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A versio publicada dois anos depois pelo bispo do Porto frei ‘Marcos de Lisboa, na Parte Segunda das Chronicas da Ordem dos rales Menores (Lisboa: Joo Blavio, 1562), nao se afasta muito des- te relato: «L.evava huma vez a Rainha Sancta muytas moedas no regaco pera dar aos pobres, c encontrando a el Rey Ihe perguntou {que levava, ella disse, levo aquy rosas. E rosas vio el Rey nam sendo tempo dellas. E com este milagre se pinta.a sancta Rainha em algumas partes.»® A descrigio de frei Marcos de Lisboa parece ter influenciado diretamente 0 pequeno painel do Museu Nacional de Machado de Castro (ig. 6) que, segundo a tradigio, pertenceu ao professor da Universidade de Coimbra Martinho Azpicuelta Navarro (1492- 1586). Recorde-se que uma sobrinha deste lente de cénone, Ana Azpicuelta, monja do convento cisterciense de Celas, era dada como tendo sido objeto de cura milagrosa de uma paralisia por intercessdo da Rainha Santa, De facto, a pequena pintura coloca no fundo de paisagem dois temas — o encontro do rei eda rainh: ¢ Santa Isabel lavando os pés & leprosa —, descritos sequencis mente nas Chronicasdos Frades Menores, 0 que, somado & represen- tagdo do milagre das rosas,em primeiro plano, leva pensar numa ligacdo direta entre este texto ¢ a pequena imagem devocional. ‘A descricio do milagre das rosas na crénica de frei Marcos da ‘mostras de ter sido um acrescento de tltima hora ao texto, pois aparece enquadrada num capitulo que deveria tratar «da vida & milagres da sancta Raynha no estado de vitiva», logo onde, obviamente, nao deveria estar presente o seu esposo. Por outro lado, coloca o milagre na sequéncia da tomada do habito de cla- 82 pela vtiva, conjugacio iconogrifica que, como fé vimos, teve grande fortuna, Os aspetos comuns nas duas descrigSes io varios, desde re- ferirem uma tradigio do milagre em obras pintadas, o que tal- vex indique que algumas imagens de Santa Isabel da Hungria ‘eram comummente tomadas como representando a mulher de D. Dinis, até a mengo quase decalcada da extemporaneidade das flotes aparecidas no regago de Santa Isabel: «sendo.o tempo 8 Fig Autor desconhecido Roinha Sento abe! .1540-1550 Gieo sabre madeira de carvalho Coimbra, Museu Nacional de Machado de Castro, MNMC 11268 © DGPC— ADF, jose Pessoa 9 muy fora dellas», na Lenda, ou «nam sendo tempo delas», nas Clvonicas. Estas similitudes fazem pensar que ambos os textos tém uma origem comum. Mariagrazia Russo (2007, pp. 42.€ segs.) propés, como autor dessa fonte, o cronista manue! de Galvio, a quem atribui a biografia de Santa Isab cédice manuscrito Coronicas das muy altos Reys de Portugal. data préxima da beatificagao da rainha (1516). Nao é mi accitar essa paternidade, dado que, por esses anos, Duarte de fo (14467-1517) se viu envolvido na embaixada enviada 20 Preste Joao, viagem onde viria a morrer, em 9 de junho de 1517, naithade Camaro, no mar Arabico. De qualquer forma, maisin- teressante do que aautoriaé a associagio da inclusio do episédi do milagre dasrosas numa biografia que surge junto das crénicas reais, mostrando que a sua criagao se fez entre os intelectuais da cesfera do Venturoso, no contexto, por certo, das manobras para ‘conseguir a beatificacio da rainha, que D. Miguel da Silva viria a obter de Ledo X. A perdida tabua de Coimbra seria decerto, também, uma encomenda régia, e a genealogia iluminada en- comendada pelo infante D. Fernando, filho de D. Manuel, situa- -se igualmente dentro da esfera mais restrita da corte. O surto de renovagio do culto, por volta de meados do século xv1, teve, ‘uma vez mais, a direta intervengio régia, depois de D. Joao 1D. Catarina terem visitado o ttimulo da rainha, em 150. Nos anos seguintes,atos como a composiga0 do oficio da Rainha Santa por André de Resend 2 criagio da confraria dedicada santa, aplicagao de indulgéncia a quem visitasse o seu tiimulo, conce- dida pelo niincio papal Pompeo Zambecari (1553), bem como a expansio do culto a todo o territério nacional deram corpo aessa disposicio régia para 0 incremento do culto. Ao mesmo tempo, nas antifonas, Santa Isabel comecava a aparecer como protetora dos portugueses das maos dos seus inimi centuando o caricter pat culto, que continuaré com os esforgos de D. Sebas tes i canonizagio de Isabel de Aragao. 80 Quando, por volta de 1630, Zurbaran pintou a sua versio inha & sua disposi¢io uma abundante litera- tura hagtogrifice e devocional da propria, sobrevinda antes depois da sua canonizacio por Urbano VIII em 1625, em que milagre das rosas era parte importante. Desde logo surgira nos Flos Sanctorum de Alonso de Villegas (Barcelona, 1595) do padre Pedro de Ribadeneira (editado em Madrid, em 1599), mas também no poema Discurso sobre a Vida e a Morte de Santa Isabel 10 de Castelo Branco (Lisboa, 1596), na 1605), de que ji falémos, e na biografia de frei Juan ‘Historia y vida de Santa Isabel Reyna de Portugal y Infanta de Aragén», inserta na Histdra de ls Santosy Personas [.] dela tercera Orden del Glorioso Padre San Francisco Saragoca, 1613) Por ocasiio da canonizagio, para além da descrigao das grandes artistico da responsal ini f. Lorizzo, 2003), que se ps ‘na obra de Michelangelo Torrigio, Le Sacre Cerimonie atte nlla ima Canonizzazione di Sacra Elisabetta Regina del Porto 1625), safram mais trés obras dedicadas a Santa Isabs Vita dt. Isabella del Portogallo, composta por Giacomo Ful (Roma, 1625), versio espanhola traduzida por Juan Antonio de Vera y Zuniga, Vida de Santa Isabel de Portugal (Roma, 1625), € a Vida y Milagros de Santa Isabel, de Dr. Juan de Torres, editada em Madrid nesse mesmo ano. No préprio ano a que se atribui a pin- tura (1635), 0s deputados de Aragio encomendavam a Francisco de Rojas Zorrila a comédia Santa Isabel, Reina de Portugal, estreada perante a rainha (Vicent-Cassey, 2007). Embora se desconhega sea pintura de Zurbarén foi o ymente executada para a familia real, parece claro que o pintor de Fuente de Cantos, com a construgao da imagem da jovem Isabel de Portugal, tio elegantemente vestida e ornamentada, quis sublinhar 0 seu ca- ricter profano.c dulico e que, a0 fazé-lo, aenquadrava num gosto cortesdo que dava expressio ao interesse régio pela figura de Santa Isabel, cuja canonizacao Filipe IV patrocinara e que era, & verdadeiramente, ancestral de sangue dos monarcas, paraalém de modelo de conduta politica e espiritual da monarquia, Solicitada quer pelo reino de Aragio, quer por Portugal, a canonizagio de D Isabel representava um fator de unidade na diversa monarquia hispanica, o que as festas de celebraga0 realizadas em Coimbra, Saragoca ¢ Madrid ndo deixaram de acentuar: «portugueses y castellanos espafioles somos todos», dizia-se no sermio destas festas, numa bem explicita referéncia (Paravicino y Arteaga, citado por Vicent-Cassey, 2007, p. 62). A Rainha Santa, figura pacificadora, interventiva e piedosa, representava a um tempo ‘uma matriz politica e moral, exemplo de vida virtuosa e de ca- acter que podia ser educativamente tomado como modelo da educagio feminina na corte dos Austria (Vicent-Cassey, 2007). ‘A imagem de Zurbarin adequava-se, como nenhuma outra, a ‘esse caricter exemplar. 82 NoTAS 1+ Nome pelo qual évulgarmente conhecido 0 manuscrito Nota de Fundaga0 do Convenco da Madre de Des de Lisbo das Religizas Descajas da Primera Rega fe Nossa Madre Santa Clore. erigida a todos 0s mas ‘anno de 1639 tencontranda-se uma das suas tres versGes no Museu Nacional de Arte Antiga 2 Bibllotece da Ajuda, BA, S4XiIh40,n2 22 apropésito da iconogra imagem de Santa isabel relizada om ‘a besifieacao «A primeira imagem desta rainha, exposta sobre im a Aescriptapor PERPINIANO [Petrus Joannes Paerpinianus} no seulvr ‘De vita. Elirabethe. Fo colocada no altar da capella sepuleral em tempo Gee ‘Manu. logo que eiao Breve de heatifcacio. Trajandovesteseaes, edecavéa ‘a cabeca tisha no repago gums rosas.umas brancas, outras vermelhas = 44 Lu Res Santos (1966) inseeveu opaine nas zobras originals do presumivel Eduardo, o Portugués» — um pintor documentado na ofici «@, em 1508, admitido na guilds dos pintores de Antueria. No entanto, so esas as inieas referénciasbiogrficas 2 pintor Eduwart Portugaleis, manifestamente insuficients para se Ihe poder atribuir com seguranca uma série de ob1as,no- meadamente as pinturas do Museu Nacional de Arte Antiga 30 estlo de Metsys Provenientes da Madre de Deus (ef, Carvalho, 2009). 5 British Library Leaves from the Genealogy of the Royal Houses of Spin and Portugel (he Portuguese Genealogy), 1530-75381 gv, Add. Ms. 12531 6 Liv8, cap. XX. 7 iblioteca Nacional de Portugal. Res. Cod. 378 83

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