfico na comunidade após assassinarem seu antigo lí-
der Zé Pequeno. Imitando a ação do próprio Zé Pequeno que, ainda
criança, exterminava a competição e os inimigos para tomar o controle
do crime no bairro.
Não é correto dizer, entretanto, que o filme não mostra nenhu-
ma opção para a população favelada além do crime. O personagem
Buscapé, narrador e testemunha dos acontecimentos na favela, pode
ser considerado um representante do restante da comunidade. Ape-
sar da convivência lado a lado com a ilegalidade, e até de tentativas
frustradas de assaltos, Buscapé é o símbolo de que, mais do que uma
condenação social, a criminalidade é uma escolha. Assim como Bené,
Buscapé também tinha um irmão na quadrilha de ladrões retratada no
começo da trama, mas ao contrário do primeiro e de seu comparsa Zé
Pequeno, Buscapé busca um emprego honesto. No fim, Buscapé é
recompensado por sua escolha, conseguindo o emprego que deseja
e assumindo o papel de sobrevivente entre seus contemporâneos. Ao
final, a escolha pela vida honesta é mais uma vez confrontada com
aqueles que escolheram o caminho do crime, Buscapé e um amigo
passam pelos garotos da “caixa-baixa” planejando seu próximo passo
e a trilha-sonora sobe ao som de uma canção de Tim Maia com o su-
gestivo nome de O Caminho do Bem.
O que queremos pôr em discussão, então, é a qualidade de Ci-
dade de Deus como um divisor de águas no cinema brasileiro, divisão
esta que se dá por conta de alguns traços, conforme colocaremos a se-
guir. Para Oricchio (2003) a primeira característica se dá com o fecha-
mento de um ciclo, para o autor o filme fecha a fase conhecida como
cinema da retomada. Cidade de Deus consegue ser o ponto de infle-
xão, emblema da tendência (de tematização das periferias e da violên-
cia urbana) que se tornou mais forte a partir de seu sucesso. Também

71
Lúcia Loner Coutinho

foi um paradigma que mostrou que as mazelas sociais do país são um


tema que atrai profundamente o público brasileiro. A comprovação é o
lançamento de muitos filmes de mesma temática, e com uma estética
semelhante em seu rastro.
Outra herança de extrema importância que a película deixou foi a
estreita relação que o cinema nacional teria, a partir daí, com a televisão.
Se a linguagem de Cidade de Deus tem um diálogo forte com gêneros
televisivos, como o videoclipe e a publicidade, essa linguagem, assim
como a estética e a temática da narrativa da película, irá se trasladar
para a televisão no formato de seriados.

DO CINEMA PARA A TELEVISÃO

Durante a preparação para as filmagens de Cidade de Deus,


Fernando Meirelles e Kátia Lund dirigiram o curta-metragem Palace
II, apresentado em dezembro de 2001, na série Brava Gente da Rede
Globo. O curta foi filmado em película e foi também baseado no livro de
Paulo Lins, com atores do elenco4 de Cidade de Deus encenando uma
aventura de dois garotos moradores de uma favela carioca. Em outubro
de 2002, com o sucesso do longa-metragem de Meirelles, Palace II foi
transformado em episódio piloto para a produção de uma série, Cidade
dos Homens, novamente com a parceria entre a O2 Filmes e a Rede
Globo. Apresentando linguagem semelhante à Cidade de Deus, a série
mostrava a amizade de dois adolescentes, negros e pobres. O cotidia-
no entre a grande criminalidade e as dificuldades de se tornarem cida-
dãos era o pano de fundo para os dois amigos. Apesar da temática da
violência do tráfico de drogas ganhar espaço nos episódios pela pro-
ximidade do crime na vida das comunidades faveladas, essa não é a
trama principal do seriado. Se Cidade de Deus mostra, principalmente
aqueles que foram para o tráfico, em Cidade dos Homens a interação
da comunidade com o tráfico é representada também, mas o foco é na
vida dos rapazes que vivem fora do ciclo das drogas. Podemos colo-

4 
O elenco de Cidade de Deus foi formado quase integralmente por garotos oriundos de comuni-
dades carentes, recrutados através do grupo Nós do Cinema formado pela produção do longa. No
elenco principal apenas Matheus Nachtergaele (Cenoura) e o músico Seu Jorge (Mané Galinha)
eram artistas conhecidos do grande público. Darlan Cunha e Douglas Silva, que interpretaram os
papéis principais em Palace II e Cidade dos Homens, interpretaram em Cidade de Deus os perso-
nagens Filé com Fritas e Dadinho, respectivamente.

72
Favela-Movies e Favela-Series

car que Acerola e Laranjinha representam os meninos desprivilegiados


das zonas urbanas mais pobres do país, que estudam, trabalham, se
divertem e passam por problemas comuns. A série teve quatro tempo-
radas (de 2002 a 2005) com 19 episódios, culminando em 2007 com o
lançamento de um filme para o cinema dirigido por Paulo Morelli, em
produção da O2 Filmes e co-produção da Globo Filmes e Fox Films.
Embora Cidade dos Homens não seja uma adaptação direta de Cidade
de Deus, o segundo serviu como clara inspiração, e não fosse a acei-
tação da película, o seriado provavelmente não teria sido continuado
após o curta Palace II.
Desta forma foi firmada, mais do que uma parceria, uma rela-
ção de compartilhamento entre o cinema brasileiro e a televisão. Uma
conexão entre o cinema e um conglomerado de comunicação e rede
de emissoras, em específico a Globo. A Globo Filmes tem sido uma
das principais promotoras do cinema brasileiro, é a responsável por
uma significante fatia dos filmes de maior bilheteria da pós-retomada.
Seu relacionamento ocorre principalmente na forma de divulgação, a
emissora garante mídia e promoção televisiva nacional, ponto que tem
servido como alavanca para o cinema brasileiro em frente ao pode-
roso marketing hollywoodiano (BUTCHER, 2005). Esta relação entre
as mídias formou duas vias, com a saída de produtos criados para a
televisão com sua linguagem típica, para o cinema (exemplos como Os
Normais de 2003 e A Grande Família, 2007), mas também com a ida
de produtos com linguagem visual de cinema para a televisão. Após
Cidade de Deus e seu sucedâneo televisivo, Cidade dos Homens, a
transmissão de histórias do cinema para a televisão ficaria muito mais
franca, com adaptações diretas de um meio para o outro.
Em 2003, Carandiru, de Hector Babenco, adaptou para o cinema
o livro Estação Carandiru de Dráuzio Varella, mostrando uma mistura
de drama, comédia e violência nas histórias dos detentos dentro e fora
do presídio. O filme foi também uma forma de expiação de pecados
da sociedade brasileira, abrindo feridas dormentes sobre o massacre
dos presos no início da década de 90. A periferia de São Paulo e diver-
sos ambientes da marginalidade urbana na cidade são elementos de
destaque no filme.
Conseguindo atrair um público ainda maior do que Cidade de
Deus, Carandiru garantiu a produção de uma série na Rede Globo,

73
Lúcia Loner Coutinho

chamada Carandiru - outras histórias (10 episódios, exibidos em 2005)


que expande a ideia do filme original, concentrando sua ação nas vidas
dos criminosos. Tanto o filme quanto a série contaram com um elenco
de nomes consagrados no cinema e televisão nacional, e, embora boa
parte dos atores sejam afro-brasileiros, a negritude é mais diluída no
cenário do presídio ficcional.
Após estas experiências positivas na representação da vida na
periferia, a Rede Globo seguiu a ideia de investir em programas televi-
sivos inspirados nas histórias do cinema, produzindo em parceria com
a O2 Filmes uma série focada na vida de mulheres negras da periferia,
Antônia, que estreou em 2006. O seriado é uma continuação do filme
homônimo, dirigido por Tata do Amaral, em co-produção com Coração
da Selva, O2 Filmes, Tangerina Empreendimentos e Globo Filmes. Em
Antônia, o cenário foi a comunidade paulistana da Brasilândia e o enre-
do compreende questões importantes aos moradores de comunidades
desprivilegiadas e em especial para as mulheres negras, como precon-
ceito, machismo e as dificuldades impostas pela precariedade dos ser-
viços públicos básicos. Foi também introduzido um tema de especial
importância para a compreensão da cultura negra moderna, o rap e o
movimento hip hop (SANSONE, 2003). Uma vez que as quatro perso-
nagens principais da trama formam um grupo musical, houve uma op-
ção por compor o elenco com verdadeiras cantoras de rap, valorizando
assim a questão da música. Ao contrário dos filmes Cidade de Deus
e Carandiru, Antônia não teve uma grande bilheteria nos cinemas, no
entanto, a série teve boa repercussão na televisão e ganhou uma se-
gunda temporada em 2007.
Antônia retirou o foco da violência como algo autogerativo den-
tro das favelas. Na série, a violência trazida pela criminalidade é dei-
xada de lado (apesar de não ser esquecida) e é dado maior destaque
à violência da sociedade contra o pobre e o negro, como o descaso do
sistema de saúde pública, que acarreta em mortes nas filas de espera,
ou o forte preconceito contra a população favelada, que, quando fora
deste ambiente, torna-se suspeita aos olhos das classes mais abasta-
das. Para Bentes (2007b), Antônia traz uma visão menos estereotipada
da vida na periferia, porém é importante que não haja uma glorificação
da pobreza, transformando-a em uma mercadoria de status, sem reco-
nhecer os reais problemas sociais que ela representa.

74
Favela-Movies e Favela-Series

Adaptado de uma peça de Márcio Meirelles, o filme Ó Paí Ó


(2007), dirigido por Monique Gardenberg, mescla os gêneros musical,
comédia e drama ao contar a história de moradores de um cortiço no
Pelourinho, em Salvador, durante o carnaval. Como em Antônia a mú-
sica é uma importante parte da trama, porém neste caso o ritmo esco-
lhido para representar a expressiva africanidade da cultura baiana é o
axé. Em 2008, Ó Paí Ó foi também adaptado às telas da Rede Globo, e
ainda que contando com alguns desfalques do elenco principal da pe-
lícula, teve a participação de atores de prestígio nacional para retratar
o cotidiano dos moradores do cortiço. Contudo, na adaptação para a
televisão a narrativa terminou por perder alguns de seus aspectos de
crítica social e dramaticidade5, fixando-se principalmente no aspecto
humorístico do longa original, e terminando por cair em uma aborda-
gem estereotipada da baianidade.

REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE

Nestas produções para a televisão, derivadas do cinema, um


aspecto em particular tem se destacado, precisamente a questão das
periferias. Se a favela era um espaço marcante no cinema nacional, na
televisão a pobreza sempre foi mascarada, preterida em favor de re-
presentações mais glamorosas da sociedade (HAMBURGUER, 2007).
A pobreza, quando apresentada, foi regularmente adocicada e limpa,
descaracterizada, em geral, de seus aspectos mais cruéis. Desta for-
ma, séries como as que citamos quebram um paradigma, não só pela
estética e linguagem mais sofisticada, com inspiração nos filmes que
as precedem, mas também na representação das comunidades despri-
vilegiadas de maneira mais próxima da realidade. É ainda notável uma
expressiva presença de atores negros nestas séries.
Os negros, que são a maioria da população a habitar as periferias ur-
banas carentes, assumiram papéis de destaque nas produções dos favela-
movies brasileiros, esta condição foi transferida para a tela da Rede Globo
nos seriados que seguem aos filmes. As telenovelas, que ainda formam o

5 
Temos alguns exemplos deste adoçamento da narrativa, no longa de Gardenberg os meninos
Cosme e Damião são confundidos com ladrões e mortos por um policial trabalhando como guarda
particular, na série os dois estão vivos e não há referência a milícias. Já a personagem Carmem que
na série interpreta uma enfermeira, na película trabalha como “aborteira”.

75
Lúcia Loner Coutinho

principal produto ficcional da emissora, e são, historicamente, a mais popu-


lar forma de expressão audiovisual da televisão nacional, tem dado maior vi-
sibilidade aos negros nas últimas duas décadas. Este tem sido, contudo, um
processo extremamente lento – vale lembrar que apenas em 2004 uma no-
vela da Globo teve a primeira protagonista negra. Porém no cinema brasilei-
ro as representações negras têm maior volume. A parceria cinema/televisão
trouxe consigo elencos majoritariamente compostos por afro-descendentes
e enredos que retratam a vida cultural negra independente da cultura e do
cotidiano das classes brancas mais abastadas.
Por ser um gênero ficcional diferente, sem a padronização típica
às novelas e endereçada a uma audiência mais específica do que os
melodramas, as séries têm maior liberdade temática e de formatos, e
lhes é permitida a vantagem de romperem com padrões homogêneos
com os quais outros gêneros estão comprometidos. A representação do
negro, assim como a desmitificação da periferia, são elementos que de-
notam esta mudança no padrão.
Não se trata, entretanto, de uma afirmação definitiva de mudança
nas representações das mídias audiovisuais, especialmente da televi-
são. Para Bentes (2007b), a negritude e a periferia transformaram-se
em “mercadoria quente” no rol de representações. O crescimento da
notoriedade das favelas assemelha-se como fenômeno à assimilação
da cultura hip hop, originária dos bairros negros norte-americanos pela
grande mídia daquele país, e apesar de possuir também uma dimensão
econômica tem se mostrado uma poderosa fonte de identidade e forma-
ção de novos significados.
A autora aponta ainda que, assim como a cultura da periferia tenha
sido, por vezes, enaltecida sob o rótulo de “periferia legal”, e os lugares
para o negro na representação ficcional tem crescido em outros espaços,
como no jornalismo, ainda é comum o discurso conservador que mostra o
pobre, em especial o negro, como criminoso, em eterna relação com a vio-
lência. Para a autora, esta ambiguidade não é uma simples omissão, mas
faz parte do mecanismo de exclusão racial no país e funciona como uma
reprodução da violência nos discursos relacionados à pobreza. Hambur-
guer (2007) questiona até que ponto os espectadores das comunidades
excluídas podem identificar-se com o padrão do morador favelado mostra-
do nestes filmes, pois ao retratá-lo como marginal terminariam por reforçar
sua identidade de excluído, ao contrário de promover uma inclusão plena.

76
Favela-Movies e Favela-Series

Isso depende claramente do tipo de representação apresenta-


da, o rapper MV Bill e seu empresário Celso Athayde dirigiram o do-
cumentário Falcão – Meninos do tráfico, apresentado integralmente
no programa Fantástico, da Rede Globo, em 2006: “Falcão se coloca
como elo nessa espécie de cadeia de interlocuções diretas e indiretas,
desiguais e distorcidas” (HAMBURGUER, 2007, p.121). Um elo, pois
trata de um tema de crescente importância na sociedade, uma espécie
de filme denúncia de uma realidade ainda mais cruel do que a violência
escancarada, é também um filme realizado por diretores oriundos das
periferias as quais retratam.
De certa forma, o foco no diferente, no que não é usual dentro
do padrão ocidentalizado e branco, pode também dar espaço para a
mera exotização da diferença. Podemos, desta forma, ver o crescimen-
to das imagens tematizando a negritude como fetiches pós-modernos.
Conforme Gilroy:

É preciso ficar bem claro que a ubiqüidade e a pro-


eminência atual conferida a corpos excepcional-
mente bonitos e glamorosos, porém racializados,
não faz nada para mudar as formas cotidianas de
hierarquia racial. As associações históricas da ne-
gritude com a infra-humanidade, brutalidade, crime,
preguiça, fertilidade excessiva e ameaçadora e as-
sim por diante continuam imperturbáveis. (GILROY,
2007, p.42)

Pela perspectiva de Gilroy, estas imagens pouco contribuiriam


para a mudança nas relações raciais, de fato elas terminariam por se-
cundarizar esta questão, trazendo o negro mais próximo ao homogêneo,
embora não mais do que protagonista de uma concessão.
Hall (2008), no entanto, afirma que, se a “marginalidade” nunca
esteve tão em voga (o autor se refere não apenas aos negros ou po-
bres, mas a diversos grupos sociais marginalizados), isto não significa
que este espaço foi simplesmente entregue às minorias, e sim con-
quistado através de políticas culturais, lutas por novas identidades e à
inserção de novos protagonistas no cenário cultural. O autor combate a
dicotomia que coloca em batalha pensamentos divergentes, pois este
sistema não propõe uma mudança de pensamento e sim uma inversão
completa, trocando as ideias de um grupo pelas do grupo oposto. Ao

77
Lúcia Loner Coutinho

contrário é preferível lutar por posições e estratégias culturais capazes


de fazer a diferença do que simplesmente acusar perpetuamente a mí-
dia e o sistema de segregação:

Reconheço que os espaços “conquistados” para a di-


ferença são poucos e dispersos, e cuidadosamente
policiados e regulados. Acredito que sejam limitados.
Sei que eles são absurdamente subfinanciados, que
existe sempre um preço de cooptação a ser pago
quando o lado cortante da diferença e da transgres-
são perde o fio na espetacularização. Eu sei que o
que substitui a invisibilidade é uma espécie de visi-
bilidade cuidadosamente regulada e segregada. Mas
simplesmente menosprezá-la, chamando-a de “o
mesmo”, não adianta. (HALL, 2008, p. 321)

É inegável que a absorção de novos parâmetros e linguagens


pela televisão promove diversas questões, não apenas no âmbito das
representações culturais, mas tendo em vista posições sociais e eco-
nômicas. A projeção do ambiente marginalizado, as favelas e periferias
do país, pode e deve ser visto como parte de um crescente interesse
da cultura midiática no exotismo da pobreza, do Terceiro Mundo. Um
exemplo a ser citado é Quem quer ser um milionário?, de Danny Boyle.
Muitos críticos de cinema compararam o ganhador do Oscar de melhor
filme 2009 à Cidade de Deus por sua linguagem e estética semelhante
à utilizada por Meirelles em sua película.
A história de Boyle também toma forma nas favelas e submun-
dos urbanos de uma sociedade com grandes desníveis sociais, e é
baseado livremente em uma história real. Da mesma forma que Cida-
de de Deus, Quem quer ser um milionário? tem um elenco formado
por uma grande quantidade de atores-juvenis moradores das próprias
comunidades que o filme retrata. Embora o filme indo-britânico conte
uma história de romance e esperança, e a violência e o cotidiano da
pobreza não sejam o principal foco do mesmo, como em Cidade de
Deus ou nas séries que expomos anteriormente, o sucesso e reco-
nhecimento mundial que Milionário recebeu indicam que o interesse
no diferente e no periférico são fenômenos da sociedade globalizada.

78
Favela-Movies e Favela-Series

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A representação da pobreza e das favelas voltou a ter um lugar


destacado na filmografia brasileira recente. Este retorno trouxe consigo
mudanças nas representações, muitas das produções pós-retomadas
trazem intrinsecamente a questão do rompimento entre periferia e cen-
tro (ROSSINI, 2003). Acompanhando as mudanças sociais, é perceptí-
vel nestas películas a quebra do diálogo entre os grupos sociais. Com
o lado de fora, das leis, do governo, não penetrando nas comunidades,
e cada vez mais esforços repressivos destinados a manter a população
marginalizada em condição de inferioridade, interagindo somente com
seu próprio território, proibidos de acessar o centro da sociedade.
Cidade de Deus representou o cinema símbolo desta cisão,
abriu espaço para uma gama de filmes que optariam por uma nova for-
ma de representação das periferias e da cultura das mesmas, não é a
toa que o público das favelas viu no filme um espaço de reconhecimen-
to (ORICCHIO, 2003). A transferência desse modelo para outra mídia
é também um ponto de referência para a televisão brasileira, que mes-
mo sendo tradicionalmente um veículo conservador, tem feito esforços
para abrir espaços para a diferença. Apesar das enormes questões
que podem ser abertas, tanto moralmente quanto teoricamente sobre
qual o sentido e a quem servem estas novas representações, devemos
concordar com Hall (2008) sobre a importância de não tomar estes
espaços levianamente e de fato lhes dar atenção, no mínimo como
indicadores de uma tendência.
Esta relação cinema/televisão traz importantes significados no
campo das representações, em um segundo momento, contudo, seria
necessário questionar também a relação de mercado entre a Rede
Globo, e seu investimento com a Globo Filmes e como isso afeta
a produção do cinema nacional. Entre os filmes recentes de maior
sucesso, poucos não contaram com o apoio do marketing do maior
conglomerado de comunicação do Brasil, o maior exemplo talvez seja
o longa de José Padilha, Tropa de Elite (2007). A película, que dá
outra perspectiva à questão da violência nas periferias, contou com
uma forma de marketing muito mais peculiar para se tornar um fenô-
meno de público e mídia. A partir do sucesso estrondoso, ainda antes
de sua estréia formal nos cinemas, foram noticiadas tratativas para
a adaptação da narrativa policial para a televisão – além da Rede
79
Lúcia Loner Coutinho

Globo, outros canais também teriam interesse nos direitos do longa


– entretanto, no início de 2009, foi acordada a produção de uma se-
quência cinematográfica para o mesmo, minando os planos de uma
continuação para a televisão.
É, de toda forma, necessário que o caso brasileiro seja integra-
do a uma tendência que vem sendo destacada globalmente, o des-
taque às camadas desprivilegiadas da sociedade tem formado um
nicho importante no cenário das representações culturais midiáticas,
não podendo mais ser qualificado de modismo passageiro. Realistas
ou não, a importância da existência de novas formas de representa-
ção já é em si um fator a ser comemorado.

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SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade. Salvador, EDUFBA, 2003.

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ESTEREÓTIPOS DO BRITPOP ATRAVÉS DOS
ENQUADRAMENTOS DA REVISTA NEW MUSICAL EXPRESS

Bruna do Amaral Paulin

Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: brunapaulin@gmail.com

RESUMO
O presente trabalho apresenta uma análise da cobertura jornalística da re-
vista inglesa New Musical Express sobre o movimento musical British Pop
durante a década de 1990. As reportagens selecionadas estão reunidas na
publicação NME Originals, coletânea das matérias divulgadas pela New
Musical Express entre os anos 1990 e 1998, caracterizando o período como
surgimento e queda do Britpop no Reino Unido e no mundo. O objetivo deste
estudo é encontrar estereótipos de personagens participantes do movimen-
to Britpop construídos através das imagens apresentadas pelas matérias da
publicação. Para a análise das reportagens e catalogação destes estereó-
tipos, serão utilizadas as teorias de enquadramento e moldes mediáticos.

PALAVRAS – CHAVE
Enquadramento
Moldes Mediáticos
Britpop

ABSTRACT
This present paper presents an analysis of the news covertures of the British
magazine New Musical Express about the music movement called British
Pop during the 1990s. The selected articles are presented in the NME Ori-
ginals magazine, an articles’ compilation originally published by NME be-
tween the years 1990 and 1998, defining this period as the birth and fall of
Britpop in the United Kingdom and worldwide. The objective of this study is
to find stereotypes of characters of the Britpop constructed through images
framed by the articles of the publication. For the text analysis and the stere-
otypes’ cataloguing, it will be used theories of framing and media templates.

KEYWORDS
Framing
Media Templates
Britpop
Estereótipos do Britpop...

O presente artigo se propõe reunir as teorias dos estereótipos


de Lippmann com as teorias do enquadramento de McCombs, dos mol-
des mediáticos de Kitzinger e da semiótica social de Van Leeuwen para
analisar a construção de estereótipos da revista New Musical Express
para os personagens destacados pela edição da revista que represen-
tariam o movimento do Britpop – movimento musical britânico surgido
durante os anos 1990. O objetivo deste texto é detectar, através da
aplicação das teorias relacionadas, como foram construídos e de que
maneira disseminados os estereótipos apresentados pelas matérias
jornalísticas publicadas na revista.

ESTEREÓTIPOS

Laurence Bardin apresenta em seu livro Análise de Conteúdo a


definição para estereótipo:

Um estereótipo é “a idéia que temos de”, a imagem


que surge espontaneamente, logo que se trate de...
É a representação de um objeto (coisas, pessoas,
idéias) mais ou menos desligada da sua realidade
objetiva, partilhada pelos membros de um grupo so-
cial com alguma estabilidade. Corresponde a uma
medida de economia na percepção da realidade,
visto que uma composição semântica pré-existente,
geralmente muito concreta e imagética, organizada
em redor de alguns elementos simbólicos simples,
substitui ou orienta imediatamente a informação ob-
jetiva ou a percepção real. Estrutura cognitiva e não
inata (submetida à influência do meio cultural, da
experiência pessoal, de instâncias e de influências
privilegiadas como as comunicações de massa), o
estereótipo, no entanto, mergulha as suas raízes no
afetivo e no emocional, porque está ligado ao pre-
conceito por ele racionalizado, justificado ou criado
(BARDIN, 2008, p.53).

Em 1922, Walter Lippmann lançou Public Opinion, texto que se


manteve referência nos estudos sobre opinião pública até os dias de
hoje. Um dos capítulos do célebre livro trata da definição do termo e

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Bruna do Amaral Paulin

do uso dos estereótipos como explicação na construção do imaginá-


rio humano. No argumento do autor, os estereótipos seriam imagens,
ideias e convenções pré-concebidas, recebidas pelo homem através
do pseudo-ambiente em que vive, e que adequariam relatos e vivên-
cias ao código mental dominante. Para Lippmann, “na maior parte dos
casos não vemos em primeiro lugar, para então definir, nós definimos
primeiro e então vemos” (2008, p.85). No entendimento do autor, os
estereótipos chegariam à mente humana advindos da arte, de códigos
morais, filosofias sociais e agitações políticas. “Na confusão brilhante,
ruidosa do mundo exterior, pegamos o que nossa cultura já definiu para
nós, e tendemos a perceber aquilo que captamos na forma estereotipa-
da para nós por nossa cultura” (LIPPMANN, 2008, p.85).
Assim os estereótipos preencheriam automaticamente todas as
conclusões despertadas por uma nova ideia, a partir do repertório de ima-
gens de cada um: “observamos um traço que marca um tipo muito conhe-
cido, e o resto da imagem preenchemos com os estereótipos que carrega-
mos em nossas cabeças” (Ibid, p.91). É como se já conhecêssemos tudo
antes mesmo de vermos. O jovem do campo pode nunca ter ido à praia,
mas em seu repertório mental, existem imagens que representam o litoral.
Para Lippmann, “despertados, eles [os estereótipos] inundam a visão fres-
ca com imagens antigas, e projetam no mundo o que tem reaparecido na
memória” (2008, p.92). O mundo de qual fazemos parte é comandado por
esse código de estereótipos, onde

imaginamos a maior parte das coisas antes de as


experimentarmos. E estas preconcepções, a menos
que a educação tenha nos tornado mais agudamente
conscientes, governam profundamente todo o proces-
so de percepção (Ibid., p. 91).

Para o norte-americano, os estereótipos são considerados os fun-


damentos da tradição pessoal, como “defesas de nossa posição na socie-
dade” (Ibid., p.96). Não podem ser considerados neutros, já que defendem
posições e valores pessoais, definidos como “fortalezas de nossa posição”
(Ibid., p.97) e carregados de sentimentos que estão presos a eles:

Há uma imagem do mundo mais ou menos ordenada


e consistente, a qual os nossos hábitos, nossos gos-
tos, nossas capacidades, nossos confortos e nossas

84
Estereótipos do Britpop...

esperanças se ajustaram. Elas podem não ser uma


imagem completa do mundo, mas são uma imagem
de um mundo possível ao qual nós nos adaptamos.
Naquele mundo as pessoas e as coisas têm seus
lugares bem conhecidos, e fazem certas coisas pre-
visíveis. Sentimo-nos em casa ali. Enquadramo-nos
nele. Somos membros. Conhecemos o caminho em
volta. Ali encontramos o charme do que é familiar, o
normal, o seguro; seus bosques e formas estão aon-
de nos acostumamos a encontrá-los (LIPPMANN,
2008, p.96).

O estereótipo também é conhecido como rótulo, porém não


necessariamente é o estereótipo ou rótulo ideal que gostaríamos que
fosse. “Se os eventos se encaixam nele há uma sensação de familia-
ridade, e sentimos que estamos nos movendo com o movimento dos
eventos” (Ibid., p.103). O autor ressalta a questão do real e verdadei-
ro, lembrando que o que mais conta quando as imagens são monta-
das através dos estereótipos é no que acreditamos que aconteceu
e não no fato em si. Quanto mais próxima for a imagem que visuali-
zamos de nossos estereótipos, mais confortável será nossa reação.
Porém, mais distantes estaremos da imagem e mais “contaminados”
pelos estereótipos.

E, portanto, os estereótipos estão carregados de pre-


ferência, cobertos de afeto ou aversão, ligados aos
temores, avidez, fortes desejos, orgulho, esperança.
Seja lá o que invoque, o estereótipo é julgado com o
sentimento apropriado (LIPPMANN, 2008, p.115).

Noelle-Neumann (1984) adverte para o poder dos estereótipos


na decisão do sujeito e na importância de quem consegue capturar e
utilizar os símbolos de maneira correta para conquistar o público, no
caso dos políticos:

Estereótipos se espalham rapidamente em uma


conversa e imediatamente se convertem em asso-
ciações negativas ou, em outros casos, positivas.
Eles guiam percepções; desenham a atenção para
certos – usualmente negativos – elementos e condu-
ções que levam a percepção seletiva. Estereótipos

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Bruna do Amaral Paulin

podem também causar o esvaziamento político de


candidatos a liderança nacional1 (p.144).

Quando nos sentimos próximos de certos estereótipos, nós os


valorizamos; quando encontramos imagens e sentimentos de oposição,
transformamos o sujeito comum em vilão, inimigo, traidor. Qualquer
sensação de contradição provocada se revela como um pólo negativo,
ao extremo oposto em que estamos. Essa impressionante força dos
estereótipos também pode ser considerada através da maneira como
eles são “distribuídos” na sociedade, como esses padrões chegam até
nós. Uma das maneiras mais bem sucedidas é através dos meios de
comunicação. “Quando as primeiras seis pessoas que encontramos
concordam conosco, não é fácil recordar que elas todas podem ter lido
o mesmo jornal no café da manhã” (LIPPMANN, 2008, p.143).
Sendo assim, buscamos dentro de uma compilação de notícias,
os temas e informações que têm maior proximidade a nossos estereó-
tipos. Cada indivíduo lê o mesmo jornal de uma maneira específica, de
onde irá retirar novos e manter estereótipos já consolidados. A lealdade
de um leitor mudará de acordo com as semelhanças encontradas em
cada leitura de cada edição. Para Lippman (2008),

O jornal trata com uma multiplicidade de eventos


que estão além de nossa experiência. (...) E pelo
manuseio daqueles eventos nós mais frequente-
mente decidimos que gostamos ou não gostamos
dele, confiamos ou recusamos ter aquela folha em
casa (p. 281)

Para manter seus leitores e seguir conquistando outros con-


sumidores, o jornal terá de tratar da maior variedade possível de as-
suntos e assim cativar todo o tipo de público. Para Lippmann, “as
notícias não são um espelho das condições sociais, mas o relato de
um aspecto que se impôs” (p.291).

Eles vão aos níveis mais fascinantes da sociedade,


ao escândalo e ao crime, aos esportes, cinema, atrizes,
1 
Stereotypes spread quickly in conversation and immediately convey negative or, in some cases,
positive associations. They guide perceptions; they draw the attention to certain – usually negative
– elements and lead to selective perception. Stereotypes may also cause the political demise of
candidates for national leadership.

86
Estereótipos do Britpop...

aconselhamento afetivo, notas escolares, páginas


femininas, páginas de consumo, receitas culinárias,
xadrez, uíste, jardinagem, tiras cômicas,militância
atordoante, não porque os proprietários de jornais e
editores estejam interessados em qualquer coisa que
se torne notícia, mas porque eles têm que encontrar
um caminho para manter aquele conjunto de leito-
res apaixonadamente interessados, e que de acordo
com algum crítico da imprensa estariam supostamen-
te clamando pela verdade nada mais que a verdade
(Ibid., p. 285).

Segundo o autor, o trabalho de manter essa variedade equili-


brada é do editor. Não satisfeito em reunir em uma mesma edição as-
suntos tão distintos, ele terá de criar um texto que seja compreendido
por todo o tipo de pessoa, de qualquer escolaridade. É através do uso
dos estereótipos que o editor consegue pasteurizar as mensagens e
fazer com que alcancem os mais variados níveis de entendimento. “É
um problema de provocar o sentimento do leitor, de induzi-lo a sentir
uma sensação de identificação pessoal com as estórias que ele está
lendo” (Ibid., p. 301):

[o editor] Ele precisa, como já assinalamos, cortejar


pelo menos uma parte de seus leitores todo o dia,
porque eles o deixam sem desculpas se um jornal
rival conseguir chamuscar suas fantasias. (...) Todo
boletim requer um julgamento veloz, mas complica-
do. Precisa ser entendido, posto em relação com
outros boletins também compreendidos, esquenta-
do ou esfriado de acordo com o provável interesse
do público, de acordo com o que o editor percebe.
Sem a padronização, sem os estereótipos, sem a
rotina dos julgamentos, sem a razoável rudeza na
desconsideração da sutileza, o editor morreria de
excitação (Ibid., p. 299-300).

Outro fator importante para cativar a audiência, segundo Lipp-


mann, é que o leitor precisa sentir-se dentro da notícia, participar dela,

da mesma forma como participa no drama, por iden-


tificação pessoal. (...) da mesma forma o leitor entra

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Bruna do Amaral Paulin

notícia adentro. Para conseguir entrar ele precisa en-


contrar um gancho familiar na estória, e isso lhe é for-
necido pelo uso de estereótipos

Histórias que despertam sensações facilmente identificáveis atra-


vés dos estereótipos encontram sucesso no público mais rapidamente,
por provocarem a identificação.

ENQUADRAMENTO

McCombs (2004) reforça que esses eventos incluídos na agen-


da pública são absorvidos graças ao provável engrandecimento que a
notícia dá ao fato, construindo um pseudo-ambiente, onde essas notí-
cias são expostas ao público. Essa não é a realidade retratada, mas sim
uma versão da realidade construída pela imprensa e veiculada aos seus
leitores/espectadores.

As notícias diárias nos alertam dos mais recentes


eventos e mudanças em um ambiente maior além de
nossa experiência imediata. Porém jornais e notici-
ários de televisão, até mesmo as páginas de um ta-
blóide editado rigorosamente ou um site da internet,
fazem muito mais do que assimilar a existência de
grandes acontecimentos e questões2 (MCCOMBS,
2004, p.1).

Esse pseudo-ambiente é construído pela mídia através do En-


quadramento – Framing de acordo com McCombs –, um processo de
raízes sociológicas e psicológicas. Dietram Scheufele e David Tewsbury
definem o termo da seguinte maneira:

[Visto] como uma macroconstrução, o termo “fra-


ming” refere-se aos modos de apresentação que os
jornalistas e outros comunicadores usam para apre-
sentar a informação de uma maneira que remetes-
se à já existentes esquemas subjacentes entre sua
2 
The daily news alerts us to latest events and changes in the larger environment beyond our
immediate experience. But newspapers and television news, even the tightly edited pages of
a tabloid newspaper or internet web site, do considerably more than signal the existence of
major events and issues.

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Estereótipos do Britpop...

audiência (Shoemaker & Reese, 1996). [...] De fato,


enquadrar, para eles é uma ferramenta necessária
para reduzir a complexidade de um tema, dadas as
limitações de seus respectivos suportes relacionados
com a notícia (Gans, 1979). O framing, em outras
palavras, torna-se uma ferramenta inestimável para
a veiculação de questões relativamente complexas,
como a investigação sobre células estaminais, de
maneira eficiente e em esquemas cognitivos. Como
uma microconstrução, descreve a forma como as
pessoas utilizam a elaboração e apresentação de
características que dizem respeito a questões que
formam impressões3 (2007, p.12).

O enquadramento apresenta-se como uma essencial ferra-


menta na construção de imagens e personagens através da impren-
sa. É a partir da “moldura” do jornalista que constrói uma história que
o público absorverá e construirá para si a imagem dos personagens
citados. É possível encontrar mais de um tipo de “perfil” de um mesmo
personagem, mas é sempre através desses enquadramentos especí-
ficos que o leitor constrói e visualiza os “atores” das histórias publica-
das pela imprensa. As realidades de focos apresentados e publicados
nunca são completos e nem conseguem englobar todos os aspectos
de uma pessoa; porém, não deve ser encarado como um procedimen-
to negativo ou positivo, mas sim como parcial e específico, tendo di-
ferentes funções de acordo com o contexto do universo apresentado
pela reportagem.
Ponte (2005) destaca que existem diversos dispositivos de en-
quadramento utilizados no texto jornalístico, fonte essa mais recorren-
te na identificação de enquadramento. Esses dispositivos podem ser
metáforas, exemplos históricos, frases-chave, descrições e ícones,
“que sugerem como pensar o problema, e dispositivos de racionaliza-
ção (análise causal, análise de conseqüências, apelos de princípio),
3 
As a macroconstruct, the term “framing” refers to modes of presentation that journalists and other
communicators use to present information in a way that resonates with existing underlying schemas
among their audience (Shoemaker & Reese, 1996)”. […] In fact, framing, for them, is a necessary
tool to reduce the complexity of an issue, given the constraints of their respective media related to
news holes and airtime (Gans, 1979). Frames, in other words, become invaluable tools for presen-
ting relatively complex issues, such as stem cell research, efficiently and in cognitive schemas. As a
microconstruct, framing describes how people use information and presentation features regarding
issues as they form impressions.

89
Bruna do Amaral Paulin

que justificam como o resolver” (PONTE, 2005, p.138). De acordo com


cada enquadramento de um acontecimento, uma imagem simbólica é
designada para esse fato.
Jenny Kitzinger (2000) classifica o enquadramento como Media
Templates, ou moldes mediáticos. Para a autora,

Moldes servem como uma taquigrafia retórica, ajudan-


do no entendimento de matérias jornalísticas recentes
por jornalistas e público. Eles são preponderantes nas
formas narrativas usadas em problemas sociais espe-
cíficos, guiando a discussão pública não somente so-
bre o passado, mas também sobre presente e futuro.
Analisar moldes mediáticos é portanto fundamental
para desenvolver entendimentos de como a realidade
é enquadrada e como o poder dos meios opera4 (p.61).

Os moldes derivariam na maioria dos casos de eventos marcantes


na história da imprensa, como Watergate ou a morte de John Kennedy,
e são usados para sublinhar, comparar e exemplificar uma perspectiva.
“Assim frases como ‘outro Vietnã’, ‘outro Chernobyl’, ou ‘outro Hitler’ re-
sumem um determinado conjunto de medos” (KITZINGER, 2000, p.70),
o caso molde é sempre a maneira mais simplificada de explicar o novo
caso, como por exemplo, quando Elvis Presley começou a fazer sucesso
na década de 1950, a imprensa norte-americana inicialmente o batizou
de “o novo Frank Sinatra”. Ou como recentemente a imprensa brasileira
cobriu o “caso von Richthofen”, acontecimento que marcou o imaginário
do público. O próximo crime de uma filha que mata os pais será instan-
taneamente relacionado à história da família paulista.
A utilização dos moldes mediáticos na construção de matérias
jornalísticas está muito próxima da teoria de estereótipos. Os moldes
mediáticos seriam os estereótipos prontos do jornalismo; facilmente
identificamos um conjunto de personas frequentes nas manchetes: o
rebelde, o artista soberano, o político corrupto, o jovem assassinado
brutalmente e transformado em mártir, a femme-fatale, o bom partido.
Não somente personagens surgem como moldes, mas também rea-
4 
(…) templates serves as rhetorical shorthand, helping journalists and audiences to make sen-
se of fresh news stories. They are instrumental in shaping narratives around particular social
problems, guiding public discussion not only about the past, but also the present and the future.
Analyzing media templates is thus crucial to developing understandings of how reality is framed
and how media power operates.

90
Estereótipos do Britpop...

ções e comoções gerais, como a mobilização do povo em defesa das


Diretas Já, os jovens estudantes franceses em maio de 1968, o luto
planetário provocado pela morte de Lady Di.
Kitzinger ressalta a importância de memórias coletivas e analo-
gias históricas na recepção da audiência, na representação da mídia e
seus efeitos:

(...) processos de produção dos meios e recepção da


audiência também influenciam na seleção de quais
eventos chave são realmente definidores de proble-
mas sociais. Em outras palavras, o conjunto espe-
cífico de cases mais próximo de ser associado com
qualquer questão particular pode ser ilustrado olhan-
do mais uma vez em dados de grupos focais5 (KITZIN-
GER, 2000, p.74).

Para a autora, a maior diferença entre enquadramento e os mol-


des mediáticos é que o enquadramento pode ser comparado com um
mapa ou uma janela, que “mostram diferentes caminhos e perspecti-
vas”. Já os moldes implicam uma visão mais rígida e precisa. O molde
mediático poderia ser comparado a um documento padrão que aparece
toda vez que um novo arquivo de texto é aberto no computador. “Alter-
nativamente, o molde poderia ser encarado como fôrmas que cortam
massas de biscoito ou modelos que permitem que estampas de metal
saiam idênticas6” (KITZINGER, 2000, p.75).

Moldes mediáticos também podem ser utilmente re-


lacionados na escrita de ‘eventos chave’ e teorias em
torno de ícones jornalísticos. (...) O argumento é que
ícones são uma pepita de drama condensado que
pode estar sozinho como um decisivo momento em-
blemático, que pode ser evocado com uma simples
frase ou referência visual. Esses ícones podem ser in-
troduzidos em outros tipos de histórias e deste modo,
romper as fronteiras narrativas e ampliar os horizontes

5 
More generally, I would agree that such source competition, media production and audience re-
ception processes also influence the selection of which key events are seen to define a social pro-
blem. In other words, the particular cluster of cases most closely associated with any particular issue
can be illustrated by looking once again at data from the focus groups.
6 
Alternatively, the template might be envisaged as the pastry cutting shapes used to cut out ginger
bread figures or the template allowing a worker to stamp out identical metal pieces in a shipyard.

91
Bruna do Amaral Paulin

da notícia e fazer ligações com os acontecimentos de


outra forma isolada. (...) Devo concordar que os moldes
operam de maneira diferente – eles são definidos pela
falta de inovação, seu status de sabedoria recebida e
seu encerramento. Longe de abrir reflexões históricas,
eles reificam um tipo de determinismo histórico que
pode filtrar contas dissidentes, camuflar fatos conflitan-
tes e promover um tempo de narrativa7 (Ibid., p.75-76).

Van Leeuwen (2002) introduziu a noção de enquadramento no


contexto da Semiótica Social. O conceito de enquadramento do autor
se relaciona a uma “desconexão dos elementos da composição visu-
al, por exemplo, linhas de enquadramento, dispositivos de enquadra-
mento pictóricos” (p.7). O enquadramento seria a linha de separação
e limitação de espaços – como algo para “mostrar duas coisas como
separadas e desconectadas” (Ibid.). Mesmo assim, sua utilização não
se limitaria a apenas análises pictóricas, mas também como separar
imagens de texto – “ou caixas de texto do texto principal – no layout de
uma revista, por exemplo” (Ibid.).
Para o autor, existem diversos tipos e graus de enquadramento,
incluindo aqueles que nem sempre podem ser vistos, como no caso de
enquadramentos utilizados em análises de imagens em movimento. Outra
questão importante salientada por Van Leeuwen é que o enquadramento
também serve para aproximar imagens e texto, não somente destacá-las
em separado. “Finalmente é possível que imagem e texto “rimem”, por
exemplo, através de similaridade de cores” (VAN LEEUWEN, 2002, p. 12).
O enquadramento possui cinco características essenciais na
construção de uma análise da Semiótica Social, como define Van
Leeuwen (2002):
Segregação: dois ou mais elementos ocupam territó-
rios completamente diferentes, e isso indica que eles
7 
Media templates might also usefully be related to writing around ‘key events’ and theories around
‘news icons’. (…) They argue that icons are a nugget of condensed drama which can stand alone
as an emblematic decisive moment that can be evoked whit a simple phrase or visual reference.
They describe how such icons can be introduced into other types of histories and thus brake down
narrative boundaries and open the news to… linkages between otherwise isolated events. In this
sense ‘icons’ share some characteristics with templates. (…) I would argue that templates operate in
a rather different way – they are defined by their lack of innovation, their status as received wisdom
and by their closure. Far from operating historical reflections, they reify a kind of historical determi-
nism which can filter out dissenting accounts, camouflage conflicting facts and promote one time of
narrative. I wish to highlight several distinguishing features defining media templates.

92
Estereótipos do Britpop...

deveriam estar sendo vistos como pertencentes a di-


ferentes ordens.
Separação: dois ou mais elementos estão separados
por um espaço vazio, e isso sugere que eles deveriam
ser vistos como similares em alguns aspectos e dife-
rentes em outros.
Integração: texto e imagem ocupam o mesmo espaço -
ou o texto esta integrado (por exemplo, sobreposto a) no
espaço da imagem, ou a imagem no espaço do texto.
Rima: dois elementos, apesar de separados, tem uma
qualidade em comum - o que esta qualidade é depen-
de do elemento em comum (por exemplo, uma cor, um
elemento de forma como angularidade ou arredonda-
mento, etc.).
Contraste: dois elementos diferem em termos de qua-
lidade (como é demonstrado por cor, ou elementos de
forma, etc.) (p. 13).

O que podemos detectar na teoria de enquadramento de Van


Leeuwen, é que “emoldurar” é naturalmente um princípio multimodal,
que acomoda diversos tipos de textos e linguagens:

Pode haver enquadramento, não apenas entre os


elementos de uma composição visual, ou entre ele-
mentos de um layout de jornal ou revista, mas tam-
bém pessoas em um escritório, os assentos de um
trem ou restaurante (por exemplo, compartimentos
visuais versus mesas compartilhadas), as casas em
um subúrbio, etc., e tais instâncias de enquadra-
mento serão realizadas timos similares de recursos
semióticos - por “linhas de enquadramento” (cercas,
partições, etc.), espaço vazio, descontinuidades de
todos os tipos, e assim por diante. Em modos de co-
municação baseados em tempo, ‘enquadramento’ se
torna ‘fraseado’ e é realizado por recursos semióti-
cos tais quais pausas e descontinuidades de diver-
sos tipos - rítmicos, dinâmicos, etc. - cada frase de
fala, música, de movimento de atores, etc. Em outras
palavras, enquadramento é um princípio semiótico
comum realizado por diversos recursos semióticos
em diferentes modos semióticos (Ibid., p. 14).

93
Bruna do Amaral Paulin

Carregando as múltiplas possibilidades de enquadramento e sua


multiplicidade de encaixe em diferentes linguagens, “os mesmos ou si-
milares recursos de enquadramento foram e são usados em diferentes
contextos sociais e em diferentes períodos” (Ibid., p.19).

Eles mostram como o potencial semiótico do en-


quadramento é alterado com base nos interesses e
necessidades de um período histórico ou dado tipo
de instituição social, ou um tipo específico de parti-
cipante em uma instituição social. Por um lado, meu
comentário inicial do princípio de enquadramento
se aplica a todas as instâncias que discuti acima:
elementos desconectados são lidos como em certo
sentido separados e independentes, até em unida-
des contrastante, onde elementos conectados são
lidos como pertencendo um ao outro de certa forma,
como contínuos ou complementares, por exemplo
(Ibid., p.23).

A análise de textos multimodais pode ser acionada através de três


diferentes ferramentas:

Valor de informação. A colocação de elementos (par-


ticipantes e sintagmas que se relacionam entre si e
com o observante) dos valores informacionais especí-
ficos anexados as várias ‘zonas’ da imagem: esquer-
da e direita, cima e baixo, centro e margem.
Saliência. Os elementos (participantes bem como sin-
tagmas representacionais e interativos) são usados
para atrair a atenção do observante em diversos graus,
conforme percebido por diversos fatores como coloca-
ção no fundo ou frente, tamanho relativo, contrastes de
valor de tom (ou cor), diferenças de nitidez, etc.
Enquadramento. A presença ou ausência de disposi-
tivos de enquadramento (percebidas por elementos
que criam linhas divisórias ou por linhas de enquadra-
mento) desconectar e conectar a imagem, significan-
do que eles pertencem um ao outro ou não em algum
sentido (Ibid., p. 177).

Na análise de textos compostos ou multimodais (e qualquer tex-


to cujo significado seja percebido através de mais de um código se-

94
Estereótipos do Britpop...

miótico é multimodal) a questão que surge é se os produtos de vários


modos deveriam ser tratados como a soma de significados das partes,
ou se as partes deveriam ser vistas como se estivessem interagindo ou
se afetando umas as outras. O primeiro trabalha em textos nos quais
todos os elementos coexistem espacialmente - por exemplo, pinturas,
paisagens, páginas de revista. O segundo trabalha em textos que se
abrem com o tempo. Van Leeuwen especifica as ações do enquadra-
mento em um texto escrito:

O terceiro elemento chave em composição é enqua-


dramento. Em enquadramento temporal de texto é,
novamente, realizado por ritmo. De tempo em tem-
po, os ciclos de junção igualmente longos desta-
cam unidades distintas, desconecta trechos de fala,
música ou movimento uns dos outros em maior ou
menor grau. (...) em composições integradas espa-
cialmente não é diferente. Os elementos ou grupos
de elementos estão ou desconectados, destaca-
dos um dos outros, ou conectados, agrupados. E
enquadramento visual também é uma questão de
grau: elementos da composição podem estar for-
temente ou fracamente enquadrados. Quanto mais
forte for o enquadramento de um elemento, mais ele
será apresentado como uma unidade separada de
informação. Contexto então colore na mais precisa
natureza dessa ‘separação’ (2002, p.203).

O BRITPOP

No final dos anos 1980, a Grã-Bretanha passava por um pe-


ríodo nebuloso de sua história: após anos sendo o centro cultural
e artístico mundial na década de 1960, os países do Reino Unido
acumularam uma grande decadência na sua produção musical, um
enorme período de recessão, conflitos políticos, ataques terroristas,
e mais de 30 anos tendo o partido conservador no poder, resultando
em uma generalizada apatia em sua população. O orgulho de ser bri-
tânico foi se esvaindo. O período foi marcado por dois tipos pungen-
tes de produções musicais: atrações pop extremamente influenciadas
pelo auge do pop nos EUA, porém, com um nível muito mais baixo de

95
Bruna do Amaral Paulin

qualidade artística, e por bandas de rock que traziam mensagens me-


lancólicas e desesperançosas, como por exemplo, grupos inspirados
no estilo gótico.
Nos últimos anos da década de 1980, um dos grupos que mais
influenciou os jovens que comporiam anos mais tarde as bandas do
Britpop foi o Stone Roses. A banda de Manchester surgiu durante os
anos 1980, com vocais extremamente melodiosos e um ritmo que se
adaptava às pistas de dança. A dance music e seus diversos estilos,
o uso de ecstasy e as gigantescas casas noturnas lotadas de jovens
caracterizaram o período. O Stone Roses não carregava as mesmas
mensagens pessimistas de seus antecessores e ainda era conhecida
pela atitude agressiva e a imagem de “brigões” que seus músicos, prin-
cipalmente o vocalista Ian Brown, carregavam fora dos palcos. Infeliz-
mente, por questões contratuais com um antigo empresário, a banda
passou anos sem poder gravar nem lançar discos, o que acarretou em
um término forçado nos primeiros anos da década de 1990.
Em resposta à invasão musical das bandas grunge americanas,
novos grupos britânicos como Suede e Blur lançaram o movimento, se
posicionando como forças musicais opostas, referenciando a música
britânica do passado, e escrevendo sobre temas e assuntos que eram
relevantes para os jovens britânicos de sua geração. Essas bandas
logo se uniram com outras, incluindo Oasis, Pulp, Supergrass e Elas-
tica. Grupos de Britpop trouxeram o rock alternativo britânico para o
mainstream e formaram a espinha dorsal de um grande movimento
cultural chamado Cool Britannia8. O movimento se desfez no final da
década. Todos os artistas do Britpop projetavam um senso de reverên-
cia pelos sons do passado. O imaginário associado com o Britpop é
igualmente britânico e se associa diretamente a dois grupos: a classe
média (através dos grupos de Londres) e a classe trabalhadora (repre-
sentada pela banda Oasis).
Para Savage (1997), o Britpop é um movimento “suburbano,
uma fantasia da classe média sobre a vida nas ruas centrais de Lon-
dres, com exclusivamente modelos metropolitanos” (p. 414). Encon-
tramos também um ousado aumento da masculinidade, exemplificado
8 
Cool Britannia é um termo midiático utilizado durante o final do século XX para descrever a cul-
tura contemporânea do Reino Unido. Seu uso prevaleceu durante a década de 1990, e é associada
com frequência com os primeiros anos do partido “New Labour” sob comando de Tony Blair. O nome
é uma brincadeira com o hino britânico Rule, Britannia!

96
Estereótipos do Britpop...

pela revista Loaded e a Lad Culture9 em geral, fator que se tornou um


proeminente símbolo do movimento entre suas duas bandas símbolo:
Blur e Oasis. A bandeira britânica também foi adotada como símbolo
do movimento, e seu uso como sinônimo de orgulho e nacionalismo.
A ênfase em referenciar signos britânicos aumentou a dificuldade do
estilo alcançar sucesso nos EUA. O Britpop é referenciado como a re-
presentação do resgate da autoestima do povo britânico.
Para John Harris (2003), o surgimento do Britpop está ligado
ao lançamento de dois singles: Popscene do Blur e The Drownwers
do Suede, lançados pelo mercado na primavera de 1992. Suede foi a
primeira da nova safra de bandas de rock a ser abraçada pela mídia
britânica como uma resposta ao grunge. Seu álbum de estréia tornou-
se o mais rápido a ser vendido na história do Reino Unido. Em abril de
1993, a revista Select colocou o vocalista da banda, Brett Anderson, na
capa da revista com uma bandeira britânica ao fundo e com a manche-
te “Yankees go home!10”.
Enquanto Modern Life is Rubbish teve moderado sucesso, foi o
terceiro álbum do Blur, Parklife, que os fez sem dúvida a banda mais
popular do Reino Unido em 1994. Parklife seguiu com a natureza feroz-
mente britânica de seu antecessor, culminando com a morte do vocalista
da banda Nirvana, Kurt Cobain, em abril do ano em que parecia que o
rock alternativo britânico tinha virado o jogo de domínio com o grunge.
No mesmo ano, Oasis lançou seu álbum de estréia, Definitely Maybe,
que quebrou o recorde de velocidade de vendas do Suede.
O acontecimento mais marcante do Britpop foi, sem dúvida, a
batizada pela NME, “A batalha do Britpop”, travada entre Blur e Oa-
sis, que monopolizou a atenção da imprensa em 1995. Inicialmente,
as duas bandas mantinham uma relação cordial, até Damon Albarn,
vocalista da banda londrina, alterar a data de lançamento de seu single
Country house para o mesmo dia do lançamento de Roll with it, dos
rapazes de Manchester. Aí, de “colegas de movimento”, os grupos se
tornaram antagonistas e dividiram o país. Estimuladas pela mídia, as
bandas se engajaram no que a NME publicou na capa da edição do dia
12 de agosto: “Campeonato dos Pesos Pesados Britânicos”. A batalha
9 
Lad culture – subcultura comunmente associada com a música do Britpop da década de 1990.
Também relacionado a temas que envolvem gosto por bebidas alcoólicas (especialmente cerveja),
futebol, carros de corrida e revistas masculinas.
10 
Vão para casa, Yankees!

97
Bruna do Amaral Paulin

jogou as duas bandas uma contra a outra, trazendo à tona conflitos


como a questão britânica de classes e divisões regionais muito mais
do que a produção musical dos grupos. Oasis representaria o norte da
Inglaterra, enquanto Blur representaria o sul.
O evento alcançou o imaginário do público e ganhou a atenção
da imprensa nos jornais nacionais, tablóides e até mesmo nos telejor-
nais da BBC. Blur venceu a batalha das bandas, vendendo 274.000 e
Oasis somente 216.000 cópias – as canções chegaram a primeiro e
segundo lugar nas paradas, respectivamente. Porém, a longo prazo,
o Oasis tornou-se mais bem sucedido que seu inimigo. A banda de
Manchester alcançou grande sucesso comercial nos EUA graças ao
single Wonderwall. O segundo álbum da banda, (What’s the story) Mor-
ning Glory? vendeu mais de quarto milhões de cópias no Reino Unido,
tornando-se o terceiro disco mais vendido da história da Inglaterra.
O semanário The New Musical Express (também conhecido
como NME) era originalmente chamado de Acordion Times and Mu-
sical Express, até ser comprado e rebatizado em março de 1952. Foi
o primeiro jornal musical a publicar uma parada de singles e estava
mais atento ao gosto popular do que seus rivais, mais conservado-
res. “Não somente refletiu novas tendências como também ajudou a
construí-las” (BLANEY, 2008, p. 133).
A NME Originals é uma coleção de artigos e resenhas da revista
New Musical Express sobre uma banda específica ou gênero musical.
A primeira edição lançada trouxe os Beatles na capa, em três de abril
de 2002. A amostra analisada neste artigo encontra-se na edição NME
Originals Britpop e a matéria selecionada é do dia 12 de agosto de 1995
(capa e páginas 28 e 29).

98
Estereótipos do Britpop...

Figura 1: Capa da edição de 12 de agosto de 1995 da NME.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da análise dos enquadramentos utilizados pela edição


da revista, encontramos sete tipos de estereótipos diferentes que fazem
parte do repertório do imaginário inglês divididos em quatro tópicos:

a) O orgulho nacionalista britânico e a temática da “Lad Culture” –


logo abaixo do logotipo da revista, a cartola da manchete em destaque,

99
Bruna do Amaral Paulin

com fontes em vermelho e preto de tamanho considerável, apresentam


a frase “Campeonato dos Pesos Pesados Britânicos”, ressaltam a liga-
ção entre “campeões” “britânicos”, apresentando a força de um ufanismo
resgatado pelo sucesso das bandas e suas temáticas letras de assuntos
diretamente ligados à cultura do Reino Unido; o boxe representaria a
“cultura do macho”, valorizando temáticas ligadas a assuntos masculi-
nos como esportes agressivos, carros e bebidas.
b) A rivalidade entre as bandas Oasis e Blur - As imagens em
destaque de Damon Albarn e Liam Gallagher separadas por grossas
linhas amarelas e reforçadas por pela chamada “Blur VS Oasis”, exata-
mente como se apresentam rivais em uma luta ou batalha. Além disso,
a utilização das cores vermelha e amarela com destaque icônico para
a palavra “VS” apresentam a rivalidade e a disputa pelas paradas de
sucesso assim como uma luta de boxe de “pesos pesados”.
c) A rivalidade entre norte e sul, entre a classe trabalhadora e a
classe operária - A “luta” entre Oasis e Blur também representa um dos
maiores estereótipos britânicos: a oposição entre norte e sul e entre a
classe média e classe trabalhadora. A imagem de Damon Albarn como
rapaz “limpo”, “educado”, “sofisticado”, um clássico jovem da classe
média da capital inglesa contrasta com a imagem de Liam Gallagher
de “rebelde”, “rude”, “ignorante”, jovem da classe trabalhadora e nativo
do norte do país – região que sofre, ainda hoje, grande preconceito
por trazer em suas origens descendência Irlandesa. A declaração de
Noel Gallagher, guitarrista do Oasis, estampada na segunda página da
matéria de capa, que melhor exemplifica o embate de classes: “Os in-
tegrantes do Blur são um bando de babacas da classe média tentando
jogar baseball com um bando de heróis da classe trabalhadora”.
d) O angry young man (O raivoso jovem) – A imagem dos in-
tegrantes da banda Oasis se apresenta como já vista diversas vezes
na história da juventude inglesa. Começando pelos Teddy Boys de
Savage (2009) e passando pela definição de Blaney (2008) de “An-
gry Young Man” que o autor relaciona com os jovens britânicos da
década de 1960:

Jovens raivosos estavam se fazendo ouvir na Ingla-


terra pela maior parte da década antes que Lennon
escolhesse ter a palavra. Os tempos estavam mudan-
do - apesar de devagar - desde o meio dos anos 1950.

100
Estereótipos do Britpop...

Havia um crescente desejo de se fazer algo para cau-


sar mudança na sufocante sociedade classista do
país. (...) O país parecia cheio deles, e estavam todos
escrevendo livros e fazendo filmes apimentados de
personagens masculinos representando jovens raivo-
sos (BLANEY, 2008, p. 187).

O jovem raivoso se apresenta no enquadramento da NME como bri-


gão, agressivo, inteligente e sarcástico, como por exemplo, a declaração
de Noel Gallagher sobre o “duelo” entre as duas bandas no tópico anterior.

REFERÊNCIAS

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101
Bruna do Amaral Paulin

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Analysis. London: SAGE, 2002.

102
AMAZÔNIA À MARGEM DA SOCIEDADE EM REDE:
IMIGRANTES EM BUSCA DE COMUNIDADES IMAGINADAS

Sandro Adalberto Colferai

Graduado em Letras. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR


Email: sandrocolferai@hotmail.com

RESUMO
Este artigo tem o objetivo de discutir os mecanismos de identificação
em uma sociedade de formação recente, fixada nas “bordas” da re-
gião amazônica a partir de um contexto sócio-histórico específico, o
das migrações internas no Brasil durante o século XX, diante das no-
vas tecnologias da informação e numa conjuntura de reduzido acesso
aos meios de informações digitais, especialmente a internet, o que a
deixaria à margem da chamada sociedade em rede e do fluxo de in-
formações por ela acionado. Para isso toma como objeto o estado de
Rondônia, e como referências teóricas as reflexões de Manuel Castells
(2007), sobre o Espaço dos Fluxos; de Néstor Garcia Canclini (2004),
referindo-se à necessidade de considerar a conformação sócio-cultural
das diferentes sociedades; de Zygmunt Bauman (2003) ao tratar do
conceito de comunidade; e de Stuart Hall (2003) para abordar as ques-
tões relacionadas à identidade na contemporaneidade.

PALAVRAS – CHAVE
Identidade
Imigração
Comunidade

ABSTRACT
This article aims to discuss the mechanisms of identification in a so-
ciety of recent formation. Set in the “edges” of the Amazon region
from a specific socio-historical context, the internal migration in Brazil
during the twentieth century, before the new information technology
and an environment of reduced access to means of digital information,
especially the Internet, which would leave the margins of so-called
network society and the flow of information that it triggered. We take
as our object the state of Rondonia, and theoretical references the
reflections of Manuel Castells (2007) on the space of flows; of Néstor
Garcia Canclini (2004), referring to the need to consider the confor-
mation of the socio-cultural different societies; of Zygmunt Bauman
Sandro Adalberto Colferai

(2003) to address the concept of community, and Stuart Hall (2003) to


address issues of identity in contemporary society.

KEYWORDS
Identity
Immigration
Community

Um dos equívocos no Brasil contemporâneo, que tanto se orgulha


ao olhar para si e ver uma sociedade multicultural, surge quando se colo-
ca em pauta a conformação social da Amazônia. O mais comum é tratar
de “uma” sociedade amazônica, e deixar sob o mesmo rótulo grupos
absolutamente diferentes e que têm como único ponto de encontro o fato
de viverem na mesma região. Seja pela formação dos grupos sociais
que constituem a população dos estados da Amazônia, principalmente
daqueles que se encontram na região Norte – esta mesma uma divisão
política que não leva em conta particularidades – seja pelas disparidades
sócio-econômicas internas, tratam-se de grupos heterogêneos.
São muitas as diferenças, e os níveis de acesso aos meios de
comunicação e informação é apenas uma delas. Seja qual for o meio a
ser analisado, a região Norte apresenta o menor índice de acesso em
relação às outras regiões brasileiras. De acordo com dados apresen-
tados pela Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílios (IBGE,
2007), em 88,5% dos domicílios da região há aparelhos de televisão e
em 72,8% há aparelhos de rádio; telefones estão presentes em 63,5%
das casas, sendo que 39,4% das residências têm apenas telefones
celulares1; e somente 8,2% dos domicílios têm acesso à internet, todos
índices abaixo da média nacional2.
Dessa forma, aqui a opção é por discutir o baixo índice de acesso
às chamadas novas tecnologias da informação e comunicação, em par-
ticular a internet. Mas, uma vez posta, a mesma discussão poderia ser
feita a partir do acesso à televisão, ao rádio e mesmo aos meios impres-
sos, então, por que a internet?
É tomado como um fato que novas relações sociais estão se ins-
talando em todo o mundo a partir das possibilidades oferecidas pelas
1 
Os índices de telefonia são os únicos em que a região Norte não apresente os menores indica-
dores. O Nordeste apresenta 59% dos domicílios com acesso ao telefone, sendo 35,2% exclusiva-
mente ao celular (IBGE, 2007).
2 
Média nacional: televisão 94,5%; rádio 88,1%; telefone 77%; internet 20,2% (IBGE, 2007).

104
Amazônia à margem da sociedade em rede

chamadas “novas tecnologias”. São inúmeros os estudos sobre estas


novas formas de sociabilidade e sobre as suas implicações no cotidiano
dos indivíduos, mesmo daqueles que não estão diretamente ligados a
elas, mas estão sujeitos a esta nova relação colocada em evidência pelo
uso das tecnologias da informação e de comunicação.
O que esta nova realidade altera na vida daqueles que não têm
acesso aos meios técnicos que garantem a inserção neste novo espa-
ço de relações? No caso de Rondônia, a questão tem ainda um ele-
mento complexificador de peso: o fato de se tratar de uma sociedade
formada a partir de diferentes fluxos imigrantes, o que a caracteriza
por sua heterogeneidade.
Assim, o que seria uma resposta até certo ponto óbvia, à medida
que se espera que, uma vez excluídas do espaço global de circula-
ção de informações, as pessoas se voltem para o local, se torna uma
questão complexa, já que o local próprio de cada indivíduo é diverso e
distante. É, no entanto, importante ter claro que apesar de ser tomada,
aqui, como elemento fundamental para a argumentação, a internet é
apenas um dos elementos que permeia a realidade midiática da so-
ciedade rondoniense. Ao realizar este recorte não se pretende excluir
outros aspectos e outros meios, muito menos tomar as tecnologias da
informação como determinantes para a participação dessa sociedade
em contextos mais amplos.

O ESPAÇO DOS FLUXOS

No primeiro capítulo do seu Comunidade, Zygmunt Bauman


(2003) recupera a história de Tântalo, na mitologia grega, filho de Zeus e
Plutó. Condenado pelos deuses do Olimpo – os mesmos que lhe haviam
confiado a sua intimidade – em função da arrogância que a proximidade
com as divindades lhe despertou, Tântalo teve uma punição que parece
se encaixar àquelas a que são submetidas as nossas sociedades. Amar-
rado pelo pé, tinha a cabeça dentro d´água, e sobre os pés um ramo de
frutas, mas sempre que queria beber água ou alcançar o alimento, eles
se afastavam, num movimento perpétuo de recuo e agonia pela proximi-
dade que nunca se converte em alcance.
A mesma agonia a que foi condenado Tântalo parece estar
instalada em nosso tempo. Há uma nova configuração, talvez nem
105
Sandro Adalberto Colferai

tão nova assim, mas impossível de ser ignorada. Nossa sociedade é


cada vez mais mediada pela tecnologia e reinventa a forma de intera-
ção entre as pessoas, reconfigura a maneira como perceber o espa-
ço. Manuel Castells (2007) apresentou a concepção de “Espaço dos
Fluxos” para explicar esta nova maneira de interagir e se identificar,
que ao mesmo tempo ignora os espaços físicos e dissocia a reunião
espacial de pessoas para a realização de funções rotineiras, e con-
segue manter virtualmente próximos indivíduos e grupos separados
pela distância. Trata-se da possibilidade de transmitir informações e
movimentar capitais financeiros, influenciar a vida de outras pessoas
imersas neste fluxo, mas também daqueles que não estão ligados a
este espaço de maneira direta.
O Espaço dos Fluxos é esta sociedade interconectada, uma
rede que se articula através de pontos nodais. Estes nós são locais,
físicos ou não, a partir dos quais, de um lado, há o uso das representa-
ções e, por outro, novas construções são acrescentadas à rede. Quan-
do físicos, os nós são constituídos por cidades, quase sempre centros
regionais, como é o caso de Nova York, Hong-Kong, Frankfurt e São
Paulo. Por se tratar de uma noção baseada tanto na proximidade física
como na virtual, pode haver a articulação entre estes dois níveis.
A característica marcante do espaço dos fluxos é a circulação
intensa de informações entre as mais diferentes regiões do planeta.
Neste contexto, a identificação entre os indivíduos que o compõem se
dá através dos nós e pode ser maior que aquela verificada em contatos
diretos. Assim se constituem locais de convergência independente da
proximidade física entre os seus membros. Alguém em Porto Alegre
pode ter mais em comum com um europeu que se encontre em Maceió
do que com alguém em um bairro vizinho. É esta noção que permite
a interação entre grupos extremamente especializados e, consequen-
temente, contribui para a sensação de pertencimento e identificação
dentro do Espaço dos Fluxos.
Se por um lado a ausência de um lugar é uma das caracterís-
ticas do Espaço dos Fluxos, por outro as cidades são sua referência
física. A economia e a cultura global/informacional são organizadas em
torno de determinadas cidades, que constituem centros de controle e
comando interligados e influentes regionalmente. Esta concentração
segue uma hierarquia entre as funções de mais alto nível e está locali-

106
Amazônia à margem da sociedade em rede

zada em importantes áreas metropolitanas, como Nova York, Londres e


Tóquio, articuladas de forma a cobrir todos os fusos horários no globo.
Da mesma maneira há centros importantes para segmentos específi-
cos e centros regionais – e novos surgem de acordo com o estabeleci-
mento de novos mercados – e é principalmente entre estes centros, de
acordo com a sua importância na movimentação de capitais, que se dá
o maior fluxo de informações. A conexão se impõe, então, como quesi-
to fundamental para a inserção neste espaço de troca de informações
e de comunicação, o que por si pode se transformar em impedimento
para as parcelas da sociedade que não têm acesso às tecnologias que
permitem este contato.

DESCONECTADOS E DESIGUAIS

Fica claro que a tomar parte neste movimento de troca de informa-


ções somente é possível em função da existência do suporte tecnológico
oferecido pela rede de computadores que interliga boa parte do planeta.
E a internet “é a espinha dorsal da comunicação global mediada por
computadores: é a rede que liga a maior parte das redes” (CASTELLS,
2007, p. 431). Ao mesmo tempo em que há a conexão entre cidades e
indivíduos, há aqueles que são deixados ao largo desta movimentação
de informações. De acordo com dados apresentados por Canclini, a Eu-
ropa e os Estados Unidos respondem por 67% dos usuários da internet,
enquanto 97% dos africanos não têm acesso a esta rede de informação
e comunicação (CANCLINI, 2004, p. 181). No Brasil, o índice de mora-
dias com acesso à internet é de 20,2%, com claras disparidades entre
as diversas regiões do país. Enquanto na região Sudeste pelo menos
27,4% dos domicílios têm acesso, na região Nordeste este número não
chega a 9% e no Norte é de exatos 8,2% (IBGE, 2007).
O estado de Rondônia, que aqui tomamos como objeto de es-
tudo, apresenta, proporcionalmente, o maior índice de acesso à rede
mundial de computadores na região Norte, mas ainda assim não mais
do que 12,37% dos domicílios têm acesso à internet (IBGE). Mesmo
internamente, em função de sua constituição sócio-histórica, o estado
apresenta regiões com características bastante distintas. Nas princi-
pais cidades – dispostas ao longo da rodovia BR-364 – está a maior
parte da população, e é ali que se oferece, de maneira predominante,

107
Sandro Adalberto Colferai

acesso aos diversos meios de comunicação. É lícito, então, apontar


que é também nestas cidades que pode estar concentrada a maior
parte dos acessos à internet, o que reproduziria em Rondônia a dispa-
ridade verificada entre as diferentes regiões brasileiras.
Mas, a questão que se coloca aqui não está ligada ao acesso à
tecnologia como um fim em si, mas à possibilidade de se conectar uma
sociedade a outros grupos sociais e, com isso, garantir a sua inserção
nas redes sociais globalizadas. Canclini (2004) aponta esta discus-
são como fundamental ao pensar as formações multiculturais latino-
americanas. Para ele houve uma alteração na forma de se conceber
as diferenças e as desigualdades nas sociedades a partir da inserção
de novas tecnologias numa equação já complexa. Estas relações se
transformaram “(...) desde que la globalización tecnológica interconec-
ta simultáneamente casi todo el planeta y crea nuevas diferencias y
desigualdades” (CANCLINI, 2004, p. 14).
Ao tomar as redes de informação e, consequentemente, o Es-
paço dos Fluxos como globais, a compreensão é de que se trata de um
fenômeno global, que atinge a todos de forma homogênea. No entanto,
Canclini (2004) alerta para as diferenças nas apropriações culturais em
todo o mundo, o que gera diferenças, desigualdades e, novo elemento,
desconexões, o que torna perigosa qualquer aplicação do conceito de
“sociedade do conhecimento”, ao mesmo tempo a todas as nações e
etnias do planeta:

Como otras designaciones de procesos contempo-


ráneos – “sociedad de consumo”, “globalizacion”
– requiere especificar com cuidado su âmbito de
aplicabilidad para no homogeneizar a movimientos
heterogéneos o grupos sociales excluidos de las mo-
dalidades hegemónicas del conocimiento (CANCLI-
NI, 2004, p. 181).

Canclini segue nesta direção ao tratar das desigualdades entre


países ricos e pobres e os seus reflexos na apropriação do saber cien-
tífico e de inovações tecnológicas. Uma vez que estes estão desigual-
mente distribuídos, a problemática da diversidade cultural deve ser par-
te das considerações teóricas para que se possam elaborar políticas
condizentes com as diferentes realidades que se apresentam em cada

108
Amazônia à margem da sociedade em rede

região do planeta. Esta posição exige a noção de que é preciso ter a


percepção de tratar-se de uma nova forma de encarar as sociedades.
Enquanto, durante boa parte do século XX, se optou pela posição
que tomava todas as sociedades como portadoras de um conhecimen-
to próprio e ao mesmo tempo universal, agora é preciso ter claro que
se trata de evitar que estados e etnias fiquem à margem do processo
em andamento. Isso tem como provável resultado um novo formato das
relações entre as sociedades, agora mediado pela tecnologia. Se a dife-
renciação serviu para legitimar a formação dos próprios estados, agora
é preciso se integrar ao mesmo tempo em que se mantêm as particula-
ridades, “(...) se requiere uma concepcion que reconozca las diferencias
junto com las desigualdades, las interconexiones entre sociedades com
formas distintas de conocimiento” (CANCLINI, 2004, p. 182).
A distribuição das oportunidades de acesso à internet deixa, ao
mesmo tempo em que suscita discussões, poucas dúvidas de que se
trata de um movimento materializado até agora somente entre as elites
globais. Quando as elites hegemônicas se voltam para os espaços vir-
tualizados e para o fluxo de informações que circula por todo o planeta,
a questão que se coloca é: onde os grupos excluídos deste processo
vão buscar a sua inserção? Seguindo na via apontada por Canclini
(2004), trata-se de uma questão que somente através do estudo da
diversidade cultural poderá ser respondida.
Uma sociedade como a rondoniense, fundada a partir dos contatos
de diferentes práticas culturais colocadas em circulação por grupos imi-
grantes e de forma acelerada nas décadas recentes, tem como fator de
particularização das suas relações cotidianas não apenas as diferenças
dos seus próprios membros, mas também a diferença entre esta socie-
dade heterogênea e as diversas outras sociedades. E, neste contexto, à
medida com que se ampliam as conexões num espaço de circulação de
informações – e a absoluta maioria dos rondonienses não se agrega a ele
– a via deixada aos indivíduos para a fixação de uma noção de pertenci-
mento parece ser a identificação com os outros desconectados.

DIFERENTES

Mesmo a identificação através da percepção das diferenças em


comum é problemática em Rondônia, por tratar-se de uma população

109
Sandro Adalberto Colferai

formada por indivíduos diferentes entre si. O contexto sócio-histórico


em que se insere o estado tem na aportagem de imigrantes o seu prin-
cipal elemento3. Durante os dois ciclos da borracha, o primeiro no final
do século XIX até meados do século XX, e o segundo durante a década
de 1940 – este motivado pela II Guerra Mundial4 – a região que viria a
se tornar o estado de Rondônia teve os seus primeiros grandes fluxos
imigratórios. Nesse período, o acesso à região era feito pelos rios e
sempre a partir do rio Amazonas, o que significa atingir o que viria a
ser Rondônia pelo norte. A maior parte dos imigrantes era de nordesti-
nos recrutados para a extração da borracha, que após os períodos de
opulência acabaram por se fixar, seja por opção ou por abandono, este
último o caso da maioria. Tornaram-se ribeirinhos ou pequenos proprie-
tários nas poucas cidades, somando-se à rarefeita população já fixada,
ao mesmo tempo em que estabeleciam relações com etnias indígenas.
A partir da década de 1960, o estado brasileiro, sob o comando de
governos militares, organizou o deslocamento de grandes levas popula-
cionais das regiões Sul e Sudeste para o Centro-Oeste e Norte do país,
consideradas então um “grande vazio demográfico”. A finalidade era re-
duzir as tensões entre proprietários de terras e trabalhadores rurais nas
regiões mais povoadas do centro-sul brasileiro. Com isso, iniciou-se uma
das maiores migrações internas de que se têm notícias no Brasil. Ape-
nas para a região Norte, nas décadas de 1970 e 1980, se encaminharam
7,5 milhões de pessoas, o que significou um crescimento populacional,
em duas décadas, de 200% (SOUZA, 2001, p. 52 e 59). Em Rondônia,
que apresentou um dos mais intensos fluxos, houve no mesmo período
um crescimento populacional próximo a 1.000%. Em 1970, a população
do estado, em números absolutos, era de 111 mil habitantes, e chegou a
1,13 milhão em 1991 (PERDIGÃO & BASSEGIO, 1992, p. 178).
Este período de intensa imigração teve como rota a estrada cons-
truída pelo governo federal a partir da linha telegráfica instalada pelo
Marechal Cândido Mariano Rondon, nas primeiras décadas do século

3 
Atualmente a imigração se mantém, motivada principalmente pela atividade agrícola especializa-
da, o que acontece em diversas outras regiões da Amazônia. Assim, ao tratar do acesso às novas
tecnologias da informação e comunicação em Rondônia como um dos fatores para a compreensão
das práticas culturais legitimadas no estado, lança-se ao mesmo tempo um olhar crítico sobre por-
ção considerável do Brasil.
4 
Tratou-se de um ciclo mais breve e menos pujante que o primeiro, uma vez que depois de ven-
cida a guerra no Pacífico, a Malásia, que há décadas havia superado o Brasil como produtora de
borracha, voltou a ser acessível às empresas ocidentais (OLIVEIRA, 2007).

110
Amazônia à margem da sociedade em rede

XX5. A BR-364 tornava possível o acesso a Rondônia pelo sul do es-


tado, possibilidade que atraiu com maior intensidade emigrantes do
centro-sul do Brasil, muitos deles remanescentes de projetos de colo-
nização implantados em estados da região Centro-Oeste.
Os homens da floresta e os colonos se encontraram na mata,
com dois complexos culturais a lhes acompanhar, e nem um, nem outro,
deixou de influenciar e ser influenciado. Teixeira (1996) registra o cho-
que entre duas culturas distintas postas abruptamente em contato como,
também, uma ação de solidariedade imposta por contingências bastante
específicas. Trata-se da alteração das práticas do seringueiro em con-
tato com o colono, mas também das práticas do colono, alteradas na
aprendizagem necessária para sobreviver na floresta. É assim no caso
do seringueiro, que vê sua relação com a terra alterada: “Nós nunca
pensava em ser dono da terra. Aonde a gente cortava a seringa, a gente
falava assim: por onde tinha aquelas estradas de seringas tudo era da
gente” (TEIXEIRA, 1996, p. 295).
A apropriação por parte do colono se dá na tomada da terra e na
relação com a natureza, já que precisa, além de conhecer, aprender a
lidar com a floresta:

Nós pensava que eles cortava seringa na mata era


com facão ou com faca de cozinha; mas depois que
nós cheguemo o filho do Valdemar chamou nós para
cortar seringa. Aí nós foi aprendendo com ele. (...)
Aprender a pescar nós aprendeu mesmo foi com eles
também. Agora se nós for, nós já pega! Aprendemo a
caçar e fachiar (Depoimento de um colono da região
de Ariquemes-RO, in: TEIXEIRA, 1996, pp. 298, 299).

Explicação plausível para a cooperação entre seringueiros e


colonos seria a situação de fragilidade que tanto um como outro grupo
estaria vivendo na mata. Os seringueiros, quando da chegada dos co-
lonos, já não tinham a estrutura do barracão6 como apoio, e estavam,

5 
Já então a finalidade era garantir a integração de um dos pontos mais distantes do território na-
cional ao restante ao país. A linha telegráfica tinha a finalidade de interligar Santo Antônio do Madei-
ra, um dos pontos extremos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, até Cuiabá (OLIVEIRA, 2007).
6 
O barracão era a unidade central do seringal, o lugar onde se estocava a borracha produzida nas
colocações, e onde os seringueiros iam buscar itens para sua subsistência, principalmente alimen-
tos. Era, ao mesmo tempo, o acesso ao alimento e roupas, por exemplo, mas também o símbolo do
círculo de endividamento que atrelava o seringueiro ao seringalista (TEIXEIRA, 1980).

111
Sandro Adalberto Colferai

em boa medida, sozinhos na selva. Os colonos, por sua vez, seriam em


boa parte agricultores deixados à margem dos projetos de colonização,
e por isso também estariam à margem das ações de instituições oficiais
de apoio (TEIXEIRA, 1996, p. 299).
A profusão de contrastes nos discursos de colonos e das popu-
lações tradicionais é índice das posições antagônicas que se colocam
na sociedade rondoniense. Há solidariedades entre os dois grupos, mas
não se deve perder de vista que se trata do contato de dois sistemas de
representação distintos e conflitantes.

À MARGEM, ENTÃO IGUAIS...

Neste contexto, a agregação da população de Rondônia é proble-


mática, pois ao mesmo tempo em que há o distanciamento com relação
ao fluxo de informações, materializado no reduzido acesso à internet, as
origens diversas não oferecem condições imediatas para a formação de
grupos. É novamente Canclini (2004) quem levanta a questão do cultural
nestas condições. Ao relatar suas impressões durante um encontro de
povos indígenas latino-americanos, no México, diz ele:

Tomo la descripción de lo que vi en este colóquio y en


otros semejantes. Acepto la pregunta que condujo las
sesiones: ¿Qué es lo que tenemos en común? Sin duda,
el territorio, pero también redes comunicacionales como
Internet, a través de la cual se convocó a esta reunión,
se organizaron cien aspectos prácticos y conceptuales
entre grupos que viven en distintos países, a miles de
kilómetros de distancia (CANCLINI, 2004, p. 49).

Em seguida, acrescenta que outro ponto em comum é a língua,


no caso o espanhol, o que garante uma identificação mínima entre os
mais diferentes grupos indígenas. Este é um dado que, junto com o
pertencimento a um território comum, vai ao encontro do que se ob-
serva em Rondônia. Por outro lado, quando se relaciona o estado com
centros nodais do Espaço dos Fluxos, e usa-se para isso os números
referentes ao acesso à internet, fica evidente que a realidade vivida
pelas lideranças indígenas citadas – elas mesmas, então, parte do
Espaço dos Fluxos – não é a mesma da maioria dos moradores de

112
Amazônia à margem da sociedade em rede

Rondônia. Da mesma forma, não é através das novas tecnologias da


informação que são mantidos os contatos entre aqueles que integram
a sociedade rondoniense na sua maioria.
A ausência de conexão, naturalmente, não significa o não-per-
tencimento a comunidades. O pertencimento é tido como fundamen-
tal para o homem como forma de sentir-se seguro entre aqueles que
compartilham com ele os mesmos anseios. Se por um lado imigrantes
com diferentes origens se encontram em determinada região, as suas
diferenças podem ser a característica comum que pode terminar por
identificá-los uns com os outros. Assim, o surgimento de comunidades
a partir da diferença pode ser o contraponto possível à sociedade imer-
sa no espaço de circulação de informações, opção encontrada pelos
que, diferentes entre si, ainda sustentam a desigualdade com outros
grupos ao não terem acesso às tecnologias que são o quesito neces-
sário para fazer parte da sociedade em rede.

COMUNIDADES IMAGINADAS

Zygmunt Bauman (2003) trata da necessidade humana de fazer


parte de uma comunidade, entendida como o lugar onde se pode sentir-
se seguro, onde os interesses são compartilhados, um lugar para contar
com a boa vontade dos outros.

Para começar, a comunidade é um lugar “cálido”, um


lugar confortável e aconchegante. É como um teto sob
o qual nos abrigamos da chuva pesada (...) Lá fora, na
rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que
estar alertas quando saímos, prestar atenção com
quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a
cada minuto. Aqui, na comunidade, podemos relaxar –
estarmos seguros, não há perigos ocultos em cantos
escuros (...) (BAUMAN, 2003, p. 7)

No entanto, é um pertencimento apenas imaginado, artificial, por


tratar-se de uma vontade de pertencimento, de identificação, sem que
exista de fato. Bauman destaca que a vida em comunidade é incom-
patível com a liberdade, este é o preço da segurança oferecida por
aquela. O indivíduo que migrou se pretende livre para optar entre as

113
Sandro Adalberto Colferai

opções que se colocam à sua frente. Mas, a hipótese que pode aqui
ser levantada é que diante do isolamento imposto pela falta de acesso
às tecnologias que permitiriam conexão com o Espaço dos Fluxos, ou
mesmo pela distância física com outras regiões, a opção é pela cons-
tituição de comunidades. Estas, por sua vez, quando efetivadas, são
artificiais e têm nas diferenças entre os seus membros o principal – se
não o único – fator de identificação.
Por ser uma população de constituição heterogênea, marcada pelo
contato realizado através de aproximações aleatórias, não há um ponto
em comum que pode ser atribuído a todos. Ao mesmo tempo, como já
referido acima, há o acesso restrito às tecnologias da informação e comu-
nicação, fator que leva ao isolamento com relação a contextos amplos. Há
aí dois movimentos, aparentemente contraditórios, mas complementares:
de um lado as origens diversas e as práticas diferentes levam (ou deve-
riam levar) ao distanciamento entre os grupos migrantes; por outro a falta
de acesso aos meios faz com que os indivíduos se aproximem.
As relações que se formam são baseadas na experiência co-
mum da migração, nas ausências de referências próximas e inerentes
a todos os que compõem aquela sociedade. A agregação em comu-
nidades não é feita a partir daquilo que é comum, mas através das
trajetórias em alguma medida semelhantes. Não há necessariamente
práticas comuns aos membros dessas comunidades, não é preciso que
haja uma continuidade. O pertencimento pode ser temporário e se des-
fazer rapidamente, uma vez que a identificação não é garantida, e nem
necessária; uma vez que o que se busca é a sensação de pertencimen-
to perdida ao longo da experiência da migração. Então não se pertence
nem ao espaço que se pretende global, e nem ao local, mas ao mesmo
tempo, e de forma passageira, a ambos.
Neste movimento de identificações passageiras, da forma como
define Stuart Hall (2003), cada indivíduo pode ter diferentes identidades
na medida em que circula pelos diversos espaços sociais. Trata-se de
identidades definidas não a partir de conceitos biológicos, mas histó-
ricos; nunca unificadas, que nos empurram em direções diferentes, o
que significa dizer que o deslocamento é constante. “Se sentimos que
temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é ape-
nas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma
confortadora “narrativa do eu”” (HALL, 2003, p. 13).

114
Amazônia à margem da sociedade em rede

É este deslocamento que torna o pertencimento rarefeito, desfa-


zendo-se e refazendo-se como forma de garantir a sensação de agre-
gação entre indivíduos que se veem distanciados de um espaço que
se configura em escala planetária. Mas permanecem à margem, e ao
mesmo tempo distantes de suas origens culturais e imersos num espa-
ço de cruzamento de significações sociais. Sem acesso aos espaços
globais se intensifica a busca por uma comunidade imaginada, movi-
mento que acontece na contramão das “metanarrativas” da moderni-
dade, segundo as quais os apegos “irracionais ao local e ao particular”
estariam sendo substituídos por identidades mais racionais e universa-
listas (HALL, 2003, p. 97).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É diante das múltiplas escolhas possíveis, e ao não ter nenhuma


delas como possível de ser assumida como uma identificação prefe-
rencial que o mito de Tântalo toca a conformação social em Rondônia,
que parece perpetuar o movimento de busca por duas possibilidades
aparentemente tão próximas, mas ao mesmo tempo inalcançáveis.
Vendo-se em um não-lugar, para onde convergem as mais diferentes
representações imaginárias, o que parece ganhar relevo diante do imi-
grante é a retomada de identificações residuais, nostálgicas, referen-
tes ao lugar de origem. Assim, reforçam-se as comunidades que se
formam em torno de práticas legitimadas a partir da origem comum
e cada indivíduo procura abrigo sob aqueles que, como ele, passam
pela experiência da migração. Trata-se de uma posição contraditória,
que Hall nomeia como “diáspora”, por não haver mais possibilidade
de pertencimento à comunidade de origem, mas também não poder
pertencer totalmente a uma nova comunidade: “E esta é exatamente
a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o senti-
mento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de
uma ‘chegada’ sempre adiada” (HALL, 2006, p. 393).
Esse movimento nunca completado faz do rondoniense ao mes-
mo tempo marginal e múltiplo. Marginal por estar nas bordas, ou na
fronteira, da Amazônia, onde diferentes complexos culturais são postos
em contato. E são estes contatos que o torna múltiplo, uma vez que
tanto um como outro lugar é possível de ser tomado como identificado
115
Sandro Adalberto Colferai

com o “ser rondoniense”. E a parcela dessa população, cerceada pela


falta de acesso ao Espaço dos Fluxos, forma à sua volta grupos com-
postos por indivíduos que têm em comum a falta de pertencimento,
seja em relação à rede de comunicação e informação, ou ao local de
origem e mesmo a falta de pertencimento ao local onde se encontram,
apesar de o terem como ponto de convergência em suas vivências.
Tal percepção torna possível inferir que em Rondônia a expe-
riência da diáspora é fundamental na constituição de identificações,
o que é potencializado – mesmo que não se possa tomar como fa-
tor determinante – por se tratar de uma sociedade em que as redes
que caracterizam o Espaço dos Fluxos alcançam parcela reduzida da
população. O que há não é a formação de comunidades a partir das
semelhanças, mas a partir das diferenças, movimento que, se por um
lado, aproxima grupos com diferentes trajetórias, por outro não elimina
os conflitos no campo da cultura.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade, a busca por segurança no mundo atual.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, Desiguales y Desconectados, Mapas


de la Interculturalidad. Barcelona: Editora Gedisa, 2004.

CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura –


vol. 1 – A Sociedade em Rede. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 8ª ed. Rio de Ja-


neiro: DP&A, 2003.

______. Da Diáspora, Identidades e Mediações Culturais. Trad. Liv Sovik.


Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional


por Amostra de Domicílios – Síntese dos Indicadores 2007. Disponível
em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatística/população/trabalhoerendimento/
pnad2007/comentarios2007.pdf>. Acesso em 13/10/2008.

OLIVEIRA, Ovídio Amélio. Desenvolvimento e Colonização do Estado de


Rondônia. 6º ed. Porto Velho: Dinâmica, 2007.

116
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PERDIGÃO, Francinete & BASSEGIO, Luiz. Migrantes Amazônicos – Ron-


dônia: Trajetória da Ilusão. São Paulo: Loyola, 1992.

SOUZA, Carla Monteiro de. Gaúchos em Roraima. Porto Alegre: EDIPU-


CRS, 2001.

TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Seringueiros e colonos: encontro de cultu-


ras e utopias de liberdade em Rondônia. Tese de doutorado. Campinas:
Unicamp, 1996.

117
A FOTOGRAFIA DE MODA E A PRODUÇÃO DE SENTIDOS

Samara Kalil

Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: samarakalil@gmail.com

RESUMO
O envolvimento da Comunicação com diferentes objetos de estudo e
disciplinas está em constante renovação e experimentação. Por essa
perspectiva, focamos este estudo na discussão sobre a possibilidade
de pluralidade da Comunicação, por meio da Moda. Assim, a partir dos
referenciais de McLuhan, Barthes e Vilches, tentamos compreender a
ligação das roupas com a Comunicação e, qual a leitura que podemos
obter, por meio de três Fotografias de Moda, publicadas no exemplar
de outubro de 2008, da revista feminina Claudia.

PALAVRAS – CHAVE
Comunicação
Moda
Semiologia

ABSTRACT
The Communication’s involvement with different subjects is in constant
renewal and experimentation. From this perspective, this study focuses
on the discussion about the possibility of plurality that communication
can have by some Fashion means. From the references of McLuhan,
Barthes and Vilches, we will try to understand the connection between
clothing and communication, and the reading which we can get throu-
gh three photos of Fashion, published copy in October 2008, at the
women’s magazine Claudia.

KEYWORDS
Communication
Fashion
Semiology
A fotografia de moda e a produção de sentidos

No início dos estudos sobre a Comunicação, os estudiosos


se ocupavam de entender o comportamento humano e seu processo
de interação, buscando somente na Comunicação verbal subsídios
para suas inquietações científicas. No entanto, a popularização de
outras formas de Comunicação, como aquelas onde predominam a
imagem e o som, por exemplo, provocaram uma revisão dos proces-
sos de Comunicação visual, redimensionando sua pertinência e im-
portância nas sociedades contemporâneas, e, hoje, são múltiplas as
formas de Comunicação.
A partir dos apontamentos de Martino (2001) sobre a interdis-
ciplinaridade e objeto de estudo da Comunicação, percebemos que
os processos comunicativos no interior da Cultura de Massa cons-
tituem o objeto da Comunicação. No entanto, a principal premissa,
neste caso, se encontra na interpretação dos processos, tendo como
base um quadro teórico dos Meios de Comunicação. O autor escreve
que “a comunicação, enquanto problema particular e como disciplina
organizada, somente ganha autonomia quando de uma tomada de
significação” (MARTINO, 2001, p. 33). Assim, tal argumento reflete
um consumo do presente, com contatos imediatos dos atores sociais,
que pode criar uma instância chamada atualidade (grifo do autor),
para exprimir o conjunto de uma realidade complexa, segmentada
pela multiplicidade de agrupamentos.

É a partir da análise da sociedade enquanto tipo de


organização coletiva que podemos entender, de um
lado, a necessidade de comunicação do indivíduo
moderno em seu afã de engajamento coletivo; e, de
outro lado, a presença notória e crescente que ad-
quirem os meios de comunicação em nossa socie-
dade de massa, como parte importante no processo
de instrumentalização da atividade individual face ao
seu desafio de engajamento numa coletividade com-
plexa (MARTINO, 2001, p. 34).

Segundo França (2001), a Comunicação tem uma existência


sensível, é do domínio do real, e trata-se de um fato concreto do nos-
so cotidiano. Para a pesquisadora, a Comunicação possui uma pre-
sença quase exaustiva na sociedade contemporânea, por estar em
lugares comuns, como nas bancas de revista, na televisão da nossa

119
Samara Kalil

casa, no rádio dos carros, nos outdoors da cidade, nas campanhas


dos candidatos políticos, e assim por diante.
França (2001) descreve que, o homem transforma-se em um
novo sujeito de poder e se vê às voltas com seu instrumento principal:
a palavra. O ser humano constrói, assim, uma apreensão na forma de
“objeto” recortado, como uma possível produção de conhecimento. Po-
rém, uma das dificuldades encontradas com o surgimento desta teoria
decorreu da extensão e da diversidade da dimensão empírica que a
Comunicação recobre – ou da extrema diversidade dos fatos e práticas
que constituem seu objeto.
De acordo com a mesma autora, inúmeras atividades profissio-
nais de Comunicação (jornalismo, publicidade, relações públicas, etc.),
os diferentes veículos (o jornal impresso diário, o jornal televisivo, a in-
ternet), as inúmeras linguagens (a linguagem cinematográfica, publici-
tária, videográfica, cotidiana), assumem dinâmicas e configurações tão
particulares que se torna quase impossível pensarmos na construção e
utilização de esquemas conceituais capazes de abarcar e dar conta de
tal diversidade. Assim, no século XX,

(...) os estudos sobre comunicação tanto foram pro-


vocados pela chegada dos novos meios, como foram
também e, sobretudo, demandados por uma socieda-
de que necessitava usar melhor a comunicação para
a consecução de seus projetos. O conhecimento da
comunicação surge marcado pelas questões colo-
cadas pela urbanização crescente no mundo, pela
fase de consolidação do capitalismo industrial e pela
instalação da sociedade de consumo, pela expansão
do imperialismo (notadamente o imperialismo norte-
americano), pela divisão política do globo entre capi-
talismo e comunismo (FRANÇA, 2001, p. 53).

Podemos adicionar, na diversidade atribuída à Comunicação,


a mobilidade do objeto empírico, ou seja, a mutação constante das
práticas comunicativas, que são renovadas quase que anualmente.
Outro aspecto, segundo França (2001), refere-se à heterogeneidade
dos aportes teóricos acionados para sua compreensão. Para ela, a Co-
municação suscita múltiplos olhares, que podem ser analisados por
meio de várias disciplinas. A “teoria da comunicação”, primeiramente,

120
A fotografia de moda e a produção de sentidos

apresenta-se como corpo heterogêneo, descontínuo e, fruto de inves-


tigações oriundas das mais diversas filiações (sociologia, antropologia,
psicologia, etc.), cada uma refletindo o olhar e os instrumentos que
possui na sua origem.
Então, na medida em que os estudos comunicacionais trazem
a marca de várias disciplinas, a reflexão envolve a contribuição des-
sas, atravessando fronteiras estabelecidas, e até promovendo migra-
ções conceituais. Suscitando, portanto, novos sentidos e olhares para
pensarmos o campo da comunicação, partimos para uma reflexão em
tordo da Comunicação ou linguagem não-verbal, sobre Fotografias,
em especial, de Moda.

APONTAMENTOS SOBRE O NÃO-VERBAL: FOTOGRAFIA E MODA

A análise de sistemas de signos, que não fossem os da lin-


guagem, partiu, essencialmente, da ideia de que a roupa é um obje-
to de Comunicação, que possui uma existência cotidiana, represen-
tando uma possibilidade de conhecimento pouco explorada ainda na
academia. McLuhan (1964), ao analisar os Meios de Comunicação,
trouxe à tona o vestuário. Para ele, a roupa é considerada uma ex-
tensão da pele, armazenando e canalizando energia. “O vestuário,
como extensão da pele, pode ser visto como um mecanismo de con-
trole térmico e como um meio de definição do ser social” (MCLUHAN,
1964, p. 140). A roupa, aqui, é considerada a extensão mais direta da
superfície externa do corpo, incitando uma Mensagem e uma mani-
festação não-verbal das sociedades, tanto aos olhos, como ao tato,
sendo um ícone visual e ao mesmo tempo abstrato. Para McLuhan,
a Fotografia, portanto, é um expoente interessante da lógica da não-
verbalidade, mesmo que utilizemos das palavras para descrevê-las –
explicaremos a seguir.
Barthes (1969) vai além das ideias de McLuhan, e traz no concei-
to de Fotografia de Imprensa a ideia de Mensagem. Segundo o autor, a
totalidade dessa Mensagem é constituída por uma fonte emissora, um
canal de transmissão e um meio receptor:

A fonte emissora é a redação do jornal, o grupo de


técnicos, dentre os quais uns debatem a foto, outros

121
Samara Kalil

a escolhem, a compõem, a tratam, e outros enfim a


intitulam, preparam uma legenda para ela e a comen-
tam. O meio receptor é o público que lê o jornal. E o
canal de transmissão é o próprio jornal, ou, mais exa-
tamente, um complexo de mensagens concorrentes,
de que a foto é o centro, mas de que os contornos são
constituídos pelo texto, título, legenda, paginação (...)
(BARTHES, 1969, p. 301).

Barthes (1969) observa que, quaisquer que sejam a origem


e o destino da Mensagem, a Fotografia não é apenas um produto
ou um caminho, é também um objeto, dotado de uma autonomia es-
trutural que serve para tentar decifrar e esgotar os significados e a
Informação presentes nessa, carregando assim, a ideia de que “a
mensagem fotográfica é uma mensagem contínua”. Sendo assim, a
Fotografia, amparo para a presente pesquisa, é considerada, pelo au-
tor, um dos Meios de Comunicação mais significativos de Poder ideo-
lógico, uma vez que pode estar diretamente ligada com a Informação
e a Comunicação.
Vilches (1993) analisa que o conteúdo de uma Fotografia de Im-
prensa nunca é explícito, e muito menos visual e evidente, se não con-
ceitual e problemático. Não será também óbvio, se não for interpretado
pela perspectiva cultural, juntamente com seus possíveis contextos.
Por isso, ele considera a fotografia como gênero cultural:

Existem muitos e variados gêneros fotográficos: a bio-


fotografia, a foto de imprensa, a foto comercial ou pu-
blicitária, a foto dos cartões-postais (...). Esses pode-
riam ser definidos como textos/gêneros culturais que
veiculam um “conjunto de informações” sobre e “da”
sociedade (VILCHES, 1993, p.235).

O estudioso defende que a linguagem da Fotografia se estrutura


no centro da Cultura e atua como um dispositivo da coletividade. Para
ele, a imagem fotográfica, observada pela perspectiva de um sistema
social de Comunicação (ao modo da língua), se converte em uma es-
pécie de imenso texto, com pluralidades que podem incitar comporta-
mentos e costumes, e, até mesmo, originar uma nova metodologia, na
busca de constituí-la como um conjunto de especificidades autônomas.

122
A fotografia de moda e a produção de sentidos

Nas revistas, por exemplo, é indiscutível a presença das ima-


gens. A preocupação com a capa, a apresentação de produtos e as
matérias, acontecem, normalmente, em torno ou acompanhadas da
Fotografia. A Moda, em especial, se desenvolveu nas páginas dessas
publicações, sempre com a carga ilustrativa, seja com desenhos e ilus-
trações, ou com a Fotografia em si.
Pensamos então, que a Fotografia de Moda, ao ser aprimorada
e desenvolvida ao longo do século XX, é uma categoria dentro da Fo-
tografia Jornalística ou de Imprensa, podendo ser utilizada e analisada
à mesma maneira dos textos escritos. Entretanto, ao desenvolvermos
as ideias de que a roupa comunica e se caracteriza como texto, temos
como pertinentes as indagações de Crane (2006):

A análise das maneiras de vestir releva a importância


de conceituar as culturas das sociedades contem-
porâneas como agregados complexos de códigos,
conjuntos de itens de vestuário aos quais os grupos
sociais atribuem significados inter-relacionados. (...)
Os indivíduos conseguem interpretar os códigos de
seu próprio grupo, mas muitas vezes não tem co-
nhecimento dos códigos utilizados por outros grupos
(CRANE, 2006, p. 465).

A autora ainda argumenta que os textos de Moda podem ser lidos


a partir de duas formas: como “textos fechados” – vestimentas de signifi-
cados fixos – e, “textos abertos” – roupas que adquirem, continuamente,
novos significados. Notamos, assim, que as roupas, em seu papel de
comunicação simbólica, tiveram fundamental importância na história hu-
mana, e até os dias atuais continuam transmitindo Informações.
Portanto, a linguagem visual (de revistas e jornais), expressa-
da através dos usos e costumes em vestuário, pode possuir discursos
que revelam normas e valores culturais dominantes. Segundo Crane
(2006), a influência desses discursos depende, frequentemente, de
fatores sobre os quais seus proponentes têm pouco controle, sendo
até mesmo absorvidos subjetivamente pelas pessoas.
Indo ao encontro das ideias de Crane (2006), Castilho e Mar-
tins (2005) afirmam que é inegável a valoração, a insistência e a per-
manência da linguagem visual como fonte imprescindível de Comuni-
cação no mundo contemporâneo:

123
Samara Kalil

Nessa perspectiva, a moda deve ser reconhecida


como estruturada por todo um sistema visual de sig-
nificados e, portanto, é importante que tenhamos sub-
sídios para entendê-la como meio de comunicação,
como linguagem e, assim, a partir disso, construí-la
como expressão de significados provenientes da co-
presença de linguagens significantes (CASTILHO;
MARTINS, 2005, p.44).

Para tanto, retomamos, através de Castilho (2006), a questão


básica de que a roupa que veste o corpo, recobrindo-lhe como uma
segunda pele e como uma constituição anatômica muito diversa, para
pensarmos uma ideia de Moda-Linguagem e, como tal, organizadora
da estrutura física do corpo e impressora de novos traços, novas li-
nhas, novos volumes e novas cores. Todavia, lembramos que a Foto-
grafia de Moda encontra-se constantemente colocada em um veículo
de comunicação, expressa interesses e pode estar moldando a verda-
de do cotidiano. Pensamos assim, a Fotografia como uma representa-
ção do real, que deve ter relevância quanto aos aspectos contextuais e
intencionais, uma vez que essa pode estar sendo manipulada.
Assim, dentro das possibilidades humanas criadas para o fenô-
meno da Comunicação relacionado à Moda, conseguimos compreen-
der esta última como a expressão de um conteúdo, podendo lê-la como
um texto que, por sua vez, veicula um discurso.

PENSANDO A FOTOGRAFIA ATRAVÉS DA SEMIOLOGIA DE BARTHES

Nas premissas barthesianas sobre a Moda, ocorre uma descri-


ção interessante sobre a técnica semiológica. Para o autor, a Semiologia
descreve uma peça de vestuário que continua de uma ponta a outra do
processo, imaginária, tratando de um conjunto de representações coleti-
vas do real, propondo, portando, difundir a Moda como sentido.
A relação da Fotografia com a realidade, pesquisada por Bar-
thes, em vários de seus trabalhos, como, por exemplo, A câmara clara,
ocorre por meio da tautologia. Para ele, os signos, que são compostos
por significantes e significados, também contam com um referente ou
objeto no espaço do real. Nas palavras de Barthes (1984), “a fotogra-
fia sempre traz consigo seu referente, ambos atingidos pela mesma

124
A fotografia de moda e a produção de sentidos

imobilidade amorosa ou fúnebre, no âmago do mundo em movimento”


(BARTHES, 1984, p. 15). O referente é, portanto, aquele ou aquela que
é fotografado, o alvo, espécie de pequeno simulacro, ou seja, o “espe-
táculo” da Fotografia.
Existem dois tipos de interesse que são despertados, segundo
Barthes (1984), por meio da Fotografia. São eles, Studium e Punctum.
Studium refere-se ao interesse sensato das pessoas em uma determina-
da Fotografia. O autor explica:

(...) é uma vastidão, ele tem a extensão de um cam-


po, que percebo com bastante familiaridade em fun-
ção do meu saber, de minha cultura; esse campo
pode ser mais ou menos estilizado, mais ou menos
bem sucedido, segundo a arte ou a oportunidade
do fotógrafo, mas remete sempre a uma informa-
ção clássica (...), é o studium, que não quer dizer,
pelo menos de imediato “estudo”, mas a aplicação
de uma coisa, o gosto por alguém, uma espécie de
investimento geral, ardoroso, é verdade, mas sem
acuidade particular. É pelo studium que me inte-
resso por muitas fotografias, que as recebo como
testemunhos políticos, quer as aprecie como bons
quadros históricos: pois é culturalmente (essa cono-
tação está presente no studium) que participo das
figuras, das caras, dos gestos, dos cenários, das
ações (BARTHES, 1984, p. 45-46).

O Studium é, para Barthes (1984), um campo muito vasto do


desejo indolente, do interesse diversificado, do gosto inconsequente.
Trata-se do interesse vago, uniforme, irresponsável que temos por pes-
soas, espetáculos, roupas, livros que consideramos “distintos”. Para o
autor, o reconhecimento desse elemento é, fatalmente, encontrar as
intenções do fotógrafo.
Em relação ao Punctum, percebemos que ele pode ser o detalhe,
aquilo que chama atenção individualmente de cada um que olha ou ana-
lisa. Assim, o Punctum é descrito por Barthes (1984), como sendo um
segundo elemento da Fotografia, que vem contrariar o Studium.
Embora Barthes (1984) acredite ser rara a Fotografia jornalística
sem comentário escrito, ele escreve que, na análise destas, devemos
focalizar, em primeiro lugar, as estruturas isoladas e, somente após ter

125
Samara Kalil

se esgotado o estudo de cada estrutura, é que poderemos compreen-


der a maneira como as estruturas se completam. Para isso, o autor su-
gere uma descrição minuciosa do referente fotografado, pois, através
dele, visualizaremos, também, as categorias possíveis.
Apesar do exposto, o semiólogo revela ser difícil obter uma aná-
lise totalmente estrutural da mensagem fotográfica. Para ele, descre-
ver uma Fotografia ao pé da letra é impossível, tendo em vista que a
descrição consiste em acrescentar uma mensagem denotada, extraída
de um segundo código, que é a língua. Há, assim, uma mudança de
estrutura, uma coisa diferente daquilo que é mostrado.

ANÁLISE: COMUNICANDO UM OLHAR

Para esta etapa, selecionamos três fotografias de moda, da


revista feminina brasileira Cláudia, do período de outubro de 2008.
Demos preferência à matéria principal da editoria de Moda, intitulada
Moda para todas, em que as imagens são identificadas sob autoria
de Nana Moraes. O texto na matéria é exclusivamente localizado nas
legendas das fotografias, lead e título – discurso que não será levado
em conta nesse momento. Outro detalhe importante é que seleciona-
mos imagens em que todo o corpo da modelo fosse mostrado, poden-
do assim, ver-se harmonia entre as peças de vestuário. Destacamos,
também, que a matéria possui dezesseis páginas e que todas elas são
compostas por fotografias.
Temos, ainda, como válido salientar, de maneira breve, que a re-
vista Claudia iniciou sua circulação em 1961 e, desde seus primórdios,
sempre estampou conteúdos variados e, muitas vezes, polêmicos em de-
terminadas épocas, ao representar o universo das mulheres no país. Essa
é, portanto, considerada por nós, uma publicação-chave desse gênero.
Partindo para a análise, e utilizando as premissas barthesianas,
faremos uma descrição de cada uma das fotografias e, a seguir, desen-
volveremos uma reflexão em torno dos elementos descritos, trazendo à
tona a teoria anteriormente exposta.
Na primeira fotografia (Figura 1), observamos que a imagem de
Moda ocupa a página de maneira integral e central.

126
A fotografia de moda e a produção de sentidos

Figura 1: Imagem localizada na Revista Claudia, de Out. 2008, p. 251.

A modelo/mulher estampada na foto possui características físicas


marcantes, como olhos castanhos, boca carnuda, pele clara e corpo es-
belto. Ela se encontra em pé, com a perna direita levemente dobrada e
afastada, tocando o chão com a ponta do pé, e apoiando o corpo com
a perna esquerda. A cintura aparece deslocada para o lado direito, junto
com o tronco e cabeça. Seu olhar está direcionado para o lado direito e
boca está entreaberta. Seus cabelos, longos e volumosos, estão coloca-
dos sobre o ombro esquerdo e presos delicadamente com amarrações
no mesmo tom do cabelo, castanho-escuro. Ela está vestindo uma regata
com listas horizontais largas, que alternam as cores vermelho e preto. O
tecido utilizado parece tricô de algodão e a modelagem é rente ao corpo.
Na parte inferior do corpo temos uma saia longa, de algodão, na cor verde
médio. A saia possui o cós alto composto por quatro botões prateados.
Observamos uma textura diferente no tecido da saia, como se houvessem
relevos decorativos, na mesma cor do tecido, que se repetem em todo o
comprimento. O corte da saia é “evasê”, e possui, como detalhe, quatro

127
Samara Kalil

aberturas sobrepostas na parte da frente, desniveladas com o molde-base


da saia. Há um acabamento com miçangas prateadas nas bordas do teci-
do. À tiracolo, ela está vestindo uma bolsa-pasta de couro bege. Em seus
pés, uma sandália de salto médio em tons preto, vermelho, verde e prata.
Na segunda imagem escolhida (Figura 2), observamos que a fo-
tografia ocupa, também, a página de maneira integral e central.

Figura 2: Imagem localizada na Revista Claudia, de Out. 2008, p. 254.

A modelo, de olhos azuis, pele clara e cabelo castanho-claro, está


sendo mostrada de corpo inteiro e realiza uma pose em pé. Suas pernas
estão cruzadas, de maneira que a esquerda está sobre a direita, com os
pés afastados. Seu tronco e ombros estão levemente para trás, como
seu braço esquerdo. O braço direito está voltado para o alto, e dobrado
em direção à cabeça. Seu olhar está localizado para “fora da fotogra-
fia”. Seus cabelos são médios e estão soltos sobre os ombros. Ela está
vestindo um minivestido de seda de tom claro com detalhes verticais
vermelhos que cobrem as costuras da modelagem, localizados desde os

128
A fotografia de moda e a produção de sentidos

ombros, até a barra do vestido. Uma bolsa cor-de-rosa, de palha, está


compondo a vestimenta. A modelo está calçando um sapato branco com
sola de cor preta e plataforma leve, com bico quadrado e salto fino e alto.
Aparenta ser uma sapatilha de bailarina, pois possui fitas para amarrar
na canela, que copiam a modelagem clássica do balé.
Na terceira imagem fotográfica (Figura 3), igualmente de página
inteira e centralizada, percebemos uma modelo de pele clara, cabelo
cacheado e volumoso, de comprimento médio. Seu olhar está direcio-
nado para frente e a cabeça erguida, com a boca entreaberta. Seus
olhos são castanhos. Ela está em pé e uma das pernas está afastada
da outra. A perna esquerda está colocada mais esticada, com o pé tam-
bém esticado. A outra perna faz o apoio do corpo e o pé está no chão.
Ela está com o ombro direito para trás, junto com o braço de mesmo
lado, projetando o peito para frente. Os braços estão dobrados, com
as mãos direcionadas para a lateral do corpo, logo abaixo da cintura.

Figura 3: Imagem localizada na Revista Claudia, de Out. 2008, p. 262.

129
Samara Kalil

A modelo veste uma camisa de algodão de cor crua, de mangas


compridas e punhos largos, com colarinho aberto. Uma parte da camisa
está colocada dentro da calça. Está com uma calça comprida, de linho,
de cor caqui, com corte de alfaiataria, cintura média, bolsos faca, e pre-
gas na frente. No pulso esquerdo ela porta um relógio. Nos pés, vemos
a moça calçando uma sandália de dedos, rasteira, de cor branca, em
couro e camurça.
Em primeira instância, para a leitura dessas imagens, destaca-
mos o Studium, ou seja, a busca do fotógrafo em remeter um conceito
de Moda e Mulher. Esse conceito está, para nós, impresso nas poses,
nas estéticas e, principalmente, no uso das cores através das roupas. Na
Fotografia 1, a intenção parece estar em mostrar um despojamento na
atitude por meio das roupas e acessórios – bolsa/pasta com saia compri-
da, trazendo à tona tecidos já conhecidos e modelagens adaptadas de
épocas antigas, como, por exemplo, a cintura alta e marcada.
Na Fotografia 2, observamos, como Studium, a leveza e a fragi-
lidade da mulher. O minivestido de seda esvoaçante, com pernas nuas,
e o sapato imitando sapatilhas de bailarina, juntamente com a pose
da modelo, ao elevar o braço, e cruzar as pernas, nos levam a essas
premissas. A bolsa cor-de-rosa pequena, contudo, demonstra um lado
ainda adolescente. Já na terceira fotografia, a ideia de mulher moderna
e independente, com cores pastéis, tecidos leves e modelagem mais
masculina, é o que parece estar sendo intencionado.
O Punctum, na Fotografia 1, caracterizado pelo detalhe, tido
por nós como uma particularidade que chama atenção, individual-
mente, está na intensidade do verde do tecido da saia comprida e
na cintura alta, podendo significar uma tendência. Na Fotogradia 2,
temos o comprimento do vestido, como sendo o que mais punge, tra-
zendo a ideia de que mostrar o corpo é a grande “sacada” do momen-
to, porém, disfarçando as curvas. Já na terceira fotografia, a aparente
manifestação de um conceito de “estar bem consigo mesma”, expres-
sada no conjunto das vestimentas – sandália sem salto, calça larga e
reta e camisa -, pode estar demonstrando uma mulher mais livre, sem
ter que se preocupar com as aparências e que não precisa subir no
salto para se sentir segura.
Pensando pelo viés cultural, nas três fotografias temos constru-
ções de tendências de Moda, que aparentam opostas, mas, ao mesmo

130
A fotografia de moda e a produção de sentidos

tempo, interligadas pelo tempo. Apesar de cada fotografia trazer uma


carga referente que existe no real, essa talvez não seja a realidade
mais verdadeira da mulher.
Na primeira foto – Fotografia 1 –, o ícone de mulher parece estar
ligado ao estilo da personagem de videogame Lara Croft, recentemen-
te interpretada pela atriz Angelina Jolie no cinema. Ela é independente,
segura, inteligente, sensual e de beleza estética exótica.
Na segunda fotografia – Fotografia 2 –, notamos certa seme-
lhança de figurino com a atriz hollywoodiana Marylin Monroe, ícone dos
anos 1950. Lembramos que essa teve uma vida conturbada. A terceira
imagem – Fotografia 3 – reflete uma mulher madura e despreocupada.
Os cabelos crespos lembram a afro-descendência, característica mar-
cante de parte da população brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que conseguimos ver nas entrelinhas da revista Claudia, levan-


do em conta que a Moda trabalha como uma engrenagem - vai desde a
fabricação do tecido e dos pigmentos das cores, até a chegada de uma
peça na prateleira e a compra do consumidor - é que os sinais expostos
são limitados, uma vez que pensamos serem esses representantes um
ideal de Moda e de mulher, ou seja, demonstram certa distorção em re-
lação ao contexto social brasileiro.
As roupas ali colocadas, se comparadas ao contexto cultural
brasileiro de 2008, mesmo que dotadas de simplicidade estética, ain-
da são elitizadas e inacessíveis à grande massa consumidora. Assim, a
produção de sentido possível nas fotografias aparenta ser infinita, e as
ideias de McLuhan, em relação à abstração da Mensagem fotográfica,
parecem-nos claras.
Levando em consideração o modelo de Barthes (1969), para pensar
a Mensagem, temos como fonte emissora evidente a redação da revista.
O meio receptor acaba sendo o público leitor. Já o canal de transmissão a
própria revista, possibilitando as Mensagens, que são esgotadas de tempos
em tempos, e dependem da interpretação realizada pelo receptor. Sendo
assim, nenhuma das colocações textuais das fotografias são coincidências.
Vilches (1993), ao tratar do não-explícito, e desenvolver a pers-
pectiva cultural como central na percepção dos gêneros fotográficos,
131
Samara Kalil

nos remete ao gênero da Moda. Nesse viés, portanto, podemos pensar


a representação individual, contextual, coletiva, abstrata e histórica.
Reparamos que, nas três imagens de Moda, o equilíbrio/dese-
quilíbrio se faz presente, tanto na pose das modelos, quanto em re-
lação às vestimentas. O retorno aos ícones passados, e das ideias
inconscientemente já aceitas e conhecidas pelo grande público consu-
midor de roupas e revistas de Moda, acabam tendo um grande espaço.
Assim, certo jogo entre Comunicação e Moda põe-se em evidência.
Entretanto, não podemos deixar de considerar parcial a leitura
que fizemos nas três imagens. Mesmo inseridos no tempo em que a pu-
blicação fora desenvolvida, ainda temos como complexa a relação entre
a realidade e o imaginário, pois muitos assuntos e categorias de análise
acabam surgindo, suscitando possibilidades múltiplas de significações.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

______. “A mensagem fotográfica”. In: LIMA, Luis Costa (Org.). Teoria da cul-
tura de massa. Rio de Janeiro: Saga, 1969.

CASTILHO, Kathia. Moda e linguagem. São Paulo: Anhembi Mo-rumbi, 2006.

CASTILHO, Kathia; MARTINS, Marcelo M. Discursos da moda: Semiótica,


design e corpo. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2005.

CRANE, Diana. A moda e seu papel social: Classe, gênero e identidade das
roupas. São Paulo: Senac São Paulo, 2006.

FRANÇA, Vera Veiga. “O Objeto da comunicação/ A comunicação como obje-


to”. In. HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga. (Org.)
Teorias da comunicação: Conceitos, escolas e tendências. Petrópolis:
Vozes, 2001.

MARTINO, Luiz C. “Interdisciplinaridade e objeto de estudo da comunicação”. In:


HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga. (Org.) Teorias
da comunicação: Conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2001.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem.


São Paulo: Cultrix, 1964.

132
A fotografia de moda e a produção de sentidos

MORAES, Nana; MARTINELLI, Noris. “Moda para todas”. In: Revista Claudia,
São Paulo, ano 47, n. 10, p. 248-263, out. 2008.

MORAES, Nana. [Fotografia 1 ]. Outubro 2008. Revista Claudia. São Paulo,


ano 47, n. 10, p. 251.

MORAES, Nana. [Fotografia 2 ]. Outubro 2008. Revista Claudia. São Paulo,


ano 47, n. 10, p. 254.

______. [Fotografia 3 ]. Outubro 2008. Revista Claudia. São Paulo, ano 47, n.
10, p. 262.

VILCHES, Lorenzo. Teoria de la imagen periodística. Barcelona: Paidós, 1993.

133
REVOLUÇÃO FARROUPILHA: UMA LEITURA DO MANIFESTO
DE 1838 ATRAVÉS DA “POLÍTICA” DE ARISTÓTELES

Camila Garcia Kieling

Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: camila.kieling@gmail.com

RESUMO
O Manifesto de 1838 é um dos documentos mais relevantes para a com-
preensão das causas da Revolução Farroupilha pela ótica dos próprios
revolucionários. Publicado em três partes no jornal O Povo, primeiro
periódico oficial da República Rio-Grandense, o Manifesto foi assinado
pelo Presidente da República, Bento Gonçalves da Silva, e pelo então
Ministro do Interior e um dos mentores do periódico, Domingos José de
Almeida. Neste artigo, buscamos articular os argumentos apresentados
pelos farrapos com a filosofia política de Aristóteles, destacando o enten-
dimento das noções de justiça, igualdade, cidadania e opinião pública.

PALAVRAS – CHAVE
História da Imprensa
jornal O Povo
Revolução Farroupilha

ABSTRACT
The Manifesto of 1838 is one of the most relevant documents to un-
derstand the causes of the War of the Farrapos in the perspective of the
revolutionaries themselves. Published in three parts, in the newspaper
O Povo, the first official journal of the Rio-Grandense Republic, the Ma-
nifesto was signed by President Bento Gonçalves da Silva, and the Mi-
nister of the Interior and one of the mentors of the newspaper, Domingos
José de Almeida. We try to articulate the arguments of the revolutionaries
to the political philosophy of Aristotle, emphasizing the concepts of justi-
ce, equality, citizenship and public opinion.

KEYWORDS
Press history
newspaper O Povo
War of the Farrapos
Revolução Farroupilha

Mesmo datando de dois mil e quinhentos anos atrás, a produção


filosófica de Aristóteles continua constituindo uma das bases da cultura
Ocidental (COLLINSON, 2007). O autor viveu entre 384 e 322 a.C., foi
aluno de Platão, professor de Alexandre, O Grande, e entende que a
política é a ciência da felicidade humana, uma ciência eminentemente
prática, “pois não estuda somente o que é a felicidade (...) mas também
a maneira como obtê-la” (KURY, 1997, p. 8).
Esse princípio pode ser um dos pontos de partida no entendimen-
to do Manifesto de 1838, documento que lista uma série de causas do
descontentamento dos rebeldes farroupilhas em relação governo imperial
brasileiro. Pela extensão e veemência do texto, que justifica o rompimento
com o Brasil e a afirmação de uma nova República, fica claro que os farra-
pos viviam uma situação de grande infelicidade1 em relação ao tratamen-
to dispensado pelo Império à Província de São Pedro. Na obra Política,
de Aristóteles, é possível distinguir diferentes procedimentos que causam
desequilíbrio e minam as relações políticas, fomentando as revoluções.
Assim, nossa proposta, neste artigo, é articular o discurso do Manifesto
com a filosofia política de Aristóteles, procurando entender a legitimidade
(ou não) dos argumentos dos farrapos com base nessa teoria.
Para começar, é essencial entendermos que, para Aristóteles
(1283 a, p. 101)2, o homem é um ser naturalmente social, gregário: um
animal social por natureza. A formação de comunidades e de cidades,
que, em seguida, trataremos com mais especificidade, acontece primei-
ro para assegurar a sobrevivência e, depois, para buscar meios de viver
melhor. “O bem em política é a justiça, ou seja, o interesse comum” afir-
ma o filósofo. Ele compara a cidade (guardando as proporções) com a
unidade familiar, composta pelo chefe de família, os filhos, a esposa e os
escravos. Cabe destacar a naturalidade com que Aristóteles trata o tema
da escravidão, fato que o tradutor Mário da Gama Kury procura justificar,
na apresentação do livro, da seguinte maneira:

Não se deve esquecer que mesmo os gênios são


influenciados pelas realidades diante de seus olhos,
sobretudo se elas se explicam por uma necessida-
de inelutável, como a de os escravos na antiguidade

Destacamos em itálico as categorias utilizadas por Aristóteles na Política.


1 

Optamos por indicar as referências ao texto de Aristóteles através da numeração da edição da


2 

UnB, seguida da página.

135
Camila Garcia Kieling

serem o instrumento de produção por excelência,


equivalente às máquinas de hoje, e que certamente
pareceria a Aristóteles mais justo, ou menos injusto,
poupar nas freqüentes guerras esses instrumentos
únicos de trabalho, para depois escravizá-los, em
vez de matá-los cruelmente em sua condição de pri-
sioneiros (KURY, 1997, p. 9).

A preocupação do tradutor em amenizar ou justificar as afirma-


ções do filósofo parece desnecessária para o leitor que tem contato dire-
to com a obra de Aristóteles (1254 a, p. 18) (ele mesmo afirma isso mais
adiante). A questão parece não fundar-se na justiça ou na crueldade, e
sim na naturalidade: “um ser humano pertencente por natureza não a si
mesmo, mas a outra pessoa, é por natureza um escravo” A própria no-
ção de cidadão, mesmo em uma democracia, pelos preceitos do filósofo,
não abarca os escravos.
O Manifesto de 1838 sequer cita a questão da escravatura no
Brasil, mas sabemos que a situação dos escravos era um tema presen-
te no debate político naquele momento histórico3. Soa estranho, para
não dizer irônico, numa leitura contemporânea, a afirmação de que os
estancieiros sul-rio-grandenses estavam submetidos à “mais abjeta
escravidão”4. A questão é bastante controversa na historiografia sul-
rio-grandense ainda hoje, uma vez que a apropriação da história por
uma perspectiva mítica parece nublar as evidências de que a abolição
não esteve entre os planos dos farrapos. O deslocamento dos negros
para os campos de batalha, durante a Revolução Farroupilha, também
indica o seu uso como máquina e provocou uma crise de mão-de-obra
na cidade e no campo, tanto nas tarefas domésticas quanto nos servi-
ços especializados. Flores (2002) informa que os cativos foram massa
de manobra na mão dos Republicanos e da Regência, já que ambos
se valeram da oferta de vantagens para estimular os negros a juntar-se
ao exército farroupilha ou a desertar. Em 1838, a Regência ordenou a
pena de 200 a 1.000 açoites para o escravo que fosse pego lutando

3 
Sobre esse assunto, ver BASILE, Marcello. “Projetos de Brasil e contrução nacional na imprensa
fluminense (1831-1835)”. In: NEVES, Lúcia Maria Bastos, MOREL, Marco e FERREIRA, Tania Ma-
ria Bessone (Orgs.). História e imprensa – Representações culturais e práticas de poder. Rio
de Janeiro: DP&A / Faperj, 2006.
4 
Destacamos entre aspas os trechos retirados do Manifesto, que foi publicado nos números 2, 3 e
4 do jornal O Povo, reproduzidos no Anexo 1.

136
Revolução Farroupilha

pelos rebeldes; ao mesmo tempo, oferecia anistia e o pagamento de


transporte para fora da província àqueles que desertassem. Já os far-
rapos ofereciam aos cativos do Império a liberdade em troca do serviço
militar; os que se negassem a pegar em armas eram mantidos como
escravos da República. Naquele momento histórico, a doutrina liberal
era a justificativa:

A República não concedeu liberdade aos cativos em


seu território porque, de acordo com a doutrina libe-
ral, o Estado não podia intervir na propriedade. Neste
caso o escravo era considerado como um bem móvel,
que podia ser vendido, alugado, trocado, hipotecado,
herdado e legado como dote (FLORES, 2002, p. 173).

O governo republicano manteve todas as práticas comuns ao es-


cravismo. O sistema fazia parte da mentalidade da época. A seu modo,
e guardadas as diferenças contextuais (são 2.400 anos que separam
uma situação e outra), Aristóteles (1254 a, p. 18) também justificou a
escravidão pelo viés da propriedade: “Os bens são um instrumento para
assegurar a vida, a riqueza é um conjunto de tais instrumentos, o escra-
vo é um bem vivo, e cada auxiliar é por assim dizer um instrumento que
aciona outros instrumentos”.
Voltando ao tema do homem em sociedade, explica o filósofo
que, em sua natureza social, o homem distingue-se dos demais animais
gregários por viabilizar a sociedade através da linguagem: “o homem é o
único entre os animais que tem o dom da fala. ‘(...) A fala tem a finalidade
de indicar o inconveniente e o nocivo, e portanto também o justo e o in-
justo’” (1253 a, p. 15). Podemos relacionar a importância dada pelo autor
à linguagem no processo social humano com a efervescência experi-
mentada pela imprensa brasileira durante o período regencial, quando
as mais diversas ideias eram expostas na arena pública, através da fala
dos jornais. Assinala Morel (2003) que, durante as Regências, o poder
centralizador estava enfraquecido, e o que aconteceu foi uma “explosão
da palavra pública como nunca ocorrera no território (que se pretendia)
brasileiro” (p. 24). O poder de decisão passaria a ser visto como o resul-
tado da negociação entre forças políticas e não apenas pela vontade de
um soberano. O Povo, o periódico oficial da República Rio-Grandense,
onde o Manifesto foi publicado, representou a voz dos farroupilhas.

137
Camila Garcia Kieling

Cabe aprofundar a noção de cidadania e de cidade propostas


pelo filósofo: “A cidade é essencialmente uma forma de comunidade, e
antes de mais nada ela deve ser o lugar de todos; uma cidade tem de ser
em um lugar, e uma cidade pertence aos cidadãos em comum” (1261 a,
p. 35). Aristóteles afirma, ainda, o caráter plural da cidade: “uma cidade
é uma multidão de cidadãos” (1275 a, p. 78). O sentimento de amizade
é o maior bem de uma cidade, já que o objetivo de se viver junto, depois
de assegurada a sobrevivência, é o de se viver melhor.
A questão da cidadania também aparece no caso do Manifesto.
Já que a cidade é uma junção de cidadãos, é preciso definir quem pode
usufruir desse título. Para Aristóteles, o cidadão tem duas característi-
cas essenciais: direito de administrar a justiça e a obrigação de exercer
função pública, desde que seja respeitada a alteridade nos cargos (1275
b). Aristóteles difere as propriedades necessárias aos governantes e aos
governados, mas “o bom cidadão deve ter os conhecimentos para go-
vernar, e o mérito de um bom cidadão está em conhecer o governo de
homens livres sob os dois aspectos” (1277b, p. 85). De qualquer forma, a
moderação e a justiça são as características de um homem bom, gover-
nante ou governado. Dada a diversidade de cidadãos existentes em uma
cidade, é essencial definir o ordenamento da cidade, sua constituição,
leis e instituições. A necessidade de justiça, de ordem e de comedimento
também aparece reiteradamente no Manifesto.
Basicamente, as queixas dos farrapos resumem-se a questões
financeiras e judiciais. “Algumas pessoas pensam que a regulamentação
adequada da propriedade é o ponto mais importante, pois todas as re-
voluções são feitas por causa dessa questão” (1266 b, p. 51). Segundo
Aristóteles, cabe ao governante saber discernir a quantidade de riquezas
necessárias para a cidade, especialmente em territórios belicosos (como
o caso da Província de São Pedro, marcada pelas guerras de fronteira):
em 1267 b, afirma que a propriedade deve ser suficiente para que a
cidade cumpra seus deveres cívicos e possa se defender das ameaças
exteriores; por outro lado, não pode ser rica demais, para não atrair a
cobiça de invasores. Assim, parece ter faltado essa moderação no hori-
zonte administrativo do Império, já que os farrapos reclamavam:

Reduzida a oito mil homens a força de primeira linha do


exército, só ao Rio Grande coube sustentar cinco corpos
dessa força, além de um corpo de Guardas Policiais.

138
Revolução Farroupilha

Não nos pagou o Governo Imperial o que se nos


tirou a título de compra, ou de empréstimo, e mui-
to menos ressarciu as nossas perdas, ocasionadas
por um estado de coisas de que só ele era culpado
(O Povo, n. 2, p. 2).

A desmedida causa problemas a qualquer tipo governo. Estan-


do claro o que é necessário para a felicidade de uma cidade (e o go-
vernante conta com a sinceridade dos cidadãos quando estes emitem
suas opiniões), resta definir a forma como ordená-la administrativa-
mente. Para Aristóteles, os modos de governar são três, e cada um de-
les apresenta risco de desvio: a monarquia, que pode se tornar tirania;
a aristocracia, que pode virar uma oligarquia, e o constitucionalismo,
que pode desviar-se para uma democracia (governo de demagogos).
O autor explica o porquê desses desvios:

De fato, tirania é a monarquia governando no interes-


se do monarca, a oligarquia é o governo no interesse
dos ricos,e a democracia é o governo no interesse
dos pobres, e nenhuma dessas formas governa para
o bem de toda a comunidade (1279 b, p. 91).

O texto do Manifesto traz menções explícitas de que o governo


central do Brasil, mesmo sob a forma regencial, dirigia-se apenas a in-
teresses pessoais. Tirania, a mesma palavra escolhida por Aristóteles
para caracterizar o desvio da monarquia, aparece diversas vezes no
texto para caracterizar o Império, acompanhada das variantes déspota,
arbitrário, e até monstro.
A boa constituição deve proporcionar a vida melhor aos cida-
dãos que compõem a cidade, e, aqui, o filósofo abre espaço para a
noção de fruição dos bens do produto do trabalho (princípio que mais
tarde fundará parte do ideário liberal que guia o pensamento revolucio-
nário farrapo). Destacamos dois trechos, um de Aristóteles e outro do
Manifesto, que ilustram a questão da fruição dos bens. Diz o filósofo:
“Fazer favores e prestar assistência a amigos ou hóspedes ou compa-
nheiros é um grande prazer, e isto só é possível quando se dispõe de
bens próprios” (1263 b, p. 42). Ao referir-se ao asilo dedicado a pesso-
as perseguidas no Uruguai, o documento farroupilha descreve:

139
Camila Garcia Kieling

É a hospitalidade Rio-Grandense universalmente co-


nhecida; célebres historiadores a tem preconizado, é
um hábito inveterado, uma virtude arraigada no cora-
ção do Povo. O Patriota Rio-Grandense, verdadeiro
cosmopolita aqui a oferece franca, larga e genero-
sa ao primeiro infeliz que se apresenta a sua vista.
Ele não pôde ser indiferente aos prófugos da Banda
Oriental que lhe pediam asilo.
(...) este ato de humanidade e virtude lhes foi impu-
tado a crime; e não duvidou persegui-los o Governo
Imperial (O Povo, n. 3, p. 2).

Lembremos que, em 1834, Bento Gonçalves, então coman-


dante da Guarda Nacional na fronteira de Jaguarão, foi a julgamento
pela acusação de acobertar Juan Lavalleja, perseguido no Uruguai
por contrabando de gado e conspiração liberal. Esse trecho também
remete à desordem na questão judicial, já que uma das acusações
que mais pesava aos rio-grandenses era a de pretensões separatis-
tas e de união com o Prata, o que é considerado, no Manifesto, um
“delírio”. No terreno da injustiça, os farrapos traduzem os aconteci-
mentos da seguinte forma:

Assim, [o Império] processa, prende e castiga e só


depois denuncia o crime suposto de suas vítimas sa-
crificadas. Principiou por onde todos os monstros aca-
bam, fez preceder a pena à calúnia que a deveria ter
provocado (O Povo, n. 3, p. 2).

Aristóteles alerta para os perigos do descumprimento da lei: “a


justiça é a base da sociedade; sua aplicação assegura a ordem na co-
munidade social, por ser o meio de determinar o que é justo” (1253 a,
p. 16). São várias as reclamações dos farrapos em relação à feitura e
aplicação das leis: permissão de contrabando, criação de leis sem utili-
dade, impunidade, punições exageradamente severas às manifestações
populares, invalidação de habeas corpus, ocultação das acusações pe-
sadas sobre cidadãos mantidos presos. Destacamos o seguinte trecho
do Manifesto: “[O Governo Imperial] Faz Leis sem utilidade pública e dei-
xa de fazer outras de vital interesse para o Povo”. Aristóteles dissertou
sobre esse assunto, alertando para a necessidade de que as leis sofram
modificações que acompanhem as mudanças da sociedade:

140
Revolução Farroupilha

Mesmo quando se trata de leis escritas, não é me-


lhor mantê-las inalteradas, pois tal como acontece
com outras artes é impossível que a ordem política
seja perfeitamente delineada em todos os seus deta-
lhes; ela deve ser delineada em suas generalidades,
ao passo que nossas ações são de caráter individual
(1269 a, p. 58).

Ao mesmo tempo, o autor pondera que essas mudanças devem


ser muito bem pensadas, para que a lei não perca sua força: “A lei não
tem outra força além do costume para compelir à obediência, e o costu-
me só se consolida em um lapso de tempo; logo, passar facilmente das
leis existentes para leis novas é enfraquecer a força da lei” (1269 a, p.
58). Os farroupilhas também se queixam da falta de um Tribunal na Pro-
víncia, sendo necessário ir até a Corte para procurar recursos judiciais,
tornando quase impossível contar com a justiça, dadas as dificuldades
para atravessar uma distância tão longa.
O descumprimento das leis também traz à tona uma das ques-
tões mais graves da administração da cidade: a corrupção. Aristóteles
afirma a necessidade de se evitar todos os tipos de transgressão à lei,
e “deve-se tratar principalmente de impedir as pequenas transgressões”
(1308 a, p.183). Os bons funcionários públicos devem apresentar três
características básicas: lealdade, capacidade e ética.
Justiça, propriedade, honra e felicidade são também aspectos
invocados pelos farrapos no Manifesto. Já a primeira frase invoca o
restabelecimento dos “direitos da primitiva liberdade”. Logo em segui-
da, afirma a capacidade econômica da Província: “toma na extensa es-
cala dos Estados Soberanos o lugar que lhe compete pela suficiência
de seus recursos, civilização e naturais riquezas, que lhe asseguram o
exercício pleno e inteiro de sua Independência, Eminente Soberania e
Domínio”. Depois, afirma que “o Povo Rio-Grandense não reconhece
outro Juiz sobre a Terra além do Autor da Natureza, nem outras Leis
além daquelas que constituem o Código das Nações” e, no final do se-
gundo parágrafo, afirma sua infelicidade:

O Ato de sua separação e desmembramento não foi


obra da precipitação irrefletida, ou de um capricho-
so desacerto, mas uma obrigação indispensável, um
dever rigoroso de consultar a sua honra, felicidade e

141
Camila Garcia Kieling

existência altamente ameaçadas, de atender por si


mesmo a própria natural defesa, de subtrair-se a um
jogo insuportável, cruel e ignominioso, opondo a re-
sistência à injúria, repelindo com força a violência (O
Povo, n. 2, p.1).

A defesa da honra e da propriedade andam juntas, como aponta


Aristóteles, especialmente entre as elites, caso do grupo social que fo-
mentou a Revolução Farroupilha:

As revoluções, aliás, são causadas não somente pela


distribuição desigual de bens, mas também pela de
honrarias, embora os dois motivos atuem de maneiras
opostas – as massas manifestam descontentamento
se os bens são desigualmente distribuídos, e os mais
favorecidos se as honrarias são igualmente distribuí-
das (1267 a, p. 52).

A questão da honra e da reputação torna-se premente em uma


sociedade onde a noção de opinião pública ganha cada vez mais espaço
e o embate de ideias e versões se dá através da imprensa. Criticando a
criação de novos impostos sobre a terra e a criação de um dispendioso
corpo policial, os farrapos afirmam que são atacados de forma injusta
pelos jornais do Império:

Tão desatinadas disposições foram logo feridas de


reprovação pelo instinto comum; a voz pública as
condenava a elas só atribuía toda a extensão do
mal que nos ameaçava de tão perto: a irresistível
força da Opinião Pública, desta Rainha do Univer-
so, apontou para os nossos opressores essas ar-
mas que eles preparavam contra nós. Mas ainda
lhes restava um recurso: a imprensa.
Elas a degradam de sua nobre missão transformando-
a em veículo impuro de injuriosos ditos, grosseiras in-
ventivas e difamante impropério (O Povo, n. 4, p. 1).

Pela leitura do Manifesto, entendemos que os crimes do Im-


pério são considerados mais graves quando dirigidos à honra. Na
primeira parte do texto, são citados diversos fatos desabonadores da
administração do Império, denúncias de improbidade, corrupção, in-

142
Revolução Farroupilha

competência e descumprimento das leis. Fatos graves, mas que são


seguidos da seguinte afirmativa:

Estes males, além de outros muitos, nós os temos


suportado em comum com as outras Províncias da
União Brasileira; amargamente os deplorávamos
em silêncio, sem contudo sentirmos abalada a nos-
sa constância, o nosso espírito de moderação e de
ordem. Para que lançássemos mão das armas foi
preciso a concorrência de outras causas, outros
males que nos dizem respeito particularmente a
nós, e que nos trouxeram a íntima convicção da im-
possibilidade de avançarmos na carreira da civiliza-
ção e prosperidade. (...)
Há muito desenvolvia o Governo Imperial uma parcia-
lidade imérita, um desprezo insolente e revoltante res-
peito à nossa Província. O sangue que derramamos na
guerra com as Repúblicas Argentinas, o sacrifício das
vidas de nossos irmãos, a destruição de nossos cam-
pos, a ruína das nossas fortunas, as prodigiosas somas
que nos extorquiu a nós, os mais sobrecarregados e
cotizados durante aquela luta desastrosa, não nos va-
leram a menor deferência da parte daquele Governo
injusto e tirânico (O Povo, n. 2, p. 2).

Ou seja: mesmo com a prática de todas aquelas ilegalidades, a


injúria à honra particular tem peso insuportável para essa elite que, antes
do fracasso na Guerra da Cisplatina, barganhava com o Império através
de seu prestígio militar (PESAVENTO, 1985).
Fica claro que faltou ao Império brasileiro, pela ótica dos farrapos,
o cumprimento de um princípio básico da cidade: o trabalho coletivo por
uma vida melhor, já que “uma cidade não é apenas uma reunião de pes-
soas num mesmo lugar, com o propósito de evitar ofensas e intercambiar
produtos” e, ainda, “a comunidade política, então, deve existir para a prá-
tica de ações nobilitantes e não somente para a convivência” (1281 a, p.
94). Essa desmedida do Império foi identificada pelos revolucionários, e
eles, ao mesmo tempo, reconheceram que bastaria um governo justo para
evitar tamanho descontentamento e, consequentemente, a Revolução:

Na aplicação de uma política leal e benéfica teria


aquele Governo facilmente encontrado o segredo in-

143
Camila Garcia Kieling

falível de dispor de nossa vontade, como sempre o


fizera do nosso dinheiro; prefere infelizmente tornar
contra si aquelas vantagens de que tanto proveito ha-
via tirado, e podia continuar a tirar, se soubesse ser
justo e magnânimo (O Povo, n. 3, p. 1).

Podemos ver, por esse trecho, que o problema dos farrapos não
era dispor de seus recursos em favor do Império, mas, sim, não rece-
ber em troca um tratamento justo, que lhes permitisse viver melhor.
Nessa linha de raciocínio, justifica-se o rompimento com a constituição
do Império e a procura por outro tipo de governo que se mostrasse
mais equilibrado, bom e justo. A incompetência do Governo Central em
atender, ou, pelo menos, contemporizar as demandas da Província de
São Pedro foi fatal, caindo na armadilha da falta de confiança no gover-
nante, o que Aristóteles havia caracterizado como perigoso: “Aniquilou-
se, desacreditou-se, suicidou-se a si mesmo! Morreu morte política na
opinião de todos os homens sensatos (...)” (O Povo, n. 3, p. 2).
O filósofo afirma que a Monarquia raramente é destruída por
causas externas: “na maioria dos casos, a destruição tem origem
nela mesma”, e destaca dois casos: “quando há desavenças entre
os membros da família real, e outra quando os reis tentam governar
tiranicamente, pretendendo exercer o poder soberano com maior am-
plitude e contrariamente à lei” (1313 a, p. 194). No caso do Brasil, o
processo de independência e as mudanças no panorama político e
econômico do país vinham deteriorando o Império, num processo que
culminou com a renúncia de D. Pedro I. Este foi o ponto alto de uma
série de fatores, entre eles a inflação e o aumento no custo de vida
que colocaram elites, classe média e o povo em geral do mesmo lado.
A incipiente imprensa brasileira, que havia desembarcado no país em
1808, junto com a Família Real portuguesa, teve um papel decisivo
na derrocada do Imperador. De acordo com Silva (1992), os jornais,
em sua maioria de oposição, atacavam violentamente D. Pedro I, e o
assassinato do jornalista opositor Líbero Badaró5 funcionou como pól-
vora para agitações, passeatas, discursos, quebra-quebras e ataques
generalizados aos portugueses.
A desconfiança em relação ao monarca, manifestada através
da imprensa, e o descontentamento também por parte das elites foram
5 
Giovanni Battista Líbero Badaró escrevia no jornal O Observador Constitucional, surgido em 1829.

144
Revolução Farroupilha

decisivos: “Deve-se também envidar esforços para evitar querelas e


faccionismo entre os notáveis”, afirma Aristóteles (1308 b, p. 184). Afe-
tar a honra das elites foi fatal entre os estancieiros do sul. No Manifes-
to, há uma passagem notável que faz referência à lenda de Guilherme
Tell, e que ilustra o sentimento de desonra que o Império passou a
provocar: “Apresentavam-nos o barrete de Gessler, para que diante
dele nos prostrássemos” (O Povo, n.4, p.1). Lembremos da história:
Gessler, governador da Áustria, coloca seu barrete em praça pública
e exige que os súditos prestem reverência ao objeto. Um dia, Guilher-
me Tell passa pela praça e não reverencia o barrete. Pela negativa, é
preso e condenado pelo soberano a atirar uma flecha, à distância de
50 passos, em uma maçã posicionada sobre a cabeça de seu próprio
filho. Com admirável destreza, Tell realiza o feito e mais tarde acaba
por matar o tirano com a seta de sua besta. De acordo com a lenda,
esse evento marcou o início da guerra de libertação nacional da Suíça
contra a Áustria, em 1308. A ópera Guillaume Tell, de Rossini, estreou
em Paris em 1829, de forma que é bastante possível que os farrapos
rio-grandenses tenham tido notícia do fato.
Assim como Gessler, pela soberba, o Império brasileiro também
falhou em vários aspectos, e mesmo no exercício da tirania, na análise
de Aristóteles, já que não foi hábil o suficiente para debelar os farrapos
através das armas “legítimas” nesse caso: a delação, a violência e a
espionagem. Não que o Império não tenha tentado: o Manifesto denun-
cia as inúmeras prisões arbitrárias, a prática de tortura e de violentos
assassinatos (O Povo, n. 4, p. 2-3). A desmedida atingia a própria es-
trutura social do Brasil naquele momento histórico, que podemos con-
siderar desarmônica do ponto de vista aristotélico: havia poucos ricos,
muitos pobres e quase nenhuma classe média e a mediocridade é um
bem para Aristóteles. Sobre isso, o autor afirma:

Certamente o ideal para uma cidade é ser composta na


medida do possível de pessoas iguais e identificadas en-
tre si, e isto acontece principalmente na classe média.
(...) Evidentemente a forma mediada de constituição é
a melhor, pois somente ela é imune ao faccionismo, já
que onde a classe média é numerosa é menos prová-
vel a formação de facões e partidos entre os cidadãos
(1296 a/b, p. 144-154).

145
Camila Garcia Kieling

Como previa o filósofo, o rompimento com um tipo de constituição


normalmente leva a um tipo de organização oposto e não similar (da
monarquia para a oligarquia, por exemplo). No caso rio-grandense, a
ruptura foi forte, já que a Província virou uma República com tendências
federativas. Diz o Manifesto:

Perdidas pois as esperanças de concluírem com o


Governo S. M. Imperial uma conciliação fundada nos
princípios da Justiça Universal, os Rio-Grandenses
reunidos às suas Municipalidades solenemente pro-
clamam e juram a sua Independência Política, debai-
xo dos auspícios do Sistema Republicano, dispostos
todavia a federarem-se, quando nisso se acorde às
Províncias Irmãs que venham a adotar o mesmo sis-
tema (O Povo, n. 4, p. 3).

O equilíbrio pareceu se restabelecer com a restauração do


prestígio dos rebeldes sul-rio-grandenses com o Império. Pesavento
(1985) articula a anistia dos farrapos com os traços que se desenha-
vam nas disputas políticas no Prata, com agitações entre a oligarquia
rural e a burguesia comercial na Argentina e o avanço de Rosas sobre
Frutuoso Rivera, no Uruguai. Mais uma vez, a questão militar subsi-
diava o poder de barganha da Província, em um novo reconhecimento
da tão cara honra dos farrapos que, nos termos de Aristóteles, volta-
ram a ver condições vantajosas à vida melhor na sua reintegração ao
Império brasileiro.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Política. Brasília: UnB, 1997.

COLLINSON, Diané. 50 Grandes filósofos: Da Grécia antiga ao século XX.


São Paulo: Contexto, 2007.

FLORES, Moacyr. República Rio-Grandense: Realidade e utopia. Porto Ale-


gre: Edipucrs, 2002.

KURY, Mário da Gama. “Apresentação”. In: ARISTÓTELES. Política. Brasília:


UnB, 1997.

146
Revolução Farroupilha

MOREL, Marco e BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder:


O surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

O POVO. Jornal político, literário e ministerial da República Rio-Grandense. Pi-


ratini, setembro de 1838 a maio de 1840. In: Museu e Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul. Documentos interessantes para o estudo da grande revolu-
ção de 1835-1845. Porto Alegre: Dep. de História Nacional, 1930. 2 v .

PESAVENTO, Sandra Jatahy. A Revolução Farroupilha. São Paulo: Brasi-


liense, 1985.

SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil. São Paulo: Moderna, 1992.

147
O PENSAMENTO COMPLEXO E OS ESTUDOS CULTURAIS
NA PESQUISA EM JORNALISMO: POR UMA INTERSECÇÃO
TEÓRICO-METODOLÓGICA
Vilso Junior Santi

Jornalista. Doutorando em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: vjrsanti@yahoo.com.br

RESUMO
Tratamos aqui da aproximação teórico-metodológica entre os “Estudos
Culturais Britânicos” e os postulados do “Pensamento Complexo” de Ed-
gar Morin. Tal vinculação, além de possível, faz-se necessária a fim de
que possamos jogar mais luz aos fenômenos igualmente complexos que
envolvem a Comunicação e o Jornalismo, nosso foco maior de interesse.
No acostamento que propomos utilizaremos o modelo do “Circuito da Cul-
tura” proposto por Johnson (1999), em sua transposição analógica como
“Circuito das Notícias”, para demonstrar que muitas das preocupações
partilhadas pelos autores dos “Estudos Culturais” são contempladas e/
ou observadadas por Edgar Morin quando este desenvolve as bases e os
princípios do “Paradigma da Complexidade”. Nesse sentido cremos ser
promissor relacionar propostas que visam dar conta da integralidade dos
fenômenos da Cultura e da Comunicação, com os preceitos da complexi-
dade e/ou do método complexo de encarar a realidade e a ciência.

PALAVRAS – CHAVE
Pensamento complexo
Estudos culturais
Pesquisa em Jornalismo

ABSTRACT
We deal here with the theoretical-methodological approach between “the
British Cultural Studies” and the “Complex thinking” postulates by Ed-
gar Morin. Such link makes itself necessary in order to be more focu-
sed on the equally complex phenomenon that involves Communication
and Journalism, one of our interest focus. From the approach we have
in view, we will use the “Cultural Circuit” model, proposed by Johnson
(1999), in his analogical transposition as “News Circuit”, to demonstrate
that many of the concerns shared by the “Cultural Studies” authors are
contemplated and/or observed by Edgar Morin when he develops the ba-
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

sis and the principles of the “ Complexity Paradigm”. This way we believe
to be promising to relate the proposals that aim to solve the integrality
of Culture and Communication phenomena, with the complexity and/or
complex method principles of facing reality and science.

KEYWORDS
Complex thought
Cultural studies
Journalism Research

Com a preocupação inicial de fugir dos “modos simplificadores


do conhecimento”, que, conforme Morin (1991), mutilam mais do que
exprimem as realidades ou os fenômenos que relatam e produzem mais
confusão que esclarecimento, é que propomos a aproximação teórico-
metodológica entre os “Estudos Culturais” e os pressupostos do “Para-
digma da Complexidade”. No entanto, cabe de imediato ressaltar que
também a complexidade não deve ser encarada de maneira simplifica-
dora se almejamos que tal aproximação seja produtiva e/ou proveitosa.
Reconhecemos, dessa forma, que o paradigma que ainda orien-
ta a maior parte do pensar e do agir científico (fortemente inclinado a
valorizar o simplificado), tem ressaltado positivamente as descrições
e as explicações que, de modo geral, parecem apenas dar conta de
alguns dos aspectos dos fenômenos, mas que, no entanto, têm sido
aceitas pela sociedade por apresentarem respostas rápidas, claras, ob-
jetivas e operacionais. Os resultados de tais estudos revelam-se “apa-
rentemente” bons, ou suficientemente eficazes, para atender às ne-
cessidades e exigências imediatas da sociedade contemporânea e/ou
para o nível de desenvolvimento do conhecimento atual. Em oposição
a esse modo simplificador de pensar, deixa claro Morin (1991, p.08), é
complexo aquilo que não pode resumir-se numa palavra mestra, o que
não pode reduzir-se a uma lei ou a uma ideia simples. “A complexidade
é uma palavra problema e não uma palavra solução”.
Mesmo com tais dificuldades, a necessidade de uma mirada via
“Pensamento Complexo” faz-se evidentemente necessária nos “Estu-
dos Culturais”. Essa necessidade obviamente não se vincula apenas a
uma retomada da ambição original do pensamento simples – controlar
e dominar o real – ela se liga diretamente à necessidade de um estudo
integrador, de um pensamento capaz de tratar, de dialogar e de nego-

149
Vilso Junior Santi

ciar com o real. Nesse sentido, a complexidade proposta por Morin não
conduz à eliminação da simplicidade, mas aparece certamente onde
o pensamento simplificador falha, integrando em seus pressupostos
tudo o que põe ordem, clareza, distinção e precisão no conhecimento.
Segundo Morin (1991, p.09),

(...) enquanto o pensamento simplificador desintegra


a complexidade do real, o pensamento complexo in-
tegra o mais possível os modos simplificadores de
pensar, mas recusa as conseqüências mutiladoras,
redutoras, unidimensionais e, finalmente, ilusórias de
uma simplificação que se toma pelo reflexo do que há
de real na realidade.

Porém, o autor ressalta que a complexidade não pode ser con-


fundida com “completude”. Morin (1991, p.09) aponta como certeira a
ambição do “Pensamento Complexo” em dar conta das articulações
entre domínios disciplinares, que são quebrados pelo pensamento
disjuntivo – este isola o que separa e oculta tudo o que o liga, interage
e interfere – no entanto, ele nega veementemente a possibilidade de
uma ditadura da forma complexa de pensar. Nesse sentido, conforme
os postulados do autor, o “Pensamento Complexo” aspira um conheci-
mento multidimensional. Ele “é animado por uma tensão permanente
entre a aspiração a um saber não parcelar e pela incompletude de
qualquer conhecimento”.
Para Morin, a “palavra problema” complexidade surgiu somente
ao final dos anos 60, veiculada pela teoria da informação, pela ciberné-
tica, pela teoria dos sistemas e pelo conceito de auto-organização. Se-
gundo o autor, foi preciso descolar dela o sentido banal de complicação
e confusão para ligá-la a sequência lógica ordem–desordem–organiza-
ção, e, no seio da organização, vinculá-la ao uno e ao diverso. Somente
depois desse trabalho é que essas noções passaram a comerciar umas
com as outras, de maneira simultaneamente complementar e antagôni-
ca, colocando-se em interação e em constelação. O conceito de comple-
xidade tornou-se, assim, um “macroconceito”. Lugar crucial de interroga-
ções ligando nele o problema das relações entre o empírico, o lógico e
o racional. Conforme Morin (1991, p.11), a complexidade não é a “chave
do mundo”, mas o “desafio a enfrentar”, e o “Pensamento Complexo”

150
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

não é o que evita ou suprime o desafio, mas o que ajuda a revelá-lo e,


por vezes, mesmo ultrapassá-lo.
Apesar de ainda ser evidente em muitas instâncias o desejo de se
compreender e explicar os fenômenos e o mundo de modo simplificado,
evitando o complexo, torna-se cada vez mais visível as insuficiências
das leis e fórmulas simples quando confrontadas com a realidade com-
plexa (aquela que se atualiza, dentre outras coisas, como emaranhado
de ações, interações, retroações, interrelações e desordem). Portanto,
antes é preciso complexificar o olhar para depois melhor compreender
e explicar a realidade, assim como é necessário questionar e agir para
superar a tendência à simplificação.
Da mesma forma, pode-se dizer que também a noção de Co-
municação em sua relação com a Cultura precisa ser pensada sob a
perspectiva da complexidade. Por ser complexo, o estudo dessa noção
exige cuidado para que o desejo da simplificação não sobressaia em
detrimento da multiplicidade de elementos articulados em suas mate-
rializações. Isso pressupõe indubitavelmente que a Comunicação con-
siste em um processo que tensiona forças relacionais para que a signi-
ficação seja atualizada.

AS BASES DO PENSAMENTO COMPLEXO

Conforme Morin (2003, p.76-77), encontramos, de fato, na his-


tória da filosofia ocidental e oriental, numerosos elementos e premis-
sas de um pensamento da complexidade. Segundo ele, desde a An-
tiguidade, o pensamento Chinês, por exemplo, fundamentava-se na
relação dialógica (complementar e antagônica) entre o Yin e o Yang
e, conforme Lao Tse, a união dos contrários caracteriza a realidade.
No ocidente, para o autor, Heráclito já afirmava a necessidade de
se associar termos contraditórios uns com os outros. Na era clássi-
ca, Pascal materializou-se como o pensador-chave da complexidade.
Kant colocou em evidência os limites às “aporias” da razão. Leibniz,
por sua vez, formulou o princípio da unidade complexa e da unidade
do múltiplo. E Spinoza forneceu a ideia de autoprodução do mun-
do por ele mesmo. Em Hegel, essa autoconstituição tornou-se o ro-
mance épico no qual o espírito emerge da natureza para alcançar a
sua realização e a sua dialética, continuada pela dialética Marxista

151
Vilso Junior Santi

que anuncia a dialógica, o que possibilitou a Nietzche apontar a crise


dos fundamentos e da certeza. Posteriormente, no metamarxismo de
Adorno, Horkheimer e Luckacs, encontramos não apenas numerosos
elementos de uma crítica da razão clássica, mas também muitos ali-
mentos para a concepção da complexidade.
Já no século XIX, ainda conforme Morin, quando a ciência ig-
norava o individual, o singular, o concreto e o histórico; a literatura,
especialmente o romance, revelava a complexidade humana (Balzac,
Dostoievski e Proust). Isso fornece as bases para que, na época con-
temporânea, o “Pensamento Complexo” se elabore no interstício das
diversas disciplinas, com especial contribuição de pensadores mate-
máticos (Wiener, von Neumann, von Foerster), termodinâmicos (Prigo-
gine), biofísicos (Atlan) e filósofos (Castoriadis).
Segundo Morin (2003, p.77), duas revoluções científicas desse
último período também vieram a estimular o “Pensamento Complexo”.
A primeira introduziu na pauta a incerteza por meio da termodinâmica,
da física quântica e da cosmofísica, e originou as reflexões epistemoló-
gicas de Popper, Kuhn, Holton, Lakatos, Feyerabend. A segunda, uma
revolução sistêmica baseada na autoeco-organização, a partir das ci-
ências da terra e da ciência ecológica, prolongou-se como revolução
também na biologia e na sociologia.
Morin (1991) aponta ainda outras “brechas” das quais o “Pen-
samento Complexo” se aproveitou para desenvolver-se e emergir. A
primeira delas, conforme o autor, é a brecha microfísica que basica-
mente revelou a interdependência entre sujeito e objeto; a segunda
é a brecha macrofísica que foi aberta com a recapitulação realizada
sobre os conceitos de espaço e tempo; e a terceira, vinculada à teoria
dos sistemas e a cibernética, colocou no centro dos debates a noção
de sistema como uma unidade complexa – um todo que não se reduz
à soma das suas partes constitutivas – concebeu a noção de sistema,
nem como uma noção real, nem como uma noção puramente formal e
situou a noção sistêmica em um nível transdisciplinar.
Da termodinâmica, para Morin (1991, p.26-27), o “Pensamento
Complexo” se aproveitou da noção de “sistema aberto” – sistemas cuja
existência e cuja estrutura dependem de uma alimentação exterior.
Nele, grosso modo, o desequilíbrio que o alimenta permite ao sistema
manter-se em equilíbrio – bem diferente de um sistema fechado que

152
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

aparentemente já se encontra calibrado. No sistema aberto, as leis de


organização não são de equilíbrio, mas de desequilíbrio. A partir de
então, a inteligibilidade de um sistema não pode mais ser encontrada
apenas no próprio sistema, mas também na sua relação com o meio
que é constitutiva própria do sistema.
As “brechas” abertas pela “teoria da informação” também são
tomadas como outro insumo importante. Mas, conforme tais pressu-
postos, “informação” não se refere apenas a um “ingrediente”, como
quando tomada em relação à teoria dos sistemas e/ou à cibernética.
A informação, assim como a própria complexidade, é um conceito pro-
blemático, não um conceito solução. Seus dois aspectos mais emer-
gentes, o aspecto comunicacional e o aspecto estatístico, são ainda,
segundo Morin (1991), apenas uma pequena superfície de um imenso
iceberg já que a teoria atual ainda não é capaz de conceber nem o
nascimento nem o crescimento da informação. Mesmo assim, a “bre-
cha” aberta pela ideia de informação é uma “lacuna” importante para o
desenvolvimento do “Pensamento Complexo”.
Nesse “caminhar entre fendas” da complexidade, o conceito de
organização também assume certa centralidade e importância. Essa
noção, para Morin (1991, p.34), elabora-se a partir de uma comple-
xificação e de uma concretização do sistemismo, e aparece como
um desenvolvimento, ainda não atingido, da teoria dos sistemas. Ela
clarifica-se a partir do organicismo não modelizado, no qual pôde
aparecer a organização no organismo. Aqui, o organicismo julgado
necessário é diferente do organicismo tradicional. Ele esforça-se não
por revelar analogias fenomenais, mas por encontrar os princípios de
organização comuns, os princípios de evolução desses princípios e
os caracteres de sua diversificação.
A auto-organização e/ou organização viva também é outra ideia
fundamental nesse entremeio de frestas. Pois, no sistema auto-organi-
zado há um elo consubstancial entre desorganização e reorganização
complexa, em que a segurança operacional é emprestada sempre ao
conjunto, já que seus constituintes têm uma fraca segurança individual.
Nesse sentido, a auto-organização é uma metaorganização relativa-
mente às ordens de organização pré-existentes.
Nesse vagar entre fissuras do desenvolvimento do “Pensamen-
to Complexo”, conforme o próprio Morin (1991, p.42), o único método

153
Vilso Junior Santi

de trabalho possível e viável é tentar esclarecer os múltiplos aspectos


dos fenômenos, além de tentar apreender as suas ligações instáveis.
Para o autor, unir é sempre um método mais rico, mesmo ao nível
teórico, do que as teorias blindadas epistemológica e logicamente,
metodologicamente aptas a tudo enfrentar, exceto, evidentemente,
a complexidade do real. É nesse sentido que propomos primeiro a
transposição analógica do “Circuito da Cultura” para o “Circuito das
Notícias”, depois a incorporação nesta da lógica e dos princípios do
“Pensamento Complexo”.

OS PRINCÍPIOS DO PARADIGMA DA COMPLEXIDADE

Para que o conhecimento avance, no sentido da não-eliminação


do heterogêneo, do desordenado, do imprevisto e do não-lógico, isto é,
para que as tensões presentificadas em qualquer fenômeno não sejam
eliminadas com vistas a uma explicação lógica e simplificada, Edgar
Morin (1991), a partir do diálogo que estabelece com o conhecimento
construído por outros estudiosos, desenvolve o “Paradigma da Com-
plexidade”. Sob esse prisma, à primeira vista, a complexidade é um
tecido, um tecer e um retecer. Complexus é o que é tecido em conjunto,
com constituintes heterogêneos inseparavelmente associados. A com-
plexidade, portanto, coloca de cara o paradoxo do uno e do múltiplo.
Mas não é só isso, a complexidade é também o “tecido de conhecimen-
tos”, ações, interações, retroações, determinações, acasos que cons-
tituem o nosso mundo fenomenal. A complexidade apresenta-se com
os traços inquietantes da confusão, do inextricável, da desordem, da
ambiguidade e da incerteza.
Conforme o próprio Morin (2003), é o fim das certezas que as-
sinala o advento da complexidade. O verbo complecti, cujo particípio
passado é complexus, significa, em primeiro lugar, abraçar, enlaçar,
entrelaçar, estreitar. A complexidade está ligada, desse modo, à mul-
tiplicidade de comportamentos e a sistemas cujo futuro não se pode
prever. E, nesse sentido, a complexidade conduz a uma nova forma
de racionalidade que ultrapassa a racionalidade clássica do determi-
nismo e de um futuro já definido.
A complexidade é, à primeira vista, um fenômeno quantitativo.
Mas complexidade não significa apenas compreender quantidades de
154
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

unidades e de interações que desafiam as nossas possibilidades de


cálculo, mas também compreender as incertezas, as indeterminações
e os fenômenos aleatórios. A complexidade, num sentido, tem sem-
pre contato com o acaso. Porém, como ainda afirma Morin (1991), a
complexidade não se reduz à incerteza, mas é a incerteza no seio dos
sistemas teoricamente organizados. Ela relaciona sistemas semialea-
tórios, cuja ordem é inseparável, dos acasos que lhes dizem respeito.
Está, portanto, ligada a certa mistura de ordem e de desordem.
Com a complexidade, se postula, então, uma reforma paradigmáti-
ca na qual se mudam as bases de partida de um argumento e as relações
associativas e repulsivas entre alguns conceitos iniciais, dos quais depen-
de toda a estrutura de um argumento e todos os desenvolvimentos discur-
sivos possíveis. Nessa direção, Morin (2003, p.72-75) afirma a necessida-
de de se elaborar alguns instrumentos conceituais, alguns princípios-guia,
na tentativa de entrever o rosto do “Paradigma da Complexidade”.
O primeiro guia que pode ser enumerado, conforme o autor, é o
princípio sistêmico ou organizacional que une o conhecimento das par-
tes com o conhecimento do todo, segundo a fórmula indicada por Pas-
cal: “Eu acredito ser impossível conhecer o todo sem conhecer suas
partes e de conhecer as partes sem conhecer o todo”. Nesse princípio,
a ideia sistêmica que se opõe à ideia reducionista é a de que “o todo é
mais do que a soma das partes”. Nesse sentido, a organização do todo
produz qualidades ou propriedades novas em relação às partes isola-
damente, e o todo é igualmente mais e menos que a soma das partes,
cujas qualidades são inibidas pela organização do conjunto.
O segundo guia é o princípio hologramático. No holograma,
cada ponto contém quase a totalidade de informações do objeto que
ele representa. Isso põe em evidência um aparente paradoxo dos sis-
temas complexos nos quais a parte não somente está no todo, como
o todo está inscrito na parte. A sociedade, por exemplo, está presente
em cada indivíduo no que diz respeito ao todo através de sua lingua-
gem, da Cultura e de suas normas.
O terceiro guia é o princípio do ciclo (anel) retroativo, o qual
permite o conhecimento dos processos autorreguladores que empres-
tam a autonomia dos sistemas. Ele rompe com o princípio da causali-
dade linear – a causa age sobre o efeito e o efeito sobre a causa – e
detalha o conjunto de processos reguladores fundados em múltiplas

155
Vilso Junior Santi

retroações. O ciclo de retroação (ou feedback) permite sob sua forma


negativa reduzir o erro e, assim, estabilizar o sistema. Sob sua forma
positiva, o feedback é um mecanismo amplificador. Inflacionadoras ou
estabilizadoras, as retroações são verificadas em grandes quantida-
des nos fenômenos comunicacionais, embora em muitos casos elas
sejam desprezadas.
O quarto princípio-guia do “Paradigma da Complexidade” é o
princípio do ciclo recorrente e/ou anel recursivo. Este supera a noção
de regulação substituindo-a pela de autoprodução e pela auto-organi-
zação. Trata-se de um ciclo gerador no qual os produtos e os efeitos
são, eles próprios, produtores e originadores daquilo que produzem.
Os indivíduos humanos, nesse sentido, produzem a humanidade den-
tro e por meio de suas interações, mas a sociedade, emergindo, pro-
duz a humanidade desses indivíduos fornecendo-lhes a linguagem e a
Cultura, por exemplo.
O quinto guia é o princípio da autoeco-organização (da autonomia
dependente) e vale principalmente para o homem que desenvolve sua
autonomia condicionado a Cultura, e para as sociedades que dependem
de um ambiente geoecológico para se desenvolver. Esse ambiente se
renova permanentemente a partir da morte de suas células. Aqui, duas
ideias antagonistas como, por exemplo, de morte e vida, são comple-
mentares ao mesmo tempo em que permanecem antagônicas.
O sexto guia diz respeito ao princípio dialógico. Ele une dois prin-
cípios ou noções em face de se excluírem um ao outro, mas que são
indissociáveis em uma mesma realidade. A dialógica permite-nos aceitar
racionalmente a associação de noções contraditórias para conceber um
mesmo fenômeno complexo. Permite manter a dualidade no seio da uni-
dade e funda-se na associação complexa (complementar, concorrente e
antagônica) de instâncias necessárias junto à existência, ao funcionamen-
to e ao desenvolvimento de um fenômeno organizado. Ela procura com-
preender a lógica que, para além do lugar da justaposição, associa/une
termos do tipo ordem/desordem, sapiens/demens, organização/desorga-
nização, como noções ao mesmo tempo antagônicas e complementares,
atualizadas nos processos organizadores do sistema complexo.
E, o sétimo princípio-guia do “Paradigma da Complexidade”, trata
da reintrodução daquele que conhece em todo o conhecimento. Esse
princípio realiza a restauração do sujeito e revela a problemática cogni-

156
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

tiva como central. Nele, todo o conhecimento é uma reconstrução/tradu-


ção por um espírito/inteligência numa Cultura e num determinado tempo.
Estes, segundo Morin (2003), são princípios que guiam os pro-
gressos cognitivos do “Pensamento Complexo”. No entanto, o “Pensa-
mento Complexo” não se trata de um pensamento que exclui a certe-
za pela incerteza, que exclui a separação pela inseparabilidade e que
exclui a lógica para permitir todas as transgressões. O procedimento,
junto com seus princípios-guia, consiste, ao contrário, em se fazer uma
ida e vinda incessante entre certezas e incertezas, entre o elementar e
o global, entre o separável e o inseparável.

Não se trata, por tanto, de abandonar os princípios


de ordem, de separabilidade e de lógica, mas de
integrá-los em uma concepção mais rica. Não se
trata de compor um holismo vazio ao reducionismo
mutilador. Trata-se de reatar as partes à totalidade.
Trata-se de articular os princípios de ordem e desor-
dem, de separação e de junção, de autonomia e de
dependência que estão em dialógica (complementa-
res, concorrentes e antagônicos) no seio do universo
(MORIN, 2003, p.75).

Em suma, o “Pensamento Complexo” não é o contrário do pen-


samento simplificador, ele o integra. Ele realiza a união da simplici-
dade com a complexidade, e mesmo no metassitema que constitui,
ele transparece sua própria simplicidade. Dessa forma, o “Paradig-
ma da Complexidade” pode ser enunciado tão simplesmente como
aquele da simplificação: este obriga a separar e reduzir; aquele une
enquanto distingue.

OS ESTUDOS CULTURAIS E SUA CONFIGURAÇÃO

Os “Estudos Culturais Britânicos” surgem no final dos anos de


1950 vinculados ao CCCS (Centro de Estudos Culturais Contemporâne-
os) da Universidade de Birmingham na Inglaterra. Desde o nascimento
eles foram pautados pela transdisciplinariedade e fortemente influen-
ciados pelo estruturalismo e pela semiologia materialista. A escola teve
seus pressupostos firmados pelos pesquisadores Richard Hoggart, Ray-
mond Willians, Edward Palmer Thompson e, posteriormente, Stuart Hall.

157
Vilso Junior Santi

Para Johnson (1999, p.19), “os Estudos Culturais podem ser de-
finidos como uma tradição intelectual e política; ou em suas relações
com as disciplinas acadêmicas; ou em termos de paradigmas teóricos;
ou, ainda, por seus objetos característicos de estudo”. Sendo assim,
podemos afirmar que no centro de interesse dos “Estudos Culturais”
estão as conexões entre a Cultura, a história e a sociedade. Segundo o
autor (1999, p.10-11), os “Estudos Culturais” são, agora, um movimen-
to ou uma rede, que tem como principais características sua abertura
e versatilidade teórica, seu espírito reflexivo e, especialmente, a impor-
tância de sua crítica.
Historicamente, na implementação de seu programa, os “Estu-
dos Culturais” beberam na fonte marxista, apesar de inúmeras discus-
sões acerca dessas contribuições para o seu desenvolvimento. Outra
contribuição importante para os “Estudos Culturais” em sua trajetória
foram as críticas dos movimentos de luta contra o racismo e do feminis-
mo. Estes acabaram por tornar visíveis algumas premissas antes não
reconhecidas, por produzir novos objetos e por obrigar a reformulação
de outros tantos dentro da tradição.
A partir das lentes dos “Estudos Culturais”, fica claro que nem
a Cultura nem a Comunicação podem ser apreendidas como um todo
em nosso tempo. De acordo com Johnson (1999, p.19), precisamos en-
tão de uma estratégia particular de definição para a linha de pesquisa.
Uma estratégia que revise as abordagens existentes e que identifique
seus objetos característicos e a abrangência de sua competência, mas
que também mostre as suas falhas e os seus limites. “Na verdade, não
é de uma definição ou de uma codificação que precisamos, mas de
‘sinalizadores’ de novas transformações”.
Para Johnson (1999, p.23), análise e comparação de problemá-
ticas teóricas ainda são, portanto, um componente essencial de toda
a análise cultural. Mas, segundo ele, “sua dificuldade principal é que
as formas abstratas de discurso desvinculam as ideias das comple-
xidades sociais que as produziram ou às quais elas, originalmente,
se referiam”. Ele afirma que temos de ter cuidado porque as clarifi-
cações teóricas tendem a produzir um impulso independente, bastan-
te silenciador e talvez opressivo das novas formas de discurso. Uma
solução proposta por Johnson (1999, p.24) para esse potencial apa-
gamento é sempre partir de casos concretos, seja para “enquadrar a

158
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

teoria como uma discussão contínua e contextualizada sobre questões


culturais”, seja para “fazer conexões entre os argumentos teóricos e
experiências contemporâneas”.
Para o autor, o termo Cultura tem valor apenas como um lem-
brete, mas não como uma categoria precisa. Segundo ele, falar de Cul-
tura é falar de polissemia, assim como, conforme Morin (2003), falar de
complexidade é falar de polissemia. Por isso, na tentativa de emprestar
maior precisão ao fenômeno cultural, Johnson (1999, p.25) prefere fa-
lar da relação entre “consciência” e “subjetividade” para melhor defini-
la. Para o autor, os problemas centrais dos “Estudos Culturais” estão
situados em algum ponto entre esses dois termos. Ele afirma:

Para mim, os Estudos Culturais dizem respeito às


formas históricas da consciência ou da subjetividade,
ou às formas subjetivas pelas quais nós vivemos ou,
ainda, em uma síntese bastante perigosa, talvez uma
redução, os Estudos Culturais dizem respeito ao lado
subjetivo das relações sociais.

Johnson afirma que “consciência”, dentro dessa formulação,


deve ser tomada como uma premissa para entender a história hu-
mana com uma forte conotação cognitiva, e que tem a ver com o
conhecimento dos níveis sociais e culturais. Mas não é somente isso.
Ela também abriga uma noção de consciência do eu, bem como uma
“autoprodução moral” e mental ativa. “Em outras palavras, os seres
humanos são caracterizados por uma vida ideal ou imaginária, na
qual a vontade é cultivada, os sonhos são sonhados e as categorias
elaboradas” (JOHNSON, 1999, p.26).
Admitindo sua influência marxista em muitas de suas próprias
análises sobre os “Estudos Culturais”, Johnson (1999, p.29) recorre à
noção de “formas”, tanto sociais quanto históricas, para explicar como
os seres humanos produzem e reproduzem sua vida material. Para ele,
os “Estudos Culturais”, apesar de enxergarem os fenômenos de ou-
tro ponto de vista, também estão preocupados com formações sociais
mais amplas e/ou sociedades inteiras, junto com seu movimento. “Nos-
so projeto é o de abstrair, descrever e reconstruir, em estudos concre-
tos, as formas através das quais os seres humanos vivem, tornam-se
conscientes e se sustentam subjetivamente”.

159
Vilso Junior Santi

Quando retoma as contribuições estruturalistas, no que tange às


formas, Johnson (1999, p.29) ressalta que, principalmente o caráter es-
truturado das formas que subjetivamente ocupamos, como a linguagem,
os discursos, os mitos etc.; tem apontado para as regularidades e para
os princípios de organização – aquelas coisas que fazem com que haja
forma - e tem fortalecido nossa sensibilidade sobre a dureza, o caráter
determinado e, na verdade, sobre a existência real de formas sociais que
exercem suas pressões através do lado subjetivo da vida social. Porém,
ele mesmo alerta que isso não significa dizer que a descrição da forma,
nesse sentido, é suficiente. É também importante ver a natureza históri-
ca das formas subjetivas, primeiro do ponto de vista de suas pressões ou
tendências, ou seja, tanto pelos princípios do movimento quanto na sua
combinação; depois analisar como essas tendências são modificadas
por outras determinações sociais, “incluindo aquelas que estão em ação
através das necessidades materiais” (JOHNSON, 1999, p.30).
Por conseguinte, conforme o autor, as abstrações simples que têm
sido usadas até o momento não podem nos levar muito longe. Em acordo
com a definição de Cultura de Johnson (1999), não podemos mais limitar
o campo a práticas especializadas, a gêneros particulares ou a atividades
populares de lazer. Dessa forma é que, segundo ele, todas as práticas so-
ciais podem ser examinadas de um ponto de vista cultural, ou seja, podem
ser examinadas pelo trabalho que elas fazem subjetivamente.

DO CIRCUITO DA CULTURA AO CIRCUITO DAS NOTÍCIAS

Nos estudos da Cultura, com vistas a explicar a complexificação


das questões bem como suas ricas categorias intermediárias, Johnson
(1999) acaba por propor um modelo de análise mais estratificado do
que as teorias gerais até então existentes – preocupação também com-
partilhada por Hall (2003) dentro da matriz britânica dos “Estudos Cul-
turais”. Um modelo que, idealmente, ambiciona ver os diferentes lados
de um mesmo e complexo processo. Um modelo que ajuda a explicar
as questões-chave dos “Estudos Culturais” – suas fragmentações teó-
ricas e disciplinares – a fim de relacionar essas diferenças aos próprios
processos que elas buscam descrever (JOHNSON, 1999, p.31-32).
Para tanto, conforme o autor, faz-se necessária uma descrição, ao
menos provisória, dos diferentes aspectos ou momentos dos processos
160
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

culturais, aos quais poderiam ser relacionadas diferentes problemáticas


teóricas, como a do “Pensamento Complexo” no “Circuito das Notícias”
para a pesquisa em Jornalismo. O resultado desse exercício é, porém,
um modelo não acabado, com valor heurístico ou ilustrativo, auxiliar na
explicação das diferenças teóricas complexas perpetuadas pelos “Estu-
dos Culturais” e também pelos estudos de Comunicação. “Um guia que
aponta para as orientações desejáveis de abordagens futuras ou de que
forma elas poderiam ser modificadas ou combinadas” (JOHNSON, 1999,
p.33). A fim de melhorar o entendimento de sua proposta, o autor procura
apresentar seu modelo de forma diagramática (Figura 1).

Figura 1: Diagrama representante do circuito da produção, circulação e consumo


dos produtos culturais (Johnson, 1999, p.35).

161
Vilso Junior Santi

O diagrama, segundo ele:

Tem por objetivo representar o circuito da produção,


circulação e consumo dos produtos culturais. Cada
quadro representa um momento nesse circuito. Cada
momento depende dos outros e é indispensável para
o todo. Cada um deles, entretanto, é distinto e en-
volve mudanças características de forma. Segue-se
que se estamos colocados em um ponto do circuito,
não vemos, necessariamente, o que está acontecen-
do nos outros. As formas que tem mais importância
para nós, em um determinado ponto, podem parecer
bastante diferentes para outras pessoas, localizadas
em outro ponto (JOHNSON, 1999, p.33).

Esse diagrama proposto por Johnson para o estudo da Cultura


e que tomamos, através de uma transposição analógica para o estu-
do da Comunicação e do Jornalismo, baseia-se, em sua forma geral,
numa leitura da descrição que Marx fez do “Circuito do Capital” e suas
metamorfoses, onde os processos sempre acabam por desaparecer
nos produtos. Johnson (1999, p.34) alerta que devido à circularidade
do sistema as comunicações tendem a ser transformadas ao longo de
seu percurso, principalmente em seu caminho de retorno. Segundo ele,
para compreendermos adequadamente essas transformações temos
de compreender “as condições específicas do consumo e da leitura”,
estas, por sua vez, incluem as “simetrias de recursos e de poder”, tanto
materiais quanto culturais, e também acabam por incluir os elementos
culturais já ativos no interior de contextos particulares, as culturas vi-
vidas, e as relações sociais das quais essas combinações dependem.
Outro ponto importante assinalado por Johnson (1999, p.35)
diz respeito ao fato de que em nossas sociedades muitas formas de
produção cultural assumem também a forma de mercadorias capita-
listas. Assim sendo, conforme o autor, temos de prever tanto condi-
ções especificamente capitalistas de produção, quanto condições es-
pecificamente capitalistas de consumo. “É por isso que nesses casos
o Circuito é, a um só tempo, um “Circuito de Capital” e um Circuito de
produção e circulação de formas subjetivas”.
A partir dessas considerações é que podemos viabilizar a apro-
ximação proposta do “Circuito da Cultura”, para com “Circuito das No-

162
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

tícias” e deste para com o “Pensamento Complexo” nos estudos de


Jornalismo. Servir-nos-emos também nessa aproximação das consi-
derações de Hall (2003) acerca do modelo de “Codificação/Decodifica-
ção”; do que Escosteguy (2007) qualificou como um novo e necessário
“Protocolo Analítico de Integração da Produção e da Recepção”1; e/ou
daquilo que Strelow (2007) convencionou chamar de “Análise Global
dos Processos Jornalísticos”2.
No “Circuito das Notícias”, em sua justaposição com o “Pensa-
mento Complexo”, podemos então trabalhar com os diferentes momen-
tos do processo cultural (produção – texto – leituras – culturas vividas)
em interação, pois, conforme Hall (2003, p.388),

Enquanto cada um dos momentos [do processo co-


municativo], em articulação, é necessário ao circuito
como um todo, nenhum momento consegue garantir
inteiramente o próximo, com o qual está articulado.
Já que cada momento tem sua própria modalidade e
condições de existência, cada um pode constituir sua
própria ruptura ou interrupção da ‘passagem das for-
mas’ de cuja continuidade o fluxo de produção efetiva
(isto é, a ‘reprodução’) depende.

Segundo Escosteguy (2007, p.119), o protocolo proposto por


Hall (2003) também se fundamenta na ideia de “Comunicação como
estrutura sustentada por uma articulação entre momentos distintos –
produção, circulação, distribuição e consumo – onde cada momento
tem condições próprias de existência”. No entanto, como eles articu-
lam entre si, devem ser analisados um em relação ao outro, sendo
cada momento necessário para o todo, mas nenhum capaz de anteci-
par por sua conta o próximo.

1 
Tal protocolo baseia-se, conforme a autora, tanto na matriz britânica dos Estudos Culturais, atra-
vés das produções de Stuart Hall (2003) e Richard Johnson (1999); quanto na sua vertente latino–
americana, com Martín-Barbero (2003), por exemplo. Para detalhamento, conferir: ESCOSTEGUY,
Ana Carolina. Circuitos de cultura/circuitos de comunicação: Um protocolo analítico de integração
da produção e da recepção. Revista Comunicação, Mídia e Consumo/ Escola Superior de Propa-
ganda e Marketing. V.4, n.11. São Paulo: ESPM, 2007.
2 
Mesmo que a autora insista em qualificar restritivamente seu procedimento analítico como uma “pro-
posta metodológica”, com o que discordamos, não podemos deixar de reconhecer o seu trabalho como
significativo na pavimentação do caminho que propomos percorrer nesse trabalho. Para aprofundamen-
to ver: STRELOW, Aline do Amaral Garcia. Análise Global de Periódicos Jornalísticos (AGPJ): uma
proposta metodológica para o estudo do jornalismo impresso. 2007. Tese. Porto Alegre: PUCRS, 2007.

163
Vilso Junior Santi

É notório, consequentemente, que esse tipo de análise só é pos-


sível dentro de um ambiente teórico-metodológico híbrido, onde as prá-
ticas socioculturais possam ser tomadas em relação dentro do “Circui-
to das Notícias”, conjugando as instâncias produção – texto – leitura.
Essas, junto com seus diferentes elementos constituintes (produtores,
textos e leitores), serão determinantes na circulação dos valores sim-
bólicos regentes da atividade e do processo de significação, configu-
rando e/ou desenhando o processo comunicativo/ jornalístico de ma-
neira conveniente e em sua totalidade.
O “Circuito da Cultura” proposto por Johnson (1999), junto com
o “Circuito das Notícias” – forma de apropriação por nós adotada – e
com as proposições do “Pensamento Complexo”, sinaliza a neces-
sidade de que, no plano da pesquisa, sejam realizados estudos que
integrem numa mesma perspectiva a análise das instituições de mídia
e de sua organização; das suas produções e condições de produção;
dos textos e/ou dos seus discursos; dos públicos, de suas práticas e
das respectivas relações que se estabelecem entre todos eles (ES-
COSTEGUY, 2007).
Trata-se, desse modo, de uma tentativa de produzir novas formas
de conhecimento desvinculadas dos limites de áreas especializadas e
tradicionais que dominam no campo da Comunicação. Nesse sentido,
reiterando a proposta de Johnson (1999), que consiste pensar em cada
um dos momentos que compõe o Circuito à luz dos outros para não
perder de vista os processos. Escosteguy (2007, p.128) aponta que a
questão fundamental em todo esse arranjo é deter-se nas relações entre
produção – texto – leitura, o que também é basilar em nossa proposta
de aproximação entre o “Circuito das Notícias” e os preceitos do “Pensa-
mento Complexo” para o estudo do Jornalismo.

DO PENSAMENTO COMPLEXO NO CIRCUITO DAS NOTÍCIAS

No presente estudo, através da matriz do “Circuito das Notí-


cias”, procuramos propor uma estratégia de investigação que possi-
bilite a análise de cada uma das etapas apresentadas por Johnson
(1999) em seu modelo cultural, destacando o inter-relacionamento
das mesmas, à luz dos princípios do “Pensamento Complexo”. Ou
seja, propomos operacionalizar uma tática para o estudo do Jorna-
164
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

lismo tendo como diretriz o paradigma da complexidade e o Circuito


comunicacional, verificando todos os momentos desse processo (pro-
dução – textos – leituras) junto com seus pontos de intersecção.
Esse olhar global tem como premissa colocar em perspectiva
conceitos e inferências que ficariam prejudicados se ancorados em um
único e isolado ponto do Circuito. Tratamos aqui, portanto, de um arranjo
teórico-metodológico híbrido, que permite o emprego de diferentes téc-
nicas para a análise de um objeto específico – desde que voltadas ao
percurso de todo o “Circuito das Notícias”. Ou seja, à pesquisa da produ-
ção, dos textos e das leituras no Jornalismo articuladas aos preceitos do
“Paradigma da Complexidade”.
O “Circuito das Notícias”, analogamente ao “Circuito da Cultura”
de Johnson (1999), compreende três momentos distintos básicos: a aná-
lise de produção; a análise de textos; e a análise de leituras e de seus
retornos. Embora esses momentos não sejam estanques e não obe-
deçam a uma sequência rígida, podemos, para fins de sistematização,
analisá-los em separado já que isso possibilita um melhor entendimento
de suas peculiaridades. Porém, é necessário ter sempre em mente os
entrecruzamentos que acompanham esse processo que é rico, contínuo
e sem limites definidos.
Cabe enfatizar, como aponta Johnson (1999, p.106), que o Circuito
não foi apresentado como uma descrição adequada dos processos cultu-
rais ou mesmo de formas culturais elementares; que ele não trata de um
conjunto completo de abstrações em relação ao qual toda a abordagem
parcial possa ser julgada; e que não constitui, consequentemente, uma
estratégia adequada para o futuro da pesquisa em Jornalismo se for toma-
do como a adição dos três grandes conjuntos de abordagens (produção –
textos – leituras) usando-as cada uma em seu respectivo momento. “Isso
não funcionaria sem que houvesse transformações em cada abordagem e
talvez em nosso pensamento sobre momentos”. Diz ele:

É importante reconhecer que cada aspecto tem uma


vida própria a fim de evitar reduções, mas, depois
disso, pode ser mais transformativo repensar cada
momento a luz dos outros, importando – para outro
momento – objetos e métodos de estudo comumente
desenvolvidos em relação a um determinado momen-
to (JOHNSON 1999, p.106).

165
Vilso Junior Santi

O autor (1999, p.106) ainda recomenda que aquelas pessoas


preocupadas com estudos de produção e/ou codificação precisam
examinar mais de perto, por exemplo, as “condições especificamente
culturais de produção”. Segundo ele, nesse aspecto podemos e de-
vemos buscar relações mais ou menos íntimas com a Cultura vivida
dos grupos sociais analisados, nem que seja apenas a dos próprios
produtores. Johnson (1999, p.107) alerta ainda que, de forma similar,
também precisamos desenvolver modos de estudos textuais que se
articulem com as perspectivas da produção/codificação e da leitura/
decodificação. Pois, se é possível procurar por sinais do processo de
produção em um texto, também é possível ler os textos como “formas
de representação”, desde que se compreenda que estamos sempre
analisando a “representação de uma representação”.
Dentro disso, não há por que abandonarmos as formas existen-
tes de análise textual – estas, porém, têm de ser adaptadas ao estudo
das práticas reais de leitura dos diferentes públicos, e não substituí-las.
Dessa forma, a decodificação formal de um texto deve ser encarada
como multiestratificada e aberta; deve identificar os quadros de refe-
rência preferenciais, mas também leituras alternativas que vão além de
quadros de referências subordinados. Johnson (1999, p.109-110) en-
fatiza que aqueles preocupados com a descrição cultural concreta não
podem mais se permitir ignorar a presença de estruturas textuais e de
formas particulares de organização discursiva. Também, segundo ele,
precisamos saber o que distingue as formas culturais privadas – em
seus modos básicos de organização – das formas públicas, para, des-
sa forma, sermos capazes de especificar linguisticamente, por exem-
plo, a relação diferencial entre os campos e os grupos sociais, com os
diferentes meios e com os processos reais de leitura e decodificação
que estão envolvidos.
Ao falar do “Circuito das Notícias” falamos, portanto, de um
complexo Circuito de sentido que possui momentos distintos, mas
momentos articulados entre si. Tais momentos não têm um caráter
autossuficiente, pois a produção sempre se dará em relação à leitura.
É por isso que, conforme Hall (2003, p.339), temos de saber analiti-
camente por que a produção/codificação e a leitura/decodificação são
diferentes, pois só assim poderemos apontar como eles se articulam.
“Você tem de identificar as diferenças para saber o que as articula”,

166
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

essa é a pista. O “Circuito das Notícias”, nessa aproximação, nada


mais é, por tanto, do que uma totalidade complexa sobredeterminada
que não exclui a ideia de poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos estudos de Jornalismo, a complexidade, conforme os pre-


ceitos de Morin (1991) em sua aproximação com os “Estudos Cultu-
rais” através do “Circuito das Notícias”, não é uma receita para conhe-
cer o inesperado. Pelo que percebemos, o “Pensamento Complexo”
não recusa de modo algum a clareza, a ordem e o determinismo, mas
acha-os insuficientes e sabe que não se pode programar a descober-
ta, o conhecimento, nem a ação. É nesse sentido que admitimos que
o “Pensamento Complexo” não resolve, ele próprio, os problemas da
pesquisa em Comunicação/Jornalismo, mas constitui uma ajuda à es-
tratégia que pode resolvê-los.
Conforme os preceitos da complexidade, um todo é mais do que
a soma das partes que o constituem, ao mesmo tempo ele é menor que
a soma das partes. O todo é, então, simultaneamente mais e menos
que a soma das partes. É nesse sentido que a visão complexa nos diz,
principalmente quando pensamos sistemas teórico-metodológicos hí-
bridos como o do “Circuito das Notícias”, que “não apenas a parte está
no todo; o todo está no interior da parte, que está no interior do todo”
(MORIN, 1991, p.107). Assim, ao mesmo tempo em que a complexi-
dade aponta a necessidade de relacionar os diferentes momentos do
“Circuito das Notícias”, ela incorpora a impossibilidade de unificar tais
etapas a uma parte de incerteza, com uma pitada de irresolubilidade;
além do reconhecimento do frente-a-frente final com o indizível. A com-
plexidade e os princípios fundantes de seu pensamento, no “Circuito
das Notícias”, são, portanto, o desafio, não a resposta. Uma possibi-
lidade de pensar através da complicação, através das incertezas, e
através das contradições.
Desse modo, compreendemos que a complexidade, além de in-
corporar a união dos processos de simplificação que são da ordem da
seleção, da hierarquização, da separação e da redução, deve levar em
conta outros contra processos que são, por exemplo, a Comunicação
e o Jornalismo na articulação do que se está tentando dissociar e/ou

167
Vilso Junior Santi

distinguir. Nesse sentido, a complexidade é útil para pensarmos na ló-


gica do “Circuito das Notícias” por encontrar-se justamente no âmago
da relação entre o simples e o complexo numa associação que é ao
mesmo tempo antagônica e complementar.
No Circuito, a complexidade não pode ser considerada como
um mundo em si mesma, ela é, antes de tudo, o prisma revelador da
essência do mundo. Não é um fundamento, mas um princípio regulador
que não perde de vista a realidade do tecido fenomenal no qual nos en-
contramos e que constitui o nosso mundo. A essência da complexidade,
assim como a essência do “Circuito das Notícias”, é a impossibilidade
de homogeneizar e de reduzir. Ela é correlativamente o progresso da
ordem, da desordem e da organização. É a mudança das qualidades
da ordem e a mudança das qualidades da desordem. Nela, a desordem
torna-se liberdade e a ordem muito mais regulação do que imposição.
É dentro disso e sem exageros que podemos afirmar que a
Cultura jornalística técnica e científica, que até a metade do século
XX separava e compartimentava os conhecimentos, não se sustenta
mais. Ela, que mantinha a redução como método de conhecimento, o
determinismo como conceito principal e a especialização como estra-
tégia primeira, retira um objeto de seu contexto e de sua totalidade,
rejeitando suas ligações e intercomunicações com o seu ambiente
e, portanto, é insuficiente. Hoje o conhecimento deve, certamente,
utilizar a abstração, mas buscando organizar-se com referência ao
contexto. A compreensão de dados particulares exige a ativação da
inteligência geral e torna-se, assim, mais do que necessário “recom-
por o todo”, ou melhor, “mobilizar o todo” para o deslindar das diferen-
tes problemáticas do Jornalismo.
Decerto, tanto é impossível conhecer tudo do mundo, como com-
preender suas multiformes transformações. Mas, ainda que seja alea-
tório e difícil, deve-se tentar o conhecimento dos problemas-chave do
mundo sob pena da imbecilidade cognitiva. Conforme o próprio Morin
(1991, p.71), a “falsa racionalidade”, isto é, a racionalização abstrata e
unidimensional, não deve mais triunfar sobre a Terra. A inteligência par-
celada, compartimentalizada, mecanicista, disjuntiva, reducionista, des-
trói a complexidade do mundo em fragmentos distintos, fraciona os pro-
blemas, separa o que está unido, unidimencionaliza o multidimensional.
E isso aborta todas as possibilidades de compreensão e reflexão.

168
O pensamento complexo e os estudos culturais ...

O “Pensamento Complexo” no “Circuito das Notícias” é, dessa


maneira, essencialmente um pensamento capaz de lidar com a incer-
teza, mas que também é capaz de conceber a organização. Trata-se
de um pensamento que reúne, contextualiza e globaliza, mas que ao
mesmo tempo reconhece o singular, o individual e o concreto. Assim
sendo, uma reforma no pensamento, inclusive do pensamento comuni-
cacional, implica na adoção de um sistema complexo enquanto objeto
de análise, como o “Circuito das Notícias”. Nela é preciso substituir um
pensamento que separa por um pensamento que une. Essa religação
exige a substituição da causalidade unilinear e unidimensional por uma
causalidade em círculo e multirreferencial, assim como a troca da rigi-
dez da lógica clássica por uma dialógica capaz de conceber noções ao
mesmo tempo complementares e antagônicas; e que o conhecimento
da integração das partes num todo seja completado pelo reconheci-
mento da integração do todo no interior das partes.
O desenvolvimento de uma democracia cognitiva jornalística
e comunicacional, portanto, só é possível através de uma reorgani-
zação do saber, a qual reclama uma reforma do pensamento capaz
de permitir não somente separar para conhecer, mas principalmente
ligar o que está separado. Consideramos este justamente o ponto de
encontro mais produtivo entre a ideia do “Circuito das Notícias” e o
“Paradigma da Complexidade”.

REFERÊNCIAS

ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. Circuitos de cultura/circuitos de comunicação:


Um protocolo analítico de integração da produção e da recepção. Revista Co-
municação, Mídia e Consumo/ Escola Superior de Propaganda e Marketing.
V.4, n.11. São Paulo: ESPM, 2007.

HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações culturais. Belo Horizonte:


UFMG; Brasília: Unesco, 2003.

JOHNSON, Richard. O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Au-


têntica, 1999.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Pia-


get, 1991.

169
Vilso Junior Santi

______. A necessidade de um pensamento complexo. In: MENDES, Candi-


do (Org.). Representação e complexidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

STRELOW, Aline do Amaral Garcia. Análise Global de Periódicos Jornalísti-


cos (AGPJ): uma proposta metodológica para o estudo do jornalismo impresso.
2007. Tese. Porto Alegre: PUCRS, 2007.

170
Parte III
Imaginário e reconfigurações
da publicidade
CONSUMO E EXPERIÊNCIA DE USO EM UM CONTEXTO
DE UBIQUIDADE DE INFORMAÇÃO

Eduardo Campos Pellanda

Professor do PPGCOM/PUCRS.

As transformações dos meios de comunicação derivadas da digi-


talização da informação e da conexão em rede (CASTELLS 2006) vêm
alterando significativamente a linguagem publicitária. Esse processo não
se dá somente pela inserção de novas mídias, mas também pela mudan-
ça de percepção do consumidor do que é atraente para o seu uso. Este
produto precisa estar encaixado dentro de um contexto da tribo (MAFFE-
SOLI, 2000), do contexto geográfico e de recompensa. Estes itens não
são necessariamente novos, mas a combinação deles em um ambiente
em que a conversação de redes sociais por plataformas de comunica-
ções que reúnem populações equivalentes a alguns países complexifi-
cam a questão do discurso publicitário.
Antes da abordagem dos efeitos da sociedade em rede no con-
texto da publicidade, há uma necessidade de especular sobre algumas
causas econômicas derivadas do contexto da globalização da produção
de bens que teve a sua característica alterada nesta década. Os países
mais desenvolvidos desde o inicio da Revolução Industrial detinham
não só as patentes dos produtos, mas também os segredos de produ-
ção e concepção dos projetos. Nas últimas décadas, principalmente
o conhecimento de produção de bens foi democratizado e absorvido
por países em desenvolvimento, com destaque para a China. Com a
mão de obra mais atraente, a produção migrou para estes Estados,
mas a concepção industrial continua nos países originais. É comum a
inscrição “Desenhado na Califórnia e montado na China” como se pode
perceber em produtos da Apple. No caso das empresas de produtos de
tecnologia digital há ainda o software que é escrito nos escritórios das
empresas espalhados pelo mundo, mas a base do sistema é mantida
em sigilo na sede. As peças de hardware são montadas por centenas
de fornecedores que geralmente não possuem exclusividade de distri-
buição. Neste contexto, os bens de consumo são paulatinamente mais
acessíveis e também similares entre si.
Consumo e experiência de uso em um contexto...

Em outro campo de análise do quadro atual de consumo, a in-


clusão de metade da população do planeta aos telefones celulares e
mais de um bilhão de pessoas com acesso à Internet viabilizou uma
infra-estrutura para a conversação em redes sociais. É fundamental
o entendimento da existência destas redes no meio online como su-
portes de plataformas digitais. Estas redes de consumidores possuem
um nível de conhecimento sobre os produtos extremamente elevado
e exigem que as empresas se coloquem no papel cada vez maior de
observadoras de tendências.
A diferenciação então se dá por algo intangível, por uma experi-
ência de uso. Este elemento é o ponto determinante da transformação
de produtos em bens culturais e/ou ícones de consumo no imaginário
coletivo. Sem esta camada invisível os produtos não passam de áto-
mos difíceis de serem distinguidos em um contexto de produção glo-
balizada. A experiência de uso é uma convergência cultural de fatores
que usam diferentes canais para se propagarem. Marcas como Harley-
Davidson , Apple ou New York Times criam uma “aura” no imaginário
dos consumidores que elevam as empresas ao status de entidades cul-
turais e não meras fornecedoras de bens de consumo. No mesmo sen-
tido pode-se perceber produtos que estejam em sintonia com o modus
vivendi de determinadas épocas históricas, um exemplo claro disto foi
o Walkman na década de 80. Embora a sua fabricante, a Sony, nunca
tenha sido cultuada culturalmente pela marca, o produto em questão
foi anexado ao contexto de libertação dos anos 80. O Walkman alterou
o modo de consumo de música e estava alinhado com a necessidade
de expansão deste mercado e o contexto de mobilidade da época. As
pessoas foram estimuladas à consumir música enquanto se moviam e
isto expandiu o cenário do mercado fonográfico.
As três empresas citadas estão ligadas diretamente à questão
da mobilidade urbana, respectivamente no transporte, entretenimento/
trabalho e informação. Como são produtos para serem consumidos no
contexto urbano, eles estão mais propensos a serem expostos e com-
partilhados. A experiência de uso é ligada ao nomadismo contemporâneo
(MEYROWITZ, 2003) e amplifica as possibilidades de trocas sociais.
Nesta conjuntura é fundamental o entendimento da percepção
de que o ambiente virtual é alterado por uma conexão do contexto fí-
sico, geoposicisionado, na esfera da rede (PELLANDA, 2005). A con-

173
Eduardo Campos Pellanda

cepção antagônica entre o virtual e o atual (LÉVY, 1996), na primeira


década de uso comercial da internet, foi muito demarcada pela desco-
nexão entre as informações no ciberespaço e sua referência no con-
texto geográfico. Não existiam formas técnicas para realizar esta con-
textualização. Em um segundo momento da rede, também denominado
Web 2.0 , as conversações assumiram uma maior extensão do modelo
descentralizado, todos para todos, viabilizados por sistemas em que
se possibilita a conversação em redes sociais (RECUERO, 2009) em
uma profunda esfera de conexão de milhares de pessoas. Sistemas
como Facebook, Orkut e MySpace viabilizaram conversações contex-
tualizadas por assuntos e interesses. Mesmo a rede de um grupo de
indivíduos que nasceu em uma determinada cidade, e que se une por
esta característica, não se encontra necessariamente fisicamente no
ambiente físico deste local. A cidade, no caso, é uma referência para
a conexão de múltiplos nós da rede. No início dos aparatos móveis
que possibilitavam a navegação na internet, o conteúdo de páginas
Web e outras formas de conteúdo eram simplesmente transpostos e
adaptados ao monitor menor e a limitação de processamento de in-
formações. Com o desenvolvimento destes aparelhos, a capacidade
de visualização de conteúdos complexos foi expandida, bem como a
adição de sistemas de localização geográfica através de chips GPS ou
triangulação de redes celulares . A união destas novas tecnologias com
o software dos sistemas operacionais dos aparatos móveis permite a
ligação do contexto geográfico com informações no ciberespaço. Um
dos expoentes mais claros desta convergência tecnológica é o sistema
de redes sociais Foursquare , que é um pioneiro modo de contextuali-
zação do espaço físico. Além deste quesito, a rede possui elementos
de jogos e serviços em uma sinergia proporcionada pela junção de
várias tecnologias.
O site e o sistema de redes sociais Foursquare nasceu em
Nova Iorque com a concepção de Dennis Crowley e Naveen Selvadu-
rai em 2008, com a versão final pública em março de 2009. Em agosto
de 2010 a empresa já possuía 3 milhões de pessoas cadastradas e
ativas na plataforma. Embora exista um site com capacidade de editar
conexões e visualizar lugares cadastrados, as principais inteirações
da rede são realizadas em aplicativos para dispositivos móveis como
iPhone (Fig. 1), Android e Blackberry.

174
Consumo e experiência de uso em um contexto...

Nestes aparelhos, o membro realiza “check-in”, ou seja, se ca-


dastra a um determinado lugar que está no banco de dados do sis-
tema que corresponde a localização geográfica que o indivíduo se
encontra. Desta forma, os outros componentes da rede podem visu-
alizar onde seus contatos estão ou podem visualizar recomendações
destes espaços. Quando alguns critérios de frequência deste deter-
minado lugar são preenchidos, o indivíduo se torna “prefeito” da área
e pode ainda ganhar selos pelas conquistas e somar pontos. Estes
elementos são novos em redes, pois consistem na adição de caracte-
rísticas de games dentro da rede social. Este tem sido um dos pontos
de sucesso da expansão da rede, pois os membros têm comparado
as suas performances com as de seus contatos. Este desempenho é
basicamente referente a locomoção do individuo pela cidade; quanto
mais ele se move, mais terá pontos.
O sistema permite também o uso de ações comerciais basea-
dos em pontos físicos. Os locais podem ser promovidos envolvendo

175
Eduardo Campos Pellanda

os membros da comunidade que são convidados para fazer “check-


ins” e compartilhar a experiência.
A questão do acesso móvel à informação não é necessariamente
vista aqui somente como uma explosão comercial ou uma técnica comple-
mentar e secundária de comunicação. O impacto deste tema transcende
estas questões por estar se tornando a principal fonte de difusão do cibe-
respaço. As culturas japonesas e nórdicas foram as principais indicado-
ras do contexto de uso extensivo de dispositivos móveis observadas por
Rheingold (2003). Os agentes da transformação, segundo o autor, são os
adolescentes que incorporam em primeira mão o uso social desta mídia.
No relato desta analise há a detecção da proporção deste acontecimento:

Agora vem a Internet móvel. Entre 2000 e 2010, a


rede social das comunicações móveis vai se juntar
com a força de processamento de informação dos
PCs em rede. A massa critica vai emergir em algum
momento no final de 2003, quando mais dispositivos
móveis do que PCs estarão conectados à Internet
(...) o novo regime tecnológico será uma nova mídia,
não simplesmente um meio de checar as ações na
bolsa ou e-mails no trem ou surfar na Web enquanto
se anda na rua. Internet móvel, quando ela realmen-
te aparecer, não será só uma maneira de se fazer
coisas antigas enquanto nos movemos. Será uma
maneira de fazer coisas que não se podia fazer antes
(RHEINGOLD, 2003, p.xiv).

A alteração de cultura no uso de dispositivos móveis não se dá


somente com a intensidade da conexão, tendo em vista que o indiví-
duo está agora conectado todo o tempo a rede, mas também com o
contexto do espaço físico. Como Rheingold (2003) observou, os ado-
lescentes nórdicos e japoneses se comunicam na metrópole e trocam
informações das suas posições e em seguida se encontram em algum
lugar público como um Shopping Center. Fenômeno semelhante ocor-
reu com os FlashMobs em varias partes do planeta. Pessoas trocam
informações de forma viral e se encontram fisicamente em algum local
público. O “lugar” e o “encontro físico” são elementos novos na socia-
bilização da cibercultura, estes elementos são mais ligados ao mundo
pré-internet e que agora são potencializados e amplificados.

176
Consumo e experiência de uso em um contexto...

Com a inserção de sistemas de localização geográfica em uma


grande quantidade de dispositivos, a “ligação” dos espaços físicos e virtuais
se eleva a outra dimensão. A informação constante das coordenadas geo-
gráficas realiza uma conexão constante entre a posição física do indivíduo
e informações no ciberespaço. Isso desencadeia uma grande quantidade
de relações inéditas aos sistemas comunicacionais já existentes e a criação
de outros. O serviço de microblog Twitter recebe outro elemento quando
se tem a noção de quem está fisicamente próximo. As fotos tiradas nestes
aparelhos com GPS podem receber metadados contendo as coordenadas
geográficas e utilizar um novo critério de organização e relação em sites
como o Flickr. Já redes sociais como Foursquare já são elaboradas com
a posição geográfica como o principal elemento. Neste último exemplo, os
indivíduos são constantemente monitorados em um mapa por amigos que
tenham permissão para receber e transmitir esta informação.
Estas evidências somadas a várias outras que começam a se
desdobrar são baseadas em uma das fronteiras intocadas no ciberespa-
ço que é a localização física. Assim como outras informações do âmbito
privado que se tornam públicas sem a nítida percepção do individuo,
este novo dado pode ser ainda mais complexo do ponto de vista da pri-
vacidade. A informação do local físico onde a pessoa está libera também
todas as outras questões como sexo, idade e aparências estéticas que
ainda possuíam certa proteção na rede.
O espaço físico interligado com a grande rede digitaliza a cidade
e os elementos a compõe (MITTCHELL 2003). A Wikipédia relacionada
com os objetos em volta do indivíduo cresce exponencialmente em po-
tência de compartilhamento de informação, pois a relação direta com o
contexto real situa o indivíduo com as informações já registradas e esti-
mula a colocação de outras percepções.
Lugares de sociabilização e concentração de saberes como biblio-
tecas e universidades sempre foram vinculados como pontos de referência
nas cidades. Uma biblioteca municipal sempre ocupou um endereço físico
privilegiado, como também é reconhecida por suas arquiteturas imponen-
tes. No momento em que a internet desterritorializou a informação, biblio-
tecas virtuais não mais precisam estar contidas em endereços físicos. Na
medida em que a cidade transforma a rede, o espaço físico também é
alterado. As relações indivíduos com os lugares se alteram pela utilização
no contexto da rede, a fronteira entre real e virtual se funde.

177
Eduardo Campos Pellanda

Se “(...) lugares não podem ser separados de seu contexto de


experiência” (SANTAELLA 2007, 164) têm-se agora mais potenciais re-
lações contextuais com informações e trocas sociais em redes de co-
munidades. À medida que se faz uma foto com “tag” geográfico de um
local e se compartilha em um site de relacionamento, o encadeamento
de ações com este espaço físico tende a aumentar. Este e inúmeros
outros exemplos de contextualização estão cobrindo a cidade de uma
nova camada informacional. Os lugares típicos de sociabilização de uma
cidade não são necessariamente propícios para a inteiração entre os
indivíduos: “Por mais cheios que os espaços coletivos de consumo pos-
sam estar, eles não tem nada de coletivos” (SANTAELLA 2007, 176).
Ao mesmo tempo, os SmartMobs, descritos por Rheingold (2003), são
jovens que utilizam o espaço como plataforma de comunicação para que
a informação tenha contexto e que possibilite inteirações sociais. O rela-
cionamento de informações torna o espaço mais relevante à medida que
ele se torna um nó de informação: “Um espaço que flui informações não
é um espaço vazio; ele tem relações construídas na rede e envolta dela
(...)” (CASTELLS, et al. 2007, 171).
Desta forma, o espaço físico está paulatinamente sendo inserido
no contexto da cibercultura e, com isso, reconfigurando as características
da interação na rede. A associação entre locais físicos e informacionais
se dá em um momento de maturação da infraestrutura de redes wireless
e aparelhos de conexão que se somam ainda a um momento cultural
de retomada de espaços públicos pela população jovem (RHEINGOLD
2003). O contexto local se soma a não percepção da distância geográ-
fica proporcionada pelo ciberespaço em um mash-up, ou mistura, de
conceitos que resultam nesta nova configuração da cibercultura.
O virtual se desloca no espaço físico e cria com ele uma relação
complexa de cooperação. Esta alimentação acontece de maneira seme-
lhante: como os meios de transportes alteraram as cidades, a cultura
das ruas passa a ser a cibercultura também: o universo cultural, próprio
dos seres humanos, estende ainda mais esta variabilidade dos espaços
e das temporalidades. Por exemplo, cada novo sistema de comunicação
e de transporte modifica o sistema das proximidades práticas, isto é, o
espaço pertinente para as comunidades humanas (LÉVY, 1996, p.22).
A própria geografia da rede passa a não ser fixa. O fato de os
nós estarem sempre em movimento e não mais estáticos faz com que

178
Consumo e experiência de uso em um contexto...

o mapa da rede seja sempre mutante. Os dados não só trafegam pela


rede como os próprios nós também se alteram até em função dos tipos
de informação. William Mitchell, que vem da arquitetura, já especulava,
em 1995, sobre a questão da geometria da rede e como, mesmo ainda
longe de ser móvel, a Internet pode ser percebida como ambiente:

A Internet nega as geometrias. Ao mesmo tempo em


que ela tem uma topologia definida dos nós compu-
tacionais e irradia ruas de bits, e ao mesmo tempo
a localidades dos nós e links podem ser registrados
em mapas para produzir surpreendentes tipos de dia-
gramas de Haussmann, ela é profundamente e fun-
damentalmente antiespacial. Nada parecida com a
Piazza Navona ou a Coperly Square. Você não pode
dizer ou falar para um estranho como chegar lá. A In-
ternet é ambiente... (MITCHELL, 2003, p.8).

A afirmação de Mitchell sobre os nós poderem ser mapeados


agora parece não mais proceder. Grupos envolvendo comunidades vir-
tuais móveis podem estar dispersos fisicamente e subitamente estar
unidos no mesmo espaço físico. Mitchell (2003) mostra que, à medida
que redes Wi-Fi começaram a transportar a Internet de cubículos para
espaços públicos, como livrarias, cafés e até parques, estes começa-
ram a se transformar. A Internet começou a ser acessada em computa-
dores centrais nas universidades, até o ponto em que a infraestrutura
das casas permitiu um acesso fora dos ambientes públicos. A tecnolo-
gia wireless está trazendo de volta este público para fora das casas,
em um movimento cíclico.
Uma das características dos espaços físicos sendo permeados pela
rede em um ambiente de mídia always on é a completude de um dos an-
seios humanos, a onipresença. Em típico quadro de vida cotidiana ocidental
urbana é a divisão entre espaços de trabalho, entretenimento e residencial.
A onipresença se dá pela possibilidade de estar conectado a vários espaços
simultaneamente, com um mínimo de deslocamento físico. A barreira entre
o espaço público e privado é outra linha que se torna menos nítida neste
cenário. Isso ocorre tanto por pessoas que trabalham em casa como pelas
que estão em vários pontos da cidade em contato com sua residência. A
questão de onde se está fisicamente não é mais a central, e sim qual o tipo
de informação precisa-se trocar em um dado instante.

179
Eduardo Campos Pellanda

Pode-se fazer uma relação deste fato com os homens nômades


que se abrigavam em cavernas e deixavam marcas em formas de dese-
nhos reportando suas informações, como destaca a Internet de cubículos
para espaços públicos, como livrarias, cafés e até parques, estes come-
çaram a se transformar. A Internet começou a ser acessada em compu-
tadores centrais nas universidades, até o ponto em que a infra-estrutura
das casas permitiu um acesso fora dos ambientes públicos. A tecnologia
wireless está trazendo agora de volta este público para fora das casas, em
um movimento cíclico.
Com efeito, a mobilidade está conectada a um novo tipo de experi-
ência que consiste em um dos pilares para a publicidade contemporânea.
A mensagem não é o consumo do produto em si, mas experiência que
ele está ligado. As promoções para o consumo em contexto urbano com
a conexão dos espaços virtuais e atuais consistem em um novo elemento
do contexto da cibercultura que expande os seus modos operacionais. O
contexto físico está conectado com as informações do ciberespaço em
um ambiente always on (PELLANDA, 2005) e ubíquo. As experiências de
uso de bens neste ambiente são oportunidades que poucas marcas con-
seguem capturar. Consumidores estão envoltos em uma nuvem de infor-
mações que catapultam o indivíduo a especialista e centro das atenções.

REFERÊNCIAS

CASTELLS, M. A era da intercomunicação,. Le Monde, (24), 2006.

LÉVY, P. O que é o Virtual. São Paulo: Editora 34, 1996.

MAFFESOLI, M. O tempo das tribos: O declínio do individualismo nas socie-


dades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

MEYROWITZ, J. Global nomads in the digital veldt. In: Nyíri (ed.). Mobile de-
mocracy. Essays on Society, Self and Politics. Vienna: Passagen Verlag, 2003.

MITTCHELL, W. J. ME++ The Cyborg Self and the Networked City. Boston:
MIT Press, 2003.

PELLANDA, E. C. Internet Móvel: Novas Relações na Cibercultura Derivadas


Da Mobilidade na Comunicação (PHD Thesis ed.). Porto Alegre, RS, Brazil:
Pontifical Catholic University of Rio Grande do Sul – PUCRS, 2005.

180
Consumo e experiência de uso em um contexto...

RECUERO, R. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre, RS: Sulina, 2009.

RHEINGOLD, H. Smart Mobs. Cambridge: Perseus Publishing, 2003.

SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo, SP:


Paulus, 2007.

181
PISTAS HIPERMODERNAS PARA ALTERAÇÕES DA
MENSAGEM PUBLICITÁRIA CONTEMPORÂNEA

Camila Pereira Morales

Publicitária. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: camilapmq@yahoo.com.br

RESUMO
Com maior frequência, nos últimos anos, um grupo de mensagens publi-
citárias, cada vez mais polissêmicas e experimentais, vem contrariando
normas consagradas sobre o fazer publicitário. O objetivo deste trabalho é
demonstrar que as rupturas propostas pelas mensagens estudadas encon-
tram sentido e se dirigem a um cenário atual de mutações antropológicas
também profundas. Para isso, utilizaremos as ideias de Gilles Lipovetsky
acerca do contemporâneo, que anunciam os ‘Tempos Hipermodernos’.
Por fim, percebemos que a publicidade estudada parece dirigir-se a um
novo indivíduo mais autônomo e de subjetividade hiper-valorizada.

PALAVRAS – CHAVE
Publicidade
Hipermodernidade
Polissemia

ABSTRACT
In recent years, more frequently, a group of experimental and polysemic ad-
vertising messages are confronting the standard rules of how advertising
should be made. The purpose of this work is to demonstrate that the rupture
proposed from these messages found their space on the current scenario,
which is submerged in anthropological changes. For this, we will use the
ideas of Gilles Lipovetsky about the contemporary that announce the ‘Hyper-
modern Times’. Finally, is perceived that the analyzed advertising is going
towards a new individual, more autonomous with hyper-valued subjectivity.

KEYWORDS
Advertising
Hypermodernity
Polysemy
Pistas Hipermodernas para alterações da mensagem ...

Em 1968, Barthes, ao analisar uma mensagem publicitária, afir-


mou que, entre todos os tipos de imagens disponíveis na época, a ima-
gem da propaganda era a que mais se prestava à análise semiótica por
se tratar de uma mensagem franca. Não cabia, contra ela, a acusação
de interesses escusos. O objetivo da mensagem de persuadir à compra
de um produto ou ideia favorável acerca de uma marca era facilmente
identificado. Assim, o autor denominou o processo de significação da
propaganda de opaco, já que para cumprir seu objetivo ela trabalha-
va com códigos de alguma forma já estereotipados pelo público alvo,
e que não suscitassem grandes ambiguidades interpretativas. (BAR-
THES, 1990, p.27-42).
No mesmo ano, Baudrillard (1973) explicou que, na socieda-
de de consumo que se formava, a publicidade1 ocupava um papel
tão vital que o sistema não funcionaria sem ela. Para ele, a grande
angústia dos indivíduos na sociedade do consumo é ter que inventar
para si motivações para existir e de saber o que realmente se é. Tal
drama seria resolvido pelos objetos e por sua aura, formada pela pu-
blicidade. Os objetos e a sua ‘voz’, a publicidade, seriam uma espécie
de mito a ser idolatrado, já que resolveriam todos os problemas dos
indivíduos. “Se o objeto me ama (ele me ama através da publicida-
de) dissipa a fragilidade psicológica com imensa solicitude” (BAU-
DRILLARD, 1973, p.180).
Ambas as afirmações cristalizam a ideia hegemônica sobre a
publicidade que perdurou durante quase toda segunda metade do sé-
culo passado. Este período foi também de consolidação da prática,
quando a publicidade se configurou como campo distinto, com regras
e fórmulas próprias, motivada pelo rumo da reorganização socioeconô-
mica após a segunda guerra. Neste processo, a publicidade passou a
preocupar-se com a otimização de todos os aspectos da mensagem,
com base nas ideias vigentes da época de que era possível ao emis-
sor controlar totalmente os significados provocados nos receptores.
Durante algum tempo, tais regras funcionaram muito bem, formatos
1 
Antes de prosseguir, faz-se necessário uma ressalva quanto à utilização dos termos publicidade
e propaganda. Embora, etimologicamente impliquem em diferentes funções, publicidade com tornar
público, propaganda com propagar uma ideia, aqui serão tratados como sinônimos. Isto se deve ao
fato deste trabalho considerar que, no estágio atual da comunicação publicitária, é impossível dis-
tinguir isoladamente em uma mensagem sua intenção de tornar público um produto ou vender uma
ideia ou imagem a seu respeito. A maioria das formas de publicidade com que se convive, já é, há
muito tempo, um entrecruzamento indissociável dos dois termos.

183
Camila Pereira Morales

tradicionais e mensagens mais literais fizeram com que a publicidade


conquistasse um posto ‘acima da linha’2 das outras formas de comuni-
cação comercial. A fase de tantos resultados positivos ficou conhecida
como Golden Age publicitária e aconteceu, com algumas variações de
tempo, em diferentes lugares, até a o final da década de 80.
Porém, nos anos subsequentes, alterações de contexto de-
monstraram que há pouco em propaganda que se mantenha como fór-
mula incontestável. Como afirma Cappo (2003), a própria ‘linha’, que
separava a publicidade como forma superior de comunicação, desa-
pareceu. Entre as normas que permanecem até hoje está a de que a
publicidade precisa comunicar uma mensagem clara e objetiva, respei-
tando o repertório do público a que se dirige, evitando ambiguidades.
Na prática, para que uma publicidade funcione, produto e conceito de-
vem ser facilmente identificados pelo receptor. Mas se uma mensagem
publicitária contrariasse tais regras, continuaria sendo propaganda?
Este trabalho responde afirmativamente a essa pergunta para propor
que tais transgressões são alterações da publicidade profundamente
ligadas a situações específicas do contexto contemporâneo.
O presente trabalho foca-se em um grupo de mensagem que co-
meçou a aparecer em maior número nos últimos anos, cujas alterações
apresentadas parecem ir além de simples apropriações estilísticas3, ofe-
recendo ao público, ao invés de uma significação clara e objetiva, um
jogo ou polissemia. Estas mensagens rompem com a ideia de uma men-
sagem fechada, completa. Se a arte moderna, ao propor uma arte para
além da retina, parece ter atingido seu estado pós-moderno, também
a forma de comunicação publicitária estudada aqui parece ter rompido
com sua a ideia tradicional de como deve ser uma mensagem publicitá-
ria, concepção que chamaremos aqui de moderna.
O objetivo deste trabalho é delimitar tal contexto, buscando por
características do indivíduo contemporâneo, público alvo das mensa-
gens analisadas. É necessário esclarecer que a delimitação de um ce-
nário não é feita somente com o intuito de encontrar a causa imediata do
2 
O termo ‘above the line’ foi cunhado para designar a publicidade em formatos tradicionais (anún-
cios de revista e jornal, comerciais de TV, etc) como as formas mais eficientes de comunicação
comercial. ‘Abaixo da linha’ estavam formas de comunicação alternativa, como ações promocionais,
relações públicas e assessorias de imprensa.
3 
Geralmente as inovações publicitárias não se caracterizam pelo lançamento de vanguardas ou
grandes transgressões estilísticas, limitando-se muitas vezes à apropriação de linguagens e técni-
cas já consagradas em outros campos, como no cinema ou nas artes plásticas.

184
Pistas Hipermodernas para alterações da mensagem ...

fenômeno, mas para, na verdade, encontrar traços que possam compor


um quadro no qual essa publicidade encontre sentido.
Para isso, escolhemos as ideias acerca do contemporâneo de
Gilles Lipovetsky, cujos pontos centrais apresentaremos a seguir.

A HIPERMODERNIDADE

Lipovetsky (2007, p. 21-148) inicia sua explicação sobre hipermo-


dernidade pontuando a existência de três grandes fases na sociedade
de consumo: uma moderna, outra pós-moderna e, por fim, a que vive-
mos hoje, hipermoderna. A mudança para cada uma das diferentes fases
teria sido marcada por diferentes mutações antropológicas.

DO MODERNO PARA PÓS-MODERNO

Um dos pontos de partida para compreensão da mudança de


uma época moderna para pós-moderna é uma nova concepção acer-
ca do tempo. Historicamente são mais comuns os períodos em que
houve uma condenação do presente e uma desesperança em relação
ao futuro. Na antiguidade, por exemplo, Platão já denunciava que os
homens de ‘ferro’ de sua época já não eram virtuosos como os ho-
mens de ‘ouro’ dos tempos míticos. O mesmo ocorria na Idade Média,
quando o presente não tinha muito valor, sendo considerado apenas
um caminho para o juízo final e as recompensas eternas do paraíso. A
grande mudança nessa concepção acerca do tempo ocorre na moder-
nidade. A Filosofia Iluminista e o cientificismo do século XIX invertem
a ideia do futuro, afirmando que é lá que existirão as condições para
um progresso ilimitado do homem: “a razão poderia reinar sobre o
mundo e criar as condições para a paz, a equidade e a justiça” (LIPO-
VETSKY, 2004, p.14).
Sob a bandeira da racionalidade e do progresso, o século XX
presenciou tragédias e catástrofes: duas grandes guerras, projetos de
sociedade socialistas fracassados e perigosa destruição de recursos
naturais que colocaram em debate a própria existência do homem na
Terra. Assim, as primeiras menções de um estágio após o moderno
foram as que relataram certa decepção com a razão.

185
Camila Pereira Morales

Esta decepção pode ser percebida em Lyotard (1998), que ca-


racteriza a condição pós-moderna essencialmente como o fim das gran-
des metanarrativas. Estas seriam os grandes consensos universais ra-
cionalistas, que foram utilizados durante a modernidade para nortear
a ciência, permitindo que, em nome dela, fosse emitido qualquer juízo
de verdade. Na pós-modernidade, as grandes narrativas já não mobi-
lizam as massas por uma causa comum, e a noção de verdade não
é mais universal, mas relativa a várias pequenas narrativas. Algo é
verdade ou mentira em relação a determinado contexto específico. Isto
representa o relativismo posto em prática, conceito que, embora tenha
surgido moderno, com a teoria da relatividade de Einstein, parece que
só foi realmente ‘exercido’ plenamente na pós-modernidade, quando a
expressão ‘verdade relativa’ é aceita não só como coerente, como mais
apropriada que verdade absoluta. Lyotard aponta um importante ‘fim’
da pós-modernidade; Lipovetsky parte desse fim para também apontar
fenômenos que iniciaram com a pós-modernidade.
Assim, decepcionados com o passado e desacreditando em gran-
des causas que levariam a um futuro melhor para toda a humanidade,
o presente se tornou referência essencial dos indivíduos. O individua-
lismo moderno então muta para o narcisismo-hedonista pós-moderno,
o importante passa a ser viver o aqui e agora. Vale ressaltar que este
narcisismo não pode ser explicado apenas como consequência direta de
uma série de fatos dramáticos pontuais e deve ser entendido como “uma
consciência radicalmente inédita, uma estrutura constitutiva da persona-
lidade pós-moderna (...) resultante de uma de um processo global que
rege o funcionamento social” (LIPOVETSKY, 1983, p. 50).
Lipovetsky (1983, p.52) explica que o desligamento dos grandes
sistemas de sentido foi inversamente proporcional ao investimento do
indivíduo no EU. Quanto mais desligado de causas sociais, mais o indi-
víduo se voltou, em um processo de personalização, para a resolução de
conflitos internos. Os sentimentos que, por muito tempo, não couberam
em uma vida guiada pelo racionalismo, passaram a ser considerados.
Este processo de personalização também foi proporcionado pelo libera-
lismo econômico e pelos rápidos avanços tecnológicos.
Aliado ao processo de personalização também ocorre o proces-
so de autonomização. Em um mundo pós-disciplinar, as pessoas de-
vem fazer suas próprias escolhas de forma autônoma. De alguma for-

186
Pistas Hipermodernas para alterações da mensagem ...

ma, parece ser apenas na pós-modernidade que se realizam os ideais


Iluministas de liberdade de ação. O indivíduo não precisa mais seguir
as regras de qualquer tradição para agir e possui liberdade entre di-
versas escolhas. Os mecanismos de controle ainda existem, mas são
de outro tipo, menos reguladores e, ao invés da coerção, preocupam-
se em comunicar e persuadir. A necessidade de ser agradável ganha
espaços inéditos: os ambientes de trabalho passam a ter o aconse-
lhamento de relações públicas e psicólogos, para que todos se sintam
‘bem’ enquanto trabalham (LIPOVETSKY, 2004, 16-21).
A pós-modernidade, sem dúvida, conheceu indivíduos mais au-
tônomos e assediados constantemente por uma grande diversidade de
apelos persuasivos, ‘sedução non stop’, que extrapolou a esfera de
relações interpessoais e passou a regular todos os aspectos da vida
cotidiana. A arquitetura, por exemplo, ‘aprendeu’ semiótica para criar
prédios que expressassem um conceito, e políticos contrataram perso-
nal stylists para que suas roupas traduzissem os anseios do público.
Mesmo frente a sedutoras mensagens publicitárias, o indivíduo não é
um enganado, mas voluntariamente se deixa ou não encantar.
Lipovetsky (1983, 17-27) não foi o único a ressaltar essa espe-
tacularização da vida; Debord também o fez, embora com juízo inver-
tido. Para Lipovetsky, a sedução e espetacularização representaram
uma positiva demonstração da autonomia das pessoas que, tendo à
disposição várias opções, poderiam escolher a que mais satisfizessem
seu hedonismo. Portanto, em nada se relaciona com a ideia de passi-
vidade. Para o autor, um grande número de opções de entretenimento,
‘prepara’ o indivíduo pós-moderno para inferir e fazer escolhas basea-
das em sua própria subjetividade. Para Debord, no entanto, o espetá-
culo representava apenas mais uma forma de dominação em um mun-
do alienado de falsas opções: “O espetáculo é o momento em que a
mercadoria ocupou totalmente a vida social (...). A produção econômica
moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura” (DEBORD,
1997, p. 31). Para este autor, não há nada de satisfatório na sociedade
de consumo, e a publicidade é uma sucessão de mentiras que se con-
tradizem em suas promessas, enganando um público passivo.
Em linhas gerais, podemos dizer que, para Lipovetsky, a pós-mo-
dernidade acontece quando a produção e o consumo de massa tornam-
se acessíveis a todas as classes. Todos, então, passam a ter acesso ao

187
Camila Pereira Morales

modelo de hedonização da vida, cultuando o fútil, o frívolo, o desenvolvi-


mento pessoal e o bem-estar, sem culpas:

(...) todos os freios institucionais que se opunham a


emancipação individual se esboroam e desaparecem,
dando lugar à manifestação dos desejos subjetivos, da
realização individual, do amor-próprio. As grandes es-
truturas socializantes perdem autoridade, as grandes
ideologias já não estão mais em expansão, os projetos
históricos não mobilizam mais, o âmbito social é um
prolongamento do privado. (LIPOVETSKY, 2004, p.23)

Os grupos sociais já não prescrevem os modelos de conduta,


mas cada indivíduo tem a liberdade para escolher o seu. As normas
já não são impostas sem discussão, as pessoas reivindicam o direito
de serem persuadidas, apresentando-se a priori sem restrições pré-
estabelecidas. Este comportamento pode ser verificado em todas as
relações, das de consumo até as familiares. Narciso pós-moderno
era, ao mesmo tempo, “cool, flexível, hedonista e libertário” (LIPO-
VETSKY 2004, p.25).

DO PÓS-MODERNO PARA O HIPERMODERNO

De acordo com Lipovetsky, a partir do começo do século XXI, vive-


mos outra mutação antropológica que nos permite diagnosticar um novo
estágio na vida social: a hipermodernidade. Esta fase ainda apresenta
muitas das características da pós-modernidade, como o desligamento dos
grandes modelos estruturantes, mas também rompe com algumas delas.
Entre os aspectos inéditos, está a noção de hiperconsumo. O pro-
cesso de desatomização das mercadorias faz com que hoje o consumo
se baseie em uma lógica sensória, sendo motivado pela busca do prazer
e satisfação emotiva, ou seja, consome-se mais para ‘sentir’ do que para
‘ter’ ou exibir. Os indivíduos buscam por sensações íntimas, sem a ne-
cessidade de reconhecimento social. O luxo, cada vez mais, relaciona-
se à qualidade da emoção ou ineditismo da experiência.
Também o conceito de narciso sofre alterações. Para Lipovetsky,
a hipermodernidade representa uma espécie de ressaca para o indiví-
duo que desfrutou o aqui e agora da pós-modernidade. O hipernarciso

188
Pistas Hipermodernas para alterações da mensagem ...

é mais responsável que seu antecessor, deixando nítidos paradoxos


que não apareciam muito claramente na pós-modernidade: ao mesmo
tempo em que é mais responsável (a hipermodernidade é libertária e
não libertina), o indivíduo hipermoderno também não consegue se des-
vencilhar do universo da infância e adolescência. Exemplos de tal pa-
radoxo podem ser ilustrados pelos adultescentes: homens e mulheres
bem sucedidos profissionalmente, bons cidadãos e chefes de família,
que consomem roupas e brinquedos dirigidos, por exemplo, para crian-
ças. O hipernarciso não nega suas responsabilidades adultas, mas,
em nome de suas responsabilidades cumpridas, reivindica o direito de
‘viver’ uma vida de adolescente.

Os indivíduos hipermodernos são ao mesmo tempo


mais informados e mais desestruturados, mais adul-
tos e mais instáveis, menos ideológicos e mais tribu-
tários das modas, mais abertos e mais influenciáveis,
mais críticos e mais superficiais, mais céticos e menos
profundos. (LIPOVETSKY, 2004, p. 27-28)

A partir dessa colocação, também fica fácil identificar outra mu-


dança significativa entre os narcisos pós-modernos e hipermodernos:
a relação com o tempo. Se o descrédito nas tradições foi vivido como
conquista a ser celebrada pelos pós-modernos, os hipermodernos a vi-
vem com receio. O fim dos recursos naturais, o terrorismo, o reinado de
uma lógica econômica globalizante e liberal, que existe sem considerar
os indivíduos, são algumas das preocupações do narciso hipermoder-
no. A situação se agrava, pois tendo o narciso pós-moderno já rompido
com as grandes causas sociais, narciso hipermoderno deve enfrentar
seus temores sem projeto. A fé foi substituída pela paixão e o discurso
de verdade absoluta pela relativização do sentido “Narciso é doravante
corroído pela ansiedade; o receio se impõe ao gozo, e a angústia à
libertação” (LIPOVETSKY, 2004, p.28). Narciso vive o presente com
medo de um futuro incerto.
A parte ‘segura’ da sociedade é a mercantilização dos modos de
vida. Hoje não há mais entraves ideológicos ou culturais que condenem
a ‘compra’ de um modo de vida. Vivemos o consumo-mundo, quando
até aspectos não permeados pelas questões econômicas passam a
obedecer a lógica ‘homo consumericus’. Lipovetsky (2004, p.122), no

189
Camila Pereira Morales

entanto, esclarece que essa lógica não deve ser subentendida como
o fim dos valores não comerciais, como o sentimentos familiares e o
altruísmo. E aqui a hipermodernidade expõe seu paradoxo essencial:
ao mesmo tempo em que a mercantilização da vida chega ao seu nível
máximo, valores como o voluntariado, a amizade e o amor se refor-
çam, e os direitos dos homens são os mais celebrados. “Ainda que se
generalizem as trocas pagas, nossa humanidade afetiva, sentimental,
empática, não está ameaçada” (2004, p.122).
A lógica de renovação das novidades da moda hoje atingiu ritmo
inédito, e não cabe contra ela apenas acusações de superficialização
do indivíduo. Pelo contrário, de acordo com o autor, a lógica da moda
estimula, nos indivíduos hipermodernos, um questionamento mais exi-
gente e menos passivo, a multiplicação dos pontos de vista subjetivos.
Surpreendendo às críticas de que a moda é um artifício de padroniza-
ção, o autor defende que o estágio atual da moda promove um declínio
da semelhança de opiniões. Isto representa uma diversificação e valo-
rização das versões pessoais.
Dessa maneira, o fim de valores transcendentes não é realmen-
te uma coisa ruim, já que forma um homem mais receptivo à crítica,
mais tolerante, mais aberto à diferença e à argumentação do outro. O
perigo está no efeito colateral desta maleabilidade, a fragilidade emo-
cional dos indivíduos, menos seguros de si em uma sociedade que não
lhes diz o que ser. O perigo não é a manipulação, mas como já dizia
Baudrillard, ter que enfrentar a difícil tarefa de descobrir o que se é.

AS MENSAGENS PUBLICITÁRIAS CONTEMPORÂNEAS E O INDIVÍ-


DUO HIPERMODERNO

Como já foi dito, um grupo de mensagens publicitárias contem-


porâneas parecem estar gradativamente promovendo uma significa-
ção polissêmica, que pode ser definida como jogo ou parataxe. O jogo
pode ser considerado a provocação retórica que não se esclarece
facilmente. Prolongando a semiose do público, pode ser considerada
uma polissemia temporal. A parataxe, por sua vez, está mais ligada
à quantidade de significados do que ao prolongamento do processo
de significação provocado a encontrar relação entre dois dados apa-
rentemente desconexos. Dessa maneira, o receptor pode encontrar
190
Pistas Hipermodernas para alterações da mensagem ...

vários sentidos. Estas relações já foram experimentadas pela arte e,


de forma mais radical, pela arte contemporânea.
Essas novas formas de comunicação publicitária não são en-
contradas com a mesma frequência das peças e linguagens tradi-
cionais, mesmo assim já é possível encontrar um número diverso de
exemplos. Tais mensagens, embora não possuam uma designação
uníssona, não carecem de constatações: ousadas, provocadoras,
instigam os espectadores, questionam os limites da arte e já seriam
merecedoras de estudo pelo notório destaque que recebem por sua
originalidade. Esta questão se torna ainda mais relevante se consi-
derarmos a crise de atenção, diagnosticada por Adler (2002), em que
diante de tantos estímulos e informações, os indivíduos, como recur-
so de compreensão, simplesmente ignoram a maioria das diversas
mensagens que chegam até eles.
A maioria dos exemplos utilizados neste trabalho encontra-
se sob denominações como marketing de guerrilha, alternate-reality
branding, marketing viral, ação publicitária, entre outras. Surgidos re-
centemente, esses termos tentam determinar e definir formas de co-
municação publicitária com novos suportes, fora dos meios tradicio-
nais ou ainda que proporcionem uma experiência real a um receptor
menos passivo à mensagem. Porém, este trabalho, mesmo fazendo
uso desses termos, não pretende deter-se em nenhuma dessas con-
ceituações. Seu ponto de partida é a perda do caráter enfático das
mensagens, e como ilustraremos a seguir, como tal fato pode ser
considerado como uma forma de atender as novas características de
um público hipermoderno.
A Royal de luxe, companhia de teatro de rua francesa, não utili-
za peças convencionais para a divulgação de seus espetáculos, como
anúncios, outdoor ou cartazes. A forma de publicidade utilizada são
grandes instalações urbanas (figuras 1 e 2), montadas 15 dias antes
de sua apresentação na cidade. Não há, nas peças, qualquer infor-
mação literal sobre do que se tratam, não há datas, local, argumentos
de defesa do produto ou caráter do espetáculo. Não se pode inclusive
inferir se se tratam de peças de publicidade para algum produto ou
simplesmente obras de arte. Pode-se constatar aqui a espetaculari-
zação definida como característica da pós-modernidade, porém mais
próxima da ideia de sedução de Lipovetsky do que da ideia de espe-

191
Camila Pereira Morales

táculo ditatorial de Debord, já que não há nem promessas explícitas


para serem descumpridas.
As peças, portanto, parecem dirigir-se não à razão, mas à
emoção do público. De forma extrema, esse exemplo ilustra a neces-
sidade da publicidade contemporânea de encantar e não manipular
descritas por Lipovetsky.

Figuras 1 e 2: Instalações da Companhia de teatro de Rua Royal de Luxe. Fonte: site Publicidade
de Saia de saia <www.publicidadedesaia.blogger.com.br>. Acesso em: 21 de mai. 2006.

Em outro exemplo, a marca Puma, ao informar seu patrocínio a


uma competição de barcos a vela, Puma Ocean Race, ao invés de ofe-
recer brindes, por exemplo, propõe uma experiência real aos especta-
dores da competição. A marca instalou borrifadores de água (figura 3
e 4) regulados com um jato mais forte do que o normal (normalmente
esse equipamento é utilizado em lugares públicos em cidades com baixa
umidade do ar, para borrifar pequenas gotículas de água). A peça pro-
punha aos espectadores da competição uma ‘prova’ das condições en-
frentadas pelos velejadores no mar. A reação do público, que se divertiu
com a peça, pareceu demonstrar o fim das ideologias que sufocavam a

192
Pistas Hipermodernas para alterações da mensagem ...

mercantilização dos aspectos cotidianos da vida. Mesmo com a intenção


comercial das peças claramente declarada, já que se podia ler o nome
da competição e do patrocinador: o público se envolveu sem culpas com
o jogo proposto, saciando um desejo de novas experiências.
Esta ação publicitária também pode ser utilizada para exemplifi-
car o desejo por experiências seguras, pois mesmo propondo uma ex-
periência tangível, a peça não apresentava qualquer risco real para os
que participavam. Narciso hipermoderno deseja experimentar de forma
imediata, no aqui e no agora, porém de forma segura, acuado que está
pelas inseguranças do cotidiano.

Figura 3 e 4: Ação promovida pela marca Puma, para divulgação do competição Puma
Ocean Race. Fonte: <www.espalhe.com.br>. Acesso em: 10 de abr. 2009.

Pode-se concluir que o narciso hipermoderno deseja algo mais


do que a simples contemplação passiva. Ele observa, entende, busca,
escolhe e age tudo ao mesmo tempo. Ele sabe que há muito a ser visto
e não teme não ter decodificado a rota semiótica ‘certa’. Ele sabe que
os dados podem ser percorridos de maneiras infinitas, dependendo da
subjetividade de cada um. Seu comportamento está, portanto, profunda-

193
Camila Pereira Morales

mente marcado por processos inferenciais em que se sente muito con-


fortável na solução de problemas e procura de significados.
O narciso hipermoderno participa e delibera sobre sua significa-
ção, definindo, com base em sua própria subjetividade, a completude da
mensagem. Assim como também, estando tão acostumado com os mais
variados tipos de estímulos persuasivos, parece necessitar de estímulos
mais sofisticados para se sentir envolvido por uma mensagem. Diferente
da noção moderna de público passivo, para este novo público não é a
simples visualização do produto que faz nascer o desejo de compra.
Acostumado que está a um mundo de múltiplos apelos, ele necessita
participar do jogo para que sua atenção seja conquistada. Para isso,
mesmo as peças publicitárias tradicionais, como no exemplo do anúncio
Vick (figura 5), passam a adotar, cada vez mais, a significação paratá-
tica. Antes um recurso poético, a publicidade agora passa a invocar a
subjetividade do receptor para que este ‘preencha’ os vãos deixados por
imagens e textos aparentemente desconexos. Qual a relação entre jane-
la aberta e o creme Vick? Podemos encontrar várias respostas para esta
questão, talvez não tão dispares como as provocadas por um readyma-
de de Duchamp, mas sem dúvida a significação se completa no receptor.
A publicidade parece também querer excitar a subjetividade do
público, porque sabe que as mensagens imperativas não são mais tão
eficientes em um mundo de verdades relativizadas.

Figura 5: Anúncio Vick. Fonte: Fonte: <www.ccsp.com.br>. Acesso em: 08de mar. 2009.

O narciso hipermoderno não tropeça nas informações como o in-


194
Pistas Hipermodernas para alterações da mensagem ...

divíduo moderno, mas navega nelas. Quando se navega se tem o con-


trole, exerce-se a autonomia, quando se tropeça se é surpreendido, e
diante de um receptor surpreendido, há mais que se comunicar do que
seduzir. A sedução é uma persuasão mais sofisticada cuja percepção é
conquistada e o receptor sente prazer em significar e continuar o proces-
so de busca de informações de forma livre e voluntária.
Vale ressaltar que, embora aqui as características do indivíduo hi-
pernarciso tenham sido organizadas separadamente, na prática, as peças
publicitárias não fazem referência a elas de forma isolada. A consideração
de todas as características pode ser percebida nas peças, mesmo que de
forma mais sutil ou aguda, reunidas em uma mesma peça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A condição pós-moderna foi observada em diferentes épocas, em


diferentes áreas, e o consenso parece ser a respeito do fim do consenso.
Porém, indubitavelmente, uma mudança de paradigma aproxima a alta
cultura da cultura popular, e faz ressurgir, na ciência, a temática da vida
cotidiana: tudo aquilo que o ser humano utiliza para dar sentido a sua
vida hoje merece ser objeto de análise. Ao mesmo tempo, em nenhum
outro momento histórico, a organização e as relações sociais estiveram
tão determinadas pelo consumo e, consequentemente, por questões li-
gadas a ele, como a publicidade. As práticas de compra e venda, se-
dução e espetacularização transbordaram de seus ambientes originais
atingindo todas as esferas da vida social. Tem-se, então, um ambiente
propício para proposições como a deste trabalho: um olhar teórico para a
publicidade que, mesmo comprometida com objetivos práticos, pode ser
muito esclarecedora sobre o indivíduo atual e nossa sociedade.
O indivíduo hipermoderno parece ter uma relação bem mais li-
vre com a publicidade se, como diz Baudrillard (1973), os objetos nos
amam através da publicidade. A questão hoje não é mais lutar contra a
publicidade, questionar sua veracidade, mas julgar se ela nos ama da
maneira certa. O indivíduo compactua com a publicidade não como um
enganado, mas como participante de um jogo, em que se oferece volun-
tariamente ou não para participar. Sua autonomia é exercida de forma
subjetiva, manipulando mentalmente as mensagens, ‘dirigindo’ esse pro-
cesso conforme sua vontade.
195
Camila Pereira Morales

A forma de publicidade, utilizada neste trabalho, parece, por-


tanto, estar nas duas pontas do processo de cristalização das carac-
terísticas do indivíduo hipermoderno. Ao utilizar uma linguagem mais
polissêmica que agrada a um novo público e, ao mesmo tempo, rea-
firma esse comportamento menos passivo do público, retroalimentan-
do-se de tal condição. As mensagens publicitárias adotando recursos
já utilizados pela arte contemporânea, cada vez mais, oferecem-se a
múltiplas opiniões e versões individuais do público.
A comunicação publicitária, que se pretendeu analisar aqui,
aponta estar profundamente entrelaçada com o modo de vida de nossa
época, quando tudo parece publicitariezar-se um pouco, querendo ser
agradável e persuadir. É como se as mensagens publicitárias sofres-
sem uma concorrência generalizada.
Diante do esfacelamento das verdades absolutas e do poder sim-
bólico dos meios tradicionais, o indivíduo se sente apto a considerar real
aquilo que ele próprio configura. O significado não lhe é mais dado, mas
por ele formado. A publicidade parece continuar a oferecer-se de forma
democrática, mas não mais com uma significação opaca, como a defini-
da por Barthes, mas com múltiplos significados.
Pode-se afirmar também que as mensagens estudadas aqui, ao
romperem certos paradigmas, não devem ser consideradas erros ou
aberração da lógica vocacional da propaganda, mas um fenômeno pro-
fundamente ligado a transformações sociais que geraram um indivíduo
com características também inéditas.
Finalmente, contradições, apropriações e a complexa rede de re-
lações com outras áreas fazem com que a publicidade adquira grande
valor para análise de nossa época. Pensemos e analisemos as mudan-
ças essenciais que sofre, e talvez a publicidade demonstre ser um recor-
te de importantes aspectos da, ainda discutida, condição pós-moderna.

REFERÊNCIAS

ADLER, Richard. A Conquista da Atenção. São Paulo: Nobel, 2002.

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Editora Perspectiva


S.A., 1973.
196
Pistas Hipermodernas para alterações da mensagem ...

CAPPO, Joe. O Futuro da Propaganda. São Paulo: Editora Pensamento-


Cultrix, 2003

DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contra-


ponto, 1997.

LIPOVETSKY, G. A era do vazio. Lisboa: Editora Relógio D’Água, 1983.

______. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004

______. Felicidade paradoxal. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LYOTARD, J. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

197
A TEORIA CULTUROLÓGICA NA CAMPANHA DA AREZZO

Carolina Conceição e Souza

Publicitária. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: carolsouzaa@gmail.com

RESUMO
Na década de 1970 a communication research enfrentou uma série de
questionamentos por parte dos estudiosos, o que permitiu a abertura
para outros tipos de correntes de pensamento, como a teoria culturológi-
ca. Esta acreditava que era preciso compreender a relação entre consu-
midor e consumo, partindo da visão de todo o contexto. Sua atualidade é
posta à prova na aplicação em nosso objeto de estudo: a marca Arezzo e
sua opção pelo uso de atrizes globais como estrelas de suas estratégias
comunicacionais analisadas pelas obras de Barthes e Morin. Fazemos
uma análise de peças comunicacionais, aplicando os conceitos de cul-
tura de massa, consumo massivo como escapismo e espetáculo, vedeti-
zação por identificação e projeção e mito.

PALAVRAS – CHAVE
Comunicação
Publicidade
Cultura de massa
ABSTRACT
In the 1970s the communication research faced a series of questionings
by scholars, which allowed the opening to other schools of thought, as
the theory Cultures. This was believed necessary to understand the rela-
tionship between consumers and consumption, based on the view of the
entire context. Its actuality is put to the test application in our object of
study: brand Arezzo and choice by the use of actors as stars of their glo-
bal communications strategies for consideration by the works of Barthes
and Morin. We present an analysis of pieces of communication, applying
the concepts of mass culture, mass consumption as escapism and spec-
tacle, vedetização by identification, projection and myth.

KEYWORDS
Communication
Advertising
Mass culture
A teoria culturológica na campanha da Arezzo

A communication research, ou a análise das comunicações de


massa, ou ainda os estudos da mídia, possuem uma extensa tradição
de pesquisa. Sendo a comunicação massiva um objeto de estudo de
variadas facetas, estudá-la torna-se um processo complexo, que aca-
ba “atravessando perspectivas e disciplinas, multiplicando hipóteses
e abordagens” (WOLF, 2005, p. 9). O resultado foi um conjunto de
saberes heterogêneo e vasto, tornando impossível sua condensação
numa tese conclusiva.
Os anos 1970 foram uma época de debate sobre essa dificulda-
de de resumo de tais vertentes e o problema de relacionamento entre
os meios de comunicação de massa e a sociedade, em sua totalida-
de. Essa discussão permitiu à pesquisa da comunicação orientar-se em
novas direções (WOLF, 2005, p. 11). Entre elas, temos a teoria crítica,
vinculada à Escola de Frankfurt, pela qual a sociedade é entendida como
um todo, e não segmentada, como na chamada pesquisa administrativa.
Através de uma crítica dialética da economia política, analisa o sistema
de economia de troca e suas dinâmicas societárias, como a indústria
cultural (WOLF, 2005, p. 17).

TEORIA CULTUROLÓGICA E SEU HISTÓRICO

Fora do padrão da communication research, temos também a


teoria culturológica, que objetiva “estudar a comunicação, determinan-
do seus elementos antropológicos mais relevantes e a relação que nela
se instaura entre consumidor e objeto de consumo”, tentando definir a
“nova forma de cultura da sociedade contemporânea” (WOLF, 2005, p.
94). Assim, não objetiva diretamente o estudo dos meios de comunica-
ção de massa nem os efeitos sobre os receptores.
Esta teoria possui como berço a França do século XX, porém não
constitui uma “escola francesa de reflexão sobre a comunicação” (SILVA,
2001, p. 172), já que nunca houve concordância entre os pesquisadores
da área além de seus objetos de estudo, que circulavam entre mídia,
comunicação e cultura de massa, entre outros. Mesmo porque, é impos-
sível “homogeneizar o que é heterogêneo por definição” ou “dar unidade
ao que sempre buscou diversidade” (SILVA, 2001, p. 171). Dessa forma,
estes estudiosos de fato circulavam no mesmo meio acadêmico, mas
não apresentavam sintonia de pensamento.

199
Carolina Conceição e Souza

A teoria culturológica acredita, assim como a teoria crítica que,


para se entender a cultura de massa, é preciso analisar seu todo, sendo
este o único método possível. “Não podemos reduzir a cultura de mas-
sa a um ou a algum dado essencial”, já escrevia Edgar Morin (1962,
p. 45). Historicamente, a teoria culturológica pode ser dividida em dois
momentos. Na década de 1960, estudavam-se os signos de comunica-
ção, como fizeram Guy Debord e Jean Baudrillard. Depois, ocorreu um
afastamento “do modo de uso para centrar-se na vertigem do contato”
(SILVA, 2001, p. 174). Baudrillard escreveu que a França de hoje pode
ser dividida naqueles

que ainda acreditam no bom uso futuro das mídias


(Bordieu, Sfez, Virilio); os que, apesar de tudo, já
vêem nela, ou nas suas novas formas, fator de vínculo
social (Maffesoli, Lévy e, em certo sentido, Wolton); e
os que a consideram um fenômeno extremo, irredutí-
vel à lógica da utilidade social (SILVA, 2001, p. 174).

Dentro dessas linhas, os pensadores desenvolveram suas teo-


rias e debateram entre si. Por exemplo, Debray deslocou a discussão
para o médium; Sfez denuncia o tautismo do destinatário; já Virilio
fala sobre a geração do isolamento causada pela mídia (SILVA, 2001,
p. 175). Clara demonstração das diferenças de abordagem e de pers-
pectivas numa mesma área.
Como Silva (2001, p. 179) escreveu, o mais interessante da he-
terogeneidade presente na teoria culturológica é que “todas acertam e
erram em porções equilibradas”. A comunicação é, ao mesmo tempo,
fenômeno extremo, vínculo de isolamento, nova utopia (SILVA, 2001,
p. 180). Juntas, não formam uma teoria acabada, fechada. Mas nem
por isso perdem validade na tentativa de explicar a cultura de massa e
a sociedade, mesmo hoje. Fazendo uso de sua atualidade, iremos usar
Barthes e Morin para explicar o uso, por parte da marca Arezzo, de atri-
zes globais das novelas das 21 horas nas campanhas comunicacionais.

TEORIA CULTUROLÓGICA E A CULTURA DE MASSA

Como prega a teoria culturológica, para se entender um pro-


cesso é preciso analisar todo seu contexto. Dessa forma, para enten-
der o porquê do uso de atrizes globais nas publicidades da marca, é
200
A teoria culturológica na campanha da Arezzo

preciso caracterizar a comunicação de massa, o processo de iden-


tificação/projeção dos consumidores nessas atrizes e a questão do
mito, seus processos de significância e significado, além da marca
estudada neste artigo.
Morin afirma que vivemos uma “segunda industrialização”, a do
espírito. Os avanços das técnicas estariam voltados para o interior dos
indivíduos, por meio de mercadorias culturais, como nossos “medos ro-
manceados e amores” (MORIN, 1962, p. 15). Esta industrialização fez
surgir uma “terceira cultura”, proveniente dos meios de comunicação de
massa, segundo a lógica da fabricação industrial destinada a uma mas-
sa social, “isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendi-
dos aquém e além das estruturas internas da sociedade”, como a classe
e a família (MORIN, 1962, p. 16).
Uma cultura, por definição, é um “corpo complexo de normas,
símbolos, mitos e imagens que penetram o individuo em sua intimida-
de, estruturam os instintos, orientam as emoções” (MORIN, 1962, p. 17)
através de trocas mentais, as projeções e identificações, como se fos-
sem personalidades reais que encarnam valores, como heróis e deuses.
Uma cultura fornece bases práticas à vida imaginária, “alimentando o
semi-real/semi-imaginário” que cada um tem dentro ou fora de si e com
o qual se envolve (MORIN, 1962, p. 18).
Dessa forma, a cultura de massa é uma cultura porque

constitui um grupo de símbolos, mitos e imagens con-


cernentes à vida prática e à imaginaria, um sistema
de projeção e identificação especificas. Ela se acres-
centa à cultura nacional, humana, religiosa e entra em
concorrência com elas (MORIN, 1962. P. 17).

A cultura de massa tornou-se possível graças às invenções téc-


nicas, absorvidas pelo espetáculo. Essa união, baseada na busca por
lucratividade, gerou a indústria da cultura de massa, destinada à obten-
ção do máximo consumo. O público, aqui, é visto como uma massa a
ser homogeneizada, através de um “sincretismo” que acaba por unir os
setores da informação e o romanesco, resultando em um processo de
assemelhação entre a vida real e a imaginada (MORIN, 1962, p. 39).
O consumo da cultura de massa ocorre em larga escala no lazer
moderno, surgindo como uma válvula de escape das preocupações co-
201
Carolina Conceição e Souza

tidianas. A cultura de massa apresenta-se aqui na forma do espetáculo.


Morin explica que a relação de consumo imaginário se estabelece atra-
vés do estético, existindo

uma participação ao mesmo tempo intensa e desli-


gada, uma dupla consciência. O leitor de romance
ou o espectador de filme entra num universo imagi-
nário que, de fato, passa a ter vida pra ele, mas ao
mesmo tempo, por maior que seja a participação,
ele sabe que lê um romance, vê um filme (MORIN,
1962, p. 81).

Esta ação da cultura de massa como espetáculo pode ser ana-


lisada em nosso objeto de estudo. A Arezzo é uma marca de calça-
dos, bolsas, bijuteria e acessórios femininos, sendo a maior da Amé-
rica Latina no segmento varejo. Para estimular o consumo, trabalha
com estratégias comunicacionais que objetivam uma identificação,
por parte da consumidora, entre seus produtos e as atrizes globais
da novela das 21 horas, da Rede Globo. Não é preciso explicitar que
esta rede de televisão e esta faixa de horário são solidamente as vi-
trines publicitárias mais rentáveis do mercado, pela audiência e pela
exposição na mídia.
Os anúncios analisados ao longo do texto caracterizam-se pela
presença das protagonistas das novelas Paraíso Tropical – 2007 (figura
01), Duas Caras – 2008 (figura 02), A Favorita (figura 03) e Caminho das
Índias – 2008 (figura 04): Alessandra Negrini, Alinne Moraes, Mariana
Ximenes e Juliana Paes, respectivamente, além de peças das coleções
da marca, como sapatos, bolsas e acessórios.

202
A teoria culturológica na campanha da Arezzo

Figura 1.

Figura 2.

203
Carolina Conceição e Souza

Figura 3

Figura 4

204
A teoria culturológica na campanha da Arezzo

O uso de atrizes globais, indiferentemente de serem as mo-


cinhas ou as vilãs dos enredos, baseia-se na tentativa de criar um
vínculo emocional entre consumidora e marca. Podemos notar que
esta é uma tendência no campo da moda: ir além do apelo aos aspec-
tos tangíveis, como qualidade e conforto, tentando uma verdadeira
conexão entre o produto e a consumidora. O que consideramos ser
o diferencial da marca Arezzo é a estratégia de usar apenas atrizes
globais das novelas das 21 horas, aquelas que encarnam os perso-
nagens de maior destaque e possivelmente maior identificação entre
os programas televisivos ficcionais brasileiros. A marca Arezzo vende
a ideia de que, ao usar seu produto, a consumidora irá sentir-se tão
poderosa/linda/admirada quanto esta personagem/atriz da televisão,
ativando seu lado emocional, tornando-se mais que uma questão de
consumo, mas de afirmação pessoal.

TEORIA CULTUROLÓGICA E A MITIFICAÇÃO

Esse processo de identificação dos indivíduos aos atores dos pro-


dutos culturais pode ser explicado através da semiologia, ciência que
estuda a relação entre dois termos, um significante e o outro significado,
que darão origem a uma significação/mito.
O mito é uma mensagem, podendo ser oral, escrita ou através
de representações. É composto por três partes. O significante é, si-
multaneamente, sentido e forma. Enquanto sentido, já significa algo,
mas ao transformar-se em forma, esvazia-se para dar lugar a um novo
sentido/interpretação (BARTHES, 1975, p. 139). A segunda parte, sig-
nificado, é o conceito que absorve a forma, e que já é pré-determinado:
já existe e acaba implantada no mito (BARTHES, 1975, p. 140). A sig-
nificação é a terceira parte, sendo o próprio mito, a entidade completa,
o resultado do processo de significação (BARTHES, 1975, p. 143).
O mito pode ser recebido de três maneiras, sendo estas depen-
dentes da situação vivida pelo sujeito. A primeira maneira é quando foca-
lizamos o significante vazio, deixamos o conceito preencher a forma do
mito sem ambiguidade, onde a significação volta a ser literal. A segunda
situação é quando, ao ver um significante pleno, distinguimos claramen-
te o sentido da forma e sua deformação, destruindo a significação de
mito. A terceira é quando focalizamos o significante do mito enquanto
205
Carolina Conceição e Souza

totalidade, de sentido e de forma, recebendo uma significação ambígua,


transformando-nos em leitores do mito (BARTHES, 1975, p. 149).
Esta terceira maneira é a leitura pretendida pelos anúncios da
Arezzo: a consumidora não vê na atriz um sistema intrincado de mensa-
gens, constituído de elementos escolhidos especialmente para causar
identificação/projeção, mas sim um sistema pronto, uma fala justificada:
é natural para ela sentir-se atraída pela bota que Juliana Paes usa (figu-
ra 04), já que, com ela, conseguirei também sucesso e beleza.

TEORIA CULTUROLÓGICA E A VEDETIZAÇÃO

Morin trabalha com o conceito de vedete, as personificações dos


mitos na cultura de massa. Em seus estudos, ele as projeta nas estrelas
de cinema, mas nesse artigo trouxemos essa ideia para nossa realidade
sociocultural, substituindo-as pelas nossas estrelas das novelas nacio-
nais, sem grande perda de sentido.
No encontro do imaginário com o real, e do real com o imaginá-
rio, situam-se as vedetes. São produtos legítimos da cultura de massa,
tendo suas vidas privadas escancaradas pela imprensa massiva, onde
tudo vira espetáculo. Isso acaba por dar a estes “olimpianos”, outra de-
nominação de Morin, uma dupla natureza, “divina e humana”, circulando
entre o mundo da projeção e o da identificação (MORIN, 1962, p. 102).
A vedete acaba se tornando familiar e participando da vida cotidiana
dos mortais. No nosso exemplo, especialmente, visto que estas atrizes
trabalharam em novelas que ocupam o horário mais prestigiado da tele-
visão brasileira, tornando-se alvos da imprensa; que alimenta a aura ao
redor de sua vida real, por meio de fotos indiscretas, tiradas por papara-
zzis ou reportagens especiais, mostrando as suas férias.
É preciso ter-se claro que os mitos não possuem esse grau de
importância pelo seu talento, mas sim pela necessidade que se tem de-
les, já que a “vida tediosa e anônima deseja ampliar-se até as dimensões
das vidas de cinema” (MORIN, 1989, p. 67). A atriz acaba reunindo todos
os aspectos desejáveis pela espectadora, seja em sua vida privada, ou
em seus papéis fictícios.
Esta celebridade é endeusada pela audiência, mas quem a prepara
e customiza é o star system, uma “máquina de fabricar, manter e promover
as estrelas”, envolvendo no pacote midiático sua vida pessoal e artística,
206
A teoria culturológica na campanha da Arezzo

obtendo sempre eficácia comercial (MORIN, 1989, p. 76). A conexão entre


mito e capital não é nada casual: “estrela-deusa e estrela-mercadoria são
as duas faces de uma mesma realidade: as necessidades do ser humano
no estágio da civilização capitalista do século XX” (MORIN, 1989, p. 77).
As maneiras como a identificação/projeção pode acontecer são
milimetricamente organizadas para abarcar o maior número de desejos
das consumidoras. Escolher atrizes para as campanhas ganha um plus,
porque aumenta consideravelmente o leque de possibilidades de este-
reótipos: a consumidora pode projetar-se na sua vida pessoal ou nos
variados papéis que representou ao longo de sua carreira. Mesmo que
mude o contexto, a vedete não deixará de ser aquela atriz famosa, rica,
que frequenta as altas rodas, com todos os galãs, além de ser bonita e
ter glamour. E todas estas facetas são possibilidades de consumo. Além
de que uma figura pública acaba dando mais credibilidade ao fato, uma
vez que as pessoas tendem a confiar mais em pessoas que já conhe-
cem, mesmo que seja através de mediações televisivas.
A estrela acaba se tornando “alimento dos sonhos” polarizando
e fixando obsessões (MORIN, 1989, p. 97). Algumas destas obsessões
tornam-se identificações práticas ou mimetismos, como imitar a forma
como se fuma um cigarro, se caminha pela rua ou como se veste (MO-
RIN, 1989, p. 97). Mais um motivo pela qual a marca Arezzo utiliza-se
das vedetes para atingir lucratividade:

Os mimetismos de associação são, a princípio, infini-


to, desde que digam respeito a objetos análogos aos
que as estrelas supostamente consomem, utilizam ou
possuem. E por isso que o impressionante mecanis-
mo da publicidade moderna, ao captar uma tendência
para fins comerciais, aumenta e multiplica (MORIN,
1989, p. 98).

Novamente, se a vedete da principal novela da principal rede de


televisão aparece de forma estonteante numa foto de revista, claramen-
te nós iremos querer aparentar com ela. Como não podemos aparentar
fisicamente, usaremos de outros artifícios, como copiar a forma com a
qual está vestida. No caso da Arezzo, comprar a bota que é usada no
anúncio, ou a bolsa, ou outro acessório.

207
Carolina Conceição e Souza

TEORIA CULTUROLÓGICA E APLICAÇÃO NA MARCA AREZZO

Morin (1962, p. 146) escreveu que a moda possui dois mo-


tores: a “necessidade de mudança em si mesmo (...) e o desejo de
originalidade pessoal por meio da afirmação dos sinais que identifi-
camos pertencentes às elites”, mas que, com a massificação da co-
municação, este fenômeno acabou se invertendo: o único tornou-se
o padrão. A mídia virou responsável pela divulgação das tendências
e modismos de uma parcela da população tida como modelo, através
de fotografias e reportagens. Claro que há uma tentativa de resistên-
cia, podendo ser representada pela alta costura que, através de seus
preços proibitivos, acaba sendo consumida apenas pelas celebrida-
des, mas que não deixa de alimentar o desejo de consumo por parte
de todos através da glamourização de suas campanhas, de suas pe-
ças, de sua marca.
A cultura de massa, assim, aproxima as pessoas ditas comuns
a esse mundo de exclusividade, de grandes marcas, estimulando o
desejo, “dando acesso aos grandes arquétipos olimpianos, procura os
prestígios da alta individualidade e da sedução. Ela permite uma iden-
tificação mimética. Ao mesmo tempo, mantém uma obsessão consumi-
dora” (MORIN, 1962, p. 148).
Analisando os anúncios anteriormente expostos, podemos notar
algumas similaridades. Todas as atrizes vestem roupas pouco chama-
tivas (ou nenhuma roupa, como no caso da figura 02), em frente a
um cenário homogêneo e limpo no sentido de falta de elementos de
destaque que desfocariam a atenção do espectador da figura que real-
mente importa: a vedete, que possui como papel chamar a atenção do
consumidor para o anúncio. Os produtos da Arezzo, ali usados pelas
estrelas, servem como apelo palpável e tangível de consumo, em res-
posta ao desejo de identificação e projeção.
Na figura 01, a atriz Alessandra Negrini, protagonista da novela
da Rede Globo Paraíso Tropical, aparece num fundo de relva, usando
uma roupa de coloração marrom que enaltece suas formas e brancura
de sua pele. As atitudes que estimulam nossa projeção é a pose na
qual a atriz se encontra: é sexy, sem ser vulgar; é bonita, sem ser irreal;
é forte, mas não a ponto de intimidar. Para responder aos nossos an-
seios, focamos nossa atenção sobre os elementos que podem permitir
esta satisfação, ou seja, o que ela está vestindo no momento. A roupa,
208
A teoria culturológica na campanha da Arezzo

por não possuir uma identificação clara, acaba passando em branco,


ficando a lembrança das sandálias de salto alto quadrada e meia-pata
caramelo e uma bolsa acobreada.
Na figura 02, a atriz Alinne Moraes, uma das atrizes principais
da novela Duas Caras, está sentada diante de um fundo branco, com
uma toalha branca enrolada em seus cabelos e nua, tendo seu cor-
po escondido por uma bolsa matelassê terracota, mesma cor de suas
sandálias e únicos elementos de cor na imagem. A significação deste
anúncio é que ela, mesmo nua, sente-se poderosa, desinibida. Ou tal-
vez ela se sinta poderosa e desinibida mesmo estando nua, porque
está usando produtos Arezzo. As duas leituras, dependentes exclusiva-
mente do contexto do espectador, passam a imagem de que, para nos
sentirmos exatamente como a vedete se sente, não precisamos andar
nuas, basta usarmos algum produto Arezzo.
A atriz Mariana Ximenes, protagonista da novela A Favorita (fi-
gura 03), também aparece sobre um fundo homogêneo, que acaba se
confundindo com o tom de sua pele e a cor de sua roupa, uma camiseta
de manga curta e um short curto que deixam à mostra suas pernas. A
vestimenta é complementada por um colar dourado, do mesmo tom
de seus cabelos, e uma sandália estilo gladiador e uma bolsa baggie,
ambas creme. Apesar de homogêneo, o cenário é composto por uma
cerca de madeira e alguns galhos de flores amarelos à esquerda, estes
elementos realçando a vedete da cena. A imagem passada pela estrela
é de contemporaneidade e estilo, seja pela pose na qual se posiciona
(sentada elegantemente na cerca de madeira), ou pela força de seu
olhar. Aqui se tem mais possibilidades de realização dos desejos: para
transparecer esses traços de personalidade, posso adquirir a bolsa, as
sandálias ou o colar da marca Arezzo.
Na figura 04, temos a atriz Juliana Paes, protagonista da novela
das 21 horas da rede Globo, Caminho das Índias. Possivelmente pela
ligação do enredo da novela com o Oriente, a pose feita para a foto
lembra um ásana, um movimento corporal de yoga. Mais uma vez te-
mos um fundo que se confunde com a cor da roupa e dos elementos de
cena, mas aqui o tom da pele da vedete assemelha-se aos produtos ali
apresentados. O cenário constitui-se de uma mesa de madeira envelhe-
cida em frente a uma parede de aspecto gasto, lembrando uma tonali-
dade cinza clara. A roupa da atriz é uma blusa cinza com detalhes num

209
Carolina Conceição e Souza

tom mais escuro e uma caçarola marrom escura, mesma cor das botas
caubói e dos dois braceletes de couro que usa, bem como dar cor de
sua pele. A forma como a vedete nos encara é quase de audácia, mais
que sensualidade, de provocação mesmo. Como uma certeza do conhe-
cimento comum do vestuário feminino, nada deixa uma mulher sentir-se
mais poderosa que botas de cano alto, ainda mais se adornadas com
elementos em couro. Assim, este anúncio vende a ideia de mulher forte
e poderosa, sem deixar de ser sexy e audaciosa.
Diferentes valores favorecem a identificação, estabelecendo um
equilíbrio entre realidade e idealização: é preciso “haver condições de
verossimilhança e de veracidade que assegurem a comunicação com
a realidade vivida” (MORIN, 1962, p. 180), mas é claro que o imagi-
nário tem de ir além das coisas básicas e cotidianas, deixar a mente
voar para situações mais fantásticas que as vividas pelos mortais. Isso
explica nossa fácil identificação com as atrizes das novelas, no caso
brasileiro: antes da fama elas eram como nós, pessoas fora do estre-
lato que, (com algumas exceções) não possuíam roupas maravilhosas
ou não eram completamente satisfeitas com seu corpo. Agora, que são
celebridades, que tem suas vidas exaustivamente expostas pela mídia,
vendem esta aura de perfeição, que nos inspira, mas que também não
nos deixa esquecer seu passado. Em suma, que é possível chegar lá
também, e se o caminho for muito longo, podemos ir suprindo algumas
de nossas necessidades emocionais consumindo os produtos ofereci-
dos pela cultura de massa.
Dessa forma, “a realidade, a multiplicidade e a eficácia de pe-
quenos mimetismos” (MORIN, 1989, p. 102) nos faz reconhecer o papel
das estrelas, principalmente na questão da individualidade, do querer
aparentar força na sociedade capitalista, cada vez mais acirrada. Mesmo
querendo ter uma personalidade, não sabemos se ela é suficiente; as-
sim, acabamos nos embasando nas escolhas de alguém que sabemos
possuir sucesso, dinheiro, fama, enfim, todos os atributos que gostaría-
mos de ter: as vedetes. Cortamos o cabelo igual a alguma atriz, porque
nela ficou bem, mesmo que não haja semelhança entre nossas formas
faciais; compro aquela bolsa porque, no anúncio, Alessandra Negrini (fi-
gura 01) parecia sexy e confiante, tudo o que gostaríamos de ser.
Entretanto, a “mitologização é atrofiada” (MORIN, 1962, p. 115):
não existem deuses. A cultura de massa é um “embrião de religião (...),

210
A teoria culturológica na campanha da Arezzo

mas falta-lhe a promessa de imortalidade (...); os valores individuais por


ela exaltados [amor, felicidade] são precários e transitórios” (MORIN,
1962, p. 114), fato indicativo de que o olimpismo moderno é mais a esté-
tica e menos a religião: como toda cultura de massa, produz heróis, mas
fundamentada em seus aspectos mais profanos, como o espetáculo.
A cultura de massa precisa de um sistema econômico organizado
e baseado no lucro para ter uma razão de ser. Como Morin escreveu, esta
cultura “é tão frágil quanto conquistadora” (MORIN, 1962, p. 188). Ela é o
centro da sociedade como vivemos hoje, mas amanhã, com alguma mu-
dança nos paradigmas econômicos, pode-se tornar inviável e desaparecer.
O fato é que, mesmo sendo a mitologização uma apologia forte do
consumo, usando artifícios como identificação e projeção dos consumi-
dores em vedetes, isto não é garantia de venda. Lipovetsky já dizia que,

Nenhum anúncio publicitário, por mais sedutor que


seja, convencerá os consumidores pós-modernos a
abdicarem da liberdade de escolha que arduamente
conquistaram. Aos demais, resta encontrar criativida-
de para fazer valer seus argumentos no concorrido
mercado de idéias (LIPOVETSKY, 2000, p. 15).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qualquer objeto da comunicação massiva mostra-se bastante


complexo de ser estudado pela riqueza de leituras que dele podem ser
feitas. Acreditamos, entretanto, que esta tarefa torna-se mais acessível
quando deixamos de analisar suas partes em separado e começa-se a
pensar num sentido de totalidade, princípio adotado pela teoria culturo-
lógica e trabalhada ao longo deste artigo.
Dentre os aspectos desta teoria que aqui abordamos, demos
destaque às ideias de cultura de massa e seu consumo, fenômeno no
qual enxergamos, baseados em Morin, ser uma válvula de escape das
preocupações cotidianas, transformando esta cultura de massa em es-
petáculo. O consumidor passa a ver o mundo imaginário produzido pelos
meios massivos como real e palpável, e passa, de certa forma, a almejar
viver dentro daquele universo.
Partindo do princípio que os consumidores consideram ideais
os valores massivos transmitidos pelos meios, nada mais lógico que

211
Carolina Conceição e Souza

o mercado fazer uso dessa preposição para alavancar suas vendas.


No caso, fazer a união de seus produtos e os atores dos produtos cul-
turais, num processo de vedetização baseado no star system tão bem
descrito por Edgar Morin.
Como já escrevemos, apelar para o emocional parece-nos a for-
ma mais provável de despertar o interesse do consumidor nesta reali-
dade de acirramento competitivo e abundância de ofertas e serviços.
Possivelmente, usar uma atriz de novela global, com seu alto grau de
exposição, como fez a Arezzo, não seja uma garantia de efetivação de
compra, mas as chances são bem maiores do que apelar para as quali-
dades racionais e tangíveis do produto.
É preciso termos em mente que não existe uma efetivação com-
pleta dos estímulos comerciais: a publicidade e a propaganda não con-
seguem por si só garantir o consumo das pessoas. Muitos fatores estão
envolvidos, interiores e exteriores ao consumidor. A cultura de massa
é onipresente no nosso cotidiano e, embora seja um dos mecanismos
mais utilizados na hora de se traçar estratégias comerciais, seu poder
está constantemente sob ameaça.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1975.

LIPOVETSKY, Gilles. Sedução, publicidade e pós-modernidade. In: Revista Fa-


mecos, Porto Alegre: PUCRS, N. 12, jun. 2000, pp 07-13.

MORIN, Edgar. As estrelas. Mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro: José


Olympio, 1989.

______. Cultura de massas no século vinte: O espírito do tempo. Rio de Ja-


neiro: Forense, 1962.

SILVA, Juremir Machado da. O pensamento contemporâneo francês sobre


a comunicação. In: HOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luiz C. et FRANÇA,
Vera Veiga (Org). Teorias da comunicação – Conceitos, escolas e tendências,
Petrópolis: Vozes, 2001.

WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa. São Paulo: Martins


Fontes, 2005.

212
A CONVERGÊNCIA DE FUNÇÕES: PUBLICIDADE E
ENTRETENIMENTO. DUAS INDÚSTRIAS, UM FIM: O GAME

Caroline Delevati Colpo


Relações Públicas. Doutoranda em Comunicação Social pela PUCRS RS/BR.
E-mail: carolcolpo@bol.com.br

RESUMO
A cultura da convergência, em que velhas e novas mídias colidem e o po-
der do consumidor é muito maior diante da sociedade da informação, é um
cenário que se configura hoje, mas que terá resultados, também, a longo
prazo. Este texto aborda alguns conceitos como entretenimento, socie-
dade da informação, convergência e também a possibilidade da conver-
gência entre entretenimento e publicidade a partir dos games como uma
alternativa mercadológica e socializadora. Para tanto, buscou-se analisar
alguns dados de pesquisas já realizadas no Brasil e no mundo para de-
monstrar que indústria do entretenimento e a publicidade estão em fase de
amplo crescimento e convergência. Desde que bem trabalhadas ambas
podem atingir resultados significativos nessa cultura da convergência.

PALAVRAS – CHAVE
Entretenimento
Publicidade
Convergência

ABSTRACT
The culture of convergence, where old and new media collide and con-
sumer power is greater on the information society, is a scenario set
today, but will have results also in the long term. This paper discusses
some concepts such as entertainment, information society, convergen-
ce and the possibility of convergence between entertainment and ad-
vertising from games as a market and socializing alternative. For this
is analyzed some information from previous studies in Brazil and the
world to describe how the convergence of the entertainment industry
and advertising are in the process of strong growth and, if well crafted,
can achieve significant results in the culture of convergence.
KEYWORDS
Entertainment
Advertising
Convergence
Caroline Delevati Colpo

Na sociedade contemporânea, as novas tecnologias da informa-


ção e da comunicação ditam novas regras de comportamentos sociais.
O indivíduo é senhor do seu tempo e do seu espaço. Na sociedade em
rede, que se consolida cada vez mais, há uma cultura da virtualidade
real, construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado
e altamente diversificado, que transforma as bases materiais da vida
entre o tempo e espaço.
O sujeito se coloca como produtor do seu próprio consumo midi-
ático. Os modelos tradicionais da indústria da propaganda e do entrete-
nimento precisam se adaptar à nova realidade imposta pelas inovações
tecnológicas, que dão maior poder aos consumidores. Para não sofre-
rem com os prejuízos graves desta nova reconfiguração social, a publi-
cidade e o entretenimento precisam passar por um exame minucioso e
uma completa reforma se quiserem garantir seu lugar no futuro. Uma vez
que esses negócios estão em declínio, nunca foi tão urgente a criação
de um novo modelo em que publicitários e profissionais do entretenimen-
to apoiem-se mutuamente para não cair.
Dentro deste cenário que vem se configurando paulatinamente,
surge a possibilidade de um modelo de convergência entre entrete-
nimento e a publicidade na busca de uma alternativa mercadológica.
Tal convergência que se faz necessária, altera a lógica de mercado
pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores
processam as informações. Esse processo também altera a relação
entre as tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e prin-
cipalmente públicos.
Para esse novo modelo, necessário nos dias atuais, os games
transformam-se numa possibilidade de convergir a indústria do entrete-
nimento à indústria da publicidade. Os games, nos seus distintos supor-
tes, têm atingido uma grande variedade de públicos que se entregam à
relação com o jogo como uma forma de entretenimento. Nessa entrega,
lazer e divertimento tornam-se um espaço em que as estratégias de pu-
blicidade podem ser assimiladas com maior facilidade pelo público de
games, causando efeitos de maior impacto. Os resultados desta conver-
gência já possuem constatações positivas e satisfatórias que podem ser
comprovados em dados de pesquisas realizadas na área.
Nesse artigo, será analisada a relação de convergência entre o
entretenimento e publicidade possibilitada pelo uso da publicidade den-

214
A convergência de funções

tro de games. Buscaram-se alguns teóricos do assunto e também alguns


dados secundários de pesquisas que serão analisados na tentativa de
demonstrar o uso eficaz desta possibilidade de convergência.

ENTRETENIMENTO E SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Na sociedade atual, uma nova e expressiva situação vem afe-


tando a vida dos indivíduos. Como consequência das conquistas tec-
nológicas, percebe-se um aumento das atividades de lazer e de en-
tretenimento que se faz presente no convívio social. Alguns autores
consideram o entretenimento um instrumento ideológico e de controle
social, visto a sua relação direta com os meios de comunicação de
massa e sua capacidade de manipular audiências. Entretanto, para
este texto trabalhar-se-á com a lógica de entretenimento de caráter
socializador e mercadológico.
Sendo assim, faz-se uso do conceito de Galindo (2003) que afir-
ma o entretenimento como de origem latina e tem como definição aqui-
lo que diverte com distração ou recreação, destinada a interessar ou a
divertir. O lazer é o conjunto de ocupações as quais o sujeito pode se
entregar a livre vontade, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se,
ou ainda para desenvolver sua informação ou formação desinteressada,
sua participação social ou a livre capacidade criadora, após se livrar das
suas obrigações profissionais e familiares.
O lazer, logo entretenimento, está relacionado a tempo e atitu-
de. Atitude porque a atividade de lazer precisa dar satisfação e também
precisa ser realizada em tempo livre sem muitas normas de conduta
social. Neste tempo livre e de satisfação, o sujeito esta propicio para
o consumo, não só de bens e serviços, mas também de informações
(GALINDO, 2003).
Estas informações, ligadas ou não ao entretenimento, podem
estar mediadas pelos meios tecnológicos, sendo entendida como so-
ciedade da informação. Para este trabalho a sociedade de informação
não poderá ser compreendida, na sua totalidade, como a sociedade do
conhecimento, como definida para alguns pensadores, pois a informa-
ção aqui será tratada de forma mercadológica, socializadora, efêmera,
sucinta e principalmente mediada pela tecnologia e nem sempre será um
instrumento de transformação social e cultural.

215
Caroline Delevati Colpo

Para a compreensão do entretenimento e sua relação com a in-


formação pode-se abordar a concepção de sociedade da informação
usada por Abdul Waheed Khan (subdiretor-geral da UNESCO para Co-
municação e Informação), citada por Burch (2005, p.12), que escreve:

A Sociedade da Informação é a pedra angular das


sociedades do conhecimento. O conceito de “socie-
dade da informação”, a meu ver, está relacionado à
idéia da “inovação tecnológica”, enquanto o conceito
de “sociedades do conhecimento” inclui uma dimen-
são de transformação social, cultural, econômica,
política e institucional, assim como uma perspectiva
mais pluralista e de desenvolvimento.

Neste sentido, a informação absorvida pelos grupos sociais, em


seu tempo livre e de lazer, por intermédio do entretenimento e prin-
cipalmente mediado por meios tecnológicos, propicia maior captação
de conteúdo, mas não necessariamente desenvolve uma dimensão de
transformação social, cultural e econômica relevante. É neste momen-
to de captação de conteúdo que a publicidade se vale do entretenimen-
to. É nessa convergência de funções que os melhores resultados mer-
cadológicos e também socializadores, tanto para publicidade quanto
para indústria do entretenimento, são obtidos.

CONVERGÊNCIA

Com a revolução digital, muitos presumiam que as novas mí-


dias tecnológicas viriam a substituir as antigas, como jornal impresso,
revista e VTs de 30 segundos em TV aberta. Entretanto, com isto flo-
resce o paradigma da convergência que presume que novas e antigas
mídias irão interagir de forma cada vez mais complexas. Ou seja, a
convergência que de alguma forma já acontecia, agora precisa ocor-
rer interagindo também com o meio digital. Mas, para que aconteça,
é necessário que os meios de comunicação tradicionais passem a
interagir, se desenvolver e se envolver com as funções e as lógicas
de mercados de outros meios de comunicação. Não é mais possível
centralizar nas mãos dos detentores da propriedade os nichos de pro-
cesso de informação e entretenimento.

216
A convergência de funções

Por convergência, Jenkins (2008, p. 27) entende o fluxo de conte-


údos através de múltiplos suportes midiáticos, a cooperação entre múl-
tiplos mercados midiáticos e o comportamento migratório dos públicos
nos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca
das experiências de entretenimento e de informação que desejam. A pa-
lavra convergência consegue definir transformações tecnológicas, mer-
cadológicas, culturais e sociais.
Jenkins (2008) sugere que o cinema não matou o teatro, a televi-
são não eliminou o rádio. Cada antigo meio foi obrigado a conviver com
os meios emergentes. Os antigos não estão sendo substituidos, apenas
precisam saber a melhor forma de conviver com os novos meios que
surgem, para que possam preservar seu público. A convergência é um
processo e não um fim. Ela altera a lógica pela qual a indústria midiática
opera e pela qual os consumidores processam informações e entreteni-
mento. O consumidor quer ver seus e-mails ou sua novela enquanto esta
em casa, no trânsito, na rua, no aeroporto, enfim, ter acesso à informa-
ção em vários suportes de mídia. O processo envolve uma transforma-
ção tanto na forma de produzir quanto na forma de consumir os meios de
comunicação, com suas informações e entretenimento.
Esse não é um processo que vem das mídias para os consumi-
dores. Ao contrário: vem dos consumidores para os suportes midiáti-
cos. Assim, as empresas midiáticas estão aprendendo uma forma de
acelerar os fluxos de conteúdo pelos diferentes canais de distribuição
para aumentar as oportunidades de manter e atrair seus públicos, seus
lucros e seus mercados.
Para Jenkins (2008) a convergência exige que as empresas mi-
diáticas repensem antigas suposições sobre o que significa consumir
mídias, suposições que moldam tanto decisões de programação de
informação, de entretenimento quanto de publicidade. Se os antigos
consumidores eram tidos como passivos, os novos são ativos. Se os
antigos consumidores eram previsíveis e ficavam onde mandavam que
ficassem, os novos consumidores são migratórios, demonstrando uma
declinante lealdade às redes e aos meios de comunicação. Se os an-
tigos consumidores eram indivíduos isolados, os novos consumidores
são conectados socialmente.
Assim, as empresas midiáticas estão tentando “expandir” mer-
cados potenciais por meio de movimento de conteúdo por diferentes

217
Caroline Delevati Colpo

sistemas de distribuição, com “sinergia” para se referir às oportunida-


des econômicas que a expansão possibilita e com “franquia” para se
referir ao emprenho coordenado em imprimir uma marca e um mercado
a conteúdos ficcionais e de entretenimento. A combinação dessas três
palavras – expandir, sinergia e franquia – define o que é convergência
(JENKINS, 2008 p. 45).
Nesse cenário, novos mecanismos comerciais estão sendo cria-
dos para manter a indústria da publicidade saudável e contribuindo na
produção do processo de convergência. Novos mecanismos de me-
diações estão sendo implantados para ajudar os anunciantes a atin-
gir suas audiências. Novas práticas narrativas estão sendo adotadas
para entreter as audiências que agora encontram-se fragmentada. Es-
tas práticas narrativas podem ser consideradas como a convergência
de funções: publicidade com entretenimento. Para o consumidor que
converge é necessário tornar imprecisa a fronteira entre conteúdos de
entretenimento e mensagens publicitárias.
No mundo das convergências de mídias toda a história importan-
te é contada, toda a marca é vendida e todo o consumidor é cortejado
por multiplos suportes de mídia. Aqui a circulação de conteúdos, seja in-
formativo, entretenimento ou publicitário, depende da participação ativa
dos consumidores (DONATON, 2007).
Entretanto, a convergência não deve ser compreendida como
simplesmente processos tecnológicos, mas acima de tudo como pro-
cessos de modificação cultural, à medida que os consumidores são
incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meios
a conteúdos midiáticos dispersos (JENKINS, 2008, p. 27). A conver-
gência precisa atender às novas consequências sociais criadas pela
sociedade em rede e pela sociedade da informação que refaz as for-
mas do convívio e interação social. O entretenimento e a publicidade
necessitam convergir, cada vez mais, para manter sua estabilidade
mercadológica e socializadora a que se propõe desde as suas origens.

A CONVERGÊNCIA ENTRE A PUBLICIDADE E O ENTRETENIMENTO:


OS GAMES

Faz-se importante a união das empresas de entretenimento com


as empresas de publicidade e propaganda, a fim de desenvolver ideias
criativas e inovadoras diante das imensas mudanças que vêm ocor-
218
A convergência de funções

rendo nos modelos tradicionais de negócios de ambas as indústrias.


Acredita-se que a convergência entre publicidade e entretenimento,
não pode ser apenas uma inserção de produtos em filmes e em pro-
gramas televisivos, realizados pelo medo de que o comercial de 30
segundos se torne obsoleto perante as novas tecnologias de gravação
digital, mas sim a criação e desenvolvimento de estratégias inteligentes
com o foco no consumidor conectado socialmente.
A chave para entender a mudança é transferência de poder: de
quem faz e distribui os produtos de entretenimento, para quem os con-
some. Em outras palavras, como já foi referido anteriormente, o poder
esta migrando dos estúdios de cinema, das redes de televisão, das
gravadoras e das agências de propaganda para o sujeito no sofá com
o controle remoto, ou que está conectado a rede. A grande mudan-
ça ocorre em relação a quem possui o poder. Antes, quem possuía o
poder era quem produzia. Hoje, é de quem consome. O consumidor
ganhou poder e liberdade. (DONATON, 2007, p. 25)
Para compreender todas as implicações desta transferência de
poder é importante compreender o modelo tradicional de mídia. O mo-
delo tradicional de entretenimento e publicidade sempre foi de intrusão
e invasivo. Durante muito tempo, a TV foi um meio de comunicação
com uma relação passiva junto ao consumidor. Os anunciantes e os
canais de TV decidiam o que o telespectador deveria assistir e as men-
sagens que deveria consumir. Entretanto, agora é preciso convidar o
consumidor a participar e a interagir, e para isso meios de comunicação
e anunciantes precisam descobrir e aprender o que este consumidor
quer, o que ele vê e, principalmente, o que ele pretende fazer no seu
convívio social.
Sendo assim, publicidade e entretenimento buscam a compreen-
são desse consumidor e, principalmente, a interação com ele. Com isto,
acabam na busca do desenvolvimento da convergência de suas funções.
Para que a convergência aconteça, é necessário o entendimen-
to que, na indústria de entretenimento, o desafio é a cobrança pelo
conteúdo, em um cenário em que a pirataria é cada vez maior. Na pu-
blicidade, o desafio é como comunicar em um mundo no qual o poder
não está mais na mão da indústria. O consumidor tem cada vez mais
opções, mais controle, mais informação para negociar e decidir. Tem
cada vez mais poder. O consumidor quer mais escolhas e mais conve-

219
Caroline Delevati Colpo

niência, e as novas tecnologias podem proporcionar estas maiores e


melhores opções. Na lógica da concorrência de mercado ganha quem
souber oferecê-las.
Sendo assim, a prática da inserção de produtos em meios midiá-
ticos, ou seja, uma forma de convergência, não é nova; muitos pintores
renascentistas pintavam em seus quadros objetos de grande valor para
a sociedade, mas hoje precisa-se descobrir maneiras de fazer essa con-
vergência de forma bem mais criativa, estratégica e inteligente, passan-
do credibilidade e também conquistando os consumidores. Os games se
tornam ótimos meios para fazer publicidade, levando em consideração o
seu público. As inserções de produtos e serviços em videogames, como
foi o caso do jogo The Sims, juntam a mensagem publicitária com o en-
tretenimento (DONATON, 2007).
Nesse contexto, pesquisas mostram que, em todo o mundo, as
mídias tradicionais como a televisão e jornais vêm perdendo populari-
dade entre consumidores de 15 a 34 anos. Por outro lado, esse mesmo
público passa cada vez mais tempo online. Porém, enquanto a idade
média de um fã de videogame há alguns anos estava na casa dos 15
anos, a dos jogos de console e online é 29 anos. (SANT´LAGO, 2005).
Por isso, se as novas tecnologias têm um papel cada vez mais impor-
tante dentro do mix de comunicação, os games têm espaço garantido
em um futuro muito breve.
Os games apareceram nos Estados Unidos por volta de 1962
no Massachussets Institute of Technology (MIT), que desenvolveu o
Space Wars, e passaram por algumas fases de evolução: 1ª fase - de
1965 a 1975, esteve ligado à marca Atari de Nolan Bushnell; 2ª fase
- de 1975 a 1985, a Warner compra a Atari e os japoneses entram
no mercado com Space Invaders; 3ª fase - 1985 a 1995, período de
grande esplendor dos games com o aparecimento das gigantes japo-
nesas Sega e Nintendo; 4ª fase - de 1995 a 2000, surge a multimídia
interativa e a realidade virtual; 5ª fase - de 2000 até agora, é marca-
da pela reestruturação na composição da indústria de games com
perda de importância das empresas tradicionais, esta fase ainda é
marcada pela aparição de novos gigantes como a Sony e a Microsoft
(BUSTAMENTE, 2003).
Foram concebidos verdadeiros suportes multimídia com múlti-
plas possibilidades de interatividade e formas de uso. O jogo online foi

220
A convergência de funções

uma verdadeira revolução e se transformou em uma verdadeira forma


de estratégia mercadológica e socializadora, tanto para o entreteni-
mento quanto para a publicidade.
Os games, independente da sua plataforma, atualmente, po-
dem ser considerados um negócio mais lucrativo até que o cinema.
Segundo Sant´lago (2005), o jogo Halo 2 para X–Box, lançado pela
Microsoft no final de 2004, lucrou 125 milhões de dólares no primeiro
dia. Apenas para se ter uma ideia da diferença, o filme recordista de
bilheteria em um único dia nos Estados Unidos é Spider Man 2, com
40.4 milhões de dólares.
Essa atividade de entretenimento, diretamente ligada à publici-
dade, movimenta cifras enormes em todo o mundo. A Real Networks
movimentou US$ 400 milhões no ano passado e prevê elevação de
negócios de 150%. A matriz da empresa prevê que até 2011 a publici-
dade em games vai movimentar nos Estados Unidos e Europa cerca
de US$ 5,5 bilhões.
No Brasil, a publicidade em games, ou passatempos online, ul-
trapassou os US$ 800 milhões no ano de 2008. Segundo Marcelo Cou-
tinho, diretor–executivo do IBOPE Inteligência, a categoria jogos online
já responde por 4% do tempo total de uso domiciliar de internet no Bra-
sil, contra 7,2% nos EUA e 3,8% na Espanha. Isso faz com que grandes
anunciantes como a Coca-Cola, Unilever, L’Oréal, Ambev, Fiat, Claro,
Intel e General Motors se utilizem das ações de entretenimento, espe-
cificamente os games, para veicular mensagens publicitárias.
Uma vez que os games têm públicos diversificados, que vem
ampliando a sua margem de idade, seu perfil cultural, seu gênero e
seu local de jogo, torna-se importante pensar que o uso da publicida-
de nos games não é apenas um meio de colocar o logotipo de uma
marca em um produto acessório do jogo, mas um meio de expandir
a experiência narrativa dos jogadores com estas marcas no mundo
virtual. Duas pesquisas divulgadas nos Estados Unidos definiram me-
lhor esta realidade que já se observava há tempos: a evolução da
publicidade dentro de games e a transformação das estratégias de
comunicação para atingir o público de games em geral, criam narrati-
vas de realidade no mundo virtual.
A primeira das pesquisas, um estudo realizado pela Activision
em parceria com a Nielsen Entertainment, concluiu que os jogadores

221
Caroline Delevati Colpo

de games gostam de ver publicidade inserida em seus jogos favori-


tos. Além disso, os entrevistados afirmaram que sua opinião sobre os
produtos anunciados melhorou devido à publicidade, algo que jamais
fora observado em nenhuma outra mídia.
Uma empresa que percebeu a oportunidade e a está explo-
rando muito bem é o site de mascotes virtuais Neopets. É o segun-
do site mais acessado e utilizado da internet, contabiliza mais de 2
bilhões de pageviews por mês, e conta com um grande processo de
interação entre site e o usuário. O Neopets transformou o seu site
em uma estratégia mercadológica e socializadora que rendeu tanto
financeiramente quanto para o aumento de audiência, porque conse-
guiu explorar com criatividade e interação as novas modalidades de
convergência da publicidade com o entretenimento. Entre as ativida-
des do mundo virtual da Neopets estão diversos jogos patrocinados
por empresas, de fabricantes de cereais matinais ao McDonald’s, que
querem interagir com o público, na maioria crianças e adolescentes,
que compõem 80% do público do site.
A outra pesquisa mencionada, realizada pela Forrester Rese-
arch, afirma que 90% dos jovens americanos entre 12 e 21 anos têm
videogames, e dois terços deles usam outros equipamentos de entre-
tenimento digital. E conclui que, para falar com esse público, a primeira
opção dos publicitários deve ser anunciar em games ou sites a eles
dedicados (visitados por 80% dos jovens pesquisados).
Entretanto, a relação estreita entre publicidade e entretenimen-
to, a partir dos games, não é desprovida de riscos, já que a credibili-
dade dos anunciantes está diretamente ligada a credibilidade de onde
se esta anunciando, ou seja, do game. Nesse caso, pode-se consi-
derar que os consumidores, em especial os jovens, de determinado
game (produto de entretenimento) são também, os consumidores dos
produtos anunciandos.
Sendo assim, o consumidor participa de uma comunidade de
consumo que eleva sua consciência em relação ao consumo de um
produto. A voz coletiva fala mais alto que a voz individual, e quando
um produto anunciando ou o próprio produto de entretenimento (game)
desagrada a um consumidor, desagrada também a comunidade de
consumo que se criou em torno de determinado produto, sejam de
entretenimento quanto de consumo direto. O grau de interação entre

222
A convergência de funções

os consumidores pode revelar o grau de satisfação ou insatisfação da


convergência entre publicidade e entretenimento.
Alguns destes dados ajudam a visualizar, entretanto não con-
cluir, que a convergência entre as indústrias do entretenimento e da
publicidade, através dos games, tem uma possibilidade de um franco
crescimento. Basta se ajustar às expectativas de participação dos con-
sumidores, que tornam-se cada vez mais ativos e entusiasmados.
De qualquer modo, esta convergência entre entretenimento e
publicidade nos games ainda é muito recente, é possível que evolua
em outras modalidades e se transfigure, tornando a experiência ainda
mais interessante e interativa. Há várias previsões diferentes de como
o mercado está se comportando e como se comportará nos próximos
anos, mas, o que se pode afirmar é que os resultados são positivos
tanto para o entretenimento que se mantém com as verbas publicitá-
rias, como para a publicidade que obtém uma forma mais eficaz, via
entretenimento, de atingir seus consumidores.
O Brasil já apresenta resultados significativos com a produ-
ção games de sucesso. Mas é importante ressaltar que outros estu-
dos devem ser realizados, para levantar mais informações sobre os
resultados obtidos na convergência, assim como uma subsequente
avaliação de seus resultados, para que os investimentos tornam-se
ainda maiores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O entretenimento e a publicidade são duas indústrias de peso


que incluem atividades fascinantes como a produção de filmes, progra-
mas de TV, música e a própria publicidade. São indústrias que estão
enfrentando a mudança causada pelas novas tecnologias da comuni-
cação e da informação, o que significa confrontar os perigos de defen-
der e aferrar-se a velhas práticas que já não tem mais tanta serventia.
Trata-se do desmantelamento e da reinvenção dos modelos de negó-
cios tradicionais, que podem resultar em novas alianças e novas rivali-
dades no mundo da convergência.
Para chegar ao estágio de sobrevivência mútua é necessário
que os setores envolvidos superem a desconfiança, os objetivos di-
vergentes e principalmente os conflitos criativos, colaborando para a

223
Caroline Delevati Colpo

formação de alianças que beneficiem os dois lados e, principalmente,


beneficiem o consumidor que irá ditar as novas regras de sobrevivên-
cia destas indústrias.
Mas, por enquanto, o processo de convergência ainda tem um
longo caminho a percorrer, se quiser entender a complexidade dos
investimentos emocionais do público em produtos e entretenimento.
E o público tem um longo caminho a percorrer, se quiser explorar os
pontos de acesso que as ações coletivas e críticas podem oferecer no
mundo da convergência.
Em um plano mais elementar, está é uma parte das histórias da
convergência das antigas mídias com as novas tecnologias da comuni-
cação e da informação que sacudiram e transformaram, e transforma-
rão ainda mais, o mundo corporativo da publicidade e do entretenimen-
to, e os inovadores que respeitarem a realidade de que o controle está
nas mãos dos consumidores e os convidarem a interagir da maneira
que desejarem com as marcas vão sobreviver no mercado.

REFERÊNCIAS

BURCH, Sally. Sociedade da informação / Sociedade do conhecimento.


2005. Disponível em <http://vecam.org/article519.html>. Acesso em 23 de
Jun. 2009.

BUSTAMENTE, Henrique. Hacia um nuevo sistema mundial de co-


municación: las industrias culturales em la era digital. Barcelona:
Gedisa, 2003.

DONATON, Scott. Publicidade + entretenimento: por que esta duas indústrias


precisam se unir para garantir a sobrevivência mútua. São Paulo: Cultrix, 2007.

GALINDO, D. Entretenimento e publicidade: presente ou futuro? São Paulo.


Artigo científico, Universidade Metodista de São Paulo, 2003.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

SANT´LAGO, Marcelo. Games e publicidade on line. 2005. Disponível em


<http://webinsider.uol.com.br/index.php/2005/09/09/games-e-a-publicidade-on-
line>. Acesso em 23 de Jun. 2009.

224
A convergência de funções

SITES:

Disponível em: <www.forumpcs.com.br/coluna>. Acesso em 23 de Jun. 2009.

Disponível em: <www.blogit.com.br/?p=308>. Acesso em 23 de Jun. 2009.

225
A HIPÓTESE DE AGENDA-SETTING NO
COMERCIAL DA BRAHMA

Caren Adriana Machado de Mello

Jornalista. Mestre em Comunicação Social pela PUCRS/RS/BR.


E-mail: carenmm@gmail.com

RESUMO

Uma hipótese é sempre uma experiência. O agendamento ou agenda-


setting, dentro das Teorias da Comunicação, estuda fatos ocorridos e o
seu impacto na opinião pública. Em abril de 2009, comercial criado para
a cerveja Brahma e estrelado pelo atleta Ronaldo Nazário causou po-
lêmica na mídia, ultrapassando as páginas esportivas e alcançando as
editorias de Geral, Comportamento e até de Gastronomia. O debate, isto
é, a divisão de opiniões, preencheu conversas de bar, perdurou por dias
na mídia e acabou por obrigar a agência a produzir uma nova peça pu-
blicitária. Discutiremos aqui se, afinal, a polêmica foi criada por influência
ou não dos meios de comunicação. A polêmica teria havido se o público
não tivesse ficado exposto ao tema?

PALAVRAS – CHAVE
Futebol
Ronaldo
Brahma

ABSTRACT
A hypothesis is always an experience. The agenda-setting, in the Commu-
nication Theories, studies facts and how they impact the public. Last April,
a TV commercial made for Brahma beer starring soccer player Ronaldo
Nazário created controversy in the media, transcending the sports pages
into news editorials, lifestyle and even food sections. The debate, fueled by
diverging opinions, became a water cooler topic which lasted for days and
prompted the creation of a new ad. This paper will discuss if the contro-
versy was or not created or inflated by the media. Would there have been
controversy if the public had not been overexposed to the topic?

KEYWORDS
Soccer
Ronaldo
Brahma
A hipótese de agenda-setting no comercial da Brahma

Autores das mais variadas origens e escolas têm-se debruçado a


estudar a hipótese de agendamento da mídia, ou agenda-setting. A difi-
culdade, ao começar este artigo, teve relação com a precária bibliografia
acerca do tema. A escassa produção fica ainda mais evidente caso seja
feito um comparativo com as demais teorias da comunicação, cujas pra-
teleiras oferecem incontáveis possibilidades de consulta. Os próprios – e
poucos – autores encontrados acerca do assunto também ressaltaram
a dificuldade de consulta. O presente ensaio buscará analisar, à luz das
teorias de agendamento, um caso específico, o comercial criado para a
cerveja Brahma e estrelado pelo atleta Ronaldo Nazário, que causou po-
lêmica ao unir, em uma mesma peça publicitária, conceitos tão adversos
como o de saúde desportiva e álcool.
A base dos estudos sobre agenda-setting partiu do consagrado
professor Maxwell McCombs, que em 1968 fez uma análise de agen-
damento durante a campanha eleitoral norte-americana, em um pe-
queno vilarejo chamado Chapell Hill, na Carolina do Norte. Sem uma
conclusão sobre o processo que ali ocorreu, suas dúvidas persistiram
até o ano de 1972, quando a ele somou-se Donald L. Shaw e ambos
produziram, na localidade de Charllotte Ville, um acompanhamento do
comportamento do eleitorado. Com essas novas experiências, foi pos-
sível um refinamento daqueles conceitos surgidos lá atrás.
Outra dúvida inicial, ao produzir esse artigo, foi a amplitude da
teoria escolhida. Talvez o que explique é o fato de não se estar diante
de uma teoria da comunicação propriamente dita, mas, sim, de uma
hipótese. Uma hipótese é sempre uma experiência, o que dá liberdade
de uma análise factual dentro dos limites de um experimento.
Ao caracterizar a agenda-setting como hipótese, dá-se à ela a
possibilidade de comunicar-se com todas as demais teorias da comu-
nicação. Isto porque já está consagrado que, ao se enquadrar determi-
nado caso em uma teoria, se exclui as demais.

Uma teoria (...) é um paradigma fechado, um modo


acabado e, neste sentido, infenso a complementações
ou conjugações, pela qual traduzimos uma determina-
da realidade segundo certo modelo. Uma hipótese, ao
contrário, é um sistema aberto, sempre inacabado, ad-
verso ao conceito de erro característico de uma teoria
(HOHLFELDT et al., 2001, p.189).

227
Caren Adriana Machado de Mello

ÁLCOOL E ESPORTE EM PAUTA

Uma hipótese é sempre uma experiência. Esse experimento,


para entender um pouco da hipótese de agenda-setting, tomará como
exemplo um fato ocorrido em abril do ano de 2009, quando um comer-
cial criado pela agência de publicidade África para a cerveja Brahma
e estrelado pelo jogador de futebol Ronaldo Nazário, lançou enorme
polêmica na mídia esportiva, preencheu as conversas de bares e corre-
dores de escritórios, indo parar no Conselho de Autorregulamentação
Publicitária (Conar).
Ronaldo Nazário, atual e incensado atleta do Sport Club Co-
rinthians, de São Paulo, é retratado dentro de um campo de futebol
driblando vários obstáculos, como dirigentes esportivos (os chamados
cartolas), jornalistas de diversos veículos de comunicação, médicos e
juízes, enquanto um narrador diz “Ronaldo encarou quem não acredita-
va mais nele”. Na cena seguinte, em close, o jogador reflete: “Tudo que
eu conquistei na vida foi com muito suor, como todo guerreiro. Mas eu
sempre dei a volta por cima. Não é fácil. Mas o que é suado, tem mais
sabor”, diz ele ao mostrar um copo de cerveja Brahma. Ao erguer o
copo, como quem mostra um troféu, a imagem faz um paralelo do suor
despendido na conquista dos títulos e na luta diária para a consolida-
ção da carreira com o suor que escorre do copo gelado. Por fim, bate
no peito e diz: “Eu sou brahmeiro!”1
Com figura emblemática não só do esporte nacional, mas tam-
bém como imagem que se insere na identidade nacional do brasileiro,
não precisou mais do que poucos dias para que a peça publicitária
virasse pauta em todas as rodas de conversa de bares, nos ambientes
de trabalho e na própria mídia. Como disse Mauricio Stycer, colunista
de esportes do site Último segundo2, em comentário postado na data
de 15 de abril, “causou comoção” o filme de apenas 30 segundos.
A polêmica deu-se das mais diversas formas, saindo dos veí-
culos de comunicação para as mesas de bares e almoços familiares.
As críticas que se sucederam, durante semanas, debruçaram-se so-
bre quais seriam os verdadeiros obstáculos na carreira de Ronaldo,

1 
O comercial original pode ser acessado pelo endereço http://www.youtube.com/watch?v=gdQjJC
fC45c&feature=player_embedded
2 
Disponível em <http://colunistas.ig.com.br/mauriciostycer/2009/04/15/publicidade-deforma-ronal-
do> Último acesso em 20.04.2010.

228
A hipótese de agenda-setting no comercial da Brahma

qual a capacidade de o jogador voltar a atuar em alto nível e qual a


aceitação dos cartolas à volta de Ronaldo aos campos. Porém, o fato
que mais mobilizou telespectadores, fãs, profissionais da área médica
e até aqueles cujos conhecimentos sobre futebol chega apenas ao
número de jogadores para cada lado do campo, foi o fato da conve-
niência de um atleta atuar em comercial de bebida alcoólica. Afinal,
tratava-se ali do testemunho de um atleta que, após passar por um
exaustivo tratamento médico e de fisioterapia, recomendava uma be-
bida alcoólica, ou como disseram seus detratores mais sanguinários,
um droga, embora lícita.
José Roberto Torero, em artigo para a Folha de São Paulo, reprodu-
zido pela polêmica blogueira Bárbara Gancia3 , em 14 de abril, argumenta
que a infelicidade da criação prejudicou ambos os lados envolvidos.

Para a cerveja, porque eu, vendo o comercial, penso:


‘Poxa, cerveja engorda pra caramba!’. Para o jogador,
porque mostra que ele não é um atleta sério. É um
cara que bebe mesmo ainda estando longe da sua
melhor forma. (...) A publicidade brasileira, que já foi
das melhores do mundo, vem piorando nos últimos
anos. Mas, agora, se superou. Acho que, pelo menos,
para desencargo de consciência, esta nova propagan-
da deveria vir com um daqueles avisos no final, algo
do tipo: ‘O Ministério da Saúde adverte: Cerveja dá
barriga e faz você confundir mulher com similares’.

Apenas no blog de Bárbara Gancia, foram feitos 26 comentários de


leitores, mobilizados com a questão em pauta: deve ou não deve um atleta
do quilate de Ronaldo ligar sua imagem a bebidas alcoólicas.
Nesse caso, evidencia-se um fenômeno que são os blogs como es-
paços de manifestações de toda ordem. De páginas de futebol a endereços
de Gastronomia4, os sites revelaram-se espaços de opiniões e pensatas.
Acerca desses comentários, um ponto que vale registrar é que, como expli-
ca Mauro Wolf (2001), nas sociedades industriais de capitalismo desenvol-
vido, a mídia passa a ser um espaço de interatividade social, em função de
ou através da mediação simbólica dos meios de comunicação de massa.
3 
Disponível em <http://blogs.band.com.br/barbaragancia/index.php/2009/04/14/torero-o-brahmei-
ro-e-eu-no-banheiro/>. Último acesso em 20.04.2010.
4 
<http://blog.estadao.com.br/blog/bob/?title=bola_fora_ou_pensata_etilico_futebolisti&more=1&c=
1&tb=1&pb=1>

229
Caren Adriana Machado de Mello

Os indivíduos irão selecionar e hierarquizar assuntos ou te-


mas, não por sua própria avaliação, mas sim, segundo critérios defi-
nidos, direta ou indiretamente, sutil ou de forma mais evidente, pelos
meios de comunicação.
Embora Ronaldo já tenha feito outros comerciais, nesse ficou
mais evidente a relação direta entre futebol e álcool. Entretanto, a po-
lêmica pode ter sido ainda maior pelo fato de ter ocorrido logo após
o anúncio de um fato relevante para o futebol que, inevitavelmente,
remeteria ao caso de Ronaldo. O jogador de futebol Adriano, que tam-
bém teria tido problemas com a bebida, estava retirando-se dos grama-
dos após várias situações polêmicas, envolvendo baixo rendimento e
brigas e agressões em público.
Após a controvérsia, ainda no mês de abril, a AmBev, dona da
marca, decidiu interromper a veiculação da peça e, subsequentemen-
te, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar)
suspendeu o comercial, depois de ser acionado pela Nova Schin. De
acordo com a concorrente, a propaganda fere uma série de regras do
código de ética do Conar. A cervejaria alega que Ronaldo é ídolo das
crianças e um atleta do futebol, que é esporte olímpico. Por essas ra-
zões, ele não poderia associar sua imagem a bebidas alcoólicas. Além
disso, argumenta que a propaganda dá a ideia de que o sucesso de
Ronaldo na carreira se deve ao fato de ele consumir a cerveja rival.
Em 15 de maio, o Ministério Público Federal (MPF), em São
José dos Campos, ajuizou ação civil pública, com pedido de condena-
ção por danos morais coletivos, contra a Ambev e a África Publicidade,
alegando que, segundo o Código de Autorregulamentação Publicitária,
o filme desrespeita o princípio da responsabilidade social e induz as
pessoas, em especial os mais jovens, a consumir a bebida alcoólica.
Em paralelo, outro descumprimento foi o fato de que, no final do fil-
me, Ronaldo oferece ao telespectador um copo de cerveja. “Sugerir
a ingestão do produto o que, no caso, é muito mais grave, pois quem
sugere é simplesmente o jogador Ronaldo, cuja imagem à população é
altamente positiva”, afirma o autor da ação.
Durante uma sabatina realizada pelo jornal Folha de São Paulo5,
em 15 de maio, o próprio jogador tentou sair em sua defesa, argumen-

5 
Disponível em <http://mais.uol.com.br/view/220667 e http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-
noticias/2009/05/15/ult59u198237.jhtm>. Último acesso em 10.06.2009.

230
A hipótese de agenda-setting no comercial da Brahma

tando que “a Champions League é patrocinada por uma marca de cer-


veja”. Não adiantou, pois, pelo que se viu nos comentários publicados
em diversos sites, existe uma grande diferença entre um atleta empres-
tar a sua credibilidade para vender um produto e um evento esportivo
ter o apoio de um produto.
Diante do imbróglio, não restou à África alternativa além de alterar
o comercial. Uma nova peça foi produzida, dessa vez com novo texto.
Ao invés de dizer que é “brahmeiro”, o jogador diz que é “guerreiro”.
Também foi cortada a cena em que Ronaldo segura um copo de cerveja6.

RELATADO O FATO, A ANÁLISE

O fato, sua polêmica e a grande repercussão comprovada em vá-


rios veículos de comunicação evidenciam a hipótese de agenda-setting,
não só pelo agendamento em si, mas também por ser esta uma teoria
que tem relação íntima com a publicidade.
A polêmica gerada deu-se a médio e longo prazo, numa espécie
de avalanche de informações, ou seja, o comercial produziu um “efeito
enciclopédia”. O público teve contato com a publicidade e, logo em se-
guida, um processo de acúmulo de informações advindas de tempos em
tempos através da mídia.
Houve um agendamento porque foi despertada a relevância do
tema e, ao mesmo tempo, certa dúvida sobre qual o posicionamento
correto. A polêmica alimentada deu-se justamente porque não houve
unanimidade na avaliação. Parte do público, de início, ficou chocada
com a ligação entre atleta e álcool. Outra parte, no entanto, criticou
os críticos, considerando de extremo radicalismo a suspeita de que o
comercial poderia ou denegrir a imagem do atleta, ou, ainda pior, ser
uma má influência a crianças e adolescentes. Esses sustentaram que
a posição partira de críticos do atleta, não da sua atuação na peça pu-
blicitária, ou seja, caso fosse um jogador que reunisse maior “simpatia”,
a reação seria outra.
A evidente divisão de opiniões também pode ser conferida no
site AdNews – Movido pela Notícia7, que promoveu, em 27 de abril,
6 
Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=JqdS7hZnfjI&feature=related>. Último aces-
so em 20.4.2010.
7 
Site Adnews. Qual é a sua opinião? Disponível em <http://www.adnews.com.br/lerrss.php?id=87359>.

231
Caren Adriana Machado de Mello

uma enquete para saber a opinião dos leitores. Para a pergunta “Qual
sua opinião sobre um comercial que relaciona a imagem do jogador
Ronaldo a uma marca de cerveja?”, 47.1% responderam ser contra a
veiculação; 39.1% não viram problemas; e 13.8% votaram que depen-
de de como a comparação é feita pela publicidade.
É possível que toda essa polêmica passasse despercebida, em-
bora tenha ficado evidente o alto grau de exposição ao tema a que
o público ficou submetido. Ou seja, jornais, TVs, sites e todos os de-
mais meios de informação é que acionaram no público o interesse pelo
tema. Pena (2005, p.144-145) lembra que a influência dos mass media
é admitida, sem discussão, na medida em que ajudam a “estruturar a
imagem da realidade social, a longo prazo, a organizar novos elemen-
tos dessa mesma imagem, a formar opiniões e crenças novas”:

As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos


seus próprios conhecimentos aquilo que os mass
media incluem ou excluem do seu próprio conteúdo.
Além disso, o público tende a atribuir àquilo que esse
conteúdo inclui uma importância que reflecte de per-
to a ênfase atribuída pelos mass media aos aconte-
cimentos, aos problemas, às pessoas (SHAW apud
WOLF, 2001, p.144).

Há que se ressaltar que um dos preceitos da hipótese da agenda-


setting é que os meios não persuadem, mas, nas comunicações inter-
pessoais, as pessoas discutem prioritariamente sobre temas abordados
pelos meios de comunicação (BARROS FILHO, 1996). Isto é, os mass
media decidem o que deve ou não ser discutido, como é o caso de se
é cabível ou não um atleta ser garoto-propaganda de uma cerveja. Em
nossa pesquisa, confirmamos que os meios de comunicação não per-
suadem o receptor, mas, sim, oferecem uma gama de informações para
chamá-lo para dentro das discussões:

Os mass media, descrevendo e precisando a re-


alidade exterior, apresentam ao público uma lista
daquilo sobre que é necessário ter uma opinião e
discutir. O pressuposto fundamental do agenda-set-
ting é que a compreensão que as pessoas têm de

Último acesso em 20.04.2010.

232
A hipótese de agenda-setting no comercial da Brahma

grande parte da realidade social lhes é fornecida,


por empréstimo, pelos mass media (SHAW, apud
WOLF, 2001, p.62).

A questão é, fica claro nesse processo que os indivíduos não


indicaram, selecionaram ou hierarquizaram os temas por sua própria
avaliação, mas segundo o que foi definido, de forma mais sutil ou mais
direta, pelos meios de comunicação, que determinaram sobre o que eles
deveriam debater. Esse agendamento também pode vir a partir dos cír-
culos sociais e de amizade que, em geral, cobram dos seus integrantes
o conhecimento do fato polêmico.

A leitura de uma manchete numa banca de jornal


dá ao receptor a segurança de ter o que dizer, de
poder interagir, de pertencer a um sistema comum
de consumo. Essa canalização permite ao profes-
sor de física nuclear conversar com um conhecido
ator de teatro as novas peripécias de Romário, o
exagero de viagens do presidente da República ou
a violência do furacão em Miami (BARROS FILHO,
1996, p.28).

De Fleur (1993) vai além: “The press may not be successful


much of the time in telling people what to think, but it is stunningly
successful in telling its readers what to think about”8. Com base nisso,
pode-se suscitar uma espécie de manipulação, uma vez que, na reu-
nião de pauta, os responsáveis decidiram que esse seria um fato “me-
diatizável”, em detrimento de outras pautas, que acabaram na obscu-
ridade. Já Clóvis de Barros Filho cita exemplo semelhante, também
do meio desportivo, para exemplificar a hipótese: o caso do goleiro
Zetti, cujo exame antidoping nas eliminatórias da Copa do Mundo, na
Bolívia, sinalizou a presença de cocaína. O fato preencheu a agenda
pública, tornando-se tema de discussão ordinária durante um café da
manhã em família.
A atuação de Ronaldo acabou ocupando outras editorias. Da
página de esportes, como de costume, o nome do atleta pulou para
editorias de Geral e Comportamento, além de fazer parte das páginas

8 
Em tradução livre: “A imprensa pode não ser bem-sucedida muitas vezes em dizer às pessoas
o que pensar, mas é incrivelmente bem sucedida em dizer aos seus leitores sobre o que pensar”.

233
Caren Adriana Machado de Mello

de Opinião e, até mesmo de Gatronomia, como no caso do blog de


cervejas de O Estado de São Paulo. Esse fato caracteriza outro efeito
da agenda-setting: a onipresença.
A presença, ou melhor, onipresença na mídia permaneceu um de-
terminado período de tempo, o que indica outro efeito: o framing, como
explica Hohlfeldt (2001, p.201):

Quadro de informações que se forma ao longo de um


determinado período de tempo da pesquisa e que nos
permite a interpretação contextualizada do aconteci-
mento; ele cobre todo o período de levantamento de
dados das duas ou mais agendas (isto é, a agenda da
mídia e a agenda dos receptores, por exemplo).

Outros dois efeitos elencados na hipótese de agenda-setting


enquadram-se perfeitamente no caso em estudo. Podemos citar, como
decorrência da peça publicitária, a saliência do tema, isto é, a peça
despertou, na percepção do grande público, a importância da discus-
são sobre o consumo de álcool por um atleta e, sobretudo, o que pode
gerar entre os adolescentes o fato de um ícone jovem e do esporte dar
seu testemunho pessoal de consumo da bebida. Além desse, a focali-
zação foi outro efeito percebido, uma vez que a notícia da campanha
publicitária e o próprio tema sobre o consumo de álcool mantiveram-se
nos veículos durante cerca de um mês.

CONDISDERAÇÕES FINAIS

O comercial de Ronaldo Nazário foi apenas um de um universo


de fatos que poderiam ser narrados em estudos de agenda-setting. Po-
de-se citar o caso da modelo Lílian Ramos que, após aparecer ao lado
do então presidente Itamar Franco, sem roupas íntimas, foi eleita pelos
veículos para estampar a capa de jornais e revistas e, consequentemen-
te, pautou as discussões por todos os cantos do Brasil.
Outro exemplo foi o fato ocorrido a partir de Porto Alegre. A jor-
nalista e blogueira Maristela Bairros postou em sua página9 um texto
repudiando o excesso de álcool em uma das festas do reality show Big

9 
<http://clinicadapalavra.blogspot.com>

234
A hipótese de agenda-setting no comercial da Brahma

Brother Brasil 8, exibido no verão de 2008 pela Rede Globo. Comen-


tários favoráveis e uma chuva de outros agressivos tomaram conta do
endereço eletrônico, obrigando a jornalista a retirar o endereço do ar
por determinado período de tempo. O fato chamou atenção do jornal
de circulação nacional Folha de São Paulo que, ao fazer matéria sobre
a gaúcha, reacendendo a polêmica que teve espaço no Rio Grande do
Sul, também recebeu uma enxurrada de comentários. Foi então que o
Ministério Público atentou para o fato e pediu para a Rede Globo a re-
classificação etária do reality show. Tanto quanto no caso do comercial
de Ronaldo, o agendamento acarretou uma ação do poder público.
Enfim, esses novos exemplos foram citados para concluir que
“esta hipótese é intuitiva e de fácil compreensão. Os exemplos poderiam
se multiplicar ao infinito”, segundo palavras de Barros Filho (1996, p.29).
Por todos esses, fica cada vez mais clara que agenda-setting é
uma hipótese, e, por ser assim, requer a necessidade de uma estra-
tégia teórica de pesquisa que substitua o empirismo táctico até agora
seguido (HOHLFELDT et al., 2001).

REFERÊNCIAS

BARROS FILHO, Clóvis. Agenda setting e educação. In: Comunicação e edu-


cação. Revista do Curso de Gestão de Processos Comunicacionais. São Paulo,
v.2, n.5 (jan/abr. 1996).

De FLEUR, Melvin L & BALL-ROCEACH, Sadra. Teorias de Comunicação de


massa. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1993.’

HOHLFELDT, Antônio et al. Teorias da comunicação – Conceitos, escolas e


tendências. Petrópolis, Vozes. 2001.

PENA, Felipe. Teoria do Jornalismo. São Paulo: Contexto, 2005.

WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Lisboa, Presença. 2001.

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