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A HERANÇA DE CANTOR

E A HIPÓTESE DO CONTÍNUO
por
Augusto J. Franco de Oliveira
ajfrancoliveira@gmail.com

Sumário

1. Concepção cantoriana (intuitiva) dos conjuntos.

2. Ordinais e cardinais.

3. O problema do contínuo de Cantor. Hipótese do Contínuo (HC).

4. Das antinomias à axiomática de Zermelo-Fraenkel.

5. Questões de consistência e independência de HC relativamente à teoria axiomática dos


conjuntos: resultados de Gödel e Cohen.

6. Relevância de HC face a concepções filosóficas (platonismo, formalismo) nos fundamentos.

7. Tentativas de justificação/refutação de HC, com destaque para o argumento probabilístico


de Freiling.

1 Concepção cantoriana (intuitiva) dos conjuntos


Praticamente toda a matemática actual desenvolve-se no quadro de uma “grande” teoria ou
sistema fundacional, a teoria (axiomática) dos conjuntos. Isto quer dizer que:

1. A linguagem da teoria dos conjuntos é como que uma “linguagem universal” (sonho de
Leibniz) para a matemática, isto é, para as disciplinas matemáticas as mais diversas: os
conceitos, as definições, os axiomas, teoremas e demonstrações dessas disciplinas podem-se
exprimir na linguagem da teoria dos conjuntos;

2. Os objectos matemáticos (números, conjuntos de números, relações, funções ou aplicações,


estruturas algébricas, espaços geométricos, topológicos, de medida, etc.) podem ser repre-
sentados como conjuntos especiais;

3. Os princípios básicos e as demonstrações nas diferentes disciplinas matemáticas podem ser


justificados, em última análise, com base nos princípios básicos (axiomas) da teoria dos
conjuntos.

1
A teoria axiomática dos conjuntos (§4) é uma teoria aberta, no sentido seguinte: novos con-
ceitos, não exprimíveis nos conceitos utilizados actualmente, e novos axiomas não conhecidos
actualmente poderão um dia vir a enriquecer o ideário e os princípios básicos da teoria tal como
é praticada hoje em dia. Pode até acontecer que a própria teoria dos conjuntos venha um dia
a ceder o lugar privilegiado que hoje ocupa (vem ocupando, desde finais do século XIX) a uma
outra teoria melhor adaptada aos progressos e exigências da matemática entretanto verificados,
ou a alguma sua extensão.
Quando e como nasceu a concepção das matemáticas “conjuntistas” acima descrita?
Como todas as disciplinas matemáticas, a teoria dos conjuntos tem uma História. Um dos
primeiros marcos dessa História ocorre sensivelmente há pouco mais de 130 anos atrás com a
publicação em 1872 de um trabalho de Richard Dedekind sobre a continuidade e os números
irracionais. Neste trabalho é feita, pela primeira vez, uma construção do corpo ordenado dos
números reais, R. Datam da mesma altura os primeiros trabalhos de Georg Cantor sobre questões
de numerabilidade e não-numerabilidade de conjuntos de números, que hão-de originar uns quinze
anos mais tarde a noção abstracta de conjunto e as teorias dos ordinais e cardinais (números
“transfinitos”), as primeiras incursões numa verdadeira “matemática do infinito”.
A concepção cantoriana é muito geral ou abrangente, não fazendo qualquer distinção entre
os significados dos termos “conjunto”, “classe”, “colecção”, “aglomerado”, etc. Isto constata-se
logo na própria “definição” de Cantor do conceito em questão:

“Um conjunto é uma colecção M, concebida num todo, de objectos m bem dis-
tintos da nossa intuição ou pensamento. Os objectos m que constituem o conjunto
M são chamados os elementos ou membros de M.”

Qualquer colecção é um conjunto, para Cantor, desde que intuída (daí chamar-se à teoria de
Cantor teoria intuitiva ou ingénua dos conjuntos) ou pensada num acto colectivizante, isto é,
concebida como um todo, uma totalidade acabada ou completada. Os conjuntos, para Cantor,
não são entidades do mundo real, mas sim criações do pensamento humano, o qual pensamento
tem a capacidade de pensar (ou intuir) diversos objectos, de natureza qualquer, e de os agrupar
numa nova entidade bem determinada, o conjunto (cantoriano) de todos eles. Não interessa a
natureza dos objectos, nem a ordem pela qual possam ser apresentados, nem qualquer outra
qualidade para poderem ser constitutivos dos conjuntos. Isto quer dizer, por outro lado, que
um conjunto formado, como “um todo”, uma totalidade completada, é por sua vez um objecto
que pode ser membro de outros conjuntos, e assim temos conjuntos de conjuntos, conjuntos de
conjuntos de conjuntos,... É também por esta razão que falamos da “generosidade”da concepção
cantoriana.
Georg Cantor nasceu em S. Petersburgo e foi criado num ambiente muito religioso, o que
explica os seus conhecimentos de teologia e inspira muitos aspectos da sua obra, mas também
explica uma certa rigidez em lidar com convicções alheias, o que lhe trouxe não poucos dissa-
bores e contrariedades na esfera académica. Viveu e trabalhou durante quase toda a sua vida
profissional em Halle, em cuja Universidade leccionou, mas sempre ambicionou mudar-se para
um centro universitário mais importante, como Berlim, no que foi contrariado por opositores das
suas originais e revolucionárias ideias matemáticas, como Leopoldo Kronecker (1823-1891).
Cantor foi o primeiro a definir os números reais como classes de equivalência de sucessões de
Cauchy de números racionais e, juntamente com Richard Dedekind (1831-1916) e Karl Weier-
strass (1815-1897), estabeleceu os fundamentos da Análise Matemática moderna, levando a bom
termo o processo iniciado décadas antes com Cauchy e Bolzano. O seu primeiro trabalho na
teoria “pura” dos conjuntos foi publicado em 1874, onde prova que o conjunto dos números reais
algébricos é infinito numerável, e que o conjunto dos números reais é não-numerável. Em 1878

2
Figura 1: Georg Cantor (1845-1918)

introduz o conceito de equipotência 1 de conjuntos e prova que Rn (n ≥ 2) é equipotente a R;


na conclusão deste trabalho formula a famosa Hipótese do Contínuo (HC), de que falaremos
adiante. Mas a resolução desta questão não estava ao seu alcance. Frustrado pelo insucesso
nesta questão, e também pelas críticas e incompreensões que o seu trabalho enfrentava, Cantor
sofre um colapso nervoso em 1884, do qual nunca chega a recuperar totalmente, mas continua a
trabalhar arduamente.
David Hilbert (1862-1943) reconhece a importância dos trabalhos de Cantor e escreve “Ninguém
nos expulsará do Paraíso que Cantor criou para nós.” (Hilbert 2003: 257) Na famosa comuni-
cação ao Congresso de Matemáticos em Paris (1900), em que são apresentados 23 problemas em
aberto, centrais para o desenvolvimento das matemáticas no século XX, o problema do contínuo
de Cantor (ver adiante) ocupa o lugar de primazia (Browder, 1976).

2 Ordinais e cardinais
Juntamos aqui algumas ideias e resultados sobre os ordinais e os cardinais, devidos essencialmente
a Cantor, mas com uma roupagem mais moderna, a de Von Neumann. Embora o contexto formal
apropriado para esta exposição seja o axiomático (§4), apresentamos isto aqui informalmente, e
apenas um pouco mais do que é indispensável para o seguimento. O leitor não familiarizado com
algumas noções utilizadas nesta secção pode encontrar as definições pertinentes no §4.
Os ordinais (à Von Neumann) são definidos de tal modo que cada ordinal é o conjunto dos
ordinais mais pequenos. SPrecisando, um conjunto X diz-se transitivo sse ∀x (x ∈ X ⇒ x ⊆ X), ou
seja, equivalentemente, X ⊆ X, ou X ⊆ PX. Um conjunto X é um ordinal sse X é transitivo e
bem-ordenado (estritamente) por ∈. Na presença do axioma de regularidade (§4) esta definição
é equivalente à seguinte: X é um ordinal sse X é transitivo e todo o membro de X é transitivo. É
usual denotar ordinais por α, β, γ, ... . A classe dos ordinais denota-se ORD. ∀α φ(α) abrevia
∀x (x é um ordinal ⇒ φ(x)), e ∃α φ(α) abrevia ∃x (x é um ordinal ∧φ(x)). Define-se uma
ordenação nos ordinais pondo
α < β ⇔ α ∈ β,
e α ≤ β ⇔ α < β ∨ α = β. Alguns factos que resultam facilmente das definições anteriores:
1 Diz-se que os conjuntos A e B são equipotentes, ou equinumerosos se e só se existe uma bijecção entre A e B,

e escreve-se A ∼ B. Note que ∼ é reflexiva, simétrica e transitiva.

3
(1) 0 = ∅ é um ordinal.
(2) Todo o membro de um ordinal é um ordinal.
(3) ∀α, β (α ⊂ β ⇒ α ∈ β).
(4) ∀α, β (α ≤ β ∨ β ≤ α).
(5) < tem as propriedades das ordens totais em ORD, isto é, é irreflexiva, transitiva e conexa.
(6) ∀α (α = {β : β < α}).
O ordinal α∪{α} denota-se α+1 e chama-se o sucessor de α. Um ordinal da forma β+1 diz-se
um ordinal sucessor. Um ordinal α que não é sucessor diz-se um ordinal limite; considera-se 0
como ordinal limite. Note-se que se α é um ordinal limite então ∀β (β < α ⇒ β + 1 < α). Um
ordinal α diz-se um ordinal finito sse todo o ordinal β tal que 0 < β ≤ α é sucessor, isto é,
β = γ + 1 para algum ordinal γ, e diz-se um ordinal infinito sse não é um ordinal finito. A
existência de ordinais limites diferentes de 0 pode ser demonstrada usando o axioma do infinito.
Em todo o caso, a seguir a 0 podemos definir 1 = 0 ∪ {0}, 2 = 1 ∪ {1} = {0, 1}, 3 = {0, 1, 2} e assim
por diante. O menor ordinal infinito denota-se ω, que é também o menor ordinal infinito e o
conjunto dos ordinais finitos. Ora, os ordinais finitos são precisamente os números naturais (os
quais, todavia, podem ser definidos e estudados independentemente da teoria dos ordinais – ver
adiante), de modo que ω = N = {0, 1, 2, ...}, onde ∅ = 0 ∈ 1 ∈ 2 ∈ 3 ∈ ... .
Na teoria dos ordinais são particularmente importantes o método de indução transfinita (cuja
restrição aos números naturais corresponde ao método de indução completa, equivalente ao talvez
mais conhecido método de indução matemática) e o método de definição por recorrência trans-
finita. Cantor definiu e estudou operações aritméticas nos ordinais. Não nos interessa aqui como
tal foi feito, mas interessa ficar com uma ideia da “lista” crescente dos ordinais:

0 < 1 < 2 < . . . < ω < ω + 1 < ω + 2 < ... < ω + ω = ω2 <
. ..
ω
ω2 + 1 < . . . < ω3 < . . . < ωω = ω2 < ... < ωω < . . . < ωω = ε0 < ...

Há um facto importante da teoria dos conjuntos que será utilizado mais adiante (§7). Os
números ordinais são ordenados e, de facto, bem-ordenados.2 Os conjuntos bem-ordenados têm
a propriedade muito importante de que quaisquer dois são isomorfos ou um deles é isomorfo a
um segmento inicial do outro. Um segmento inicial de um conjunto ordenado é simplesmente
um subconjunto próprio que, com cada elemento, contém todos os que o precedem. Se S é um
segmento inicial de um conjunto bem-ordenado W, então há um um a ∈ W tal que S = {x : x < a}.
Outro teorema importante afirma: Nenhum conjunto bem-ordenado é isomorfo a um dos seus
segmentos iniciais.
Quando passamos aos ordinais, a coisa simplifica-se um pouco, pois um segmento inicial de
um ordinal α é simplesmente um ordinal β < α (ou: β ∈ α). Assim, como conjunto bem-
ordenado por ∈, o número 3 = {0, 1, 2} é um segmento inicial do número ordinal 4 (e também de
5, e 6, e 7,...), mas como é um ordinal, é na realidade elemento de 4, como já sabíamos. Para
qualquer número n, o conjunto {0, 1, 2, ..., n} é um segmento inicial de ω, o número ordinal que
é o conjunto de todos os números naturais.
Os números cardinais são definidos em termos de ordinais e da noção de equipotência de
conjuntos. No caso finito, identificam-se simplesmente uns com os outros. Assim, o ordinal 17
é a mesma coisa que o cardinal 17. No caso infinito, as coisas são um pouco mais complicadas.
2 As propriedades de ordem aqui envolvidas são: 1) Irreflexividade: (∀x)x 6< x; 2) Transitividade: ∀xyz(x <

y ∧ y < z ⇒ x < z); 3) Conectividade: ∀xy(x 6= y ⇒ x < y ∨ y < x). Uma relação < com estas três propriedades
diz-se uma ordem total (ou ordem linear), e um conjunto A onde está definida uma tal relação diz-se um conjunto
total ou linearmente ordenado por ela. As expressões “x < y” e “y > x” são sinónimas, e “x ≤ y” abrevia
“x < y ∨ x = y”. A ordem total < em A é uma boa-ordem sse todo o subconjunto não vazio de A tem primeiro
elemento com respeito a <. No caso de ORD, acontece um pouco mais: toda a classe não vazia de ordinais tem
primeiro elemento.

4
Há muitos ordinais que são todos do mesmo “tamanho”, no sentido de serem equipotentes. Por
exemplo, ω, ω+1, ω+2, ..., ω2, ω2+1, ω2+2, ..., ω3, ω3+1, ..., ω2 , ω2 +1, ... são equipotentes
entre si. Ilustrando num caso particular, observe-se que a função f : ω → ω+1 = ω∪{ω} definida
por f(0) = ω, f(n + 1) = n para todo n ∈ ω \ {0} é bijectiva.
Todavia, há uma definição bastante natural de cardinal no caso infinito que, aliás, cobre todos
os casos. Pode-se demonstrar que todo o conjunto bem-ordenado é isomorfo a um único ordinal,
e daqui resulta que os ordinais são os representantes canónicos das boas-ordens. Utilizando
o Axioma da Escolha pode-se demonstrar que todo o conjunto é bem-ordenável e, portanto,
equipotente a um ordinal. O menor ordinal α equipotente a X é chamado o cardinal de X, e
denota-se |X|. Assim: um número cardinal é o menor ordinal de uma classe constituída por todos
os ordinais equipotentes a um ordinal ou a um conjunto dado. Resulta da definição que |X| = |Y|
sse X ∼ Y.
Cantor definiu operações cardinais e estabeleceu as suas propriedades, mas não teremos opor-
tunidade de as utilizar aqui, excepto a exponenciação – ver adiante. Os números naturais tam-
bém podem ser caracterizados como os cardinais finitos (é finito, por definição, todo o cardinal
κ tal que κ 6= κ + 1), que são idênticos aos ordinais finitos.
Interessa ter uma visão pictórica da “enumeração” transfinita dos cardinais, especialmente
dos infinitos, os alefes ℵα (α ∈ ORD).

0 < 1 < 2 < ... < ℵ0 < ℵ1 < ℵ2 < ... < ℵω < ℵω +1 < ...,

onde ℵ0 = ω = N = |N|, ℵ1 é o primeiro cardinal infinito maior do que ℵ0 , etc., e ≤, < entre
cardinais são definidas por: |X| ≤ |Y| sse existe uma injecção de X em Y, e |X| < |Y| sse |X| ≤ |Y|
mas |X| 6= |Y|. Na enumeração acima, os índices dos alefes são (todos) os ordinais!
Visto que qualquer segmento inicial de um ordinal será um ordinal menor que o ordinal
dado e visto que um número cardinal é identificado com o menor ordinal que lhe é equipotente,
segue que o cardinal de um segmento inicial deve ser menor que o cardinal do conjunto com que
começamos. Em alguns casos isto é óbvio: se começamos com o conjunto ω e escolhemos um
segmento inicial, então teremos escolhido um conjunto só com um número finito de elementos.
É óbvio neste exemplo, mas acontece em general. Portanto, se começássemos com um conjunto
ordenado de cardinal ℵ1 e escolhêssemos um segmento inicial, o cardinal do segmento inicial
seria contável, isto é, seria ℵ0 ou finito. Usaremos este facto no §7.

3 O problema do contínuo de Cantor. Hipótese do Con-


tínuo (HC)
Os números naturais, também conhecidos por números de contagem, constituem o conjunto
ω = N = {0, 1, 2, ...}. O “tamanho” deste conjunto, o seu cardinal, é infinito: |N| = ℵ0 . E quanto
a outros conjuntos infinitos, como o conjunto dos números pares, P? Quão grande é ele? Existe
uma bijecção entre P e N. Por exemplo: 0 ↔ 0, 1 ↔ 2, 2 ↔ 4, 3 ↔ 6, 4 ↔ 8, ..., n ↔ 2n,...
. Assim, |P| = |N|. Acontece que o conjunto dos números inteiros, Z, e o conjunto dos números
racionais, Q, também têm o mesmo cardinal. Então, temos:

|P| = |N| = |Z| = |Q| = ℵ0 .

Podemos ser tentados a pensar que todos os conjuntos infinitos têm o mesmo tamanho, mas este
não é o caso, por um famoso resultado. O conjunto dos números reais, R, também conhecido por
contínuo real, o conjunto dos pontos de uma linha recta, são maiores. Isto foi demonstrado por
Cantor e constitui seguramente um dos maiores resultados matemáticos de todos os tempos.

5
Para provar que |R| > ℵ0 , necessitamos mostrar duas coisas. Primeiro, necessitamos mostrar
que |R| é pelo menos tão grande quanto |N|. Isto é fácil, visto que N é (pode-se identificar com)
um subconjunto próprio de R. Então deve haver pelo menos tantos membros de R como de N.
A segunda coisa a mostrar é que não há nenhuma aplicação injectiva de N sobre R. A prova
de Cantor utiliza o apropriadamente chamado argumento de diagonalização. Assim, não pode
haver nenhuma bijecção entre R e N, de modo que |R| deve ser maior do que |N|. Apresentamos
a versão mais geral deste resultado:
Teorema de Cantor: Para qualquer conjunto S, o cardinal do conjunto potência [ou
conjunto das partes] de S, P(S) (o conjunto de todos os subconjuntos de S), é maior do que o
cardinal de S. Em símbolos, |S| < |P(S)|.
Prova. Há uma aplicação natural injectiva de S em P(S), a saber, aquela que a cada x faz
corresponder o conjunto singular, {x}. Isto mostra que o conjunto potência de S é pelo menos
tão grande, e possivelmente maior do que S. O próximo passo é mostrar que eles não podem ter
ser equipotentes, para o que basta provar que não existe nenhuma aplicação de S sobre P(S), o
que faremos por redução ao absurdo.
Suponhamos que existe uma função F de S sobre P(S) e escrevamos Fx em vez de F(x), para
cada x ∈ S. Seja A = {x ∈ S : x ∈/ Fx }. Por exemplo, se Fa = {a}, então a ∈ Fa , logo a ∈
/ A. Por
outro lado, se Fb = {c}, então b ∈
/ Fb , logo b ∈ A.
Agora consideremos o próprio conjunto A. É claro que A ⊆ S, logo A ∈ P(S). Visto que F é
injectiva e aplica S sobre P(S), deve haver algum elemento x0 de S tal que Fx 0 = A. Pergunta:
x0 é elemento de A? Se é, então, pela definição de A, não é. Mas se não é, então pela definição
de A, é. Simbolicamente, x0 ∈ A ⇔ x0 ∈ / A. Isto é uma contradição. Portanto, a suposição de
que F aplicava S sobre P(S) é falsa.¤
Os conjuntos potência são maiores, mas quanto maiores? No caso finito sabemos a resposta
exacta: se |X| = n, então |P(X)| = 2n . No caso geral é útil ter o teorema de Cantor em mente,
mas podemos reverter ao caso especial dos números reais quando consideramos a pergunta. R
é um conjunto infinito de cardinal maior do que o de N. Mas quão grande é ele? Visto que
cada número real é [possui] uma expansão decimal infinita, o conjunto dos números reais é um
conjunto infinito de objectos infinitos,3 donde resulta que o seu cardinal é 2ℵ 0 . Em geral, o
cardinal do conjunto potência de S é 2|S| .
O problema do contínuo de Cantor pode ser assim formulado: saber se existe algum cardinal
entre o cardinal de N (designado por ℵ0 ) e o cardinal do conjunto R dos números reais (designado
por c, ou 2ℵ 0 ). Cantor conjecturou que não, e esta conjectura ficou conhecida por Hipótese do
Contínuo (HC). De uma maneira um pouco prosaica, o problema do contínuo é o problema de
saber:
Quantos pontos tem uma recta (euclidiana)?
De uma maneira um pouco mais técnica, sabe-se que ℵ0 < c = 2ℵ 0 , de modo que terá de
ser ℵ1 ≤ c. A Hipótese do Contíınuo implica que c seja o mais pequeno possível, ou seja, que
c = ℵ1 . A Hipótese Generalizada do Contínuo (HGC) é a conjectura de que, para todo α,

ℵα+1 = 2ℵ α .

O teorema de Cantor estabelece uma hierarquia de conjuntos com cardinalidades infinitas:



ℵ0 < 2ℵ 0 < 22 0 < ... , que podem, todavia, não esgotar todas as cardinalidades infinitas. A
3 Obviamente os números não são infinitos, apenas as suas representações decimais. Cada dízima infinita pode-

se identificar como uma sucessão dos algarismos 0, 1, ..., 9, na base decimal, ou simplesmente de 0’s e 1’s, no
sistema binário, e daqui até concluir que o cardinal de R é 2 ℵ 0 vai um passo, pois este é precisamente o cardinal
do conjunto das sucessões de 0’s e 1’s. (Para a referida identificação ser possível há que ter em consideração que
os números racionais possuem sempre duas representações (por exemplo, 1/2 = 0, 5000... = 0, 4999...) e escolher
sistematicamente uma delas).

6
questão interessante com que ele se confrontou diz respeito à posição de |R| = 2ℵ 0 , a potência
do contínuo, na hierarquia dos cardinais infinitos:

ℵ0 < ℵ1 < ℵ2 < ℵ3 < ... < ℵω < ℵω +1 < ...

Tem-se 2ℵ 0 = ℵ1 ? Ou é igual a ℵ2 ? Ou talvez ℵ3 ? A Hipótese do Contínuo (HC) de Cantor é


a afirmação de que |R| = ℵ1 , ou equivalentemente, que 2ℵ 0 = ℵ1 .
Se HC é falsa, então |R| pode ser igual a ℵ2 ou ℵ37 , ou talvez possa ser maior do que ℵn , para
qualquer n finito.4 HC é demonstrável para os subconjuntos não numeráveis e fechados (para a
topologia usual) de R, mas saber isto é saber muito pouco sobre tão enigmática conjectura.
Embora a Hipótese do Contínuo seja normalmente expressa em termos de números cardinais
transfinitos, estes conceitos não são essenciais ao problema. Ela surge de maneira muito simples
na análise clássica, pois é equivalente à afirmação de que todo o conjunto de números reais é
equipotente a um conjunto contável de números naturais ou ao conjunto de todos os números
reais. (Ver definição de contável no §4, a seguir ao axioma do infinito).
A Hipótese do Contínuo de Cantor (HC) é um dos grandes problemas em aberto das matemáti-
cas modernas. Apesar de Gödel e Cohen terem mostrado que ela é independente dos outros
axiomas da teoria dos conjuntos (§5), a questão da sua “veracidade” permanece em aberto para
muita gente. Ela pode ter sido estabelecida pela negativa por Chris Freiling (1986), mas a sua
‘refutação’ passou em larga medida despercebida, talvez porque tivesse dependido de uma notável
experiência conceptual, um método que dista bastante das abordagens comuns, mas que poderia
ser encarado com simpatia por todos aqueles que gostam de provas visuais – ver §7 adiante.
Há três maneiras de resolver um problema como o do contínuo: demonstrar HC; refutá-la;
provar que é indecidível (relativamente a ZFC). HC, infelizmente, está na última situação. Antes
de lidar com a indecidibilidade, passemos rapidamente em revista alguns desenvolvimentos na
teoria dos conjuntos até àquele ponto.

4 Das antinomias à axiomática de Zermelo-Fraenkel


No virar do XIX para o XX século avolumam-se algumas dificuldades essenciais com as concepções
intuitivas da teoria cantoriana – os chamados paradoxos ou antinomias da teoria intuitiva dos
conjuntos, – surgem algumas críticas mais ou menos cerradas (por Kronecker e Poincaré, entre
outros) ao uso irrestrito dos métodos abstractos, e estala uma grande “crise de fundamentos”
no seio da matemática e dos matemáticos. Dessa crise resultaram diversos programas de recon-
strução do abalado edifício matemático, ao mesmo tempo que se aperfeiçoaram os formalismos
lógico-matemáticos e as bases do método axiomático moderno, que tinha permanecido quase
inalterado na sua essência desde os tempos de Euclides.
Entretanto, os diferentes ramos da matemática foram sendo desenvolvidos, incorporando cada
vez mais as noções e técnicas da teoria dos conjuntos, e novos ramos foram criados, como a álgebra
abstracta, a topologia geral, a teoria das funções, a teoria da medida e da integração de Lebesgue,
as teorias projectivas e descritivas dos conjuntos, etc. No que diz respeito à própria teoria
axiomática dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel, há uma data particularmente importante que
importa assinalar, que é a do seu nascimento oficial – a da publicação, em 1908, de um trabalho
de Ernst Zermelo em que, pela primeira vez, se estabelecem bases axiomáticas para a teoria
dos conjuntos. A teoria de Zermelo de 1908 é ampliada e aperfeiçoada em anos subsequentes
por diversos autores, como Abraham Fraenkel e Thoralf Skolem nos anos vinte, e por John von
Neumann em 1929, sendo quase unanimemente considerada a grande teoria fundacional para
a matemática (dita) clássica no século vinte (e vinte e um . . . ). É conhecida como a teoria
4 Mas não pode ser igual a ℵ ω , nem a certos outros cardinais, por um resultado de König.

7
axiomática dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel e designada pela sigla ZF, ou ZFC, se for incluído
o Axioma da Escolha. Existem algumas variantes, como a de N. Bourbaki, e a teoria das classes
de von Neumann-Gödel-Bernays, mas destas alternativas não nos vamos ocupar aqui.
Como já se disse, veio a descobrir-se que esta concepção dos conjuntos como colecções ar-
bitrárias criadas pela nossa “intuição ou pensamento” é demasiadamente liberal, e conduz a
situações paradoxais. Um é o paradoxo do “conjunto de todos os conjuntos”, que vai dar uma
contradição com o teorema de Cantor. Damos aqui um outro exemplo paradigmático e muito
famoso, descoberto em 1901 pelo lógico e filósofo Bertrand Russell e conhecido como o paradoxo
de Russell.
Consideremos o conjunto (cantoriano) R cujos elementos são os conjuntos X tais que X não
é membro de X. Em notação familiar, R = {X : X ∈ / X}. Quer dizer que se tem, para qualquer
conjunto X,
(1) X∈R⇔X∈ /X
Em particular, para X = R, substituindo em (0.1) obtemos

(2) R∈R⇔R∈
/ R,

que é contraditório. Como explicar a razão de ser deste paradoxo e, possivelmente, removê-lo da
teoria de Cantor, isto é, reformular a teoria de tal modo que já não seja possível obtê-lo?
Se não queremos mexer na gramática (que mal faz poder escrever “X ∈ X”?) nem na lógica
clássica (impecável!), resta uma explicação possível para a razão de ser do paradoxo de Russell:
é a suposição de que R é conjunto. Para evitar o paradoxo, não deve existir um conjunto como
R, cujos elementos são todos os conjuntos que não são membros de si próprios pois, assim, já não
é lícito passar de (1) a (2) por particularização, uma vez que R não é um referente da variável
conjuntista X.
Eis-nos, pois, confrontados com uma colecção que não pode ser conjunto, contrariamente ao
que nos fazia supor a concepção cantoriana. Ao contrário do que pensava Cantor, pois, não basta
intuir ou pensar uma colecção, através de uma propriedade comum aos seus e somente aos seus
membros (isto é, compreensivamente, como é costume dizer-se) para que essa colecção seja um
conjunto. Por outras palavras, há propriedades que não definem conjuntos.
Esta descoberta de colecções definidas compreensivamente que não são conjuntos coloca desde
logo um problema fundamental, o problema de saber que propriedades definem ou determinam
conjuntos?
Os axiomas de ZF(C) dão uma resposta parcial àquelas questões bastante satisfatória sob
muitos aspectos. Nestes axiomas estão formuladas propriedades simples dos conjuntos, sufi-
cientes, por um lado, para as necessidades da matemática (em particular, suficientes para toda a
teoria dos ordinais e cardinais desenvolvida por Cantor), mas não fortes em demasia, por outro,
isto é, não tão fortes que os paradoxos que enfermam a teoria intuitiva possam ser deduzidos. Há,
apenas, uma crença mais ou menos generalizada de que esta teoria é consistente, e uma grande
confiança heurística de que alguma contradição que, porventura, venha a ser encontrada possa
ser removida mediante algum pequeno ajustamento nos fundamentos axiomáticos da teoria que
não ponha em causa os resultados e aplicações essenciais da teoria.
Bem entendido, num dado universo U que satisfaça os axiomas de ZF(C) (isto é, em termi-
nologia da Lógica Matemática, que seja modelo dos axiomas), cada sentença é verdadeira ou é
falsa (princípio semântico da bivalência) mas, sem conhecer algo de particular acerca de U para
além do que os axiomas exprimem pode não ser possível saber qual dos casos se dá.5 De facto,
5 O estudo de universos particulares satisfazendo axiomas adicionais aos de ZF(C) é um dos temas de investi-

gação em Lógica Matemática (no ramo conhecido por Teoria dos Modelos) mas, até ao momento presente, esse

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tudo quanto sabemos acerca de U é o que os axiomas nos dizem ou conseguimos demonstrar a
partir dos axiomas, mas os axiomas não dizem tudo. Dizem o suficiente para as necessidades cor-
rentes em matemática, em geral, e isto já é alguma coisa. Os teoremas de ZF(C) são as sentenças
da linguagem de ZF (a mesma que a de ZFC, v. adiante) que são satisfeitas ou verdadeiras em
todos os universos que satisfazem os axiomas de ZF(C) – são, noutra terminologia apropriada,
as consequências lógicas dos axiomas.6 A leitura do resto desta secção pode ser omitida sem
quebra de continuidade, excepto a última parte relativa ao Axioma da Escolha e equivalentes.

4.1 A linguagem
A linguagem L de ZFC é uma linguagem de primeira ordem que tem um único símbolo predicativo
não lógico binário ∈, variáveis (para conjuntos) x, y, z, ... (possivelmente com índices), os
símbolos lógicos ¬ (negação), ∧ (conjunção), ∨ (disjunção), ⇒ (condicional), ⇔ (bicondicional),
∀ (quantificador universal), ∃ (quantificador existencial) e = (igualdade), e parenteses (, ) para
pontuação. Utilizaremos também letras a, b, ..., X, Y, ..., A, B, ... como variáveis para conjuntos.
Inicialmente, os termos de L são somente as variáveis. QuandoS se introduzirem constantes
definidas (como ∅) e símbolos operacionais definidos (como P, , ×, etc.) outros termos se obtêm.
Indutivamente, as variáveis e as constantes definidas são termos, e se t1 , ..., tk são termos e F
é um símbolo operacional definido k-ário (k ≥ 1) então Ft1 ...tk é um termo [que também se
denota, por vezes, F(t1 , ..., tk )]. Continuamos a designar por L uma qualquer extensão de L
com símbolos definidos.
As fórmulas atómicas de L são as expressões de uma das formas (x = y), (x ∈ y); as fórmulas
de L são definidas indutivamente pelas regras seguintes:
(a) fórmulas atómicas são fórmulas;
(b) se φ, ψ são fórmulas então ¬φ, (φ ∧ ψ), (φ ∨ ψ), (φ ⇒ ψ) e (φ ⇔ ψ) são fórmulas;
(c) se φ é uma fórmula então ∀xφ e ∃xφ são fórmulas;
(d) nada mais é fórmula.
Na escrita das fórmulas podem-se omitir parênteses desde que se não comprometa a legibili-
dade sem ambiguidades. Assim, por exemplo, parênteses exteriores podem-se omitir, (φ∧ψ) ⇒ θ
abrevia-se φ ∧ ψ ⇒ θ, e analogamente com ∨ no lugar de ∧ e ⇔ no lugar de ⇒ . Uma expressão
de uma das formas ∀x, ∃x é um quantificador em x, e numa fórmula de uma das formas ∀xφ,
∃xφ a fórmula φ é o alcance do quantificador em x respectivo. As ocorrências de x no alcance
de um quantificador em x dizem-se mudas ou aparentes; se ψ é uma fórmula em que ocorre x,
as ocorrências de x em ψ que não são mudas (se algumas houver) dizem-se livres. x é livre em
ψ se x tem, pelo menos, uma ocorrência livre em ψ. É habitual a notação ψ(x1 , ..., xn ) para
indicar que as variáveis x1 , ..., xn (n ≥ 1) são livres na fórmula ψ, e diz-se que ψ é uma condição
nas variáveis x1 , ..., xn , não se excluindo a possibilidade de outras variáveis além das indicadas
estudo não é conclusivo no sentido de convencer os matemáticos da necessidade de ou conveniência em adoptar
algum novo axioma para além dos de ZFC.
6 Que os teoremas são satisfeitos ou verdadeiros em todos os modelos dos axiomas resulta do simples facto de

serem demonstrados pela lógica – os princípios lógicos são universais, isto é, verdadeiros em todos os universos,
enquanto as regras lógicas de inferência (que estruturam logicamente o raciocínio) são válidas, isto é, preservam a
verdade. Assim, partindo de proposições que são verdadeiras num universo U (os axiomas), todas as proposições
demonstráveis a partir dos axiomas (os teoremas) são igualmente verdadeiras em U. Que as proposições ver-
dadeiras em todos os universos que satisfazem os axiomas são demonstráveis a partir dos axiomas resulta de
uma propriedade geral (o metateorema de completude semântica generalizado) que possuem as chamadas teorias
(formais) de primeira ordem, de que ZF(C) é um exemplo. É claro que estão em confronto, no que precede, dois
conceitos de verdade, distintos, mas equivalentes no contexto da lógica clássica: a consequência lógica, definida
em termos da verdade semântica (correspondência com uma realidade ou uma situação de facto, no caso, um
universo), de um lado, e a demonstrabilidade, do outro. A verdade semântica e a consequência lógica não são
conceitos comuns no discurso matemático tradicional.

9
serem livres em ψ; se t1 , ..., tn são termos em que não ocorrem variáveis mudas em ψ(x1 , ..., xn )
denota-se por ψ(t1 , ..., tn ) a fórmula que resulta de ψ(x1 , ..., xn ) substituindo toda a ocorrência
livre de xi em ψ por ti para i = 1, ..., n. Uma sentença ou proposição é uma fórmula sem
ocorrências livres de variáveis.
Algumas abreviaturas importantes: ¬(x = y), ¬(x ∈ y) abreviam-se x 6= y, x ∈ / y, re-
spectivamente; ∀x∀y ψ abrevia-se ∀x, y ψ ou ∀xy ψ, e analogamente com ∃ no lugar de ∀;
∀x (x ∈ y ⇒ ψ) abrevia-se (∀x ∈ y) ψ ou ∀x ∈ y ψ, e ∃x (x ∈ y ∧ ψ) abrevia-se (∃x ∈ y) ψ
ou ∃x ∈ y ψ. ∃1 x φ(x) abrevia ∃x φ(x) ∧ ∀y,z (φ(y) ∧ φ(z) ⇒ y = z) ou, equivalentemente,
∃x (φ(x) ∧ ∀y (φ(y) ⇒ x = y)).

4.2 Os Axiomas
Os axiomas e teoremas de ZFC são sentenças de L em que, por vezes, por abuso ou comodidade
se omitem os quantificadores universais iniciais. Enunciamos formalmente os axiomas de ZFC
(omitindo quantificadores universais iniciais) e damos uma explicação informal logo de seguida,
utilizando já algumas abreviaturas ou noções definidas, a fim de melhor se compreender o seu
significado intuitivo.
Extensionalidade: Dois conjuntos com os mesmos elementos são iguais.
Note-se que se X = Y, então X e Y têm forçosamente os mesmos elementos, por uma
propriedade fundamental da igualdade (a substituibilidade: coisas iguais têm as mesmas pro-
priedades). Define-se, como é sabido: X ⊆ Y ⇔ ∀x(x ∈ X ⇒ x ∈ Y), X ⊂ Y ⇔ X ⊆ Y ∧ X 6= Y,
Y ⊇ X ⇔ X ⊆ Y, Y ⊃ X ⇔ X ⊂ Y, X * Y ⇔ ∃x(x ∈ X∧ x ∈ / Y).
Conjunto vazio: Existe um conjunto sem elementos.
Um tal conjunto é único: se também X0 é tal que ∀y (y ∈ / X0 ), então facilmente se conclui
0 0
que ∀y (y ∈ X ⇔ y ∈ X ), donde X = X por extensionalidade. O único conjunto sem elementos
denota-se ∅ e chama-se o conjunto vazio. Caracteristicamente: ∀y (y ∈ / ∅).
Separação: Uma classe {x : φ(x)} contida num conjunto é conjunto.7 Dados um conjunto A
e uma condição φ(x), o único (por extensionalidade) conjunto B cujos elementos são exactamente
os elementos x de A tais que φ(x) denota-se {x ∈ A : φ(x)} ou {x : x ∈ A ∧ φ(x)}.Note-se que há
uma infinidade (intuitivamente falando) de axiomas de separação, um para cada condição φ(x)
[ou φ(x, ȳ)] na linguagem L, por isso se diz que estamos na presença de um axioma-esquema
ou de um esquema de T axiomas de separação. Se A 6= ∅, um axioma de separação justifica a
existência do conjunto A = {x : ∀X ∈ A (x ∈ X)}, chamado a intersecção de A. Com efeito,
a classe {x : ∀X ∈ A (x ∈ X)} está contida em qualquer um dos membros
T T de A. Não se define
∅ (pois daria a classe universal), mas poderia convencionar-se ∅ = ∅. Dados os conjuntos
A e B, outro axioma de separação justifica a existência do conjunto complementar de A em B,
A \ B = A − B = {x ∈ A : x ∈ / B}.
Pares Não Ordenados: Dados a, b, existe um conjunto cujos únicos elementos são a e
b. O único B cujos elementos são exactamente a e b denota-se {a, b} e é chamado o par não
ordenado de a e b. Em particular, se a = b, {a, a} = {a} é o conjunto singular de a. O
par ordenado de a e b é o conjunto (a, b) = {{a}, {a, b}}. Tem-se a propriedade fundamental
(a, b) = (c, d) ⇔ a = c ∧ b = d. Quem tem pares ordenados tem triplos ordenados, 4-uplos
ordenados, etc.: (a, b, c) = ((a, b), c), (a, b, c, d) = T((a, b, c), d), etc. Conjugando
T pares não
ordenados com intersecções podemos definir X ∩ Y = {X, Y}. Note-se que {X} = X.
União: Para todo o conjunto A, existe um conjunto B cujos elementos são exactamente os
elementos dos membros de A. Dado A, o único conjunto B cujos elementos S são exactamente
os elementos dos membros de A chama-se a união de A e denota-se A. Conjugando pares
7 Classes são extensões de propriedades ou condições (escritas na linguagem L).Todo o conjunto é uma classe

(A = {x : x ∈ A}), mas há classes que não são conjuntos: são chamadas classes prórpias.

10
S S
não ordenados com S uniões podemos definir X ∪ Y = {X, Y}. Note-se que {X} = X e que
∀X(X ∈ A ⇒ X ⊆ A).
Partes: Para todo o conjunto A, existe um conjunto cujos únicos elementos são os conjuntos
que são subconjuntos de A. Dado A, o único B cujos elementos são exactamente os subconjuntos
de A chama-se o conjunto das partes (ou conjunto potência, ou conjunto dos subconjuntos)
S S de
A e denota-se P(A) ou PA. Para qualquer conjunto C, x ∈ C ∧ y ∈ C ⇒ (x, y) ∈ C, o
que permite justificar, por separação, a existência do produto cartesiano de A e B, A × B = {z :
(∃x ∈ A)(∃y ∈ B) z = (x, y)} (considerando C = A ∪ B acima). A2 = A × A, A3 = A2 × A,
etc. S
Uma
S relação (binária)
SS é um conjunto R de pares ordenados. Note-se que (x, y) ∈ R ⇒
x ∈ R∧y ∈ R o que permite justificar, por separação, a existência dos conjuntos
domínio de R, dom R = {x : ∃y (x, y) ∈ R}, imagem de R, im R = {y : ∃x(x, y) ∈ R}, campo R =
dom R∪ im R. A relação inversa de R é a relação R−1 = {(y, x) : (x, y) ∈ R}.
Uma relação binária num conjunto A é um conjunto R ⊆ A2 , uma relação ternária num
conjunto A é um conjunto R ⊆ A3 , etc. Uma relação unária em A é simplesmente uma parte de
A. Uma relação R é funcional sse

∀x, y1 , y2 ((x, y1 ) ∈ R ∧ (x, y2 ) ∈ R ⇒ y1 = y2 ).

Se R é funcional e x ∈domR, o único y tal que (x, y) ∈ R chama-se o valor de R em x (ou a


imagem de x por R) e denota-se R(x), Rx, ou Rx (ou de outras maneiras ainda, conforme as
circunstâncias). Uma relação funcional também se chama uma função ou uma aplicação. Se f é
uma função com domínio A podemos escrever

f = hf(x) : x ∈ Ai = hfx : x ∈ Ai = hfx ix∈A , etc.

Uma família de conjuntos indexados num conjunto I é uma função F = hAi : i ∈ Ii onde
(∀i ∈ I)(Fi = Ai ). Define-se

f : A → B ⇔ f é uma função ∧ domf = A ∧ imf ⊆ B.

Se f é uma relação ou uma função e X um conjunto, f[X] = f“X = {y : ∃x(x, y) ∈ f} é o


transformado de X por f e f ¹ X = {z : ∃x, y (x ∈ X∧ z = (x, y) ∧z ∈ f)} é a restrição de f a X.
Se f : A → B, f é injectiva sse ∀x, y ∈ A(x =
6 y ⇒ f(x) 6= f(y); é sobrejectiva, ou aplica A sobre
B sse (∀y ∈ B)(∃x ∈ A)f(x) = y; e é bijectiva sse é injectiva e sobrejectiva.
Note-se que se f : A → B, então f ∈ P(A × B), o que permite justificar, por separação, a
existência do conjunto de todas as aplicações f : A → B, que se denota A B.
Recordemos finalmente mais uma das possíveis definições de número natural em ZFC. Os
números naturais podem ser definidos como acima se disse, como os ordinais finitos, ou como
os cardinais finitos, ou inspirando-nos nas ideias de R. Dedekind, mais exactamente, no seu
conhecido trabalho sobre os fundamentos da aritmética dos números naturais.8 A operação
sucessor no universo, que se denota S, define-se por Sx = x ∪ {x}, e com ela se definem os
numerais 0 = ∅, 1 = S0, 2 = S1, etc. e os conceitos

X é indutivo ⇔ 0 ∈ X ∧ ∀x(x ∈ X ⇒ Sx ∈ X),

x é um número natural ⇔ ∀X(X indutivo ⇒ x ∈ X).


8 “Was sind und was sollen die Zahlen?” (1888), tradução inglesa Dedekind (1963). Esta axiomática é mais

conhecida por axiomática de Peano. A versão utilizada e divulgada por G. Peano no trabalho Arithmetices
principia, publicado em 1889, embora formulada em moldes diferentes dos de Dedekind é, todavia, essencialmente
equivalente à formulação de Dedekind, e o próprio Peano reconhece ter apreciado muito aquele opúsculo de
Dedekind.

11
Infinito: ∃X(X é indutivo). Prova-se facilmente, usando este axioma e um axioma de sep-
aração, que a classe dos números naturais é conjunto. De facto, fixando um conjunto indutivo
qualquer, digamos A, tem-se que a classe dos números naturais {x : ∀X(X indutivo⇒ x ∈ X} é
exactamente a mesma que a classe {x : x ∈ A ∧ ∀X(X indutivo ⇒ x ∈ X)}, que é conjunto, por
separação. Este conjunto designa-se por N, e também se prova facilmente que este conjunto é o
mais pequeno conjunto indutivo.
Um conjunto A diz-se finito sse existe n ∈ N tal que A ∼ n, e pode-se provar que um tal n,
se existir, é único; A é infinito sse não é finito. A é infinito numerável sse A ∼ N, é numerável
(ou contável ) sse é finito ou infinito numerável, e é não-numerável sse não é numerável. Pode-se
demonstrar que um conjunto não vazio A é contável (ou: numerável) sse existe g : N → A
sobrejectiva.
Os axiomas anteriores, devidos a Zermelo (1908), são suficientes para desenvolver uma parte
da matemática clássica, nomeadamente, para as construções dos familiares sistemas de números,
para uma boa parte da Álgebra e da Análise, para boa parte da teoria dos ordinais e da teoria
dos cardinais de conjuntos bem-ordenados. O axioma seguinte é devido a A.A. Fraenkel e é
instrumental em certos teoremas da teoria dos ordinais mas não tem, ao que se sabe, aplicações
matemáticas relevantes. Ele é bastante poderoso, porém, pois torna redundantes os axiomas de
separação e dos pares não ordenados.
Substituição: Para todo o conjunto A, e operação F no universo, a classe {F(x) : x ∈ A} =
{y : (∃x ∈ A)(y = Fx)}é conjunto.
Regularidade: Para todo o conjunto X 6= ∅, existe Y ∈ X tal que X ∩ Y = ∅. Este é um
axioma estrutural (tal como o axioma da extensionalidade) com aplicações puramente técnicas
(na teoria dos ordinais, por exemplo), sem qualquer relevância matemática, que se destina, entre
outras coisas, a garantir que a relação no universo ∈ é bem fundada, isto é, não existem conjuntos
X0 , X1 , X2 , ... tais que ...∈ X2 ∈ X1 ∈ X0 . Em particular, ficam excluídos conjuntos X tais que
X ∈ X, e conjuntos X, Y tais que X ∈ Y ∈ X. Outra consequência notável deste axioma (aliás,
equivalente a ele) é a seguinte: U = V, onde U = {x : x = x} é a classe universal (= classe de
todos os conjuntos) e V é a classe união dos conjuntos da chamada hierarquia cumulativa (de
Von Neumann), os conjuntos Vα (α ∈ ORD S = classe dos ordinais), definidos por recorrência
transfinita por V0 = ∅, Vα+1 = PVα , Vλ = {Vα : α ∈ ORD}, se λ é um ordinal limite 6= 0.
Alguns teoremas matemáticos importantes de natureza existencial não podem ser demonstra-
dos sem o axioma seguinte (ou o mais conhecido equivalente Lema de Zorn: em todo o conjunto
parcialmente ordenado (A, ≤) em que toda a cadeia tem majorante existe um elemento maxi-
mal); sem ele não pode ser demonstrado que todo o conjunto possui um cardinal, nem que a
definição acima de finito é equivalente à definição de Dedekind [um conjunto A é Dedekind-finito
⇔ ¬∃X(X ⊂ A ∧ X ∼ A)], etc.
Escolha (AC): Todo o conjunto A possui uma função de escolha ou selector, isto é, uma
função f que em cada membro não vazio X de A “escolhe” um elemento fX.
Uma maneira equivalente de enunciar (AC) é: para toda a família M de conjuntos não vazios
e disjuntos dois a dois, existe um conjunto contendo exactamente um elemento de cada membro
de M.
Outra consequência importante de (AC), que também lhe é equivalente, é o chamado Princí-
pio da Boa-ordenação (BO): Todo o conjunto pode ser bem-ordenado, isto é, pode ser orde-
nado de tal maneira que cada subconjunto não vazio tenha primeiro elemento.
A ordem usual, <, nos números naturais é também uma boa-ordenação dos números naturais.
Tomemos qualquer subconjunto, digamos {397, 4, 39, 56}; tem primeiro elemento, a saber, 4. Mas
ao contrário dos números naturais, a ordem usual nos números reais, <, não é uma boa-ordem.
O subconjunto ]0, 1[= {x : 0 < x < 1}, por exemplo, não tem primeiro elemento. Não obstante, o
princípio da boa-ordenação garante que os números reais podem ser bem-ordenados por alguma

12
relação, ≺, muito embora ainda ninguém tenha encontrado uma tal boa-ordem.
Os axiomas anteriores, excluindo os axiomas de substituição e o Axioma da Escolha con-
stituem a chamada teoria de Zermelo, Z. Se a esta juntarmos os axiomas de substituição obte-
mos a teoria de Zermelo-Fraenkel, ZF. Se a Z juntarmos apenas o Axioma da Escolha obtemos a
teoria ZC. Alguns ramos da matemática, particularmente da Análise, podem ser desenvolvidos
utilizando uma versão fraca do Axioma da Escolha, nomeadamente, a versão numerável (NC)
em que somente os conjuntos numeráveis possuem funções de escolha, mas também há resulta-
dos que dependem necessariamente da versão não numerável. Em todo o caso, nenhum axioma
especial é necessário para demonstrar que todo o conjunto finito possui uma função de escolha
– isto pode-se demonstrar facilmente por indução matemática no cardinal do conjunto.

5 Questões de consistência e independência de HC relati-


vamente à teoria axiomática dos conjuntos: resultados
de Gödel e Cohen
O começo do século vinte assistiu a muitas tentativas fracassadas para provar ou refutar HC.
O primeiro avanço significativo aconteceu em 1938 quando Gödel provou que HC (e também
HGC, e AC) é consistente com o resto da teoria dos conjuntos. Fez isto mediante um modelo
constituído pelos chamados ‘conjuntos construtíveis’, no qual todos os axiomas de ZFC (teoria
dos conjuntos de Zermelo-Fraenkel com o Axioma da Escolha) são verdadeiros e HC é verdadeira
também. Isto significa, naturalmente, que HC não pode ser refutada da maneira usual, isto é,
demonstrando ¬HC a partir dos axiomas de ZFC. Num sentido técnico, 2ℵ 0 é o mais pequeno
possível no universo construtível, ou seja, é igual a ℵ1 , e por esta razão HC é satisfeita neste
universo.
A independência plena (e também as de HGC e AC) foi estabelecida em 1963 por Paul Cohen.
Introduziu uma nova técnica poderosa chamada forçamento, que permitiu construir um modelo
da teoria dos conjuntos na qual ZFC é verdadeira mas HC não é. Os resultados combinados de
Gödel e Cohen estabelecem a indecidibilidade. HC é independente de ZFC; não pode ser provada
e não pode ser refutada – pelo menos, não da maneira usual. Isto é como as coisas estão.
George Kreisel (1967, 1971) derramou uma luz considerável sobre HC ao rejeitar uma analogia
que se tinha popularizado. A seguir à prova de independência de Gödel-Cohen, dizia-se por vezes
que HC é semelhante ao postulado de paralelismo da geometria euclidiana e que poderia haver
teorias de conjuntos alternativas da mesma maneira que há geometrias não-euclidianas (Cohen e
Hersh, ‘Teoria dos conjuntos não cantoriana’, 1967). Kreisel indicou uma diferença crucial entre
os dois casos. HC só é independente quando nos restringimos à teoria dos conjuntos de primeira
ordem, que é o caso de ZF(C). É decidível na teoria dos conjuntos de segunda ordem ZFC2 e,
portanto, é satisfeita em todos os modelos de ZFC2 e derivável dos axiomas desta teoria, ou é
falsa (logo ¬HC é satisfeita) em todos os modelos e é derivável (mas continuamos sem saber qual
dos casos se dá!). O postulado de paralelismo, pelo contrário, é absolutamente independente dos
outros postulados. Isto, naturalmente, é uma boa notícia para qualquer platonista, pois significa
que HC tem um valor lógico definido, embora ainda não saibamos qual ele é. Kreisel propôs uma
analogia muito melhor. Tomou a prova de independência de HC como sendo semelhante à prova
de que não é possível trissecar um ângulo arbitrário com régua lisa e compasso. O importante a
sublinhar aqui, para melhor compreender a comparação com HC, é a restrição posta no método
utilizado. Com outros métodos, o que era impossível pode deixar de o ser.
As principais suposições de natureza bastante geral e filosófica subjacentes a uma posição
simpatética para com as novas experiências e intuições parecem ser:

13
1. HC tem um valor lógico determinado, embora seja independente do resto da teoria dos
conjuntos.
2. Axiomas potenciais e outras proposições matemáticas, como HC e ¬HC, poderão ser jus-
tificados por maneiras bem diferentes das provas tradicionais.
3. Experiências conceptuais e raciocínio visual poderão justificar proposições matemáticas
mediante a geração de novas intuições.

6 Relevância da Hipótese do Contínuo face a concepções


filosóficas (platonismo, formalismo) nos fundamentos
Na matemática quotidiana é costume associar verdade com prova, ou melhor, identificar uma
com a outra, esquecendo que a verdade semântica deve ser distinguida da demonstrabilidade
(em algum sistema de axiomas). Os formalistas e os construtivistas, em particular, explicitam
a ligação entre verdade e prova, embora as suas motivações sejam bem diferentes. Deixamos os
construtivistas de lado, pois eles rejeitam simplesmente os transfinitos cantorianos. Os formal-
istas, por outro lado, abraçam alegremente a teoria dos conjuntos, mas defendem tipicamente o
ponto de vista de que HC, por ter sido mostrada independente, simplesmente não possui valor
lógico – nem é verdadeira nem falsa. A razão subjacente a esta atitude é a convicção de que a
matemática é um corpo de axiomas que aceitamos por várias razões, mas serem objectivamente
verdadeiros não é uma delas. Dizer que uma proposição matemática P é verdadeira é apenas
dizer que P pode ser derivada logicamente dos axiomas admitidos. E dizer que P é falsa é dizer
que ¬P pode ser derivada desses axiomas. Nem uma coisa nem outra são possíveis para HC,
logo, para o formalista convicto, esta não possui valor lógico algum.
Os platonistas, pelo contrário, afirmam que a verdade é distinta da prova. Uma prova de P não
torna P verdadeira; é antes um indício de que P é verdadeira. A falta de uma derivação a partir
de primeiros princípios só significa que poderemos ser eternamente ignorantes do valor lógico de
P, mas P tem um valor lógico na mesma. A atitude platonista face a HC é que ela é realmente
verdadeira, ou é realmente falsa (num universo privilegiado?), mesmo que não possamos provar
ou descobrir de alguma maneiraqual dos casos se dá.
Embora os platonistas distingam entre prova e verdade, eles também estão mais inclinados
a aceitar outros tipos de evidência, como uma experiência conceptual envolvendo o lançamento
de dardos com o fim de, pelo menos em princípio, proporcionar evidência para a verdade ou a
falsidade de HC. Voltaremos a isto na secção seguinte.
Kurt Gödel assemelhou a epistemologia de matemática à epistemologia das ciências naturais
em dois aspectos importantes. Primeiro, temos intuições ou percepções matemáticas, que são a
contrapartida das percepções sensoriais do mundo físico. Vemos que o céu é azul, que 2 + 3 = 5
e que o conjunto dos números pares é um subconjunto próprio dos números naturais.
Segundo, avaliamos (alguns) axiomas matemáticos com base nas suas consequências, espe-
cialmente as consequências que podemos intuir, assim como avaliamos teorias em física ou na
biologia com base nas suas consequências empíricas. Ninguém pode ver átomos ou partículas
subatómicas, mas vemos espectros cromáticos e rastros numa câmara de vapor. Não podemos
ver espécies a desenvolver-se, mas podemos ver fósseis e a distribuição geográfica de espécies
com diferentes características. O que podemos ver é indícios para teorias sobre coisas que não
podemos ver. Semelhantemente, diz Gödel, as intuições são indícios indirectos para os axiomas
em matemática.
Do ponto de vista de Gödel, a matemática é falível por diversas razões. Podemos ter intuições
defeituosas, tal como podemos ter percepções sensoriais erróneas. Na seguinte citação, Gödel

14
enuncia os dois ingredientes chave do platonismo: a ontologia do realismo e a epistemologia das
intuições. Ele também observa a possibilidade de descobrir novos axiomas que possam decidir
questões antigas, tal como HC.

“... Apesar do seu afastamento da experiência dos sentidos, temos algo como
uma percepção também dos objectos da teoria dos conjuntos, como se vê do facto
de que os axiomas se nos impõem como verdadeiros. Não vejo qualquer razão para
termos menos confiança nesta espécie de percepção, isto é, na intuição matemática,
do que na percepção sensorial, que nos induz a construir teorias físicas e a esperar que
percepções sensoriais futuras concordem com elas e, além do mais, a acreditar que
uma questão não decidível agora possua significado e possa ser decidida no futuro.
Os paradoxos da teoria dos conjuntos são apenas um pouco mais incómodos para
a matemática do que as decepções dos sentidos são para a física. . . Novas intuições
matemáticas que levem a uma decisão de problemas como o da Hipótese do Contínuo
de Cantor são perfeitamente possíveis. . .” (Gödel 1947/64: 484)

Resumindo: os objectos matemáticos existem independentemente de nós; podemos perceber


ou intuir alguns deles (embora não todos); as nossas percepções ou intuições são falíveis (tal como
é falível a nossa percepção sensorial de objectos físicos); conjecturamos teorias matemáticas ou
adoptamos axiomas com base em intuições sugestivas (do mesmo modo que as teorias físicas são
conjecturadas com base em percepções sensoriais sugestivas); estas teorias vão tipicamente além
das próprias intuições, mas são testadas por elas (tal como as teorias físicas vão além dobservações
empíricas mas são testadas por elas); e no futuro poderemos ter novas intuições fulgurantes que
nos levem a novos axiomas que determinem alguma questão em aberto. Na secção seguinte
damos um exemplo típico de uma tal nova intuição.

7 Tentativas de justificação/refutação de HC, com destaque


para o argumento probabilístico de Freiling
7.1 A experiência conceptual de Freiling
O método de argumentação de Freiling para refutar HC, apelando a uma experiência mental
ou conceptual e a noções e intuições probabilísticas, causa estranheza em muitas pessoas que
trabalham nos fundamentos da matemática. Ao propor um novo axioma (equivalente à negação
de HC) da maneira que o faz, afilia-se no consequencialismo recomendado por Gödel (propor
um novo axioma, extrair as suas consequências lógicas e verificar se ele é “abundante nas suas
consequências verificáveis, derramando tanta luz sobre toda uma área, e produzindo métodos tão
poderosos para resolver problemas...” (Gödel, 1947/64, 477). Mas no caso de Freiling a ousadia
ultrapassa o que é subscrito pela maioria dos matemáticos profissionais, na medida em que inclui
experiências mentais envolvendo resultados probabilísticos como um método legítimo de justi-
ficar proposições matemáticas. Freiling tem, todavia, alguns defensores entusiastas, como David
Mumford (Medalha Fields em 1974), que atribui grande importância ao trabalho de Freiling,
pois vê neste uma contribuição para a remodelação da teoria dos conjuntos como uma ‘teoria
estocástica dos conjuntos’, como costuma dizer. A noção de variável aleatória deve ser incluída
nos fundamentos da teoria revista, não uma noção definida em termos de teoria da medida,
como se faz actualmente. Entre outras coisas, ele eliminaria o axioma do conjunto das partes,
propondo o conjunto N X de todas as sucessões de elementos de X no lugar de P(X ) (Mumford
2000: 208).

15
A experiência conceptual de Freiling (estamos a seguir a descrição em Brown 2008, Cap. 11)
envolve lançar dardos sobre uma linha recta, ou melhor, sobre o intervalo [0, 1], para seleccionar
números reais.

Figura 2: Atirar dardos aos reais

Imaginemos lançar dardos no intervalo [0, 1]. São lançados dois dardos, independentes um do
outro. O propósito é seleccionar dois números aleatórios, p e q.
Há três coisas importantes a notar na experiência conceptual: um par de números reais é
seleccionado (1) aleatoriamente, (2) independentemente, e (3) simetricamente. Explicitemos isto
um pouco mais.
Podemos encarar o lançamento de dados como uma variável aleatória real (na terminologia
de Mumford), definida no conjunto dos lançamentos com valores (ou resultados) em [0, 1]. Os
dois números reais são seleccionados independentemente um do outro. Isto é óbvio, visto que
os dois lançamentos de dardos não têm nenhuma influência um no outro. A independência e
aleatoridade dos dardos garante a simetria dos lançamentos. Portanto, qualquer um dos dardos
podia ser considerado o do primeiro lançamento.
Antes de expor o argumento de Freiling convém dizer algo sobre medida e probabilidade.

7.2 Medida e probabilidade


O conceito elementar de probabilidade compreende-se facilmente no caso finito: consiste essen-
cialmente em calcular frequências (número de casos favoráveis/número de casos possíveis). O
caso infinito é manhoso. Se lançamos um par de dados, há 36 resultados possíveis. A probabili-
dade de obter o resultado 2 é 1/36, visto que há uma só maneira de isto acontecer, a saber, rolar o
par (1, 1). Há três maneiras de obter o resultado 4, a saber, (1, 3), (3, 1) e (2, 2), e analogamente
para outros casos.
Lancemos um dardo no segmento de recta [0, 1]. Podemos acertar no 2/5, 3/π, ou e/3, e
assim por diante. Mas qual é a probabilidade de acertar num qualquer destes números? É um
em infinitamente muitos, o que significa que a probabilidade é zero (1/∞ = 0). Surpreendente-
mente, ou talvez não, acontecimentos com probabilidade de acontecer igual a zero podem todavia
acontecer. Isto é estranho, mas não é logicamente absurdo. Poderemos pensar que é inútil tentar

16
lidar com o caso infinito, mas não é assim. Um ramo da análise conhecido por teoria da medida
vem em nosso auxílio.
A teoria da medida, ou mais especificamente, a teoria da medida de Lebesgue, fornece uma
maneira de associar uma medida a uma totalidade enorme de conjuntos diferentes. Algumas
propriedades fundamentais:

• A medida de um intervalo é simplesmente o seu comprimento.

Assim, o comprimento do intervalo [7, 13] é igual a 13 − 7 = 6. Em símbolos, μ([7, 13]) = 6.


É óbvio que μ([0, 1]) = 1.

• Se um conjunto S é igual à união de um número contável de subconjuntos disjuntos, isto


é, S = S1 ∪ S2 ∪ S3 ∪ ..., cada um dos quais é mensurável, então μ(S) = μ(S1 ) + μ(S2 ) +
μ(S3 ) + · · · .

Tomando um caso simples, se S é o conjunto que consiste dos intervalos [0, 1/2] e [3/5, 1],
então μ(S) = 1/2 + 2/5 = 9/10.
A probabilidade no caso infinito é facilmente entendida nos seguintes termos. Ao lançar um
dardo sobre o intervalo [0, 1], a probabilidade de acertar no segmento [0,1/2] é claramente 1/2, e
assim por diante. Assim,

• A probabilidade de cair em S ⊆ [0, 1] é igual à medida de S.

Mas qual a probabilidade de acertar num número racional? Qual é a medida do conjunto dos
racionais de [0, 1]? Isto é um conjunto de pontos distribuído por todo o [0, 1], mas certamente
não é um intervalo. Designemos Q1 e I1 os conjuntos dos pontos racionais e irracionais em [0, 1],
respectivamente.

• A medida de qualquer conjunto singular é zero.

Isto é, se a ∈ [0, 1], então μ({a}) = 0. Como já sabemos, Q1 é contável, portanto é uma união
contável de conjuntos singulares, logo μ(Q1 ) = 0 Também sabemos que I1 é incontável, e como
[0, 1] = Q1 ∪ I1 , segue que μ([0, 1]) = μ(I1 ) + μ(Q1 ). Mas μ([0, 1]) = 1 donde μ(I1 ) = 1. A recta
real é esmagadoramente dominada pelos números irracionais. Em termos de probabilidade:

• A probabilidade de acertar num número irracional com um dardo é um.

A teoria da medida permite-nos falar da medida de alguns conjuntos bastante estranhos, não
apenas de conjuntos de racionais e irracionais. Encontraremos um destes conjuntos estranhos
dentro de momentos. A coisa crucial a lembrar é que:

• A medida de qualquer subconjunto contável de [0, 1] é zero e, por conseguinte, a probabili-


dade de acertar em qualquer membro de um tal subconjunto é também zero.

7.3 O argumento de Freiling


1. Admitimos ZFC e, além disso, HC (com vista a um absurdo), e seja ≺ uma boa-ordem em
R, que existe por AC.

2. Lançamos dois dardos no intervalo real [0, 1] com vista a seleccionar dois números reais.

17
3. Os pontos na recta podem ser bem-ordenados de modo que para cada r em [0, 1], o conjunto
Sr = {p ∈ [0, 1]: p ≺ r} é contável. 9

4. Suponhamos que o primeiro lançamento acerta em p e o segundo em q 6= p. Então ou


p ≺ q ou q ≺ p; suporemos que se dá o primeiro caso. Então, p ∈ Sq .

5. Visto que os dois lançamentos são independentes um do outro, podemos dizer que o lança-
mento que acerta em q define ou fixa o conjunto Sq de uma maneira que é independente
do lançamento que selecciona p.

6. A medida de qualquer conjunto contável é zero, logo μ(Sq ) = 0. Então a probabilidade de


acertar num ponto em Sq é também zero.

7. Pela mesma linha de raciocínio, μ(Sp ) = 0.

8. Um dos dardos tem de cair num conjunto definido pelo outro dardo, apesar da probabilidade
de isto acontecer ser zero. Embora logicamente possível, este tipo de situação quase nunca
se dá. Mas ainda assim acontecerá toda a vez que haja um par de dardos atirados à recta
real. Isto é absurdo.

Conclusão: devemos deixar cair a suposição inicial, HC, visto que esta conduz a este absurdo.
Assim, HC está refutada e então o número dos pontos na recta é maior que ℵ1 .
Se a potência do contínuo é ℵ2 ou maior, o argumento (pelo menos como apresentado aqui
até agora) não funcionaria, visto que o conjunto Sq de pontos que precedem q na boa-ordem não
precisa ser contável, e então não levaria automaticamente a uma probabilidade zero de acertar
num ponto dele.

7.4 HC, verdadeira ou falsa?


Um número grande de teóricos da teoria dos conjuntos, incluindo Gödel, Cohen, Woodin, e outros
já acreditam que HC é falsa. Cohen é particularmente incisivo.

“Um ponto de vista de que o autor sente mais tardou mais cedo vir a ser aceite é
que HC é obviamente falsa. A razão principal pela qual aceita o Axioma do Infinito
é provavelmente que nos sentiríamos como absurdo pensar que o processo dadicionar
só um conjunto de cada vez pode exaustar o universo inteiro. Semelhantemente com
os axiomas de infinitos superiores. Ora ℵ1 é o conjunto dos ordinais contáveis e isto
é meramente uma maneira especial e a mais simples de gerar um cardinal superior.
O conjunto P(ω) é, em contraste, gerado por um princípio mais poderoso totalmente
novo, a saber o Axioma do Conjunto das Partes. Não é razoável esperar que qualquer
descrição de um cardinal superior que tente construir esse cardinal com noções que
derivam do Axioma da Substituição possa alguma vez alcançar banco P(ω). Assim,
P(ω) é maior que ℵn , ℵω , ℵω ω , etc. Este ponto de vista considera P(ω) como
um conjunto incrivelmente rico que nos é dado por um novo e arrojado axioma, que
nunca pode ser aproximado por qualquer processo de construção passo a passo.”
(Cohen 1966: 151)
9 O facto de o conjunto ser contável resulta da natureza da boa-ordenação de qualquer conjunto que tenha

cardinal ℵ 1 . Recordando, um número cardinal é definido como o menor de todos os ordinais equipotentes a um
dado conjunto ou ordinal, logo o segmento inicial definido por q deve ter um cardinal menor que o número cardinal
de [0, 1], que, pela nossa suposição HC, é ℵ 1 , o primeiro número cardinal não contável. Assim, {p ∈ [0, 1]: p ≺ r}
deve ser contável.

18
Muitos defendem hoje que |R| = ℵ2 , o que está em conformidade com o argumento exposto.10
Todavia, Freiling estende a experiência conceptual inicial, no sentido de argumentar plausivel-
mente que a potência do contínuo não é ℵ2 , nem ℵ3 , nem ℵ4 , e assim por diante. Se jogamos
um terceiro dardo, é improvável cair em qualquer dos conjuntos definidos pelos primeiros dois
dardos. Isto conduz a outro axioma semelhante ao axioma de simetria descrito na parte final,
que por sua vez leva ao teorema de que o contínuo deve ter uma potência maior que ℵ2 . Um
quarto dardo justifica outro axioma de simetria e o teorema consequente que o contínuo deve
ser maior que ℵ3 . Continuando nesta maneira, podemos mostrar que o contínuo é maior que
qualquer ℵ finito, isto é, 2ℵ 0 > ℵn para qualquer n finito. Freiling usa o método dos dardos
para argumentar a favor de certos outros resultados e lançar dúvidas sobre o Axioma da Escolha,
o Teorema da Boa-ordenação, o Axioma de Martin, e muitos outros, mas não tratamos disto aqui
(ver Freiling 1986).
Embora o trabalho de Freiling tenha sido largamente ignorado, houve todavia algumas críticas
e objecções, veiculadas, por exemplo, no Forum FOM (‘Foundations of Mathematics’), e podem
ser encontradas no arquivo de FOM localizado em http://www.cs.nyu.edu/pipermail/fom/. Os
sentimentos de dois arguentes que participaram na discussão são típicos:

“O argumento de Freiling depende de supor que o conceito de aleatoridade/probabi-


lidade/medida se aplica a certos conjuntos ‘estranhos’ associados a uma boa-ordem
dos reais. Fomos todos doutrinados na escola sobre como o Axioma da Escolha nos
permite construir conjuntos não-mensuráveis, logo não vejo por que razão devemos
acreditar que os conjuntos estranhos particulares no argumento de Freiling devam ser
mensuráveis.” (Timothy Chow)
“Importamos as nossas intuições sobre objectos físicos ordinários para um contexto
onde elas não fazem nenhum sentido. Dividir uma bola (como no “paradoxo” de
Banach-Tarski) não tem nada a ver com ‘cortar uma bola em pedaços’ no sentido
físico comum. No caso do argumento de Freiling, que significado tem a frase ‘lancei
um dardo à parede, e acertei num ponto com coordenadas racionais.’ ? Nenhum!”
(Alasdair Urquhart)

Uma pesquisa na Internet permite também encontrar bastante literatura sobre o assunto.
Brown (2008) tenta responder a algumas destas e de outras objecções. Diz ele a concluir a
sua discussão:

“A primeira lição, é claro, é que HC é falsa. Naturalmente, não devemos estar tão
confiantes nisto como estaríamos de qualquer teorema simples provado da maneira
usual. Não obstante, o resultado parece tão sólido quanto muitas das coisas que
acreditamos sobre o mundo físico.
A segunda lição pode, com o tempo, tornar-se a mais importante. As provas vi-
suais e experiências conceptuais são uma fonte potencial de conhecimento matemático
que estão em grande parte inexploradas. Deviam ser exploradas e aproveitadas. Isto
é um recurso que tem até agora sido confinado ao papel de artifício heurístico e coad-
juvante psicológico, mas nada mais. Pelo contrário, como tenho defendido em todo
este livro, muito mais é possível. Só os perdidamente falhos de imaginação aceitarão o
ponto de vista de que alguns problemas matemáticos são verdadeiramente insolúveis.
Podem ser insolúveis por métodos existentes, mas não há nenhuma razão para ficar
de mãos amarradas com tais ferramentas empobrecidas. Duvido que as experiências
conceptuais possam resolver todos os problemas, mas poderão resolver alguns que
10 Os pontos de vista de Gödel encontram-se nos seus trabalhos (1948/64). Para uma apresentação (bastante

técnica) e discussão da pesquisa recente sobre HC veja-se Woodin (2001).

19
não podem ser resolvidos de outra maneira. Nem Deus nem Gauss proibiram o seu
uso. E mesmo que o tivessem feito, devíamos coçar o nariz e passar adiante.”

A título de curiosidade, mencionemos o seguinte resultado de Sierpinski, que não deixa de


lançar dúvida em alguns espíritos sobre a plausabilidade de HC.
Teorema de Sierpinski (1965: 400) HC é equivalente à proposição de que R3 é igual a
uma união de três conjuntos S1 , S2 , S3 tais que cada Si é finito em toda a recta paralela ao eixo
OXi ( i = 1, 2, 3).
Note que para esta cracterização se utilizam somente a geometria elementar e o conceito de
finito.

7.5 A versão de Freiling


A versão de Freiling (1986) é levemente diferente da versão acima. Ele assume os seguintes quatro
‘princípios filosóficos auto-evidentes’:

1. Escolher reais ao acaso é uma realidade física, ou pelo menos uma intuição que a matemática
deve abraçar na medida possível.
2. Um conjunto com medida de Lebesgue nula não será previsivelmente atingido por um dardo
aleatório.
3. Se uma predição Sim-Não exacta pode sempre ser feita depois de um acontecimento prelim-
inar ter lugar (por exemplo, o primeiro dardo é jogado) e, seja qual for o resultado daquele
acontecimento, a predição é sempre a mesma, então a predição é também exacta em algum
sentido antes do acontecimento preliminar.
4. A recta real não pode distinguir a ordem dos dardos. (Freiling 1986: 199)

O argumento de Freiling corre como segue: lançamos dois dardos, um depois do outro, sobre o
intervalo [0, 1]. Seja f : R → Pc (R) a função que associa um conjunto contável de números reais a
cada real de [0, 1]. O número atingido pelo segundo dardo não vai estar (com probabilidade um)
no conjunto contável associado ao número atingido pelo primeiro dardo. A situação é simétrica;
a ordem de lançamento é irrelevante. Assim, podemos dizer que o número atingido pelo primeiro
dardo não estará no conjunto associado ao segundo. Isto leva ao seguinte princípio, chamado o
Axioma de Simetria de Freiling:

(ASF) (∀f : R → Pc (R))(∃x)(∃y)(y ∈


/ f(x) ∧ x ∈
/ f(y))

Teorema (de ZFC): ASF⇔ ¬HC.


Prova: (⇒): Admitamos ASF e seja ≺ uma boa-ordem de R (existe uma tal, por AC).
Suponhamos HC, com vista a um absurdo, que implica que o comprimento da boa-ordem é ℵ1 .
Ponhamos f(x) = {y : y ¹ x}. Então f : R → Pc (R). A maneira como os números cardinais são
definidos implica que descemos sempre na cardinalidade quando escolhemos pontos precedents
numa boa-ordem. Além disso, uma boa-ordem é total, logo, se algum y ∈ / {y : y ¹ x}, então
y  x. Daqui resulta, por ASF, que (∃x)(∃y)(x ≺ y ∧ y ≺ x), o que é um absurdo. Portanto,
tem-se ¬HC.
(⇐): Admitamos a negação de HC, isto é, 2ℵ 0 > ℵ1 . Seja x0 , x1 , x2 , ... uma sucessão-ℵ1 de
números reais distintos e seja f : R → Pc (R). Consideremos agora o conjunto A = {x : (∃α <
ℵ1 )x ∈ f(xα )}, que é uma reunião-ℵ1 de conjuntos contáveis. Assim, o cardinal de A é ℵ1 .
Como 2ℵ 0 > ℵ1 , existe y ∈ / A. Então (∀α < ℵ1 )y ∈ / f(xα ). Como f(y) é contável, temos
que (∃α ∈ ℵ1 )xα ∈ / f(xα ) ∧ xα ∈
/ f(y). Portanto, y ∈ / f(y).¤

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Referências
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