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O GLOBETROTTER
DAS ESTRELAS

Autor
CLARK DARLTON

Tradução
S. PEREIRA MAGALHÃES

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Ele infringe as leis, mas presta auxílio
aos náufragos no planeta vivo.

Surgiu a nova época na História da Humanidade!


Desde os acontecimentos narrados no penúltimo número, 57
anos são passados, o calendário na Terra está marcando o ano
2.102.
Muita coisa aconteceu neste intervalo. Já passou o perigo
dos druufs, a zona de superposição entre os dois universos já há
muito se tornou instável, impossibilitando uma penetração. Com
o apoio dos terranos, o arcônida Atlan conseguiu consolidar sua
posição como imperador. A aliança entre Árcon e o Império Solar
produziu bons frutos, mormente para os terranos, que já ocupam
cargos de relevo em Árcon. Atlan não pode dispensá-los, pois não
confia na maioria dos seus conterrâneos.
O Império Solar se transformou na maior e mais importante
potência comercial das Galáxias. Há mais de 22 anos que são
quase ininterruptas as correntes emigratórias para mundos que
prestam-se à colonização. Conseqüência disso é a existência de
embaixadas e representações comerciais da Terra em muitos
planetas habitados por inteligências estranhas.
Em resumo, para muitos homens, o sonho de seus avós e
bisavós — poder viajar pelas estrelas — é já há muito tempo
simples realidade, como acontece, por exemplo, com O
Globetrotter das Estrelas...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Capitão Samuel Graybound — Contrabandista... mas
competente e humano.
Rex Knatterbul — Tenente; primeiro-oficial da Lizard.
Major Rammbüggl — Que pretende transformar um lobo-
do-espaço em comandante das supernaves...
Henry Smith — Humilde, mas excelente radiotelegrafista.
Toureiro — Papagaio inteligente, muito indiscreto...
Rhodan e Gucky — Por ora, náufragos da Fantasy.
1

Ao longo do gigantesco espaçoporto de Terrânia, enfileiram-se centenas de


construções de vulto, pertencentes às firmas e companhias comerciais que escolheram
aquela zona para seu quartel-general. É exatamente ali em Terrânia, um dos maiores
centros do comércio interestelar, que as firmas se sentem como na origem de tudo que
existe no cosmo.
Um pouco afastado daquele foco trepidante, ficava um prédio pequeno e modesto,
mas sólido, todo de pedra. Parecia um grande galpão, mas não era. Na frente, ostentava
uma tabuleta, aliás não muito grande. Para poder ler seus dizeres, era necessário ao
curioso aproximar-se bastante.

“Globetrotter das Estrelas” Cia. Ltda.


Companhia de Navegação Espacial.
Proprietário: Richard Flexner,
capitão da ativa

Se naquele dia, 16 de março do ano 2.102, alguém estivesse por perto, haveria de
ouvir uma voz berrando, xingando e blasfemando em todas as tonalidades. Fosse um
qualquer, certamente ficaria branco de medo e se afastaria. Mas aquela jovem senhora,
que descera do táxi e com passos firmes se dirigiu para o edifício, parecia não ter nada de
um qualquer.
Estava com um vestido leve de verão, chapéu de aba larga, uma linda bolsa de couro
e um tipo de sandálias muito em voga naquela época. Suas feições podiam ser
consideradas suaves, caso seus olhos não falassem de grande iniciativa, se bem que neles
residia também um tom de admoestação.
Realmente, Ludmila Graybound, nascida McBain, não era de brinquedo. Seu marido
sabia muito bem disso. Era ele quem estava esbravejando atrás das paredes da
“Globetrotter das Estrelas”, Companhia de Navegação Espacial, sem suspeitar da
aproximação de sua esposa.
O Capitão Samuel Graybound deu um pulo da cadeira, como se tivesse sentado em
cima de pregos pontudos.
— Você tem que me contar isto direito, Rich; talvez, então, eu possa acreditar em
suas palavras. Instituto para aprendizagem de cosmonáutica! Que besteira é esta? O que é
que eles querem de nós? Estes idiotas! Que o diabo os carregue!
Seu interlocutor era a calma personificada; achava-se acomodado numa cadeira atrás
da mesa que, com toda certeza, era um móvel ainda de dez séculos atrás.
— Meu caro Samuel, a excitação aumenta a pressão arterial — disse em tom de
conselho. — Vá lá e você ficará sabendo de tudo o que pretendem com você. Eu também
não lhe posso dizer o que seja.
— Aprendizagem cosmonáutica! — Samuel Graybound não conseguia tranqüilizar-
se. — Como se tivesse que aprender ainda alguma coisa? Estes idiotas, que os diabos os
levem para os quintos dos infernos.
— Calma, meu amigo! — tentou tranqüilizá-lo seu interlocutor e diretor da firma,
capitão da ativa Richard Flexner. — Não se deve nunca agir com precipitação. Afinal de
contas, este instituto de aprendizagem está subordinado à Administração Solar. É preciso
levar isto em consideração.
— Levar em consideração? Puxa! Somos uma companhia particular, com seis
cargueiros próprios. O que que há ainda para aprendermos, homem de Deus? Será que
vamos comerciar futuramente para o governo? Era só o que faltava. Haveriam de ficar
com os cabelos arrepiados se soubessem o que muitas vezes transportamos escondido.
— Tenha mais cuidado — sussurrou Flexner assustado, olhando em volta, como se
tivesse medo de alguém que pudesse ouvir uma frase daquela. — Não fale tão alto! Você
grita tanto que lá em Terrânia poderão ouvi-lo.
— Por mim, que ouçam até nos confins de Árcon — trovejou novamente o Capitão
Graybound, quase que possesso, alisando a barba ruiva, que não dava grande realce a seu
rosto.
Seu nariz tremia, o que servia geralmente para calcular o grau de sua cólera. As
bochechas caídas, quase sempre flácidas, tornavam-se agora rígidas. Sinal evidente de
que a ira de seu dono atingia o clímax.
— Quem é, hoje em dia, que não faz contrabando? Quem não o fizer é um idiota.
Flexner ficou branco.
— Pelo amor de Deus, Samuel, cale a boca agora. Você quer a desgraça de todos
nós? Nosso nome não é o mais limpo da praça, mas, de qualquer maneira, temos que
protegê-lo. Você é meu sócio, pelo menos no que diz respeito às ações, que estão em
poder de seu venerando sogro. Portanto, se continuar gritando assim, vai prejudicar a ele
e a você.
Graybound estava ofegante, queria responder alguma coisa, quando ouviu passos
atrás de si, no corredor. Soltou um muxoxo, virou-se para trás e viu a velha maçaneta
começando a girar.
O próprio Flexner não escondeu o medo.
“Uma visita?”, pensou. “Tomara que ela não tenha ouvido nada que este maluco
falou.”
Flexner, porém, respirou tranqüilo ao reconhecer a elegante figura de Ludmila
Graybound. Ela entrou no recinto, fechou a porta atrás de si e pôs as mãos na cintura.
— Que está havendo aqui? Por que esta gritaria? — queria saber, olhando para seu
marido inquisitivamente. — Vamos, desembuche! Perdeu a língua?
Samuel Graybound tinha cinqüenta e dois anos, Ludmila estava com suas vinte
primaveras. É verdade que, após o casamento, ela negligenciara um tanto a conservação
da juventude. Mesmo assim, a diferença de idade entre os dois era grande demais para
não dar na vista de qualquer um. O capitão não tinha medo de nada neste mundo. Não
existia perigo que fosse suficiente para impedi-lo de fazer o que queria. Arrancaria até os
cabelos do diabo, fio por fio, se alguém lhe tivesse solicitado isto e se ele soubesse onde
encontrar o diabo. Mas, diante de sua frágil mulher, capitulava sempre, sem impor
condições.
— Mas, meu anjo — sussurrou carinhoso, apontando-lhe uma cadeira para sentar.
— Não quer se acomodar primeiro? Terminamos agora nossos acertos de rotina...
— Quantas vezes tenho de lhe dizer que você não deve mentir para mim — disse
firme, afastando a mão dele. — Pode deixar que eu sento sozinha. E desde quando é que
meu pai e contrabando pertencem aos “acertos de rotina?”
— Temos que construir paredes à prova de som — disse Graybound em voz mais
baixa, puxando uma cadeira para si.
Quando se sentou, confiando seu peso-monstro à frágil madeira, parecia que Flexner
estava rezando escondido para que a cadeira não quebrasse. Graybound era baixote, mas
de compleição muito forte e com uma barriga respeitável. Mas a cadeira acabou
resistindo.
— Quem é que está fazendo contrabando? — insistia Ludmila, com os olhos
faiscantes.
Graybound se encolheu todo na cadeira.
— Estávamos apenas comentando a situação — disse Flexner numa tentativa de
salvar as aparências. — O que é muito mais importante é o fato de que seu marido, minha
querida, recebeu uma citação para comparecer...
— ...perante o tribunal? — completou apavorada Ludmila.
— Não, para comparecer ao Instituto de Aprendizagem de Cosmonáutica. O
documento oficial foi entregue hoje cedo. Como você sabe, seu marido partiria hoje com
a Lizard para o sistema de Tuglan.
— Sei sim. Levaria brinquedos de criança e ursinhos de pelúcia para a garotada de
Tuglan. Ele me contou.
— E é verdade, senhora Graybound. Principalmente os ursinhos de pelúcia, que lá
são muito procurados e muito caros — deu uma risada feliz. — Os ursinhos da Terra
pertencem aos artigos de exportação mais rendosos.
A julgar pela expressão fisionômica de Ludmila, não estava acreditando nada
naquela história de ursinho de pelúcia. Não tinha nada contra os bichinhos e brinquedos,
mas não podia compreender por que tais artigos não podiam ser fabricados lá mesmo em
Tuglan.
— E então chegou esta incômoda citação, não é? — fixou-se em Samuel
Graybound, que tentava fugir do seu olhar. — O que eles querem? Será que você já
aprontou mais alguma, Gray?
Por um momento, Graybound perdeu o autodomínio:
— Como posso adivinhar? Sei lá o que estes burros pretendem? — gritou
esbravejando. Pouco depois voltou à calma. — Perdoe-me, querida, apenas não consigo
imaginar o que seja.
— Aprendizagem? — disse pensativa. — Na sua idade, você não vai aprender mais
nada, não é?
Graybound estremeceu. Não tolerava alusões à sua idade, e quando estas vinham de
sua esposa, menos ainda. Fez um esforço doido para se dominar.
— A idade — disse dogmático — não tem a menor importância. A gente é velho ou
moço, conforme nós mesmos nos sentimos.
— Vou lembrá-lo disso, no momento oportuno — disse Ludmila com um sorriso
especial, e logo depois voltou a ficar séria.
— Sim, se você não sabe, então vá até o Instituto. Lá ficará sabendo de tudo. E
quando é que vai voltar?
— Logo após o almoço.
Ludmila se ajeitou, buscando acomodar-se melhor na poltrona.
— Vou esperar por você aqui no escritório do senhor Flexner.
— Oh! É um grande prazer — falou Flexner, olhando de soslaio para seu sócio.
— Assim, certamente, o tempo passará mais rápido.
— Não tenho dúvida disso — resmungou Graybound, fitando pensativo o chefe da
firma.
Flexner tinha a mesma idade que ele, parecia, porém, muito mais jovem, devido a
seu porte mais atlético. Era solteirão e tinha fama de ser um terrível dom-juan.
Conheciam-no pelos bares de Terrânia como um freguês generoso e um excelente
cavalheiro.
Graybound não estava muito tranqüilo, não por ter de deixar Ludmila em companhia
de Flexner, mas pelo fato de ela estar ciente das novidades. Aliás, inquietantes novidades.
— Quer dizer que vou voltar aos bancos da escola, outra vez! — disse ele. —
Aprendizagem... Este pessoal ficou maluco. Quem sabe até vão me rebaixar para fuzileiro
naval?
Falou mais alguma coisa e se encaminhou para a porta.
— Controle-se e não cometa nenhuma burrice — era a voz de sua esposa. — Pense
sempre que há pessoas que são mais poderosas e fortes que você.
— Bobagem! — disse Graybound, batendo a porta atrás de si.
No corredor, e também ao ar livre lá fora, deu expansão aos seus sentimentos,
falando consigo mesmo e se censurando por dar atenção à citação do tal instituto.
Quando já estava a uns cem metros do escritório, começou a altear a voz.
Felizmente ninguém o poderia ouvir, a não ser ele .mesmo.
— Estes idiotas! Podem entender alguma coisa teoricamente, mas o que sabem fazer
na prática? Nada. Absolutamente nada. Funcionários públicos, burocratas, parasitas da
nação!
Em largas passadas, dirigiu-se ao estacionamento à beira do campo, onde estava seu
carro. Abriu-o, movimentou o segredo da chave de ignição e sentou-se resmungando
alguma coisa. Antes de dar a partida, olhou para os hangares.
Lá estavam as três naves da “Globetrotter das Estrelas”. Eram espaçonaves velhas,
cargueiros esféricos, de oitenta metros de diâmetro, ainda funcionando com o antigo
sistema dos supersaltos de transição. Em seu interior, além de algumas cabinas e as
máquinas de propulsão, todo o espaço restante era depósito para mercadoria. Não havia
luxo, nem conforto. Mas o que a Lizard transportava às escondidas não era da conta de
ninguém, excluindo seu capitão Graybound e seus dezoito tripulantes.
— Aprendizagem...! — repetia furioso e um pouco preocupado. — Mas esta gente
vai se arrepender!
E seu carro disparou na direção de Terrânia.

***

Um enorme arranha-céu na periferia da cidade. Milhares de escritórios. Em volta,


campos verdejantes e bancos. Ao lado, o Instituto, com seus laboratórios e estações
experimentais. Um outro conjunto arquitetônico, bem protegido por alto gradil de ferro e
por inúmeros guardas. Era o Instituto de Aprendizagem de Cosmonáutica.
O inspetor-chefe Major Ludwig Rammbüggl parecia esconder-se atrás de uma
enorme mesa de trabalho, onde remexia num catatau de folhas avulsas. O secretário, que
o ajudava, disse-lhe rapidamente:
— Algumas novas propostas saídas do cérebro eletrônico. Os candidatos vão se
apresentar a partir de hoje. Senhor, já preparei tudo.
— Está certo, Pierre. No meio destas propostas, estão alguns dos convocados?
Sob o termo “convocados”, entendiam-se os membros da Frota Espacial e da Frota
Comercial que não se apresentaram voluntariamente para a aprendizagem, mas foram
considerados pelos dados do computador como altamente qualificados para isto.
— Perfeitamente, senhor. Há um deles, um tal de Capitão Samuel Graybound.
O secretário folheou o grosso catatau de fichas e tirou uma delas, apresentando-a ao
chefe.
— Aqui estão os documentos.
O major começou a estudá-los. Seu semblante, antes calmo, se anuviou de repente e
as rugas de sua testa pressupunham algo de desagradável. Num nervosismo crescente,
acabou de folhear os papéis, parecendo não saber o que fazer.
— O computador deve ter-se enganado — afirmou ele. — Certamente uma pequena
confusão.
— Impossível, sir. O senhor sabe melhor do que eu que qualquer confusão está
totalmente excluída.
— Aí é que está a questão — explicou o Major Ludwig Rammbüggl, alvoroçado. —
Mas este aqui... — apontou no papel — ...Capitão Graybound, não poderá nunca ser
considerado capaz de dirigir uma das modernas naves. Estou até convencido de que ele
não vai aparecer por aqui. Um caráter assim como o....
O leve zumbido dos alto-falantes do intercomunicador o interrompeu. O zeloso
secretário correu e transferiu a ligação para a mesa do chefe.
— Escritório do Major Rammbüggl — apresentou-se ele.
— Um tal de Capitão Graybound está aqui e traz uma citação...
— Mande-o entrar! — gritou o major, interferindo no diálogo, para logo depois
refestelar-se no espaldar da poltrona, como se se sentisse mal. — Quem vai compreender
isto? O homem atendeu à convocação.
— Quem sabe, o senhor está enganado e o homem é mesmo competente, mais do
que o senhor calcula. Os documentos também falham...
— Permita Deus! Mas vamos ver.
E viram mesmo. A porta se abriu e o Capitão Samuel Graybound se precipitou no
escritório. Olhou primeiro para o secretário Pierre e depois para o Major Rammbüggl.
Seus cabelos ruivos maltratados e em desalinho lhe caíam pela testa. A barba também
deixava muito a desejar. Mas as bochechas avermelhadas tremiam, o que significava
grande nervosismo.
— Quem foi que me mandou este estúpido “bilhete”? — esbravejou com toda fúria,
atirando o papel da citação em cima da mesa de Rammbüggl. — Tenho mais coisa a
fazer, do que perder tempo com burocratas.
O pobre do major enrubesceu, de tão assustado que ficou. Pierre recuou uns passos e
olhava para Graybound como se ele fosse um animal pré-histórico. Jamais tinha visto
alguém tratar assim seu distinto chefe.
“Que sujeito atrevido!”, pensou Pierre.
Graybound olhava por sua vez para o rosto vermelho do homem que lhe estava à
frente, como se se tratasse de um fenômeno científico. Depois, balançando a cabeça,
procurou por uma cadeira. Não encontrando nenhuma, teve que ficar de pé. Mas inclinou-
se para a frente, apoiando as mãos na mesa de trabalho de Rammbüggl.
— Graybound é meu nome. Capitão Samuel Graybound, comandante do cargueiro
Lizard, da “Globetrotter das Estrelas”. E quem é o senhor?
O Major Rammbüggl foi se recuperando aos poucos. Mas o “e quem é o senhor”
soou de tal maneira debochado e menosprezante, que ele quase explodiu. A vermelhidão
do rosto foi desaparecendo enquanto respondia:
— Major Ludwig Rammbüggl, chefe da seção de Novos Contatos.
Graybound se inclinou mais para frente ainda, e encarou firme seu interlocutor, sem
compreender nada.
— Rammbüggl? — repetiu ele e começou a rir sem parar. — Pelos anéis de
Saturno! Que nome horrível!
— Senhor! Mais respeito, por favor!
— Que respeito...? — continuou Graybound indiferente. — Ninguém lhe disse isto
até hoje? E o senhor nunca notou o ridículo de seu nome? Então já era tempo que alguém
lhe dissesse.
— Cavalheiro!
— Sim! — confirmou o capitão, mais sereno, acenando com a cabeça como se
tivesse gostado do tratamento. — É isto que realmente eu sou. E estou pronto para partir
os ossos de quem afirmar o contrário.
Aspirou profundamente.
— O senhor me pode fazer o grande favor de me comunicar por que razão fui
intimado a vir aqui?
O major afundou de novo no acolchoado da poltrona e, com os dedos ágeis, folheou
o maço de papéis.
— O senhor é o Capitão Samuel Graybound?
— Já me apresentei claramente no início, mas parece que sua cabeça é muito dura.
— O senhor está aqui somente para responder às minhas perguntas e nada mais.
Portanto, é o tal capitão ou não é?
Graybound deu um suspiro e fez uma cara de quem vai ensinar o beabá às
criancinhas.
— Sim, sou eu mesmo.
O major continuou consultando os papéis.
— Casado com Ludmila, nascida McBain.
— Infelizmente, senhor major. Sócio da firma “Globetrotter das Estrelas” e
comandante do cargueiro espacial Lizard com a tripulação de dezoito homens.
O Major Rammbüggl deu a entender claramente que não queria mais ser
interrompido, nem por confirmação.
— Quando jovem foi oficial da Frota Espacial, sendo, porém, demitido por
alcoolismo e indisciplina.
— Falso, major! — interrompeu Graybound com toda dignidade. — Antes que os
imbecis me pudessem expulsar, fiz um requerimento solicitando meu desligamento da
Frota Espacial. Anote isto, por favor, Major Bammrüggl!
— Rammbüggl! — corrigiu o major no mesmo instante.
— Mesmo assim, não ficou melhor — Graybound fez uma mesura forçada e
repetiu: — Rammbüggl.
— Major, sim? — gritou Rammbüggl com toda força.
Graybound balançou a cabeça:
— Eu sou apenas capitão, se me permite.
O major teve que desistir.
— Depois o senhor se tornou comandante comercial numa nave cargueira da
General Cosmic Company. Dois anos mais tarde, deixou esta empresa e ingressou na
“Globetrotter das Estrelas”, logo após ter se casado com a filha única de... — olhou para
os papéis — ...Ephraim McBain, que possuía a maioria das ações da companhia. Assim o
senhor se tornou também um sócio.
— Não casei-me por interesse — garantiu ele com muita franqueza, para logo
depois explodir em fúria: — Meus assuntos particulares não são da sua conta, seu
fofoqueiro! Preocupe-se primeiro com suas bandalheiras, que devem ser muitas.
O Major Rammbüggl se levantou vermelho como um pimentão.
— Cale a boca — gritou furioso — senão eu o toco daqui para fora.
— Não precisa, pois o que mais quero é sair daqui. Não tenho realmente tempo para
perder.
— Não! Então, o senhor fica! — ordenou Rammbüggl, exasperado.
O major sabia que seu trabalho seria infrutífero, mas tinha que cumprir as
prescrições.
— O senhor casou com sua mulher, não é?
— É mais do que lógico, não é? Acho que todo homem casa com sua mulher e não
com a mulher do vizinho.
Desta vez, o major se dominou e continuou:
— Uma senhora muito jovem. A diferença de idade não o atrapalha?
— A mim, não. Será que atrapalha ao senhor?
O major desistiu de fazer novas perguntas sobre sua vida conjugal. Não estava mais
aguentando.
— Os documentos dizem que foi acusado duas vezes de tentativa de contrabando.
Não foi possível a apresentação de provas, motivo pelo qual o senhor ainda está em
liberdade. Além disso, consta que...
— Calúnia! Deslavada calúnia! Tenho muitos que me invejam. O senhor talvez não?
— O senhor não foi pronunciado por falta de prova concludente, mais não pude
saber. Ademais, parece que o senhor não leva as leis muito a sério.
— É outra coisa que o senhor não pode provar — disse com uma gargalhada
triunfante.
— Um momento! — falou o major folheando de novo o catatau de documentos.
Apanhou então uma ficha azul e começou a lê-la, franzindo a testa e abanando a
cabeça.
— Aqui está a apreciação do computador, onde lançamos todos os seus dados para o
cálculo. A dedução clara e coerente que daí resulta é que o senhor é um piloto espacial
muito capacitado, com longa experiência. Além disso, o cérebro eletrônico constata que o
senhor deve ser convocado para a aprendizagem e estará apto para comandar uma das
novas supernaves.
Graybound ouviu tudo. E voltou a curvar-se, apoiando-se na mesa do major. Para ter
mais espaço, empurrou o papelório para o lado. Algumas folhas caíram no chão e foram
apanhadas cuidadosamente por Pierre e novamente ajuntadas sobre a mesa.
— Novas supernaves? O que o senhor quer dizer?
O Major Rammbüggl aspirou profundamente. Era chegada a sua hora.
“Este sujeito completamente maluco”, pensou, “vai ficar de olhos arregalados.”
— Trata-se da nova propulsão linear de velocidade muitas vezes superior à da luz —
anunciou o major, com ares de profeta. — Este tipo de propulsão foi desenvolvido nos
últimos decênios. No momento, o próprio Perry Rhodan se encontra num vôo
experimental de longo alcance, do qual ele ainda não regressou...
— E jamais retornará — disse Graybound, dando vazão à sua contrariedade a
respeito desta novidade. — Como é que Rhodan foi se meter num bicho-de-sete-cabeças
deste, ao invés de continuar se utilizando dos velhos e comprovados métodos do vôo por
hipersaltos de transição?
— Não se preocupe com o administrador. De qualquer maneira, novos couraçados
com propulsão linear serão imediatamente incorporados à Frota Espacial. Para isto, serão
necessários comandantes de comprovada capacitação. Os candidatos, escolhidos a dedo,
farão o aprendizado em nosso Instituto. Por isto é que o senhor está aqui, para uma
simples reciclagem.
— Reciclagem? Eu? — Graybound estava de fato boquiaberto. — Exatamente a
mim é que vocês foram escolher? Vocês estão completamente doidos, doidos varridos!
— Tenha a bondade, capitão!
— Tenha a bondade, digo eu, Major Knalldübel. Mas o senhor está perdendo seu
tempo. Eu fico com a velha e honrada cosmonáutica e não quero saber destas novidades
malucas. Diga isto a seus superiores. Posso ir-me embora agora?
— Meu nome é Rammbüggl — protestou energicamente o major, esforçando-se
desesperadamente para salvar seu nome da tremenda verborréia do capitão. — O que o
senhor quer ou pensa, não tem maior importância. O cérebro eletrônico decidiu e está
acabado.
— O que eu devo a este montão de lata velha, hein? Afinal, sou eu o dono de
minhas decisões e mais ninguém. Estamos numa democracia, ou não? Eu não quero e
acabou.
— Espere um pouco! — disse Rammbüggl, correndo atrás dele. — Você não pode
se recusar sem mais nem menos, sem ter se submetido a um exame. Se o senhor não
passar na prova, ninguém poderá forçá-lo a fazer uma reciclagem.
— Exame, prova? — perguntou desconfiado. — Que tipo de prova?
— Conhecimentos técnicos, características psicológicas, cultura geral e outras
coisas de rotina.
— Ah! Características psicológicas...! — repetiu Graybound, admirado. — Então,
não há dúvida de que já tomei bomba. Até logo.
— Pare — gritou o major. — Espere. O teste ainda tem que ser feito, porque...
O capitão hesitou um pouco. Muito pensativo, virou-se devagar e olhou para o
major. Balançou a cabeça e disse:
— O senhor está com a razão — depois mudou o tom de voz. — O senhor merece
que eu lhe faça um teste.
Graybound caminhou dois passos para frente e gritou com todas as forças de seu
pulmão:
— O senhor é o burro mais quadrado que circula por este miserável planeta. O
senhor é um idiota, o senhor é um... um..., sim, o senhor é um Rammbüggl verdadeiro!
— Eu me chamo Rammbüggl! — exclamou o major, confuso.
Seu pobre secretário correu assustado para um canto da sala e devia estar pensando
que o mundo iria desabar.
— Vou mandar prendê-lo por ofensa e grave falta de respeito — berrou o major. —
Isto é o cúmulo!
— Quer dizer que não passei no teste? — perguntou o capitão, cortês e já em tom
moderado. — Ou ainda existem outras provas? Não quero trabalhar num destes
rastejadores modernos. Prefiro minha velha espaçonave de saltos de transição.
Compreendeu isto, seu imitação de oficial? Ora veja... candidato a piloto de rastejador!
Foi a partir daquele momento que as novas supernaves de propulsão linear
começaram a ser chamadas de “rastejadoras”. Foi a hora do surgimento de um novo
conceito. Mas nem Graybound, nem Rammbüggl ainda não tinham tal idéia a respeito.
O major pegou um grande lápis vermelho de cima da mesa e traçou um risco bem
forte na diagonal da ficha azul do computador.
— Inadequado! — gritou, quase perdendo a respiração. — Completamente
inadequado! Tanto quanto ao caráter, como quanto à cultura geral. Desapareça daqui,
homem. Não quero vê-lo nunca mais em minha vida. E se chegar alguma coisa ao meu
ouvido, tais como transgressão da lei, e etc... terá muita dor-de-cabeça. Acautele-se,
portanto, pois nós não estamos ainda quites. E foi o senhor quem saiu me devendo.
— Então, estou dispensado — disse Graybound, intimamente aliviado. — Pode se
dar por muito feliz, se eu não fizer uma reclamação contra o senhor.
Foi até a porta e, ao abri-la:
— Passe bem, Major Schwammflügel.
— Rammbüggl! — exasperou-se o oficial do IAC.
Com passos enérgicos, o capitão atravessou a ante-sala, sem dar atenção à
secretária. Bateu com força a segunda porta e ganhou o corredor. Num instante achou o
atalho para o estacionamento onde se achava seu carro.
“Aprendizagem! Reciclagem!”, refletia Graybound. “Eles é que precisam de uma
reciclagem. Que tolice! Quererem me colocar de novo num uniforme do Império, num
molde pré-fabricado do ‘cumprimento honroso do dever’, como eles dizem.”
A uma velocidade não permitida no trânsito, disparou para o edifício da
“Globetrotter das Estrelas”. Estacionou, a seguir, e caminhou com passo lento em
direção ao escritório onde se achava seu sócio.
— Já está de volta? — disse Ludmila, contente. — Estávamos com medo de que o
tivessem segurado por lá.
— Esses malucos! — deixou-se cair na cadeira. — Aprendizagem!
— Aliás — disse Richard Flexner, com boa dose de ironia — nem se nota que você
tenha aprendido alguma coisa. Será que eles chegaram a tentar? O que foi, afinal de
contas, que se passou por lá?
— Queriam me obrigar a comandar um rastejador. A serviço do Império.
Completamente malucos!
— Rastejador?
— Sim, este negócio moderno, de propulsão linear, se é que entendi bem.
— Ah! — compreendeu logo Flexner, pois muito se falava a respeito ultimamente.
— Mas acho que vão nos deixar em paz agora. Para mim não há nada melhor do que a
técnica da transição.
— É minha opinião também — acudiu Graybound.
Levantou-se de novo, foi até sua esposa, colocando-lhe a mão direita no ombro.
— Já estou com um atraso de uma hora. Em poucos dias estarei de volta. Adeus,
meu amor. Você já sabe, não é? Ursinhos de pelúcia para Tuglan. A criançada de Tuglan
já está esperando.
Ludmila olhou para Flexner com alguma desconfiança.
— Será que o carregamento é mesmo de brinquedos e de ursinhos? — perguntou
ela, deixando ver claro nos seus olhos que pensava em tudo, menos em brinquedos.
— Dou minha palavra de honra — acudiu Flexner, com aparente franqueza. — Se o
cargueiro sofrer uma inspeção, a mercadoria tem que ser aquela que está nas guias de
despacho. A senhora vê, portanto...
— Não se preocupe tanto com meus negócios, querida.
Graybound já estava perdendo a calma, mas diante dos olhos tristes da esposa,
abrandou-se de novo.
— Vou trazer alguma coisa especial para você.
Deu-lhe um beijo, apanhou as guias de despacho e os relatórios alfandegários das
mãos de Flexner e deixou o recinto a passos largos.
Desta vez, pegou um táxi que o levou quase que até o local da decolagem. As três
velhas naves da “Globetrotter das Estrelas” estavam bem juntas. Os tripulantes iam e
vinham e, como parecia, as duas naves gêmeas estavam sendo carregadas. Caminhões
elétricos faziam fila diante da grande escotilha.
A Lizard já estava com quase todas as escotilhas fechadas e com a tripulação
completa a bordo. A folga do pessoal terminara pela manhã daquele dia, mas algumas
horas já eram passadas.
Um oficial da administração do espaço-porto veio ao encontro de Graybound, assim
que este deixou o táxi. Apontando para a Lizard, indagou:
— É sua nave, capitão?
— Puxa! Dopner, você está cansado de saber que é, não?
— Em serviço, capitão, não conheço ninguém.
Graybound sentiu como sua alergia e mesmo o ódio contra a burocracia se
agigantavam dentro dele. Mas soube se dominar. Dopner era importante demais, para se
perder a paciência com ele.
— Ah! É verdade, ia-me esquecendo.
Permita-me apresentar-me. Meu nome é Graybound, Capitão Samuel Graybound da
“Globetrotter das Estrelas”. E quem é o senhor?
— Sou o Tenente Dopner, conferente da alfândega. Qual é a carga que o senhor tem
a declarar, Capitão Graybound?
— Ursinhos de pelúcia.
O tenente franziu a testa. Olhou primeiro para Graybound e depois para a Lizard.
Sem dizer uma palavra, estendeu a mão.
— Papéis, por favor.
Dopner olhou atentamente os relatórios.
A cada instante, aterrissavam e decolavam no espaçoporto de Terrânia naves
comerciais e unidades da Frota Solar. Os rígidos controles de outrora haviam diminuído
muito, pois o contrabando, mesmo ainda existindo, andava escasso. Pesadas multas
ajudaram a rarear o comércio clandestino. Era muito comum que naves particulares
efetuassem transporte para o Império. A administração cuidava quase que exclusivamente
para que as espaçonaves fossem despachadas em ordem.
— Muito bem. Ursinhos de pelúcia — Dopner não podia simplesmente
compreender com o que se pode comerciar hoje em dia...
— Você precisa ver, pelo menos uma vez, como estes bichinhos são encantadores —
disse-lhe Graybound depois de receber carimbados e assinados os relatórios. — Quem
sabe terei o prazer de lhe dar alguns para suas crianças?
— Não tenho filhos, não sou casado.
— Isto não seria razão para recusar, Dopner — depois, refletindo melhor, continuou:
— Posso decolar?
— Claro que sim, Graybound, já está tudo assinado — disse o tenente, se retirando.
Mesmo o mais atento observador não descobriria que se tratava de dois íntimos
amigos, que muitas vezes faziam juntos boas farras nos bares de Terrânia. Porém as
prescrições de serviço lhes proibiam manifestações de amizade no trabalho.
Graybound murmurou qualquer coisa mais ou menos parecida com “a gente devia
enforcar todos os burocratas”, enquanto caminhava rápido para o cargueiro. Uma
averiguação mais detalhada da carga declarada, ser-lhe-ia um abacaxi, por muitos
motivos... Só depois da decolagem é que o perigo desaparecia.
Na escotilha aberta da nave esférica de oitenta metros de diâmetro estava um
homem esperando. Era tão baixo que se tornava difícil reconhecê-lo, mas Graybound
sabia quem era. Entrou no elevador e subiu, chegando à plataforma que dava para a
escotilha.
— Olá, Rex! — disse, levantando a mão numa displicente continência. — Parece
que você está pisando em brasa, hein?
— Já devíamos ter partido há mais de uma hora, Samuel. Que aconteceu com você?
— Depois eu lhe conto, agora não. Já temos permissão para decolar.
Aquele baixote portava o uniforme de tenente. Seu rosto estava um pouco
desfigurado por sinais de varíola e não inspirava muita confiança. O nariz achatado de
boxeador simbolizava as difíceis lutas de seu dono. No olhar, porém, havia um ar de
bondade, que certamente não rimava com seu comportamento. Rex Knatterbul era
primeiro-oficial da Lizard e muito íntimo de Graybound.
— Tudo pronto para a partida, Samuel.
— Então, vamos embora. Graybound entrou na escotilha e fez com que a rampa
fosse recolhida. Fechou a última escotilha e, acompanhado por Rex, se dirigiu para o
posto de comando. A instalação automática de ventilação entrou em ação, como se a
Lizard já estivesse no espaço.
As telas panorâmicas começaram a funcionar. Viam-se as inúmeras espaçonaves no
espaçoporto de Terrânia. A positrônica de bordo pôs o envoltório energético para
funcionar. Depois, tal envoltório cintilava levemente à luz do Sol, se aproximando do
poente.
— Todos os homens a postos — foi o aviso do intercomunicador. — Partida em dez
segundos — repetiu Graybound.

***

Depois da primeira transição, continuaram voando com velocidade inferior à da luz.


Agora, examinariam e calculariam a nova rota, pois Graybound tinha em mente algo
muito diferente do que voar para Tuglan. Seu objetivo estava a 12.618 anos-luz de
distância e se chamava Glatra III, um mundo agora ocupado pelos saltadores. Para um
certo tipo de mercadoria proveniente da Terra, os barbudos pagavam um bom preço.
Naturalmente, as autoridades terranas não podiam perceber nada daquele comércio. E
muito menos podiam saber que a Lizard aterrissara num planeta dos saltadores.
Os computadores começaram a funcionar. A positrônica de bordo, engolindo os
dados, calculava as próximas transições.
Quando se sentiram a sós no posto de comando, Rex Knatterbul falou:
— Há uma coisa que deixou para explicar-me mais tarde, Samuel: a razão do seu
atraso.
Graybound acenou positivamente e, levantando-se de sua poltrona, que, contra toda
a tradição de construção cosmonáutica, estava ao lado do posto de comando, abriu a porta
de uma gaiola.
— Louro, louro, meu amigo no espaço, você não quer sair, não?
Rex bocejou. Já conhecia demais a palhaçada com o maluco do papagaio.
Graybound parecia gostar mais daquele papagaio do que de sua esposa. Pegava-o pelas
asas, e o considerava como uma espécie de talismã. Trazia-lhe felicidade, dizia ele. E
ninguém teria coragem de contrariar-lhe tal parecer ou de falar que aquilo era pura
ignorância.
Mas o papagaio, com o nome de Toureiro, era mesmo impagável. Falava muito bem
e muitas vezes dizia coisas que se casavam bem com a situação. Naturalmente, era
mesmo mero acaso, como qualquer um sabe. No entanto, Graybound afirmava categórico
que seu papagaio tinha mais juízo que a maioria de seus tripulantes.
— Bom dia! Oba, oba! — ouviu-se na cabina ao lado.
Depois seguiu-se um ruflar de asas e Toureiro veio voando e pousou no ombro de
Graybound, dizendo:
— Vovô, vovô!
Mas era o único a bordo que podia chamar Graybound de vovô.
— Convocaram-me para o Instituto para uma cômica aprendizagem ou reciclagem,
como eles dizem. Eu teria que ser comandante de uma supernave de propulsão linear.
Chegaram a esta conclusão pelos resultados de seu computador que, “num ataque de
loucura”, me descobriu. Depois, fui examinado por um tal Major Rammbüggl, que me
achou imprestável. É tudo.
— Rammbüggl! Que nome maluco!
— O seu também é — disse, cocando a cabeça do papagaio. — Em compensação,
pude dizer-lhe toda a verdade a respeito da tal propulsão linear. É um “rastejamento”
desgraçado. Para mim a transição é muito melhor, mesmo que se diga que já está
superada. Toda a Frota Solar não chega aos pés da nossa Lizard.
— Puxa! Você tem certeza disto? — perguntou Rex Knatterbul. — E eles deixaram
você ir embora, sem mais nem menos?
— Não tive oportunidade de ficar sabendo muita coisa a respeito, mas me parece
que tal tipo de propulsão é um sonho... O major se mostrou muito compreensivo e fez
com que eu fosse reprovado na prova. Assim, fui liberado.
— Esquisito — disse o primeiro-oficial. — Muito estranho.
— Não há nada de estranho; é tudo bobagem. O computador deles deve ter se
enganado, isto pode acontecer.
— Você é doido! — falou Toureiro com sua voz rachada, mas muito nítida, em bom
inglês.
E quem ainda duvidaria de que era uma frase aplicável em qualquer circunstância?
— Cale a boca, bicho bobo! — exclamou zangado Rex, que não suportava o
papagaio.
Depois, dirigindo-se a Graybound:
— Samuel, logo eles vão procurá-lo de novo. Não desistirão tão depressa,
necessitam de boas cobaias.
— Para os novos supercouraçados?
— Claro que é. Essa gente, que não combina em nada com você, o trancafia nestes
caixões de aço e o leva lá para as estrelas do inferno. Se você não voltar, o prejuízo a
lamentar é só quanto à supernave, milhões de vezes mais veloz que a luz. Está claro?
— Não muito — disse Graybound. — Você acha que eles querem ficar livres de
Rhodan?
— Besteira! Como é que lhe vem uma idéia maluca assim?
— Porque Rhodan, há muitos dias, está viajando num destes aparelhos novos, para
experimentá-lo. Se ele expõe sua vida lá nos confins das estrelas, o negócio deve estar em
ordem. Ou você acha que...
— Não, isto muda o quadro, naturalmente. Estão procurando pessoas decentes, é
claro. Agora, o esquisito é que vieram dar justamente com você.
Graybound se ergueu da poltrona. Toureiro levou um susto e quase perdeu o
equilíbrio.
— O que você está insinuando aí, seu malandro, que eu não sou um homem
decente? Você, comandante falido de frota?!
— Bandido, assassino, caçador de ratos, querido! — gritava Toureiro, e não se
aquietava.
Graybound deu-lhe um peteleco nas costas e ele silenciou.
— O que eu quis dizer é que você não é “decente” como os oficiais quadradões da
frota — explicou Rex ao seu chefe. — Você tem uma mania terrível de entender tudo
errado...
— O major da aprendizagem também tinha — disse Graybound sorrindo. — Puxa,
ensinei muita coisa para este sujeito. Mas, quem sabe se o cérebro eletrônico estava com
razão? Pode ser que eu seja de fato um comandante muito capacitado e genial. Um
computador daqueles não pode enganar-se.
— Agora mesmo, você afirmou o contrário — disse Rex com muita cautela e em
voz fraca.
— Acho que a gente pode a todo instante reformular nossa opinião.
Do computador de bordo saiu uma tira de papel. Rex a apanhou, observando-a com
atenção.
— Outro salto de transição está prestes. O desvio da rota anunciada é considerável.
Se nossos irmãozinhos notarem isto?
— Nós diremos que foi mero acaso — disse Graybound, examinando a ficha e
comparando os dados dos saltos de transição com os do relatório de embarque. — É uma
grande diferença, mas podemos sempre dar a desculpa de que nossa velha geringonça se
descontrolou no espaço. Certamente haverão de acreditar.
— Não confio muito — disse Rex diminuindo as esperanças de Graybound. —
Temos ainda dez segundos antes da transição...

***

Quando saíram do hiperespaço e se re-materializaram no contínuo de Einstein, já


haviam deixado para trás três mil anos-luz. O sistema de Tuglan estava quase na direção
oposta.
— O próximo salto será daqui a trinta minutos — anunciou Rex.
O primeiro-oficial fazia também às vezes de navegador, já que a Lizard, com uma
tripulação de apenas dezoito homens, tinha deficiência de mão-de-obra.
— Temos ainda um pouco de tempo — concluiu Rex.
— Tempo para quê? — perguntou um velho de barba ruiva, admirado.
Rex calou-se, pois naquele momento a porta para a central de comando se abriu,
entrando um homem à paisana. Tinha na mão um bloco de rascunho.
— Que há de novo, Smith? — gritou Graybound. — Você tem que ficar na sua mesa
de rádio e só nos atrapalhar quando houver um motivo muito sério.
— Domador de ondas! — gritou Toureiro.
Henry Smith era de estatura pequena e tremendamente tímido. Era um homem que
parecia não combinar com o ambiente. Mas, no fundo, tudo não passava de uma
impressão errada. Cada um dos membros da tripulação tinha uma mancha no seu
passado. E também Smith, cujo nome certo ninguém sabia. Mas, não deixava de ser um
ótimo telegrafista e um excelente radiotécnico. Era o que interessava ao capitão.
— Cale a boca e não interrompa quem está falando — ordenou Graybound ao
papagaio. — Então, Smith, o que há?
— Sinais de rádio. Mais velozes do que a luz, mas não é hiper-rádio. Devem ter sido
emitidos a cinco horas-luz daqui.
Mais uma vez, o comandante se ergueu da poltrona.
— Com os diabos! E você vem me dizer isto só agora? E se for uma nave-patrulha
da Frota Solar?
— É um cruzador, senhor, rumando em nossa direção.
O primeiro-oficial pulou para o controle da transição. Faltavam ainda vinte e oito
minutos até a próxima transição. Muito tempo.
— Em nossa direção? — repetiu Graybound, aterrorizado. — O que quer ele?
— Não disse — respondeu Smith muito deprimido. — Mas, o que poderá querer de
nós? Declaração da rota, verificação da carga e coisinhas assim.
— Vagabundo! — disse Toureiro, bem nítido.
E ninguém podia saber a quem o papagaio se referia.
Um hipersalto não controlado acarretava uma série de perigos. Podia-se perder
totalmente a direção e nunca mais voltar ao local de origem. É verdade que todos os
dados eram guardados no computador e alguma coisa se poderia reconstruir, mas, mesmo
assim, o risco era grande demais. O próprio Capitão Graybound, com toda sua coragem,
não queria assumir tão grande responsabilidade. A este risco, seria preferível o controle
de uma possível nave-patrulha.
— Não responda nada, Smith, fique firme na escuta e não diga nada. Avise-me
quando esta patrulha chegar mais perto. Então teremos que desaparecer. Temos ainda
vinte e cinco minutos até o próximo salto.
Smith desapareceu e Rex estava manobrando os controles.
— Podemos saltar quando quisermos, Samuel.
— Espere, Rex. Se o fizermos, teremos de refazer todos os cálculos... caso tenhamos
sorte e não nos perdermos. Vamos, pois, manter o velho processo. Se o cruzador não
chegar a tempo, então saltaremos, como está programado. Se chegar antes, faremos o
salto no escuro, de qualquer maneira e para qualquer lugar. No fim, tudo vai dar certo.
Assim espero.
— Maluco! — interveio Toureiro.
Graybound soltou um palavrão daqueles, tirou o papagaio do ombro e olhou-o
firmemente.
— Não lhe acabei de dizer para não interromper quem está falando? Cale a boca,
seu cara de macaco. Vou prendê-lo no porão, ouviu?
Toureiro, ao menos por uns instantes, não falou mais. E assim pôde continuar no
ombro do Capitão Graybound e não ser trancafiado no porão. Naturalmente não se tratava
de um porão de verdade, mas apenas de um armário de armas da Lizard, que se
encontrava atrás do posto de comando. Tão bem escondido estava tal armário, que
ninguém o acharia, a não ser destruindo o cargueiro. E isto tornava-se muito importante,
pois, nos aparelhos de carga, é expressamente proibido o uso de armas. Graybound temia
uma vistoria em sua Lizard, porque havia muitas a bordo, até mesmo canhões
energéticos, capazes de destruir um cruzador.
Passaram-se dez minutos de angustiante incerteza.
De repente Smith entrou de novo no posto de comando.
— O cruzador fez uma transição e materializou-se a menos de um minuto-luz de
distância. Seu comandante exige que diminuamos a marcha e recebamos a bordo um
comando de investigação. Quer saber também por que não respondemos.
— Quem sabe podemos detê-los com dez minutos de prosa fiada — interveio Rex.
Graybound concordou.
— Pois bem, Smith, ponha-se em contato com eles e ligue depois para o posto de
comando. Eu mesmo quero falar com estes malandros.
Vinte segundos depois, apareceu na tela do videofone o rosto de um oficial da Frota
Solar. Sua testa se franzia em sinal de cólera controlada.
— O que vocês estão pensando que são, para não responder? Abram as escotilhas
para a inspeção!
Graybound tentou primeiro com boas maneiras:
— Nossa instalação de rádio está defeituosa. Às vezes funciona, às vezes não. No
momento parece estar boa.
— Deixe de falsa desculpa. Conhecemos muito bem todos estes truques.
Identifique-se:
— Cargueiro Lizard, da “Globetrotter das Estrelas”. Comandante: Capitão Samuel
Graybound. Carga para Tuglan.
— Graybound? — repetiu o oficial incrédulo. — Será o Graybound do papagaio? —
e começou de repente a sorrir. — Então temos muita sorte. Aposto que nossa visita a
bordo não lhe vai agradar muito.
— Pelo contrário, será um prazer — disse o capitão mentindo, maldizendo a
péssima reputação que possuía.
— Ah! Este aí é o tal papagaio? — perguntou o oficial, vendo o louro no ombro de
Graybound. — É mesmo tão inteligente como se diz?
— Burro quadrado! — vociferou Toureiro bem alto e nítido, e desta vez estava
evidente a quem ele se referia.
O oficial da Frota Solar ficou meio desnorteado.
— O senhor é ventríloquo?
O capitão consultou o relógio. Ainda faltavam cinco minutos...
— De vez em quando — respondeu com modéstia. — Mas, desta vez, não fui eu
não.
— Muito bem. Mas deixemos de lado a brincadeira. Abra a escotilha. Meu comando
já está a caminho. Eu chegarei um pouco mais tarde.
Smith, gesticulando muito, disse mais baixo:
— Já estão chegando, ao todo seis homens, comandante.
Rex fez uma cara de preocupado. Sua mão direita pousava firme na alavanca que
poderia provocar um hipersalto desprogramado, assim que fosse abaixada. Graybound
acenou para ele, sem dar porém o sinal para executar a manobra.
— Preste atenção, tenente, não pretendemos fazer mal algum à sua gente, por isso
não posso deixar que se aproximem mais de mim. Estamos agindo por ordem superior. O
senhor se torna criminalmente culpado. Entendido?
— Burro quadrado! — repetiu Toureiro com ênfase.
Graybound fez um sinal para Rex. A alavanca foi abaixada.
Diante dos olhos do enraivecido comandante do cruzador, que não era tenente, mas
sim major, a Lizard desapareceu.
O comando de investigação interrompeu seu vôo, voltando de mãos vazias para o
cruzador. Já era tarde demais para se tentar uma perseguição. Enquanto isto, o Capitão
Graybound mergulhara com sua Lizard no mar das estrelas.
2

Não era muito diferente a situação de Perry Rhodan e de sua gente a bordo da nave
experimental Fantasy.
Saindo de Ácon, a mais de quarenta mil anos-luz da Terra, haviam se perdido no
Universo. O vôo linear funcionava a contento, mas acontece que, depois de fugirem
precipitadamente de Ácon, ficaram sem saber onde estavam.
A Fantasy, uma nave esférica do tipo dos cruzadores pesados da série Terra, com
duzentos metros de diâmetro e parcialmente reformada, acolhia o novo tipo de propulsão
linear.
Não realizava mais as transições de hipersaltos, mas voava tranqüilamente com uma
velocidade milhões de vezes superior à da luz. A base técnica desta invenção viera dos
druufs, mas já estava muito alterada e substancialmente melhorada.
Quando voavam para Ácon, a Fantasy atravessou o núcleo de um sol, formando
assim um campo energético próprio, semelhante ao envoltório de proteção azul de Ácon.
O planeta atuara como um pólo de atração, puxando a Fantasy contra si. Desta maneira, a
descoberta do planeta-pátrio dos arcônidas, não foi obra do acaso, mas de uma lei
inflexível da natureza, depois do choque com o sol desconhecido.
E agora o vôo de regresso. Perdidos no espaço! Onde estava a Terra?
Vários tripulantes achavam-se na cabina de Rhodan, ligados com o comandante Jefe
Claudrin pelo videofone. No momento, Claudrin dirigia a câmara de tal maneira que se
podia ver todo o espaço lá fora. A descomunal densidade de estrelas indicava que
estavam no centro ou próximos do centro da Via Láctea. A Terra, porém, devia estar mais
para fora, na região mais pobre em estrelas. Era para lá que se devia orientar qualquer
tentativa de descoberta da direção do sistema solar. Um alarme de emergência já fora
transmitido por hiper-rádio, mas não ia adiantar muito, pois a Fantasy não podia dar sua
própria localização.
— Sir, já determinamos a posição de uma estrela, que nos servirá de ponto de apoio
— comunicou o Major Claudrin. — Estamos voando a uma velocidade de um milhão de
vezes superior à da luz. Quando nos aproximarmos mais, acho eu, poderemos fazer outras
medições de posicionamento.
Sentado ao lado de Rhodan, Reginald Bell disse:
— Não sou muito fanático pela nova tração linear. É verdade que a gente pode viajar
vendo as estrelas, mas é só! Temos maior velocidade do que antes? A propulsão é
melhor? Não, ainda prefiro as transições.
— E as dores na rematerialização? — lembrou-lhe Rhodan.
— Eram suportáveis, Perry. Sempre melhor do que se perder.
Rhodan olhou pensativo para o fogo de artifício galáctico das grandes concentrações
de estrelas.
As constelações se deslocavam lentamente, mas se deslocavam. Portanto, estavam
voando. Como o Major Krefenbac afirmara, encontravam-se em qualquer ponto entre
Árcon e a Terra, não podendo no entanto dar a posição exata.
E Hunt Krefenbac era um cosmonauta experimentado. Em situação mais favorável,
haveria de reconhecer uma das constelações, que naturalmente estavam em constante
alteração, conforme o ponto do observador. Krefenbac ainda conseguiria se orientar.
— Todo invento tem de ter sua fase, às vezes longa, de experimentação — falou
Rhodan. — Nós fomos as cobaias. Mas já sabemos quais são as coisas que devem ser
modificadas, isto é, melhoradas. Assim, por exemplo, os compensadores kalupianos...
— Como, por favor? — perguntou um homenzarrão numa poltrona ao lado.
Devia ter um metro e noventa, uma careca de brilho fosco e bochechas esponjosas.
Exteriormente, ninguém diria que ali estava o hiperfísico mais competente da Terra.
— O que tem o senhor a criticar nos meus compensadores?
— Meu querido Kalup, não tenho nada a criticar, mas o senhor não acha que devem
ser feitos alguns melhoramentos? As manobras ainda me parecem muito complicadas.
Nada tenho a dizer quanto à eficácia dos conversores, mas estaríamos perdidos, se eles
enguiçassem. Qualquer conserto só pode ser realizado com a nave aterrissada.
O professor Amo Kalup se refestelou tranqüilo no espaldar da poltrona.
— Graças a Deus que o senhor não tem outras reclamações.
— No momento, ainda não — disse Rhodan, olhando novamente para a tela
panorâmica.
Bell esticou as pernas, olhando de soslaio para Kalup. Embora não deixasse
perceber, Bell via nisso uma pequena derrota de Kalup, aliás, coisa sem importância que
não empanaria o brilho do grande cientista. Mas o gorducho não gostava muito do modo
cínico e um tanto arrogante do cientista; por este motivo, fugia de discussões mais longas.
Achou, pois, melhor não dizer nada.
Mais para o fundo, entretinham-se o matemático Carlos Riebsam e o médico Dr.
Gorl Nkolate. Já que conversavam muito baixo, ninguém podia saber do que estavam
falando. Mas o assunto não era mesmo da conta dos demais.
Um abalo percorreu a espaçonave, repetindo-se mais duas vezes com a mesma
intensidade, até desaparecer por completo. Em todos os cantos, soava o sinal de alarme. A
voz do oficial, engenheiro-chefe, se fez ouvir:
— Atenção! Explosão no setor BN-8. Extensão dos danos ainda ignorada. Isolar
todos os setores de máquinas fechando as portas automaticamente. Rompimento do
vácuo.
Rhodan deu um pulo e já estava ao lado de Kalup:
— Seu setor, professor! Os conversores.
— Homem de Deus! Nunca se deve pintar o diabo na parede, senão ele aparece —
disse Kalup calmo, antes de se levantar.
Novamente os sinais de alarme.
— Rompimento do vácuo confirmado — anunciou o alto-falante. — Permaneçam
em seus postos. Colocar o uniforme espacial e aguardar novas ordens.
Rhodan hesitou por uns instantes, mas acabou reconhecendo que, em última análise,
lhe cabia toda a responsabilidade, embora no momento quem estivesse dando as ordens
era Slide Narco, o engenheiro-chefe. O lugar de Rhodan era no posto de comando, ao
lado do comandante, o Major Claudrin.
— Os senhores fiquem aqui — disse ele e saiu porta afora.
— Seu traje espacial, Perry! Rompimento do vácuo.
Bell correu nervoso para os armários embutidos onde estavam guardados os leves
uniformes de emergência. Eram mais do que suficientes para proteger um homem das
conseqüências do vácuo.
— Não dá mais tempo — disse Rhodan, já no corredor.
Dali ao posto de comando não era longe, mas apesar da proibição, encontrou muitos
tripulantes que corriam para seus abrigos à procura do traje espacial. Rhodan não lhes
deu atenção, pois não tinha tempo. Além de tudo, era o mais razoável que podiam fazer.
O Major Claudrin, com seu corpo pesa-dão, lembrava um pouco os superpesados da
estirpe de Topthor. Tinha um metro e sessenta de altura e quase o mesmo de largura, de
pele morena e cabelos avermelhados. Como um assim chamado “adaptado ao ambiente”,
estava acostumado a viver com uma pressão de dois gravos e se movimentava com
agilidade admirável, apesar do peso de seu corpo, fato que Rhodan sempre admirava.
— Como está a situação, major?
— Ruim, sir. Não chega nenhuma notícia da seção de máquinas. Tenho medo do que
pode acontecer...
Rhodan tinha a impressão de que uma mão de ferro estava comprimindo seu
coração. Não era medo de qualquer perigo, nem do seu próprio destino. Nada disso o
assustava. Mas começou a pensar, de repente, na vida de sua gente. Pessoas, cujos nomes
talvez ele nem soubesse, mas que se apresentaram voluntariamente para aquela arriscada
missão.
— Ligação da imagem no intercomunicador!
— Cortada, sir, não temos mais ligação.
Parecia o fim.
— Qual é a velocidade?
— Já estamos abaixo da velocidade da luz, sir, com a propulsão comum. Acho que a
explosão deve ter vindo dos conversores kalupianos.
Rhodan sabia que Kalup não era o culpado.
— Você ainda consegue manobrar?
— Infelizmente, não. A nave não me obedece mais.
A depressão tornava-se visível no rosto de Rhodan.
— Quer dizer, então, que nos encontramos bem perto do fim: sem propulsão, sem
direção, estamos perdidos!
O Major Claudrin apenas balançou a cabeça.
— Instantes antes do acidente, fiz as medições de rotina. A três horas-luz de
distância há um sol amarelo, semelhante ao nosso. Deve ter planetas. Estamos voando
mais ou menos naquela direção.
— E daí? Você acha que com a Fantasy neste estado, conseguiremos fazer uma
aterrissagem?
— Com os Space-Jets, sir. Acho que nem todos eles foram destruídos. Podemos
aproveitar estes aparelhos salva-vidas.
Rhodan notou que as palavras calmas de Claudrin lhe fizeram bem aos nervos. E
exatamente agora, o raciocínio calmo lhe seria absolutamente indispensável.
— O senhor tem razão, major. Por favor, mande investigar quantos barcos de
emergência estão disponíveis. Vou ver se posso fazer alguma coisa pelos tripulantes.
Antes que o comandante pudesse responder, Rhodan já deixara o posto de comando.
Disparou pelo corredor e pulou para o elevador antigravitacional, que o levou até
próximo ao coração da nave. Pelos alto-falantes, que ainda funcionavam, ouvia-se a voz
do Capitão Slide Narco, dando mais instruções. O engenheiro-chefe cuidava para que os
sobreviventes da catástrofe não se expusessem a novos perigos. Ordenou primeiro aos
grupos de salvamento que corressem até o local do acidente e prestassem auxílio. Pelas
instruções expedidas, Rhodan pôde medir a extensão da catástrofe. Todo o setor das
instalações das máquinas devia estar destruído. Poucas haviam sido as partes poupadas. O
fornecimento de energia estava ainda funcionando, como também o sistema de aeração.
Mas, e o rompimento do vácuo? O setor das máquinas abrangia todo o rebordo
central da nave!
Orientando-se pelas instruções dadas por Narco nos alto-falantes, Rhodan continuou
penetrando mais para a parte central da nave, até ser detido por um oficial. Era o Tenente
Mahaut Sikhra, chefe do comando de ação para casos especiais. O pequeno e rígido
nepalês de cabelos negros era conhecido por sua intransigência. Estava comandando a
ação de salvamento.
— Não pode passar daqui para frente, sir.
Rhodan lhe deu razão. A violência das explosões destruiu mais do que se imaginava.
Portas foram arrancadas de seus batentes e havia destroços por toda parte. O vazio do
Universo teria penetrado ali, não fossem as escotilhas blindadas de aço e de Vedação
hermética. Eram a única coisa que estava entre eles e a morte.
— Como está a situação, tenente?
— Meu pessoal está tentando ter uma idéia geral dos estragos. Um pequeno grupo
penetrou pela escotilha de emergência até as máquinas. Estou esperando uma
comunicação a qualquer momento.
Abriu quase todo o volume de seu receptor de pulso que estava em contato com o
grupo avançado.
— Será que foi atingida apenas a parte das máquinas? — indagou Perry.
— Infelizmente, não, sir. A compressão de ar provocada pela explosão procurou
uma saída: o lado mais fraco dos depósitos. Esta compressão rebentou as paredes
divisórias, provocando novas explosões nos aparelhos salva-vidas e no arsenal de
munições. Depois veio o rebordo de propulsão. Explodiu na periferia mais fraca,
provocando um rombo. Nesta parte não se salvou nada. Tenho pressentimento de que o
rompimento do vácuo foi o que causou a morte do maior número de tripulantes, e não a
explosão.
Rhodan nada respondeu. Não se sabia ainda o número de mortos, mas devia atingir
mais de cem pessoas, talvez mesmo duzentas. Haveria ainda alguma saída daquela
catástrofe? Daquela situação desesperadora?
O receptor de pulso de Sikhra estava dando sinal e ele aumentou ainda mais o
volume.
— Aqui fala Sikhra. O que há?
— Sargento Radler, tenente. Não há sobreviventes. Todos mortos. Se o rompimento
do vácuo não se desse tão depressa assim, muitos teriam posto o uniforme espacial e não
morreriam. Mas o acidente aconteceu de repente.
Sikhra olhou para Rhodan, mudo e de cabeça baixa. Depois falou no pequeno
microfone:
— Está bem, Radler, pode voltar, assim que terminar a vistoria. Vedação! Talvez
existam cabinas onde ainda haja ar. Proceda com muita cautela.
— Pode ter confiança em nós, tenente.
Sikhra desligou e disse muito acabrunhado:
— No momento, mais não podemos fazer, sir.
Rhodan apenas meneou a cabeça. Sentia um vazio enorme na alma.
Teria ele culpa naquela catástrofe? Ou seria natural que invenções avançadas
exigissem tantas vítimas assim? Poderia ter evitado aquele morticínio?
Virou-se e percorreu o mesmo caminho de volta. Quase que derrubou Gucky, que
acabara de rematerializar-se à sua frente. Como teleportador, nada era mais fácil para
Gucky do que pular de um lugar para outro. Desta vez, descobrindo telepaticamente a
localização de Rhodan, o encontrou.
— Você não poderia ter evitado a catástrofe — disse o rato-castor, com voz bem
firme. — Não se acuse pelo que aconteceu. Ninguém é responsável pela explosão,
ninguém, nem mesmo Kalup.
— Não coloquei a culpa em ninguém, mas a gente pode imaginar como as coisas
poderiam ter sido — e, dizendo isto, continuou seu caminho.
Mas Gucky foi atrás dele:
— Você sabe quantos homens morreram?
— Não sei não. Mas sei que só nos resta um único Space-Jet. Todos os outros
aparelhos salva-vidas foram destruídos. Estavam exatamente na direção das explosões
dos gases.
Os Space-Jets eram aparelhos de reconhecimento tipo Gazela, naturalmente, mais
avançados, em forma de um disco. Com seus trinta metros de diâmetro, não ofereciam
muito espaço, mas em caso de necessidade, todo o lugar seria aproveitado.
— Temos que convocar todos os sobreviventes, Gucky. Acho que o salão dos
oficiais não foi atingido. Você pode cuidar disso?
— Pode deixar por minha conta.
Sentiu-se feliz por lhe ter cabido uma missão de relevo. Sorriu e desapareceu.
Rhodan caminhou apressado para o posto de comando. Somente agora lhe veio a
idéia de transmitir um pedido de socorro pelo hiper-rádio. Infelizmente, por alguns
minutos, tarde demais.
A vinte passos da porta da cabina de rádio, o chão se levantou sob seus pés e ele
cambaleou. Apoiou-se com as mãos na parede. Neste mesmo instante, a luz se apagou e
desapareceu a última vibração dos reatores em funcionamento.
Um silêncio fúnebre tomou conta de tudo. Rhodan se aprumou e saiu caminhando
pelo corredor escuro, mas que conhecia bem. Sua mão achou a maçaneta da porta e a
comprimiu. No mesmo instante, acendeu-se a iluminação de emergência, alimentada por
baterias. Ao menos esta fora poupada. Para sua grande surpresa, viu o Dr. Riebsam, o
grande matemático. Que podia ele estar fazendo por ali? Rhodan julgava que ele estivesse
ainda em sua cabina, onde o deixara.
— O senhor aqui?
— O senhor desapareceu e ninguém sabia onde se encontrava. Aí me veio a idéia de
transmitir uma mensagem de socorro pelo hiper-rádio. Estava tudo pronto, mas o reator
energético explodiu. Cheguei atrasado por um minuto.
O raio de esperança, que ainda havia em Rhodan, desapareceu.
— Quer dizer que o senhor também não conseguiu, não é?
Riebsam fez um gesto negativo, enquanto Rhodan olhava para os instrumentos de
radiotelegrafia.
— Será que as baterias não dão para isto?
— Só para transmissão de curta distância, e isto não nos interessa.
— Por que que não nos interessa? — indagou Rhodan, pensativo. — Nossas
patrulhas de vigilância andam também neste setor da Galáxia. Quem sabe está uma delas
aí por perto? Portanto, vamos lá, tente enviar a mensagem.
Rhodan tinha certeza de que podia confiar em Riebsam, pois sabia haver coisas mais
importantes a fazer. Tinha que tentar tudo para conservar a vida dos que lhe restavam.
Quando chegou ao posto de comando, surgiu novamente Gucky. Bell já estava ao lado de
Claudrin, falando com ele. Interrompeu a conversa, quando viu Rhodan e foi para ele.
— Como é que é, Perry? Ainda há esperança?
Rhodan preferiu o caminho da evasiva:
— Enquanto se vive e se pensa, há sempre uma esperança — e, virando-se para
Gucky: — Conseguiu alguma coisa?
— Estão se reunindo no salão dos oficiais, como foi determinado. Até agora, são
mais ou menos cinqüenta.
— Cinqüenta? — repetiu Rhodan, empalidecendo. — Cinqüenta... antes eram
trezentos! Santo Deus!
O rato-castor nada respondeu. Seu olhar denotava grande tristeza e não parecia mais
aquele tipo brincalhão.
— Devem ser certamente mais — interveio Claudrin. — Vou pedir a Narco para
fazer uma contagem mais precisa. Acho que muita gente ainda deve estar paralisada de
medo ou mesmo inconsciente.
— Diga a este pessoal que se dirija diretamente para o hangar B. Partiremos com o
Space-Jet, dentro de meia hora.
Claudrin transmitiu a ordem. Um minuto depois, todos os alto-falantes não
danificados repetiam esta instrução.
Os homens, oficiais, tripulantes e cientistas, davam impressão de estarem
atordoados. Eram os sobreviventes de uma catástrofe, que infelizmente pontilhava as
duras rotas do progresso da Cosmonáutica. Sobreviveram, mas o caminho para a
segurança total ainda seria longo.
— As escotilhas foram danificadas — dizia Rhodan — o ar vai se volatizando
devagar, mas progressivamente, pois as baterias estão com pouca carga. Não há, portanto,
outro meio: somos obrigados a abandonar a Fantasy, o mais depressa possível. Temos à
disposição apenas um Space-Jet. Partiremos daqui a vinte e cinco minutos. Todos devem
se dirigir para o hangar B, usando o uniforme espacial, isto é, o traje de emergência.
Entendido? Armas e alimento encontram-se em abundância a bordo do Space. Apressem-
se e não percam tempo!
Depois, Rhodan e Gucky vestiram seus uniformes e atarraxaram os capacetes
plásticos transparentes. No mesmo instante começou a aeração.
Foi muito simples para Gucky fazer uma teleportação com Rhodan. Bastou para isto
um contato físico. O rato-castor pegou a mão de Rhodan e pulou.
Cinco minutos antes da partida, estavam já no hangar B oitenta homens reunidos.
Eram os únicos sobreviventes da catástrofe. A eles se somaram Rhodan e Gucky. O
Space-Jet tinha normalmente uma tripulação de quatro homens, mas a casa de máquinas e
os depósitos davam para abrigar mais gente.
Foi uma sorte a parte da nave, onde estava o hangar B, não ter sido danificada.
Sem o aparelho auxiliar, Rhodan e o restante de sua gente estariam perdidos.
O embarque e a acomodação se deu sem dificuldade. Como piloto, funcionaria de
novo o Major Claudrin, que ocupou logo a poltrona do comandante, esperando a ordem
de partida de Rhodan. Abriu-se a grande escotilha externa do hangar. O ar saiu num forte
sibilo e o vácuo invadiu o ambiente.
Quando Rhodan deu o sinal de partida, houve mais uma explosão no interior da
Fantasy. O abalo foi tão forte que o jato balançou. Depois, o aparelho deslizou nos largos
trilhos para fora da comporta, atirando-se no confuso amontoado de estrelas, onde era
impossível obter um ponto de referência.
Somente o sol amarelo parecia dar vazão a um certo otimismo, se bem que o tempo
fora muito exíguo para serem feitas melhores observações a respeito de sua natureza.
Mesmo a suposição teórica de que possuía planetas, não tinha apoio em nada positivo.
O professor Arno Kalup se mantinha calado e reservado, se bem que seu cérebro,
por demais inteligente, não deixasse de trabalhar. Via-se claramente em sua fisionomia
que ele, em vão, quebrava a cabeça, tentando descobrir como podia ter surgido tal
catástrofe. Rhodan sentia pena dele, mas preferiu calar, sem lhe dizer uma palavra de
consolo. O cientista teria primeiro que superar seus problemas psicológicos.
As pessoas mais importantes e todos os mutantes a bordo da Fantasy estavam no
meio dos sobreviventes. Era um dos motivos pelo qual Rhodan podia levantar a mão para
o céu e agradecer ao destino. E ele de fato o fez.
Quando Claudrin tentou fazer uma alteração na rota, o jato só obedeceu a muito
custo. O major olhou intranqüilo para Rhodan, que estava acompanhando tudo e lhe
perguntou:
— Que está havendo com o Space-Jet? Diga francamente.
Claudrin estava indeciso.
— Não sei, não. Dá a impressão de que não foi tão poupado assim, como nós
supúnhamos. A direção...
Hesitou um pouco e pegou com mão firme nos controles. Seus dedos tocaram nos
botões e interruptores. Os ponteiros nos mostradores quase não se moveram. Vibraram
um pouco e voltaram ao ponto de partida.
— Alguma coisa não está em ordem — disse Claudrin. — Não podemos arriscar um
salto de transição, sir. Temos de voar em velocidade inferior à da luz e nada mais. Mas,
quem sabe existem naves terranas por perto?
— Talvez — respondeu Rhodan, pensativo.
Achavam-se numa parte completamente desconhecida da Via Láctea, e a Terra
poderia estar a uns vinte mil anos-luz, caso o registrador de rota da Fantasy estivesse de
fato funcionando bem.
— Não podemos confiar exclusivamente nisso. Que tal tentarmos um radiograma de
emergência? — indagou Perry, depois de algum tempo.
O posto de radiotelegrafia era logo ali ao lado. O pessoal já o estava testando. Um
oficial ainda jovem ouviu a sugestão de Rhodan. Pela porta aberta, esticou o pescoço para
dentro da cabina de comando:
— O aparelho de hiper-rádio não funciona, sir. É possível apenas o rádio comum.
Rhodan fez um esforço para se dominar.
Por que tudo tinha que estar contra eles? Nada de hiper-rádio! Parecia-lhe quase
impossível que uma nave estivesse tão próxima que pudesse captar as ondas comuns de
simples velocidade da luz!
— Use-o — ordenou ele.
O experimentado Claudrin conseguiu alterar a rota de tal maneira que o jato voava
agora na direção do sol amarelo. Dali a cinco horas, estariam em condições de constatar
se o referido sol tinha ou não planetas.
E o que seria se não possuísse nenhum? Rhodan nem queria aventar tal hipótese.
***
— Quatro planetas, sir! — anunciou Krefenbac, o primeiro-oficial.
— Obrigado, major. Boas perspectivas?
— O planeta interno é incandescente. Os dois externos são gigantes de metano.
Agora, o segundo planeta parece ser favorável. Atmosfera respirável, não há mar. Uma
única extensão de solo sem vegetação.
Rhodan voltou-se para Claudrin.
— Dirija-se ao segundo planeta e procure um lugar para aterrissagem. Não nos resta
outra possibilidade.
Nas últimas cinco horas, Rhodan chegara a esta conclusão. O Space-Jet era pequeno
demais para os oitenta e dois sobreviventes. Os gêneros alimentícios e a água ainda
dariam para mais tempo, mas o homem precisa também de espaço para esticar as pernas.
Além disso, os últimos solavancos produzidos pela sucção do ar, devido à abertura
repentina da escotilha do hangar B, haviam acarretado mais prejuízos, que não podiam
ser negligenciados. O mecanismo de direção era um deles.
Houve, no entanto, uma surpresa: o jovem tenente da radiotelegrafia conseguiu
obter um curto impulso de emergência no aparelho de hiper-rádio. Infelizmente, segundos
depois, a alimentação elétrica falhou outra vez. O impulso fora muito curto e fraco. Só
poderia ser captado por receptores de alta sensibilidade e isto só mesmo com muita sorte,
caso houvesse alguma nave próxima. Mas nem todos os cruzadores da Terra possuíam
aparelhos tão sensíveis assim. A esperança subira, pois, alguns graus, mas continuava
ainda muito frágil.
Enquanto se aproximavam do segundo planeta, o sol amarelo lhes estava à direita.
Podiam ver agora na tela detalhes de sua superfície.
— Parece um pouco monótono — observou Bell, que, aos poucos, se recuperava do
grande choque. — Nada de água! Tudo cinzento... nem florestas, nem campinas.
— Você está querendo demais — respondeu Rhodan. — Podemos nos dar por
satisfeitos, caso consigamos aterrissar sem acidente. A propulsão do jato está fraca
demais. Quem sabe descobriremos a causa lá embaixo? Pelo menos, teremos chão firme
sob os pés.
Deram duas voltas em torno do planeta, a baixa altura, sem ver nada de importante.
Nenhuma grande saliência, nem serras, nem vales. Apenas uma superfície levemente
ondulada, sem nenhum característico.
— Que planeta esquisito! — constatou
Bell, em voz baixa.
Rhodan era da mesma opinião, mas não disse nada. Não queria distrair Claudrin,
durante a arriscada manobra de aterrissagem, que estava por acontecer. O major deve ter
percebido o pensamento de Rhodan.
— Podemos descer em qualquer lugar.
Lá embaixo, o solo apresenta-se apenas ondulado. Vamos tentar?
Rhodan fez sinal que sim. — Preparar para aterrissagem — ordenou ele ao
primeiro-oficial. — O planeta parece ser desabitado, mas distribuam armas leves. Todos
devem usar uma pistola energética. O Tenente Sikhra, com os rapazes de seu comando
especial, devem ser os primeiros a pisar no solo deste mundo desconhecido. Só depois
que ele avisar não haver perigo, é que os outros poderão abandonar o jato. Não nos
devemos expor a uma outra catástrofe.
— O senhor quer dizer que...
— Eu quero dizer que há alguma coisa que não está dando certo com o nosso jato.
Vamos acampar bem longe do Space-Jet. Só depois os técnicos irão ver onde é que está o
defeito. E, certamente, o descobrirão.
Embora a direção lhe causasse dificuldades, o Major Claudrin fez uma descida
suave, muito mais suave do que se podia supor. Ninguém sentiu o solavanco do contato
com o solo. Era como se este fosse de molas. As telas mostravam o chão em seus
mínimos detalhes: cinza e sem vegetação, como já haviam constatado antes. Não se
podia, porém, saber se era rocha pura.
Com cinco dos seus homens, o Tenente Sikhra deixou o jato. Estavam em contato
com Rhodan e os demais tripulantes através do rádio. Sikhra era um nepalês, que, apesar
de conhecido por corajoso e temerário, só agia com cautela, principalmente quando não
podia saber o que ia encontrar no caminho.
A escotilha externa se abriu. O ar do planeta era fresco. O sol estava alto no céu,
mas não irradiava muito calor. Parecia que seus raios não eram suficientes para aquecer a
superfície do planeta. Ao menos, o solo não refletia nada daquele calor, que talvez
estivesse sendo sugado pela superfície.
Sikhra foi o primeiro a descer pela escada metálica e a pisar no solo do novo mundo,
que ainda não constava de nenhum mapa dos terranos. Ainda não tinha nome, mas isto
não demoraria a acontecer. O chão pareceu a Sikhra macio demais, mas ainda não
desconfiava de nada. Pôde parar de pé, e não avistou nenhum adversário. No momento,
isto lhe bastava. Fez um sinal para os seus, pedindo que o seguissem.
Caminharam um trecho para frente. Sikhra tinha a impressão de estar andando sobre
as ondas de um mar solidificado. Assim também parecia toda a paisagem, ondulada até o
horizonte, sem nenhuma saliência maior. Uniforme, monótona.
— O ar é bom — comunicou ele a Claudrin. — Nada de vida até agora e não há
muito calor. O solo... é de couro!
Sikhra se agachou e tocou outra vez no solo com a mão, para ter certeza da
informação que prestara. Era duro, mas de qualquer maneira não era rocha, parecia
mesmo com um couro bem grosso.
— Couro? — repetiu o comandante, espantado.
— É um tipo de solo desconhecido. Não é terra, nem pedra. Acho melhor o senhor
mandar um especialista.
— Continue observando, tenente.
Quando Sikhra, por mera coincidência, se virou para trás, a fim de ver o Space-Jet,
ficou abismado!
Será que a espaçonave estava numa depressão? Ou havia afundado neste intervalo?
Percebeu também que seus pés estavam entrando demais no chão. Chegou então a uma
conclusão:
— O solo não tem estabilidade, capitão! Está cedendo. O disco já afundou bastante.
— Volte, imediatamente, Sikhra, depressa!
Começou a correr. Tinha a impressão de que centenas de garras puxavam seus pés.
Quando se aproximou do jato é que notou seu erro.
Os apoios telescópicos estavam completamente afundados no chão escuro. Deixou
que seus homens subissem antes dele.
Mal se fechara a escotilha externa, ouviu-se o ronco da propulsão. Sem se preocupar
com isto, correu até a central de comando, para fazer pessoalmente seu relatório. Nos
corredores entupidos de gente, não sentiu nenhum movimento do disco voador. O ronco
dos motores continuava.
Ao chegar ao posto de comando, viu Rhodan de pé ao lado de Claudrin. Os dois
observavam a tela de bordo, onde se descortinava a monótona paisagem do planeta.
O primeiro-oficial, Major Krefenbac, veio ao encontro de Sikhra.
— Tenho a impressão de que sua constatação nos veio muito tarde. Aterrissamos
num planeta de lama.
— Não, major. Não é lama. É algo muito diferente, tem boa consistência. Os
sustentáculos telescópicos do jato afundaram devido ao imenso peso do disco voador.
Não se esqueça de que está carregado com oitenta e dois homens. Acho que agora ele não
afunda mais.
— É, mas não podemos decolar. A força de que dispomos não dá. Alguma coisa
retém o jato e não nos permite sair daqui.
— Não posso compreender isto — disse Sikhra, perplexo. — Em menos de cinco
minutos, que estive fora...
— Sikhra, é claro que você não tem culpa nenhuma — disse Rhodan, intervindo na
conversa. — Ninguém tem culpa da nossa situação. Acho que estamos diante de um
fenômeno. Uma pergunta, Sikhra: o solo sustenta bem o peso de um homem?
— Certamente, sir. Só depois de ficar parado por algum tempo num mesmo lugar,
foi que percebi o solo ceder.
— Não é, portanto, um barro comum — falou Rhodan, pensativo.
Depois de alguns segundos de silêncio, ordenou:
— Não desista de sua tentativa, major. Vou providenciar agora para que os homens
recebam a ração de alimentos e de água. As armas já foram distribuídas. Devemos contar
com a possibilidade de termos que ficar mais tempo neste planeta, onde acamparemos.
Todos deixaram o jato. O sol estava descambando no poente e as sombras se
alongavam, sombras estas que pouco se destacavam do chão escuro. Rhodan caminhava
na frente com Claudrin. Ninguém temia por qualquer tipo de ataque. Este mundo tinha
que ser mesmo despovoado, pois não havia o menor sinal de vida. Isto em plena
contradição com aquela agradável atmosfera. Era pensando na atmosfera que Rhodan
quebrava sua cabeça.
Como poderia um planeta, com uma camada de ar tão boa, deixar de produzir
qualquer tipo de vida? E como ou de onde era renovada esta atmosfera?
Um dos tripulantes, que caminhava mais para o fim da fila, soltou de repente um
grito assustador. Rhodan parou e virou-se. Viu então uma coisa que jamais podia ser
realidade, talvez fosse um pesadelo, ou uma alucinação devido ao estado em que se
encontravam.
Do lusco-fusco da tarde avançada, seguia-os um grupo de seres antropóides, com
pernas e braços... mas sem a cabeça! Eram do mesmo tom do solo, escuros, e
caminhavam lentamente em direção aos homens de Rhodan.
3

Foi um hipersalto no escuro!


Quando a Lizard se rematerializou e as estrelas puderam ser vistas, as constelações
estavam todas desencontradas e deslocadas. O muito experimentado Capitão Graybound
não reconheceu nenhuma delas e naturalmente se desandou a xingar e a dizer palavrões.
— Aquele chato desgraçado! Por causa dele, perdemos a direção. Será que estamos
no mundo para andar por aí em ziguezagues, perdidos no Universo?
O Tenente Rex fez um gesto de quem pede calma.
— Não fique tão nervoso assim, Samuel. Não se preocupe, pois logo saberemos
onde estamos e então faremos novos cálculos para outros saltos de transição. O principal
é que os tais homens da patrulha espacial não nos pegaram. Gostaria de ver a careta
furiosa do major que nos queria prender.
Graybound deu uma estrondosa gargalhada. Imaginando a boa peça que pregara no
oficial, seu aborrecimento evaporou e ele se esqueceu do tempo perdido.
— Estes bonecos de uniforme não mereciam outra coisa — dizia ele, todo prosa. —
Seu caçador de homens! O Universo pertence a todos, cada um pode fazer o que quiser.
Somos ou não somos livres para andar por aí?
— Viva a democracia! Cada um tem o direito de morrer! — berrava Toureiro,
batendo as asas.
Graybound olhou espantado para o papagaio.
— Esquisito, o Toureiro nunca disse isto. Quem foi que lhe ensinou a dizer estas
palavras?
Rex estava pensando numa boa resposta para seu capitão, mas não chegou a tanto.
Do posto de rádio, surgiu o raquítico Henry Smith, agitando nervoso os dois braços.
— Novo sinal de rádio. O hiper-receptor o registrou.
O rubor subiu novamente à face de Graybound.
— O quê? De novo? Não é possível que tenhamos caído mais uma vez nas garras da
patrulha espacial. E eu pensava que o Universo fosse infinito...
— Trata-se de um curto impulso de socorro, capitão. Durou poucos segundos e foi
por acaso que o captei.
Graybound olhou pensativo para o pequeno Henry Smith, conhecido como um
homem muito sensível.
— Seu idiota! — disse ele, talvez pensando que poderia ocorrer nova inspeção. —
Você não pode se afastar um pouco desse rádio desgraçado?
Depois, mais calmo, completou:
— Agora, além do nosso atraso, ainda vamos ser obrigados a nos preocupar com
assuntos dos outros. De onde veio o impulso?
Smith parecia aniquilado. Estava no umbral da porta, mostrando-se arrasado. Não
compreendeu bem onde o raciocínio de seu chefe queria chegar.
— De onde vieram os impulsos, perguntei eu.
No seu modo de falar, Graybound deixava antever uma tempestade iminente. Smith
estava com a voz quase embargada quando começou a falar:
— Direção e distância ainda não estão determinadas, capitão. Isto não é fácil.
— Quero saber a localização desta espaçonave em dez minutos e, se os homens da
patrulha estiverem atrás deste possível truque, o diabo vai lhe fazer uma serenata.
Smith desapareceu, sem saber o que fazer.
Rex deu uma boa gargalhada, terminando-a com uma frase muito sensata:
— Este “telegrafista” é um cômico, mas é perfeito na sua profissão.
O velho capitão da Lizard mirava pensativo a imensidade de estrelas no céu e
franzindo a testa perguntou:
— Você tem alguma idéia de onde estamos? Olhe um pouco os mapas siderais.
Os dois se debruçaram sobre os atlas, investigando todos os setores. Não
conseguiram identificar nenhuma constelação.
— Teremos que reconstruir o salto — propôs Rex. — Não nos resta outro meio.
Vamos fazer isto, Samuel, é uma brincadeira para nós.
— Faça o que você achar melhor — disse o velho desbravador do espaço.
— Democracia! — guinchou o louro, deixando cair alguma coisa.
Graybound olhou com ar de desagrado a mancha esbranquiçada no não muito limpo
chão de aço, olhando com ar de censura para o tagarela pernóstico:
— Porcalhão! Isto também tem alguma coisa que ver com democracia?
Toureiro escondeu a cabeça e ficou olhando com os olhos inteligentes por entre as
penas. Estava querendo mostrar-se arrependido. Mas Graybound deu um grito de cólera,
tirou o louro de seu ombro e, sem perder tempo, o colocou na gaiola, fechando-a com
cuidado. Seu dedo indicador apontou para a areia suja do chão da gaiola, num gesto que
dispensava qualquer outra explicação.
Foi depois para a cabina de rádio. Henry Smith tremeu de medo, quando viu o chefe
entrando.
— Então? Alguma novidade, meu amigo?
— Estou quase chegando lá, capitão. A antena de orientação estava na posição
errada, daí o atraso. Tenho que calcular de novo a intensidade dos impulsos e...
— Não me tapeie com seu lero-lero técnico — disse Graybound, num momento de
bom humor, quase sorrindo. — Quero saber a direção e a distância, certo?
Smith continuou no seu trabalho sério.
Ali ao lado, Rex Knatterbul exclamou:
— Oba! Samuel, acho que consegui! Puxa vida! Já temos alguma coisa.
O velho capitão bateu amigavelmente no ombro de Smith, esquecendo-se de que lhe
podia com isso até quebrar a clavícula. Voltou depois para o posto de comando.
— E onde é que nós estamos?
— Olhe você mesmo isto aqui. Fizemos um salto de quase vinte mil anos-luz. Como
será que a nossa velha carcaça agüentou?
O vozeirão do chefe o interrompeu. Desta vez, estavam expressas a cólera e a
vaidade ofendida.
— O que você disse? Velha carcaça!... Você está se referindo dessa maneira à nossa
Lizard? Mais uma palavra e eu o atiro pelo espaço afora, sem o traje espacial.
Rex apenas sorriu.
— Desculpe, não houve má intenção na expressão. Estamos mais ou menos aqui —
apontou um lugar do mapa. — É um setor supersaturado de estrelas. Mas é por aqui —
tornou a apontar — que temos de abrir caminho para Glatra III.
— Ah! Sim, os negócios! Graybound quase que os ia esquecendo, tão preocupado
que estava com o pedido de socorro.
Era um homem que não levava muito a sério as leis da sociedade e era de fato um
comerciante com muitos “negócios escusos”. Mas se encontrasse alguém em apuros, ali
estava ele para fazer todo o possível e o impossível, na tentativa de auxiliar. Esta era sua
lei. E nunca desistia mesmo que lhe custasse a camisa do corpo.
— Espere um pouco — disse para Rex. — Primeiro temos que saber de onde veio o
pedido de socorro... — virando-se para o lado: — Ô, você, rapaz chato, aí do rádio!
Ainda não descobriu nada? Não podemos passar as férias aqui. Ande depressa, por favor!
Depois, dirigindo-se para Rex, continuou:
— Reconstrua o salto de transição com tal exatidão, que com outro salto idêntico
possamos chegar ao local onde encontramos o cruzador. Assim nos orientaremos melhor.
— Já está tudo pronto, chefe — disse Rex, sorrindo feliz. E olhando na direção da
cabina de rádio: — O rapaz ali está levando mesmo muito tempo. Vamos dar um aperto
nele.
— Consegui, capitão! — exclamou neste momento Henry Smith, correndo para a
cabina de comando. Seu rosto irradiava felicidade. — Distância, mais ou menos de três
anos-luz. Direção exatamente cinco graus a bombordo da atual rota. Graybound ficou
todo vermelho. — Mais ou menos? — gritou ele com tanta fúria que Toureiro se assustou
e escondeu a cabeça. — Que significa isto: mais ou menos? Quero saber a distância exata
para fazermos uma transição perfeita. Entendeu isto, sua imitação de telegrafista? Smith
agitava nervosamente uma tira de papel. Aproveitou a pausa para dizer depressa:
— A distância está marcada com exatidão, capitão. Eu disse apenas “mais ou
menos” porque, na realidade, é menos de três anos-luz. Mas tenho os dados exatos aqui.
Dizendo isto, entregou a tira de papel ao capitão. O barba-ruiva a leu, sorriu e fez
um sinal amigo para Smith.
— Assim está ótimo, meu querido. Você foi cem por cento.
Olhou para o “telegrafista” por alguns segundos, de repente deu um grito furioso:
— Desapareça!
E Smith se abrigou na sua cabina de rádio.
Rex apanhou a tira de papel da mão de Graybound e a estudou.
— Portanto, dois vírgula oitenta e sete anos-luz. Os impulsos desse rádio devem ser
bem fortes, do contrário não os pegaríamos. Se for um desses vagabundos cruzadores da
Frota Solar, nós vamos dar o fora. Não tenho nenhuma vontade de ajudá-los.
É claro que o capitão dizia isto só da boca para fora. Haveria de ajudar a qualquer
um, mesmo ao seu pior inimigo, se estivesse em apuros. Com aquele velho lobo-do-
espaço, ainda valia o antigo provérbio de que numa casca áspera se esconde um grão de
qualidade.
— Temos de ser um pouco generosos para com eles? — indagou Rex.
E Graybound, olhando surpreso para seu navegador:
— E você acha que poderia ser diferente? Vamos acudi-los, imediatamente...
Levou mais uns vinte minutos até que o cérebro eletrônico elaborasse os dados
necessários. Logo após, Graybound colocou a Lizard na direção certa e iniciou a
transição. Antes disso, instruiu a tripulação para o que ia acontecer, ordenando que as
bem camufladas bocas-de-fogo estivessem prontas a fim de entrar em ação a qualquer
momento. É claro que ele não ia querer ser enganado por ninguém. Se aquele pedido de
socorro fosse uma armadilha, seus articuladores teriam uma bela surpresa com a reação
da velha Lizard.
Transição.
Mal apareceram na tela as novas constelações e, de lado, um sol muito amarelo,
soou a voz de Smith da cabina de rádio.
— De novo os pedidos de socorro, senhor! Origem... vinte minutos-luz.
O velho capitão ficou pensativo. Ele se enganara. Os sinais de socorro vinham do
sistema do sol amarelo, ou mesmo de um planeta daquele sistema. Não parecia de uma
nave que vagasse pelo espaço. Talvez se tratasse até de náufragos que desejavam ser
salvos. O pensamento de ter de encher sua nave com gente estranha e ter de abdicar
momentaneamente de seus negócios rendosos era para Graybound tudo, menos
agradável. Começou a refletir com mais calma. Primeiro teve vontade de amaldiçoar o
radiotelegrafista, embora este simplesmente cumprisse seu dever. Depois maldisse a si
mesmo, por ter um coração tão mole.
De repente Graybound teve um estalo:
— Quem sabe também outros ouviram os pedidos de socorro e estão vindo para
acudir? Esperemos mais um pouco. Seria maravilhoso se pudéssemos ficar livres deste
abacaxi. Se permanecermos vagando por aqui, ninguém nos descobrirá. O que você acha,
Rex?
Rex Knatterbul, também muito melhor que a fama que dele espalhavam, tinha suas
dúvidas.
— Pode também ser que eles estejam em extrema necessidade e cada minuto de
atraso pode significar sua morte. Não sei ao certo se podemos ou não arcar com a
responsabilidade...
— Besteira! Que responsabilidade o quê? Minha responsabilidade é com minha
gente, com a companhia, com minha Lizard e com a nossa mercadoria. Se eu tiver que
ajudá-los, terá de ser por minha livre e espontânea vontade.
Parou para pensar um pouco. Rex aproveitou a pausa e colocou a Lizard no rumo
certo. Voavam agora diretamente para o sol amarelo. A velocidade não passava de três
décimos da da luz. Dentro de uma hora chegariam ao sol amarelo, caso não se
desviassem da rota. Parecia, no entanto, que o capitão havia chegado a uma resolução:
— Acho, pelo menos, que podemos dar uma olhada na situação deles. Se for ruim
para nós, podemos escapulir a tempo.
Rex concordou. Assim assumiam em parte um compromisso. Se houvesse mesmo
homens em apuro, o barba-ruiva sabia o que tinha a fazer.
Meia hora depois, ficaram cientes de que o sol amarelo tinha quatro planetas. O
mais próximo do sol não entrava em cogitação, mas os outros três podiam servir de
refúgio para náufragos.
— Smith!
Muito assustado, o telegrafista quase que arranca os aparelhos da parede, pois ao
ouvir a voz do capitão, deu um salto.
— Pronto, comandante! — respondeu ele.
— De onde vêm os sinais de rádio?
Smith estremeceu.
— Os sinais, no momento, silenciaram. Mas fiz uma orientação completa, estou
quase terminando os cálculos.
— Ligeiro com isto!
Smith desapareceu na sua cabina e voltou com um papel na mão.
— É apenas um cálculo, senhor, mas certamente o vai ajudar.
— Quanto à direção, este cálculo está certo?
— A direção está absolutamente certa, senhor, agora quanto à distância...
— Esta não tem maior importância — explicou Graybound. — Pode ir embora e
fique firme na escuta. Ao menor sinal, me avise, entendido?
— Certo, senhor — respondeu Smith, já a caminho de sua cabina.
No fundo, o radiotelegrafista tinha grande respeito por Graybound. Não lhe levava a
mal as brincadeiras malucas, pois era bem pago no seu serviço. Desde que deixou a Frota
Espacial, por um pequeno deslize, deu graças a Deus por poder trabalhar na
“Globetrotter das Estrelas”, que não dava muita importância à vida pregressa de seus
homens. O essencial era ser competente.
Graybound deu a Rex o papel com os cálculos.
— A direção parece estar muito clara — o primeiro-oficial comparou os dados com
os números na tela do computador de bordo.
— O segundo planeta... Se estes sinais vêm de algum lugar, só pode ser do segundo
planeta. Vamos conferir?
— Claro que vamos. Para isto estamos aqui.
Rex sorriu, balançando a cabeça. Houve um instante de silêncio, e este logo foi
aproveitado pela voz rachada do louro:
— Quero sair daqui!
O capitão não se deu ao trabalho de virar para trás, disse apenas:
— Cale a boca, estamos ocupados. Mas a resposta não demorou:
— Vagabundos! Fingidos!
Graybound contemplou por uns instantes suas mãos pesadonas e disse:
— Sei, minhas queridas, que vocês gostariam de torcer o pescoço deste papagaio
sujo. Eu também gostaria de fazê-lo. Mas ele não tem culpa de sua burrice. Seus
antepassados viviam nas proximidades de Hiroshima, como vocês devem saber. O
desgraçado nasceu lá também. Pertence a uma espécie que sofreu mutação e isto alterou
seus miolos. Acha que é melhor do que os demais papagaios, enquanto não passa de uma
ave boba e tagarela. Agora que vocês sabem de tudo, tenham paciência com ele, como eu
tenho.
Rex não se deixou atrapalhar em seu serviço. Estava acostumado a ver Graybound
falar consigo mesmo, ou, como nesta ocasião, com suas próprias mãos. Já que o louro
calara a boca e se fazia agora de melindroso ofendido, tivera tempo de terminar os
cálculos.
— Claro que é o segundo planeta. Em poucos minutos vamos entrar em sua
atmosfera. Se nossos instrumentos estão funcionando bem, diria que o ar do planeta é
muito bom.
Os olhos de Graybound adquiriram de repente um estranho brilho.
— O sistema está registrado?
Rex acenou negativamente.
— Não, não consta do catálogo. Por quê?
— Talvez tenhamos sorte e encontremos aí bons minérios e outras matérias-primas.
Aí, pelo menos nossa viagem não seria perdida.
Rex consultou novamente os instrumentos.
— Até agora não tenho nenhum valor exato. Está muito difícil de se avaliar a
superfície, que parece nem existir. Não se distinguem continentes, tudo parece sem
contornos, como se fosse uma massa plana.
— Ótimo — acudiu o capitão — ao menos assim não corremos o risco de
morrermos afogados, se tivermos uma aterrissagem infeliz.
— Puxa! Como é que você pode dizer uma besteira desta?
— Foi uma simples brincadeira — disse o velho comandante, sorridente e olhando
para a tela, onde se via com nitidez o misterioso planeta. — Mas isto está parecendo
muito esquisito, você não acha? Que dizem os analisadores?
— Aí é que está a questão — sentenciou Rex, observando os valores registrados nos
instrumentos. — Constata-se a presença de muitos elementos, mas nem um só
anorgânico. Um planeta não pode se compor apenas de elementos orgânicos.
Graybound olhou confuso para Rex.
— Que você está dizendo? A superfície de todo o planeta está composta só de
elementos orgânicos, isto é impossível.
— Sei que é impossível. Mas você acha que os instrumentos estão mentindo? Ou
estamos ficando loucos?
— Orgânico! — repetia o capitão, admirado. — Quem sabe, o planeta tem uma
densidade demográfica tão grande que os raios analíticos de pesquisa não conseguem
penetrar, mas são simplesmente refletidos?
Em poucas palavras, Rex destruiu esta teoria absurda.
— Os valores auferidos podem ter validade em parte até uma certa profundidade,
vamos dizer duzentos metros abaixo da superfície. Você pode me explicar como isto é
possível, sendo que...
— Está certo — disse o velho numa evasiva. — Foi só um palpite meu.
E continuou olhando para a tela, onde o planeta já estava bem maior. Seu albedo,
isto é, o poder de reflexão do seu solo, era muito diminuto. A luz do sol amarelo não
chegava propriamente a ser refletida pela superfície.
— É tudo cinza-escuro e sem relevo — constatou Rex. — Nunca vi uma coisa
assim. Nem serras, nem vales, nada de rios ou de florestas. Nem mesmo vegetação. E no
entanto, tudo é orgânico. Uma contradição, acho eu.
O capitão se ergueu.
— Smith! Nenhum sinal mais? — perguntou ele.
— Não, tudo calmo no rádio. Graybound sentou-se de novo.
— O coitado é um imbecil, mas não tem culpa de ser assim. Como podemos então
encontrar os pobres náufragos?
— Será que o rádio deles enguiçou?
— Provavelmente. Primeiro, transmitiram em hiperimpulso, portanto devem estar
numa nave moderna. Depois vieram simples sinais, que acabaram silenciando. Temos de
supor que sua instalação de rádio não está mais funcionando. Por quê?
Rex nada respondeu, porque não sabia mesmo. Fez com que a Lizard começasse a
circunvoar o planeta e penetrasse bem mais na camada de ar. Os valores nas escalas dos
analisadores não se alteraram. Lá embaixo, na superfície, não havia mesmo matéria
anorgânica.
Na mente de Graybound começava a surgir uma leve suspeita, mas ele logo a
afastou. Mas não conseguiu tranqüilizar-se. E cada vez mais, lhe parecia ser a única
conclusão lógica, que se podia deduzir dos dados das medições. Mas as palavras doidas
do papagaio o arrancaram de seus pensamentos.
— Você tem razão, monstro vermelho! O capitão não se zangou com a ofensa.
Pareceu não ter escutado. Só isto bastava para comprovar que estava passando por
um descontrole emocional.
— Você sabe ler pensamentos, não é? — dizendo isto, apoiou-se no espaldar da
poltrona e olhou desesperado para Rex: — Será possível que o planeta é orgânico, que ele
viva?
O primeiro-oficial era, antes de tudo, um homem realista, que não se ligava muito
nas coisas sobrenaturais. Sabia, porém, que nos infinitos confins do Universo podia-se
deparar com verdadeiros milagres, com fenômenos que a simples razão humana não
explicava. Sabia também que, no decorrer da História, foram descobertas estranhas
formas de vida extraterrenas. Mas todas estas formas de vida possuíam uma certa
afinidade, havia sempre, no mínimo, um paralelo entre elas.
— Um planeta vivo? — começou Rex a gargalhar. — Não, isto nunca existiu. E
como poderia ter surgido uma coisa assim?
Um olhar casual para o analisador o obrigou a ficar quieto. A superfície cinza e
monótona estava agora mais nítida. De cima, parecia de fato um mar de leve ondulação
que, de repente, tivesse se solidificado, em pleno movimento das vagas. É claro que não
havia espuma, mas lá estavam pequeninas colinas e mansos vales, que só se percebiam
pela ampliação da imagem.
Graybound continuava apontando para baixo.
— E isto deve ter vida? — perguntou indeciso.
— Acho que sim! — exclamou Rex.
Os instrumentos, porém, diziam exatamente o contrário.
Smith apareceu na porta.
— Será que devo transmitir alguns sinais? Pode ser que eles respondam.
Graybound despertou de suas fantasias.
— Você quer a todo custo jogar este bando de gente nas nossas costas, não é? Ainda
não sabemos bem do que se trata. Além do mais, temos agora outros problemas. Espere
um pouco, até receber nova informação, entendido?
— Entendido, chefe.
A cabeça do Toureiro desaparecera entre as penas da asa. Estava murmurando
alguma coisa, em voz bem mais fraca:
— Socorro, a polícia está chegando!
Depois resolveu cochilar por alguns minutos.
— Se eles aterrissaram, teremos que ver a sua nave. Pelo menos ela não poderá ser
exclusivamente de matéria orgânica — dizia Rex. — O analisador haveria de reagir e
apontá-la.
— Concordo — acudiu o capitão, já mais aliviado com o silêncio do papagaio. —
Então, vamos procurar primeiro a espaçonave.
Assim o problema do “planeta vivo” passou para um segundo plano, embora não
fosse esquecido.
Voavam a baixa altura, com os olhos fixos na superfície. No lado da noite, a
escuridão era total, pois a luz das estrelas não era refletida. Mas o sol não demorou a
aparecer no horizonte e tudo ficou claro. Mas não viam nem sinal da nave procurada.
O planeta tinha mais ou menos o tamanho da Terra, com valores de gravitação quase
idênticos. Naturalmente, precisavam de muito tempo para percorrer toda sua superfície.
De repente, Rex deu um pulo de sua poltrona e apontou para a tela.
— Olhem, que é aquilo? Graybound pareceu despertar de um sonho.
— Onde?
— Exatamente na direção em que voamos. Diminua a velocidade para vermos
melhor. Será que são eles?
— Sim!... Os náufragos?
Graybound já havia reconhecido os vultos de quem Rex falava. De fato, lá embaixo
moviam-se alguns vultos, talvez sete ou oito, não restava dúvida. Mas havia algo de
errado com eles.
Rex, com muito jeito, manobrou o aparelho bem junto do grupo e ligou os campos
antigravitacionais. Assim a Lizard pairou sobre os poucos homens... se é que eram
homens.
O capitão, aos poucos, começou a ter suas dúvidas. Primeiro, foi um sentimento
indefinido, depois uma conclusão mais lógica. Aqueles vultos não mostraram nenhuma
reação com o aparecimento da Lizard sobre eles. De qualquer maneira era uma coisa
muito esquisita. Talvez tivessem emitido imperceptíveis sinais de alarme. Mas, mesmo
assim!
— Desça mais!
E a Lizard abaixou de encontro ao grupo. O capitão não os perdia de vista e eles
ficaram parados.
Só então foi que Graybound reparou não terem eles cabeças...
4

— Tenente Sikhra!
O corpulento nepalês veio correndo.
— Pronto, sir.
Rhodan apontou para os vultos lá embaixo, que se distinguiam muito pouco na
meia-luz do horizonte. No momento, estavam parados, imóveis.
— Pegue sua gente e procure averiguar quem são ou talvez o que é aquilo.
— O senhor está se referindo...?
— Não tenho nenhuma certeza. Eu mesmo me pergunto como é possível terem
surgido de repente seres humanos nesse planeta. Mesmo sendo um tanto parecidos com
homens têm um aspecto estranho. Vá, por favor, mas ao menor, sinal de ataque, usem as
armas.
Bell, de pé junto de Rhodan, esperou até que Sikhra partisse, para depois falar:
— O que houve, Perry? Até hoje você nunca se havia recusado entrar em contato
com inteligências desconhecidas. Quem sabe elas podem nos ajudar!?
Rhodan continuava olhando na direção do grupo. Abanou a cabeça e apontou para o
solo lá embaixo.
— Você já imaginou o que pode ser aquilo? Você acredita mesmo que se trata de
pedra? Ou de barro ou lama? Quando nosso Space-Jet afundou, você não reparou em
nada?
— No que devia eu ter reparado?
Rhodan deu de ombros e olhou inquisitivamente para Claudrin, que estava também
de pé ao lado de Bell.
— Também o senhor não percebeu nada, major?
— Que eu saiba, não. Rhodan aspirou profundamente.
— Quando o disco estava pousando, não me passou despercebido um fato. Reparei,
então, num funil sob o bojo do disco. Abriu-se numa gigantesca garganta, como que para
engolir o aparelho. Compreenda-me bem, major. O barro ou lama, ou como o queiram
chamar, recuou ainda antes que o peso do disco pudesse afundá-lo. Portanto, recuou por
si, independente de qualquer compressão de cima.
O major olhava atônito para Rhodan, enquanto Bell, nervosamente, mudava o apoio
do corpo de uma perna para outra.
— Isto me levou a uma suposição muito doida, mas eu não queria assustar ninguém.
O brejo, e agora estou certo disso, tem vida própria. Pode até pensar e agir. Foi ele quem
afundou o disco para nos cortar toda possibilidade de fuga.
— Perry... isto é uma coisa absurda... Não... Horrível!
Bell estava branco como cera. O círculo dos ouvintes aumentara de repente. Todos
se esqueceram do comando de ação de Sikhra.
— Não é nada de absurdo, Bell. É uma coisa possível, real. Mais tarde, os
especialistas poderão nos explicar melhor. No momento, temos de aceitar a realidade,
aliás a terrível realidade, de que nos encontramos com uma inteligência estranha,
originada da conjunção de todas as células existentes neste planeta. Uma espécie de
ameba gigantesca. Através dos relatos de expedições de exploradores, sabemos que um
fato como este já foi constatado mais de uma vez, com a diferença de que nenhuma
destas expedições teve a coragem de aterrissar num mundo assim e, para nós, não houve
opção.
— Uma única inteligência, tão grande que pode abranger um planeta — falou Bell,
balançando a cabeça e olhando para o chão, num misto de horror e curiosidade. —
Realmente, não consigo acreditar nisso. Por que que ela não nos devora?
— Como devorou nosso jato? — refletiu Rhodan, hesitando. — Francamente, não
sei. Além disso...
Foi interrompido. Na extremidade da fila humana, alguém estava gritando. Depois,
ouviu-se os disparos energéticos e um clarão vivo se espalhou pelo ar. Rhodan arrancou
sua arma do cinturão e saiu correndo na direção do comando de ação do Tenente Sikhra.
Alguns homens corajosos o seguiram.
Conforme lhe relatou Sikhra, o que aconteceu foi o seguinte:
Os seis homens do comando se aproximaram do grupo dos desconhecidos, que no
momento havia parado. Os vultos tinham traços humanos, mas nada de comum com os
homens. Constituíam-se do mesmo material que o amorfo protozoário. Não reagiram a
nenhum apelo. Então, Sikhra apanhou um farolete e dirigiu o jato de luz de encontro aos
seres estranhos. No mesmo instante, um fluxo de vida lhes penetrou. Vagarosamente,
colocaram-se em movimento e se dirigiram contra os seis homens. Quando o primeiro
deles alçou o enorme braço em torno de um cadete e começou a querer afundá-lo no
chão, Sikhra teve que abrir fogo.
Rhodan chegou a ver, pessoalmente, o cadete gritando desesperado. Seria
completamente sem sentido atirar no atacante, pois com isso o terrano poderia ser
atingido.
A massa cinzenta do tal barro já lhe havia chegado até o peito. O monstro amorfo,
que ainda agarrava com os dois braços o pobre cadete, foi se unindo de novo com a
massa comum do solo, de onde se originara. Acabou se dissolvendo no chão mole,
levando consigo sua vítima.
No mesmo instante, Rhodan compreendeu a gravidade da situação. Sabia que aquele
seria o destino de todos, caso não ocorresse um milagre.
O monstro do planeta orgânico não possuía apenas uma determinada inteligência,
mas também um notável poder de imitação. Viu nos homens uma presa fácil e logo se
moldou num corpo semelhante ao deles. Não havia nenhuma vantagem em destruir estas
imitações, pois surgiriam outras iguais: milhares ou mesmo milhões, se necessário fosse.
De qualquer maneira, teriam de lutar. Levaria algum tempo para que o monstro
plasmasse outras imitações. E não havia tempo a perder!
Os pensamentos atropelavam-se no cérebro de Perry.
— Gucky!
O rato-castor se materializou junto de Rhodan.
— Meu amigo, puxe o cadete para fora. Por telecinésia, hein! Não se aproxime
muito.
Gucky compreendeu. Concentrou-se na sua missão e emitiu o fluxo energético de
seu cérebro. As forças telecinéticas agarraram o jovem cadete e o foram erguendo
lentamente do “brejo”, que fazia tudo para retê-lo.
— Sikhra! — disse Rhodan ao tenente — destrua todas estas imitações, para que
elas não ataquem mais ninguém.
Os cinco elementos restantes do pelotão abriram um fogo mortal. Seu escrúpulo já
havia acabado à vista do que acontecera com um colega. Os raios energéticos
dissolveram aquelas figuras horrendas e a massa incandescente foi absorvida pelo solo.
Naquele momento, sentiu-se um forte movimento vibratório, como aquele
provocado por uma pedra ao cair na água, com a única diferença de que as ondas são
mais lentas.
Será que o monstro inteligente estaria sentindo dores?
Rhodan não o sabia. E mesmo não lhe interessava saber. Tinham é que salvar a
própria vida, pois estavam sendo atacados por um ser materialmente muito superior a
eles.
Nesse meio tempo, Gucky, sem sair do lugar, acabara de arrancar o jovem cadete
das entranhas daquele chão misterioso. Os últimos pedaços da massa cinzenta caíam no
chão. E Gucky entregou o rapaz aos seus colegas.
— Vamos — disse Rhodan. — Não podemos ficar parados no mesmo lugar, para
não permitir que o monstro tenha tempo de fazer outras imitações. Acho que ele precisa
de algum tempo para isto.
Puseram-se a caminho. O fim da fila era fechado por Sikhra e seus rapazes, que
constantemente estavam olhando para trás, para descobrirem a tempo qualquer tentativa
de ataque.
O primeiro encontro fora bem superado.

***

Já estava ficando escuro. As luzes fortes dos faroletes lhes mostrava o caminho. Mas
podiam também andar sem iluminação. Não havia nenhum empecilho à sua frente. A
paisagem era aquela monotonia de sempre.
Rhodan caminhava na frente. A seu lado, Claudrin e Bell. Gucky seguia com os três
mutantes e, geralmente, era carregado por Ivã Goratchin. Ajeitava-se comodamente entre
as duas cabeças do gigante. John Marshall e Tama Yokida conversavam em voz baixa
sobre as últimas experiências. Mas a conversa mais animada era a do grupo da frente,
Rhodan, Claudrin e Bell.
— Como é que nós podemos sair daqui?
— perguntou Bell, que não estava apreciando muito aquela longa caminhada. — O
monstro é onipresente, isto é, acha-se em toda parte. Estamos sempre correndo de
encontro a ele.
Rhodan concordou.
— É verdade. Mas enquanto permanecermos em movimento não haverá ponto de
apoio para o ataque. Temos que estar em fuga constante, até que alguém nos venha salvar.
Meu caro Bell, nunca estivemos numa situação tão desesperadora como esta.
— Mas a inteligência do monstro não é como a nossa — tentou Claudrin amenizar o
pessimismo que havia no olhar de todos.
— Fosse ele igual a nós, ter-nos-ia devorado.
— Acho que não pode fazer isto — ponderou Rhodan, que há pouco tempo tivera
uma longa conversa com o médico Gorl Nkolate. — Este ser coletivo deve pensar muito
lentamente e age de igual maneira.
Quando ele engoliu o jato, sentimos isto. Se ficássemos mais tempo no mesmo
lugar, certamente nos aconteceria a mesma coisa.
— E enquanto estivermos em movimento, não nos poderá acontecer nada? —
perguntou Bell, visivelmente aliviado. — Não podemos ficar andando a vida toda.
— Somos obrigados a isso, Bell. Não nos resta outra opção.
— E quando é que vamos dormir?
— Já pensei nisto. Podemos arranjar um período para dormir. Enquanto cinco ou
dez homens descansam, os outros carregam-nos. Mas, esperemos até o clarear do dia.
Com a luz do dia, talvez surjam outras possibilidades.
E continuaram caminhando. Acima deles, aquela infinidade de estrelas; abaixo,
aquela pele elástica de um ser vivo... faminto.

***

O dia começou a raiar. E então aconteceu o que há tanto tempo temiam: formando
forte silhueta contra o sol da manhã, surgiram bastante nítidas as primeiras imitações!
Durante toda a noite, nada acontecera. Dormiram tranqüilamente, sendo carregados
em revezamento constante. Enquanto caminhavam, alimentaram-se. E, agora que estava
claro, o monstro reiniciava seus ataques. Eram pelo menos duzentos vultos, que
caminhavam lentamente de encontro à gente de Rhodan. Eram maiores que os do dia
anterior, mas não portavam armas. Tinha-se a impressão de que o ser inteligente não
podia copiar nenhuma matéria anorgânica.
— À direita também há alguns! — exclamou alguém das últimas fileiras, — Eles
nos cercaram.
Vinham também da esquerda e de trás. Centenas, milhares.
Rhodan sentiu uma fraqueza nas pernas. A princípio, pensou ser sinal de
esgotamento físico, mas depois constatou com terrível clareza que se tratava mesmo de
medo. Ele, Perry Rhodan, tinha medo. E não lhe era nenhum consolo saber que todos os
demais também estavam com medo. A situação era de desespero e cada um via a morte
diante de si, tão horrenda, tão nojenta. Podiam adiá-la por uns momentos, mas até
quando?
Bell estava branco e seu cabelo vermelho, hirsuto. Mas desta vez não havia ninguém
para achar a cena engraçada. Nem mesmo Gucky.
— Vamos ser tragados? — perguntou o rato-castor, que ainda continuava sendo
carregado por Ivã, o mutante de duas cabeças.
Rhodan sentia os olhares de todos convergirem para ele.
— Ainda não, meu amigo — disse ele. — Se tivermos que morrer, não será de
braços cruzados.
Olhou em volta e enfrentou firme a inquietação de sua gente. Havia determinação no
semblante do administrador.
— Vamos forçar uma passagem por entre eles, e até que se reúnam de novo, já
estaremos longe. Não sei se vai dar resultado. Mas enquanto houver um sopro de vida em
nós, temos que tentar e não podemos desanimar.
Balançaram a cabeça afirmativamente e tiraram a arma do cinturão. Rhodan não
esperava outra coisa. Olhou pensativo para Ivã Goratchin. O “detonador” seria um trunfo
de reserva.
— Ainda não sei com clareza — continuou Rhodan — por que razão o monstro
orgânico faz questão de imitar nossos corpos, quando nos quer atacar. Quem sabe é
porque nunca viu outra forma de corpo, outra forma de vida e acha que só nos pode
vencer, usando nossa própria imagem? Parece-me que deve “pensar” que, isoladamente,
somos pequenos e fracos para resistir. Mas tudo isto não passa de um palpite meu.
Virou-se de repente para Gucky e John Marshall.
— Vocês, telepatas, não conseguem captar nenhum impulso mental emanado desse
monstro?
Os dois fizeram um gesto que não.
— É pena! Teremos então que agir como nos manda o instinto de conservação.
Tenente Sikhra, o senhor comanda a segurança na retaguarda. Major Krefenbac, cubra o
lado esquerdo e o senhor, Claudrin, o lado direito. Bell e eu ficamos na linha da frente.
Tenho a impressão de que o monstro está disposto a atacar. Na direção que seguimos, até
agora sem interrupção, deve existir alguma coisa que nos possa proteger. Por que razão,
pois, que o monstro nos quer cortar este caminho? Acho que vocês estão me
compreendendo.
Continuaram caminhando. As imitações de trás não se aproximaram. Mas as outras,
as laterais e as da frente, duplicaram sua velocidade.
— Fogo! — ordenou Rhodan, decidido. Seu medo não existia mais. O frio metal de
sua arma lhe aumentou a confiança. O mesmo devia estar acontecendo com toda sua
gente. Até os cabelos de Bell estavam assentados, sendo que também seu rosto tinha o
vermelho “sadio” de quem está zangado.
De vinte armas pesadas jorravam jatos Incandescentes encontrando facilmente seu
alvo. Os monstros em forma humana quedavam parados, assim que eram atingidos. Era
como se algo dentro deles desligasse. Ficavam incandescentes e iam derretendo e, ao
mesmo tempo, imergindo na massa cinza do solo, para se unir a ela. Será que se
tornariam matéria morta?
Já estava aberta a passagem. Quando alcançou a largura desejada, os terranos
irromperam. No momento em que o Tenente Sikhra atingiu o fim da passagem e olhou
para trás, viu que os monstros se preparavam para persegui-los.
— Vamos tomar uma boa dianteira — explicou Rhodan — pois só assim teremos
uma pausa. Durante o dia, isto não pode ser perigoso.
Os monstros ficaram para trás e depois de algum tempo sumiram no solo escuro.
Caminharam uma hora sem parar. Só então Rhodan ordenou uma parada para o
repouso. A maioria dos homens caiu exausta. Estavam muito cansados. Fecharam os
olhos e tentaram dormir. Rhodan foi o único que, apesar de não ter pregado o olho um
instante, não quis descansar. Não conseguia se livrar de um pressentimento de que novas
surpresas o esperavam, embora o monstro se mantivesse “calado” na última hora. Assim
pensando foi fazer uma ronda em companhia de Bell e de Claudrin.
Víveres existiam em abundância, como também cargas para as armas energéticas.
Estas últimas, porém, talvez não fossem suficientes para mais cinco ou seis ataques.
Depois disso, só restava mesmo Ivã Goratchin. O mutante de duas cabeças tinha o
estranho dom de, mesmo a grande distância, poder transformar qualquer matéria em
energia atômica.
Depois, Rhodan sentou-se no chão e sentiu a leve vibração do solo enganador. Não
chegou a afundar, mas não estranharia se isto acontecesse. A ondulação continuava até se
perder de vista no horizonte. Aquela massa orgânica do monstro cobria o planeta. Será
que todo o planeta? Ou havia lugares não cobertos pela massa orgânica? Talvez os
píncaros das montanhas?
Rhodan maldisse sua afobada aterrissagem. Deviam ter dado várias voltas pelo
planeta para examiná-lo mais atentamente. Teriam, pelo menos, uma resposta para esta
pergunta.
Seu olhar se deteve num ponto no horizonte. Parecia uma corcova, baixa e
arredondada. Se a distância não o estivesse enganando, aquela saliência tinha o diâmetro
de uns cem metros. Era uma coisa fora do comum, pois, até então, o monstro, ou melhor,
o solo não formara nenhuma elevação maior.
Seria uma armadilha?
Rhodan recusou a idéia. A inteligência daquela massa amorfa não era suficiente para
tanto. Até agora ela só conhecia uma arma contra os terranos: imitação de seus corpos.
Como teria chegado então à idéia de plasmar uma falsa elevação? E com que finalidade?
Um grito agudo arrancou Rhodan de seus pensamentos. Levantou-se de um salto.
Ao lado de um tenente — o bravo oficial artilheiro da Fantasy, Brazo Alkher —
surgiu lentamente uma bolha que se transformou numa figura humana, com braços, mãos
e pernas. Apenas, sem o rosto.
O Major Krefenbac reagiu com incrível agilidade, arrancando a arma e pulando
entre Alkher e o monstro. Seu disparo liquidou a massa cinza, antes que ela pudesse agir.
Rhodan respirou aliviado. O ser misterioso não era um perigo direto, mas suas
constantes investidas deixavam o pessoal de Rhodan, por causa do desgaste emocional,
extenuado.
Ao aparecer o segundo monstro, Rhodan ordenou a retirada.
O sol já estava mais alto e conseqüentemente sua luz bem mais forte. Depois de
outra marcha de uma hora, Rhodan parou e pediu que Claudrin lhe passasse um binóculo.
Estudou demoradamente a saliência surgida uma hora atrás, que não podia distar mais de
cinco quilômetros. O que lhe chamou a atenção de início foi a coloração mais clara. A
“pele” do ser orgânico era mais escura. A luz do sol se refletia muito melhor na “corcova”
do que na superfície normal. Já esta constatação vinha confirmar a seguinte suposição de
Rhodan: a saliência era feita de um outro material.
— Vamos continuar — disse apontando para frente. — Pode ser que, na próxima
noite, já possamos dormir tranqüilos. Depois, passou-lhe pela cabeça uma idéia, que, por
incrível que fosse, tinha ficado no esquecimento. Era Gucky, o rato-castor!
Bastou o pensamento de Rhodan e, no mesmo instante, Gucky se rematerializou ao
lado de seu chefe.
— Gucky, você está vendo aquela colina? Dê um pulo até lá e veja de que é feita.
Mas não demore.
O rato-castor estava feliz por ter recebido uma missão. Confirmou o pedido de
Rhodan com um movimento de cabeça, concentrou-se para o salto de teleportação e
desapareceu. Não demorou dez segundos, estava de volta.
— Uma ilha, Perry, uma ilha de pedra. Mas a altura dela, a partir do mar do plasma
cinzento, não vai além de vinte metros.
— Dentro de alguns anos, ou talvez antes, vai acabar também desaparecendo —
disse Rhodan. — Ótimo, Gucky! Assim, todos já sabem a direção de nossa marcha.
Tiveram que se defender mais duas ou três vezes de ataques do monstro e atingiram
o alto do rochedo duas ou três horas depois do meio-dia. Media mais ou menos trezentos
metros de comprimento por cem de largura. Não muito grande, completamente árido, sem
vestígio de vegetação. Mas era chão firme, rochedo de fato. Rhodan imediatamente
escalou guardas, formando um anel de vigilância em torno da ilha de pedra. Podia-se
presumir que as imitações humanas tentariam invadir a ilha, assim que o ser descobrisse
que ela oferecia abrigo para os terranos. E, como a experiência demonstrava, ele não
demorava muito para descobrir certas coisas.
O sol já estava se inclinando no horizonte, quando se deu o esperado ataque. Muito
tempo antes, Rhodan e sua gente puderam observar como as imitações foram se
levantando do solo, em volta da ilha de pedra. Estas imitações talvez fossem a única
maneira que o monstro tinha para atacar a ilha. O solo continuava com a aparência de
sólido e imóvel, talvez apenas se abrindo, a fim de receber suas vítimas, se houvesse
tempo para isto.
No alto do rochedo estava Rhodan, como um general-de-campo. A visão de lá era
excelente para todos os lados. Distribuíra os setores de defesa entre seus oficiais.
Conservou Gucky ao seu lado, pois precisava dele para transmitir suas ordens.
A legião de imitações se pôs a caminho. A uns três metros de Rhodan, estava o
mutante de duas cabeças, Goratchin. O russo era propriamente um aleijado de nascença e
sofrera muito em sua pátria, devido às duas cabeças, até que Rhodan o admitiu no
Exército de Mutantes. Nos cérebros de suas duas cabeças é que Goratchin produzia as
terríveis centelhas de detonação, que permaneciam inofensivas e ineficazes, enquanto não
se reunissem num determinado foco. Neste momento, então, dava-se invariavelmente a
explosão nuclear.
Rhodan fez um sinal para o “detonador”.
— Ali no outro lado, aquela aglomeração, Goratchin. Destrua aquilo tudo.
O mutante compreendeu a ordem. Um de seus rostos mostrava um sorriso tranqüilo,
enquanto o outro continuava sério. Nem sempre as duas cabeças estavam de acordo.
A cabeça direita estava se concentrando na mira e aos poucos também a outra
cabeça se virou para o ponto visado, até que os dois pares de olhos se concentraram no
mesmo alvo, e os impulsos detonadores se encontraram no foco escolhido.
Os homens, ofuscados com o descomunal clarão, levaram as mãos aos olhos.
Explodiu uma bola de fogo no meio das imitações do corpo humano, crescendo
rapidamente e dissolvendo todas as figuras, que penetravam no solo, em forma de um
líquido escuro. Na “pele” do ser inteligente se abriu uma grande vala, quando recebeu a
matéria incandescente e líquida.
O cogumelo atômico se ergueu no céu, como um sinal de advertência de que havia
ali uma inteligência superior: a inteligência humana, que era capaz de se defender.
A bola de fogo se extinguiu, mas a vala cavada na superfície do planeta continuou.
Gucky, que Rhodan enviara para investigar o local da explosão, informou que a massa
incandescente desaparecera, mas a vala não se tornara a encher.
Goratchin desencadeou mais três explosões. Depois dessas detonações, o plasma
inteligente desistiu de outros ataques. Foi realmente inteligente para compreender a
inutilidade de seus esforços. Levaria agora muito mais tempo para inventar outra tática de
ataque.
Rhodan estava mais tranqüilo. Na segunda batalha, também foram os terranos os
vitoriosos. Apesar do justo regozijo pelo sucesso alcançado, a situação não melhorara em
quase nada. Estavam ainda presos num planeta deserto e sem nenhuma esperança de
serem salvos. Os víveres não poderiam ser renovados e a água estava escasseando. Se
alguém não tivesse captado o pedido de socorro, seu fim seria trágico. O pior era esta
clara evidência dos fatos.
5

O Capitão Graybound necessitava somente de pequenas observações para chegar à


mesma conclusão que Perry Rhodan e assim esclarecer o mistério do planeta.
— Não é nenhum milagre — constatou Rex — o fato de que o analisador aponte
apenas matéria orgânica. Portanto, trata-se de uma ameba, não é verdade?
— Não afirmei isto — disse Graybound categórico. — Não sou nenhum cientista.
Em todo caso, não se formam seres vivos independentes, lá embaixo, no planeta. Mas há
somente um ser coletivo que, com o tempo, foi se ampliando. Não me pergunte por que
se deu isto. O fato é que não queria estar na pele daqueles infelizes que aterrissaram no
planeta.
— Deve ser por isso que seu rádio parou... estão todos mortos.
— Será possível?
O capitão parecia não querer se convencer da morte dos náufragos. Olhou para
baixo, para o local onde fizera os disparos com os canhões energéticos da Lizard, que
dissiparam as imitações do corpo humano.
— Você acha que a gente consegue sobreviver aos ataques deste monstro orgânico?
— era a dúvida de Rex.
— Quer apostar? Podemos aterrissar e dar uma olhada por lá. Saberemos então se
tem ou não sentido procurar por sobreviventes.
— Aterrissar? Você ficou maluco? — indagou Rex, horrorizado.
— Totalmente maluco — repetiu o papagaio.
Mas ninguém lhe deu atenção nem ouviu o terrível grasnado com que expressou seu
protesto.
— E por que não? É mais fácil destruir plasma do que metal ou outros materiais
anorgânicos.
Rex sacudiu a cabeça.
— Não, não posso concordar com você. O que vai ganhar atirando feito um louco
no monstro? Você não pode matá-lo, pois é grande demais. O que devemos fazer é
procurar os sobreviventes.
Era realmente um argumento sadio, que o capitão tinha que aceitar. Foi ainda com
alguma hesitação que ele se separou da visão majestosa do funil fosforescente, provocado
no planeta vivo pelos disparos de sua artilharia.
— Por mim, vamos lá — disse ele, para logo depois acrescentar: — Mas não vá
pensar que eu estou cedendo às suas exigências. Este negócio de aterrissar era uma
simples brincadeira minha. Queria saber qual a sua reação.
Depois de, com estas palavras, ter resguardado seu prestígio, e também sua
autoridade, deixou o comando nas mãos de Rex e ficou olhando para as telas.
A Lizard foi descendo devagar, seguindo um paralelo imaginário. Poderiam levar até
dias para encontrar os sobreviventes...
Voavam para o oeste e ultrapassaram a trajetória do sol, mas então era noite para
eles. Graybound ligou os grandes holofotes que varriam a superfície do planeta com um
largo rastro de luz. A Lizard diminuiu a velocidade. Se os procurados sobreviventes
estivessem apenas cem metros fora da faixa de luz, não seriam vistos. Mas Graybound
contava naturalmente que trouxessem consigo pelo menos foguetes de iluminação, ou
mesmo armas energéticas, que chamariam a atenção.
A noite passou sem nenhuma novidade. É verdade que fora muito curta, de poucas
horas, pois voavam na direção do sol.

***

— Acho que isto não tem sentido — disse Rex Knatterbul resignado, quando o sol
estava se levantando pela quarta vez.
— Agora sou eu que não vou desistir — disse o capitão irritado. — Perdemos quase
dois dias de viagem. E agora faço questão de ver com meus olhos estes bonecos
bobalhões sem cabeça, lá de baixo. Quero ver também estes oficiais idiotas que desceram
num planeta, sem estudar primeiro sua superfície. Quero dizer a eles como são estúpidos
e que, da próxima vez, devem ficar em casa e deixar a cosmonáutica para gente mais
experimentada, como eu, por exemplo. Acho que devem criar gado e tirar leite de vaca.
Graybound estava muito inspirado e prosseguiu:
— E o governo da Terra ainda gasta dinheiro com estes bestalhões. Mandam
cabeças-de-vento dirigir naves caríssimas nestas regiões da Galáxia e depois se admiram
de que eles não regressam. Puxa! E a mim é que eles queriam botar em reciclagem? Os
coitados não sabem nem manejar os velhos aparelhos. Miseráveis gargantas, e cheios de
prosa fiada.
— Vagabundos! Burros quadrados! — era o papagaio que estava aplaudindo com
entusiasmo, talvez para poder sair da gaiola.
Mas Graybound não tinha tempo para ele.
— Vamos continuar — ordenou o capitão. — Vou tirar uma soneca. Daqui a duas
horas, me chame.
O navegador estava contente por ficar algum tempo sozinho. Ligou o automático,
para que a nave continuasse na mesma rota, e foi para o posto de observação do seu
comandante e capitão.
Não conseguiu ver a ilha de pedra à direita, no horizonte, e os restos do cogumelo
de fumaça, pois estava mesmo exausto. Quando Graybound o substituiu, falou com
consciência tranqüila:
— Nenhum fato importante, capitão.
Dizendo algo ininteligível, o capitão assumiu seu posto. Para não ficar tão sozinho,
tirou Toureiro da gaiola. O louro se expandiu numa alegria louca e barulhenta, pulando
para o ombro de seu amo. E os dois juntos ficaram olhando para a tela.
O radiotelegrafista Smith havia ido também descansar um pouco. Mas, depois de
uma ligeira refeição, voltou para seu, trabalho. Ligou para a escuta e percorreu todas as
freqüências de onda, sempre na esperança de captar um sinal. É claro que seu primeiro
objetivo era tornar patente aos olhos do chefe a importância do seu serviço, aliás
indispensável a bordo de uma espaçonave. E o destino veio ajudá-lo...
O Capitão Graybound estava com os olhos fixos naquela superfície monótona,
procurando alguma coisa que se movesse, quando o telegrafista irrompeu em sua cabina
de comando, quase que lhe causando um susto.
— Uma mensagem do rádio, senhor, com texto claro. Estão nos chamando.
Graybound deu um tremendo salto. O pobre louro perdeu o equilíbrio e foi ao chão,
batendo as asas.
— Texto claro! — disse depois de meia dúzia de palavrões e se encaminhou para a
minúscula cabina de radiotelegrafia.
Afastou com um pontapé o banquinho que estava na frente, onde, aliás, Smith se
sentava nas pacientes horas de trabalho.
— Onde está o microfone?
Meio desarvorado, Smith chegou logo atrás de seu chefe. O pobre coitado imaginara
bem diferente seu triunfo. Contava com uma paternal batidela no ombro, acompanhada
naturalmente de uma frase mais ou menos assim: “bravo, rapaz, é assim que se trabalha
com eficiência”. Mas, nada disso.
— Quero saber onde está o microfone! — gritava o capitão enraivecido, sem saber
por quê. — Como é que vou me arranjar nesta confusão de fios?
Com movimentos rápidos, Smith transferiu a ligação para o ramal externo.
Com muito pouco volume, ouviam-se palavras em inglês. Graybound se aproximou
bem do alto-falante para poder entender.
— Passaram a três graus. Necessitamos auxílio. Comunique-se conosco. Não
aterrissar. Perigo de vida.
— Isto eu sei, seus idiotas! — gritou Graybound com toda força no microfone, que
já fora encontrado. — Dêem sua posição.
A voz do alto-falante desapareceu. A pessoa que estava falando devia ter sofrido
algum choque. Voltou de novo, mas já era outra voz. Calma e segura, dizia ela:
— Posição desconhecida. Transmitimos apenas com aparelho de pulso. Entendemos
bem.
— Isto é o principal — respondeu o vozeirão de Graybound. — Continue falando
suas bobagens, que nós vamos determinar sua posição — depois, dirigindo-se a Smith: —
Vá acordar o primeiro-oficial, mande-o vir correndo para cá.
Depois que Smith saiu, continuou o diálogo com o desconhecido.
— O senhor é o comandante da nave acidentada? Ou aterrissou por que quis? O
senhor bem que merecia que a gente o deixasse onde está...
A resposta só veio depois de alguns segundos.
— O senhor me dá a impressão de ser um gozador, que gosta de se divertir à custa
dos outros, tenho razão?
Graybound pareceu perder a fala por uns momentos. Mas logo depois resolveu
soltar a língua com franqueza.
— Que é isto, seu macaco pretensioso!? Foi burro demais, quando fez a sua
aterrissagem! E ainda por cima atrevido! Estou gostando — fez um sinal com a cabeça
para Rex que estava entrando na cabina às pressas. — Estou estranhando o senhor.
— Nós também o estranhamos — veio pronta a resposta, num tom quase afável.
Graybound olhou zangado para o microfone, depois começou a sorrir. Quando seus
interlocutores não se assustavam com seu modo de falar, gostava. Mas ficava furioso
assim que notava qualquer pretensão de superioridade do outro lado.
— Fale, excelentíssimo, fale bastante para que possamos localizá-los.
— Basta simplesmente que o senhor circunvoe o planeta em maior altura para ver os
cogumelos de poeira atômica, que circundam uma pequena ilha de rocha, onde
conseguimos nos abrigar. Nela estamos livres do plasma.
— Ah! Os senhores também já conseguiram perceber isto? — continuou Graybound
no seu modo irônico. — Estava pensando que os senhores iam imaginar que se tratava de
um pudim especial. Pessoal inteligente, hein? Parabéns!
Depois se lembrou do “cogumelo atômico”.
— Cogumelo atômico? O senhor gastou bombas atômicas com estas desgraçadas
figuras de barro? É muita honra para o brejo.
— É, foi mais ou menos assim.
Rex, que estava ouvindo a conversa, já havia feito a Lizard subir o suficiente para
começar a procura. Levou, talvez, dois minutos até serem localizados os cogumelos
atômicos. A seguir, a nave do Capitão Graybound desceu naquela direção.
— Suponho que o senhor seja comandante de um cruzador patrulha — continuou o
Capitão Graybound, querendo saber com quem estava lidando, para tomar as devidas
precauções. — Quantos vocês são?
— Somos oitenta e um, gente modesta, sem nenhuma exigência. Ficaremos
contentes se nos conseguir abrigar nos seus depósitos ou nos corredores.
— Isso não! Nos depósitos não — recusou-se o capitão, muito assustado.
Depois prosseguiu, sem mudar o tom da voz:
— Ah! Bobagem! E por que não? Mas eu lhe fiz uma pergunta e ainda não recebi
resposta. Quem é o senhor? Como se chama sua nave?
— Não temos mais nave e quem sou eu, o senhor vai saber logo.
Graybound teve que engolir este atrevimento. Neste meio tempo a Lizard estava
descendo no sentido da ilha de pedra e quedou imóvel a uns cem metros de altura.
Toureiro voara para a parte superior de sua gaiola. Empoleirou-se lá, sem dizer uma
palavra. Seus olhos inteligentes acompanhavam tudo que se passava no posto de
comando, como se entendesse alguma coisa. E quem sabe, entendia mesmo?
— Agora, seria bom se o senhor aterrissasse — propôs a mesma voz pelo alto-
falante. — É um rochedo maciço e firme.
Rex Knatterbul apontou para a tela do videofone.
— A ilha está cercada pelos monstros de barro. Surgem do solo e estão caminhando
para o rochedo. Se não nos apressarmos, o pessoal lá embaixo está perdido.
— Vamos mostrar a eles o que a Lizard pode fazer.
Depois, pegando o microfone, falou com mais seriedade:
— Uma aterrissagem agora seria muito perigosa. Protejam-se que nós vamos
primeiro destruir estes monstros.
— São lentos demais, e até que se aproximem da gente, teremos tempo mais do que
suficiente para embarcarmos. O senhor compreendeu?
— Compreendi, sim, mas esperem um pouco.
Graybound foi para o posto de comando e deu ordens para a artilharia ficar atenta.
Fez um sinal para Rex e gritou:
— Vamos embora!
A Lizard se precipitou num vôo rasante sobre os monstros, abrindo um tremendo
fogo. A velha nave parecia um dragão de dez cabeças vomitando raios energéticos contra
o solo cinzento, enquanto os vultos incandescentes se desfaziam numa massa fumegante.
— Acho que chega — disse Rex. Graybound contemplava orgulhoso sua obra de
destruição e fez um sinal para o tenente.
— É verdade que não se consegue destruir o monstro, mas aqueles bobos lá
embaixo sabem agora com quem estão lidando. Vão ter um pouco mais de respeito para
comigo.
No posto de rádio, Smith se entretinha com os avisos do interlocutor desconhecido.
Algumas palavras chegaram até a cabina de comando e penetraram nos ouvidos de
Graybound. Sua barba ruiva começou a tremer e, bufando de raiva, pulou para fora da
poltrona. Em dois galeios chegou até o franzino telegrafista. Empurrou-o estupidamente
para o lado, tirando-lhe o microfone das mãos.
— E agora, cale a boca, seu imitação de auxiliar de cosmonauta! — disse, gritando
indignado. — Quer nos dar conselho, quando o senhor mesmo está sentado num
formigueiro? Não fosse tão bobo, não estaria preso aí. A minha vontade seria sair daqui
sem levá-los.
— Felizmente, sei que o senhor diz isto de brincadeira — respondeu o
desconhecido, parecendo não levar tão a sério as ofensas do temperamental capitão. —
Agora, por favor, desça até a rocha.
Furioso, Samuel Graybound bateu com o pé no chão, deu um sinal de consentimento
para Knatterbul e pegou novamente o microfone, para mais umas bravatas:
— Quero lhe dizer mais uma coisa, seu sabichão intrometido, e preste bem atenção
nisto. Com o velho Capitão Samuel Graybound não se deve brincar. Jamais se esqueça
disto. Está bem, vou recebê-los a bordo de minha nave, porque é um dever humano. Mas
os senhores vão ficar nas cabinas que lhes forem determinadas. Se eu pegar alguém
bisbilhotando por aqui, eu o jogo no espaço. Está claro assim?
— Claríssimo. Mas por que tudo isto? O senhor tem alguma coisa para esconder?
Graybound ficou vermelho, prendeu a respiração, mas não teve mais tempo de
iniciar outra catilinária. Enquanto seu primeiro-oficial descia a Lizard suavemente sobre a
rocha, o ar começou a cintilar na estreita cabina de rádio e do nada surgiu a figura de
Gucky, bem na frente do capitão, em cima da pequena mesa.
O capitão olhou estupefato para o estranho animal de um metro de comprimento,
pensando tratar-se de alucinação. Mas então, aconteceu algo que o fez mudar de idéia.
Com voz chiada, Gucky começou a soltar o verbo:
— Oh! Seu monstro sem-vergonha, seu mal-educado brutamontes! Seu traficante de
trabalhadores forçados! Como se atreve a falar assim com o chefe? Seu verme nojento,
pedaço de nada.
Os pêlos da nuca de Gucky estavam eriçados. Dos seus olhos, aliás tão calmos e
sinceros, saíam chispas de cólera.
Graybound dera dois passos para trás e sua barba ruiva tremia de excitação. O
animal furioso, que se achava em cima da mesa, devia ser realidade, embora o capitão
não compreendesse como ele havia chegado até ali.
Além de tudo, ainda falava! Verdadeiro mistério.
— Sabe com quem você dialogou o tempo todo? Com Perry Rhodan, o
Administrador do Império Solar...
Parece que o mundo desabou para Samuel Graybound. Presente, futuro, planos e
negócios, tudo foi água abaixo. Estava acabado. Era uma vez o Capitão Graybound, sócio
da firma “Globetrotter das Estrelas”... E não havia nada para responder. Quebrado de
corpo e alma, foi cambaleando para sua poltrona no posto de comando. Sentou-se,
esquecido do mundo e de tudo.
— Fui atingido por um raio! — lamentava-se desesperado. — Tudo que está
acontecendo é verdade ou estou sonhando? Sim, acho que estou sonhando. Isto não pode
ser verdade. Perry Rhodan, exatamente Perry Rhodan?
— Sim, exatamente — confirmou Gucky, pulando da mesa para depois ficar
pairando bem na frente do capitão.
Neste intervalo, Rex, que não se deixara perturbar em seu trabalho, desligou os
motores da nave e, virando-se para trás, contemplou admirado o rato-castor.
— Este desgraçado do Smith, telegrafista vagabundo! — comentou Graybound,
tentando jogar a culpa no pobre rapaz. — Onde está ele?
Sob a mesa dos mapas de navegação, ouviu-se um gemido. Depois alguém disse em
voz sumida:
— Não estou me sentindo bem, senhor. Toda esta excitação...
— Covarde — respondeu Graybound, e passando a observar melhor o fantástico
animal na sua frente, perguntou: — Como é que você entrou aqui na nave?
— Por teleportação, meu amigo. Você ainda não ouviu falar em Gucky? Sou eu.
Graybound começou a puxar nervosamente a barba.
— Meu Deus! Gucky, você é, portanto, o prodígio que...
— Como? Sou o quê? — perguntou Gucky, desconfiado.
— Nada, deixa pra lá.
O velho capitão já estava mais manso, procurando uma solução para o problema em
que se envolvera.
— Vamos ver então o que se pode fazer. Rex, você vai dar um jeito de esvaziar um
dos depósitos. Os ursinhos de pelúcia podem ser estocados no compartimento sete. Acho
que, com camas de emergência e cobertores, se pode fazer uma espécie de dormitório. E
para Rhodan e seus oficiais... hein?
Graybound ficou pensativo. Gucky sorriu compreensivo. Sabia com que tipos de
problema o velho estava lutando. Naturalmente o temperamental capitão se esquecia de
que estava diante de um telepata.
Rex saiu apressado do posto de comando, enquanto Graybound se agachou, a fim de
acariciar o pêlo sedoso de Gucky.
— Então, você é o corajoso e inteligente Gucky. É-me uma honra estar perto de
você. Vamos andando, parece que o chefe nos espera.
E com sentimentos desencontrados, entraram no corredor que dava para a escotilha.
Se conseguisse arranjar uns trinta minutos, tudo daria certo. Até lá, Rex teria conseguido
uma acomodação garantida para a tripulação acidentada. Os demais depósitos estavam e
ficariam trancados. Ninguém desconfiaria de nada.
Deixou todas as portas atrás de si bem abertas. De mãos dadas com Gucky, passeava
ele garboso pelos corredores como que desfilando perante seus poucos tripulantes, que
olhavam para ele de boca aberta, sem dizer uma palavra.
Foi aí que ele notou que Gucky já havia desaparecido há tempo e ele continuava
andando pelo corredor como um demente de braço levantado. Seus homens deviam de
fato pensar que ele estava caducando, ou talvez ensaiasse um novo tipo de dança.
6

— O senhor deve mandar prender este sujeito sem-vergonha — disse o Major


Claudrin.
O Major Krefenbac e Bell, que estavam ao lado, apoiaram a sugestão.
— Está configurado o crime de lesa-autoridade — sentenciou o gorducho.
Rhodan sorriu, balançando a cabeça.
— Que é isto, meu caro Claudrin? Para que tudo isto? O bom capitão não sabia com
quem estava falando. Além disso, muita coisa que ele disse estava certa. Antes de
aterrissarmos, nós tínhamos, de fato, que observar melhor o planeta. Não nos portamos
como cosmonautas experimentados. Ele tem razão.
Claudrin empertigou sua figura maciça.
— Como achar melhor, sir. Foi apenas um palpite meu.
Viram como a Lizard, parada a uns cem metros de altura, começou a descer
brandamente. Depois, os motores silenciaram.
— Mas, pelo menos um memorando bem enérgico ele deve receber — insistiu Bell.
— Não se pode permitir que alguém nos xingue de burros quadrados.
— Gucky já chegou lá — disse Rhodan. — Acho que ele lhe está transmitindo um
memorando oral, bem enérgico mesmo. Mas agora, vamos esquecer isto. Lembrem-se,
porém, que, sem o Capitão Graybound, estaríamos perdidos. Como parece, foi o único
que captou nosso pedido de socorro. Devemos-lhe nossas vidas.
O grupo de segurança ainda estava distribuído em volta da ilha de pedia, mas os
monstros não reapareceram. Será que desistiram do ataque ou esperavam que a outra
nave cometesse o mesmo erro da primeira? Certamente jamais teriam uma resposta para
isto.
Gucky se materializou ao lado de Rhodan.
— Há uma novidade — disse bem baixinho — o velho capitão não é assim...
— Já estava pensando isto — disse Rhodan, também sussurrando.
Seus fracos dons telepáticos davam para captar os pensamentos de Gucky. Quando,
pois, o Capitão Graybound apareceu na escotilha aberta da Lizard e olhou para Rhodan, o
velho globetrotter já estava visceralmente dissecado.
Foi pena que a tripulação da Lizard não estivesse toda ali para ver a reação do seu
tonitruante capitão. Com uma agilidade inacreditável desceu pela escada, parou, respirou
profundamente e se encaminhou para Rhodan.
— Minha velha nave está à sua inteira disposição, sir — disse, assim que chegou
perto de Perry.
Pegou a mão do administrador e a apertou firmemente.
— Minha gente está preparando algumas cabinas para o senhor. Posso lhe perguntar
por que motivo desceu aqui neste planeta horrível? Onde deixou sua nave?
— Explodiu no espaço, a três anos-luz daqui. Aterrissamos neste planeta com um
pequeno aparelho que acabou tragado pelo solo misterioso do planeta. Depois, fugimos e
encontramos esta ilha de pedra. Foi mais ou menos tudo.
— Oh! — disse o capitão, completamente sem jeito e acanhado. — Quer dizer então
que sua aterrissagem não foi voluntária? Então peço licença para retirar tudo que eu
disse.
— Está certo — aceitou Rhodan, sorrindo.
Logo em seguida, sua atenção foi desviada por um furioso xingatório que vinha da
escotilha da Lizard. Então alguma coisa de colorido intenso fez um ruído de ruflar de asas
e acabou pousando no ombro de Graybound. Toureiro encontrara afinal seu amo.
— Velho malandro! Maluco sem-vergonha — esganiçava ele para Rhodan, que
curiosamente o olhava.
Bell abriu a boca e arregalou os olhos.
— Não tolero isto — disse ele desesperado. — Uma ave deste tipo!
Graybound estava oscilando entre o acanhamento e a cólera. Mas teve uma boa
saída.
— É uma ave muito inteligente, às vezes, porém, indiscreta. Naturalmente não o
conhece, mister Rhodan.
Depois disso, o capitão ficou muito sério e não falou mais.
Gucky, o rato-castor, nunca vira em toda sua vida um papagaio. E muito menos um
que sabia falar e xingar o administrador do Império Solar de malandro e sem-vergonha. A
boca de Gucky estava meio aberta, aparecendo o dente roedor. Seu olhar refletia
melancolia. O único descontraído ali era mesmo o papagaio Toureiro. Bateu as asas e
soltou a língua de novo:
— Viva! Um dente só!
Gucky fechou a boca, sem dizer uma palavra.
“A ave é inteligente, e como!”, pensava Gucky.
Depois de tantos perigos por que passaram, Rhodan estava se distraindo com aquele
espetáculo. Até os outros oficiais chegaram mais perto. Nunca tinham visto o rato-castor
ficar devendo uma resposta.
Graybound estava muito feliz com o espetáculo que seu papagaio estava oferecendo.
Cada minuto ganho representava mais garantia para ele. Neste meio tempo, o pessoal
estaria dando um jeito lá nos depósitos da Lizard.
— Cara de pimentão! — berrou o louro, olhando de passagem para Gucky.
Mas seus olhos inteligentes demoraram por mais tempo no rosto vermelho de Bell.
Não havia dúvida de que a brincadeira era para ele. Mas o gorducho não fez nenhum
comentário e, disfarçando, engoliu a ofensa, sem saber como.
O Major Claudrin deu um passo à frente. Seu corpanzil fez Gucky e Bell ficarem
encobertos.
— Homem de Deus! — disse, dirigindo-se furioso para o Capitão Graybound,
apesar do sinal negativo de Rhodan. — Por favor, vá apresentar seu circo em outra praça
e não aqui diante de nós. Parece que o senhor ficou maluco!
Graybound olhou para o epsalense bem cepticamente. Embora Claudrin fosse mais
baixo, tinha no mínimo o triplo da largura do homem que o fitava. O volume de sua voz
ultrapassava tudo que Graybound já ouvira, e as mãos enormes, fechadas em punho,
excluíam qualquer dúvida sobre seu eventual uso...
Graybound, porém, era um homem voluntarioso, portanto, sem medo.
“É claro que respeito Rhodan”, pensou, “mas este troncudo aí?”
— Devia tê-lo deixado morrer na ilha de pedra — gritou com toda força, notando
com satisfação que Claudrin empalidecera, mas se foi de ira ou de medo, não pôde saber.
— Ao menos assim, o monstro teria o que comer por três ou quatro semanas.
O capitão deixou de lado o Major Claudrin, pois, entrementes, Bell se recuperara da
surpresa, e aproximou-se mais. Observou com olhos indagadores o papagaio no ombro de
Graybound.
— Então, o que o senhor deseja? Toureiro não está à venda.
— Eu também não estou aqui para comprá-lo — respondeu Bell. — É um papagaio
comum — retomou ele, decepcionado.
— Quem foi que o domesticou?
Antes que Graybound respondesse, apareceu na escotilha de subida da Lizard o
primeiro-oficial.
— Está tudo pronto para a recepção dos passageiros — disse ele. — Vamos subir?
Rhodan queria falar qualquer coisa com Graybound e tocou de leve com a ponta do
dedo no seu braço. Toureiro deu uma rápida bicada, mas a reação de Rhodan foi
surpreendente e acabou segurando o louro.
— Assassino! — gritou o papagaio desesperado, procurando se livrar das mãos de
Rhodan. — Socorro! Assassino e bandido! Somos pequenos contrabandistas...
Rhodan olhou para a ave com muita admiração, colocando-a de volta no ombro de
Graybound e, ao mesmo tempo, piscou o olho amavelmente para este último.
— Uma ave inteligente, como disse o senhor há pouco, capitão. Ainda conserva esta
opinião?
— É também um pouco indiscreta, não é? E nem sempre fala a verdade.
Era visível o esforço do capitão para mudar de assunto.
— Posso lhe pedir que envie sua gente para nossa nave? Os alojamentos lhes serão
mostrados por minha tripulação. Outra coisa, sir, ser-lhe-ia grato se conseguisse que cada
um permaneça em seu lugar. O senhor compreende, minha nave não é muito nova —
concluiu, meio desajeitado.
— Pode estar tranqüilo, seguiremos suas instruções.
Graybound ficou esperando com Rhodan, ao pé da escada. Olhava com atenção
cada um dos sobreviventes que passava diante dele para subir pela escada. Toureiro
continuava resmungando alguma coisa e, de vez em quando, premiava um ou outro com
títulos nem sempre agradáveis.
— Gorducho! — disse para o Major Claudrin, que somente devido ao olhar
persuasivo de Rhodan se absteve de estrangular o tagarela. — Espanador da Lua! —
disse quando passou o Major Krefenbac, que era de fato alto e muito magro.
O velho comandante ria feliz com estas brincadeiras. Quando finalmente o Capitão
Narco, que tinha apenas um metro e cinqüenta e sete, foi chamado de “anão de jardim”,
Rhodan ficou mesmo muito curioso.
Isto não podia ser mero acaso. O papagaio não “despejava” assim as palavras, como
fazem quase todos, e nem as repetia bobamente. Não, as usava com inteligência. Elas
davam certo quase sempre.
Realmente... quase sempre?!
Voltaria mais tarde ao assunto do papagaio. Neste momento tinha uma importante
pergunta para fazer, e só o Capitão Graybound poderia lhe responder...
Depois que todos estavam abrigados e o furor do Major Claudrin se abrandara,
Rhodan convocou John Marshall, pedindo-lhe que observasse, com muita calma, a
mente de Graybound, em especial quando o capitão estivesse pensando em sua carga.
Momentos depois se encontrou com Gucky e se dirigiram os dois para a cabina de
comando da Lizard.
Não se tratava de ir contra os direitos do Capitão Graybound, mas, sendo sócio de
uma empresa comercial, Rhodan tinha que olhá-lo do ponto de vista de Administrador do
Império Solar, cujas prerrogativas especiais o colocavam como comandante-geral de
todos os cosmonautas, mesmo dos comerciais. Se Rhodan desejasse permanecer no posto
de comando, não haveria nenhuma lei que o pudesse impedir.
— Decolar! — ordenou o capitão. Depois, dirigindo-se a Rhodan:
— É muito apertado aqui na cabina de comando. Ocupe minha poltrona, eu posso
ficar de pé.
Rhodan aceitou o convite e se sentou. Depois falou com a maior naturalidade:
— O que que você está contrabandeando propriamente, Capitão Graybound?
Rex Knatterbul estremeceu e deu uns passos para frente. Pelo que se deduzia, Rex
não conhecia ainda Rhodan, ou fingia não conhecer.
— Posso atirá-lo para fora da nave?
Graybound fez-lhe um gesto impulsivo de ameaça.
— Cale a boca, seu ignorante! Atirar Rhodan para fora da nave? Só rindo mesmo.
E respirando com dificuldade, continuou:
— Falou “contrabandeando”, mister Rhodan? O que o senhor entende por isto?
— Qual é a sua carga? — disse Rhodan sorrindo. — Nosso Gucky também é
telepata.
— Brinquedos e ursinhos de pelúcia. Para a criançada de Tuglan. Mas quando
chegarmos lá, a criançada estará de cabelos brancos.
— Ah! Ursinhos de pelúcia...? — repetiu, olhando para Gucky.
Houve troca de pensamentos entre os dois. Rhodan sabia agora o que Graybound
também sabia.
— E o que o senhor esconde dentro deles?
O capitão empalideceu.
“Isto deve ser coisa do diabo. Tudo está dando errado para mim. Ah!... o
desgraçado do rato-castor, com sua mania de ler os pensamentos dos outros”, refletia o
capitão. “Só pode ter sido ele. O malandro contou tudo a seu chefe. Será que a gente não
tem mais o direito nem de pensar?”
— Dê a partida de uma vez! — disse berrando para Rex.
O primeiro-oficial puxou para baixo a alavanca de partida e a velha nave se ergueu
roncando. Em fração de segundos, a pequena ilha de pedra, aquela saliência de pedras
que lhes salvara a vida, havia sumido.
— Não se esqueça de assinalar nos mapas a localização deste sistema — disse
Rhodan ao primeiro-oficial. — Quem sabe, um dia, voltaremos para cá em condições
melhores?!
Depois, volvendo-se para Graybound, continuou:
— Você não está confiando em mim, hein? Capitão, temos que ser amigos. O senhor
me salvou a vida. Em vista disso, tem o direito de fazer um pedido. Se for possível,
cumprirei sua solicitação.
Graybound olhava para Rhodan com ar de desconfiado. Depois foi cobrando ânimo
e chegou a um quase sorriso.
— No tocante à minha carga, mormente quanto aos ursinhos de pelúcia...
— Isto, meu caro, está fora da categoria de pedidos... Não, não é como você está
pensando. Negociar armas ou entorpecentes, sem nenhum controle, com povos
estranhos...! Mas você contrabandeia medicamentos, porque são bem pagos em Glatra III.
O fornecimento feito pelos aras é muito mais caro e, além do mais, uma mercadoria
muito inferior. O que você está fazendo, Graybound, é uma coisa normal. É verdade que
os medicamentos, conforme a lei, devem passar pela alfândega. Porém me parece que
estas prescrições devem sofrer uma modificação... Mas que é isso? Você está fazendo
uma cara esquisita.
Realmente, a fisionomia de Graybound era como se alguém lhe tivesse comunicado
inesperadamente que sua nave fora seqüestrada. Agora os fios desalinhados de sua barba
ruiva, aliás sempre bem tratada, davam péssima impressão. O próprio Toureiro estava
meio abatido, de asas caídas e não se podia saber a razão de sua tristeza.
— O que você tem? — perguntou novamente Rhodan, enquanto Gucky começou a
sorrir. — Não há mais razão para preocupar-se, pode ficar tranqüilo.
— Não é isto que me preocupa — respondeu o capitão, muito sério ainda. — Mas o
senhor acha que o contrabando teria algum interesse quando não fosse mais proibido?
Rhodan controlou seu sorriso, compreendendo então a hilaridade de Gucky, sem no
entanto lhe dar razão.
— Você haveria então de contrabandear outras coisas, se os medicamentos ficassem
liberados?
— Não disse isto — respondeu assustado. — Disse apenas que teria menos graça.
Depois, dando um passo para frente, continuou:
— Bem, agora termine seu jogo, mister Rhodan. Diga de uma vez que este é meu
último vôo. Ou vou acreditar que o senhor vai me perdoar?
— Sim, tem que acreditar nisso, Graybound — por uns instantes ficou olhando para
Rex Knatterbul, que regulava o automático e fornecia os dados referentes ao salto de
transição para o computador de bordo. — Quer dizer que você sabe onde estamos?
Graybound achou que não compreendera bem a pergunta.
— Como? — perguntou assustado. — O senhor quer dizer com isto que se perdeu
ainda antes da explosão em sua nave? — balançou a cabeça incrédulo. — Pode-se
conceber uma coisa desta?
Não quis expressar seus pensamentos a respeito, mas Gucky não estava dormindo.
— Está ficando de novo sem-vergonha — chilreou Gucky baixinho para Rhodan.
O capitão enrubesceu e, meio sem jeito, nada comentou.
— Você disse que nós éramos novatos, ignorantes, lembra-se? Meu caro Graybound,
estávamos experimentando a nova propulsão linear e simplesmente não tivemos sorte.
Perdemos a rota e depois veio a catástrofe.
— Ah! A nova propulsão linear... estou me lembrando, é verdade. Queriam até que
eu fizesse uma reciclagem para me tornar comandante de uma nave deste tipo. Mas
mandei o tal Instituto às favas. Eu... fazer reciclagem?
— Não lhe teria feito mal nenhum — disse Gucky, olhando para ele com franqueza.
— Como seria bom tornar este brutamontes um cavalheiro...
— Porcaria — guinchou o papagaio, despertando de sua sesta.
Com um ruidoso ruflar de asas, voou até a gaiola, abriu a portinhola com o bico e
entrou. O seguro morreu de velho, devia estar pensando. Com uma expressão indefinida
nos olhos, Gucky acompanhou todo o movimento do louro. Depois, balançando a cabeça,
sentenciou:
— Tal dono, tal papagaio.
Rhodan voltou ao assunto.
— Você foi convocado para aprendizagem no Instituto de Cosmonáutica?
Formidável! Formidável mesmo! Isto quer dizer que o computador o distinguiu como
competente, numa seleção feita rigorosamente. Um bom sinal, capitão. Excelente!
Naturalmente, o computador não examina apenas os candidatos, mas também todos os
pilotos em atividade. E você estava entre os selecionados. Meus parabéns, Capitão
Graybound!
— Parabéns? — repetiu o capitão desconfiado e com um certo tremor na voz, cujo
volume vinha diminuindo desde o primeiro contato com Rhodan. — Parabéns por quê?
Eu disse que recusei a tal reciclagem!
— Isto não tem importância, capitão. Sua aptidão de caráter e profissional
continuam existindo.
— Devido à minha formação, eu me sentia inadaptado, mister Rhodan. Um tal
Major Kammbügel me disse francamente. Aliás, foi uma luta horrível para eu convencê-
lo de meu baixo nível de instrução.
— Será que ele não se chama Rammbüggl? — esforçando-se, Rhodan lembrou-se
do nome. — Sim, acho que é este mesmo: Rammbüggl. Mas estou muito curioso para
saber a opinião dele.
Graybound pigarreou sem jeito.
— O senhor disse que eu teria direito de fazer um pedido?
Quando Rhodan confirmou com um aceno de cabeça, ele continuou:
— Está bem, aqui vai meu grande pedido. Nunca leia, por favor, este relatório do
Major Damm... Rammbüggl. Quando chegar às suas mãos, jogue-o fora, mas não leia,
por favor.
Rhodan sorriu, batendo de leve nos ombros do velho capitão.
— Prometo fazer o que pede. Não fosse você, nunca mais iria ler um relatório em
minha vida. Portanto, posso deixar de lado este.
O capitão respirou aliviado. Havia percebido, nestes últimos dias, que seu
procedimento no Instituto poderia lhe acarretar sérias complicações. Agora, estes
cuidados não existiam mais.
Sem afastar os olhos da tela, disse o primeiro-oficial:
— Transição em dois minutos, capitão.
— É um salto bem longo, mister Rhodan — explicava Graybound, com bons
modos. — Leva-nos para um ponto, onde nos podemos orientar com facilidade. Com
outros saltos, chegaremos ao sistema solar.
A transição foi tranqüila, mas quando o espaço se materializou novamente diante da
Lizard, o Capitão Graybound teve uma grande surpresa.
Surgiram não apenas as estrelas, mas também três cruzadores da Frota Terrana de
Vigilância. Achavam-se posicionados de tal forma, como se estivessem esperando,
exatamente ali, a volta da Lizard de Graybound.
O velho barba-ruiva esfregou os olhos.
— Não é possível! Rex, será que estou vendo fantasmas?
— Vejo três cruzadores, Samuel. Um deles traz o registro daquele rapaz que nos
queria prender. Deve naturalmente ter ido buscar reforço.
— A respeito de que vocês estão falando? — indagou Rhodan.
Graybound tentou explicar:
— O sujeito não poderia jamais suspeitar de que eu voltaria ao local de onde fiz a
transição. Mas que ele ainda tenha trazido mais dois colegas para revistar minha
mercadoria é mesmo um incrível acaso!
Rhodan ia dizer alguma coisa, mas Smith o interrompeu. Quando fazia questão de
chamar a atenção dos outros, o telegrafista baixo e magro usava uma voz muito aguda.
— Intimação para parar. Abrirão fogo imediatamente se tentarmos fugir.
— Disse isso? — perguntou Graybound, admirado, parecendo ter esquecido
completamente a presença de Rhodan. — Rex, vamos escapulir.
Rhodan conseguiu fazer-se ouvir:
— Não aja com precipitação, capitão. Desta vez, o comandante está prevenido.
Haverá de segui-lo. A esta pequena distância, ele pode calcular facilmente o valor de seu
salto e assim que a Lizard se materializar, ele estará por perto e a destruirá. Não se
esqueça de que minha frota espacial teve boa formação — disse sorrindo. — Os
comandantes dos cruzadores são excelentes pilotos espaciais.
Graybound curvou a cabeça.
— Não salte não, Rex — disse resignado. — Teremos de ser vistoriados por eles?
— Não parece que está entendendo — e, meneando a cabeça, Rhodan continuou: —
Preferia que minha presença a bordo não fosse revelada, mas se isto for inevitável...
Parou um instante para refletir.
— Dê um jeito de escapar sem que haja uma busca direta em sua nave. Fale com o
comandante e procure convencê-lo a não mais suspeitar de você.
A expressão de desespero na fisionomia de Graybound transformou-se numa
verdadeira careta.
— O senhor não faz idéia de como isto é difícil. Os rapazes me conhecem já há
muito tempo.
— Espiões miseráveis! — gritou Toureiro furioso, preferindo, porém, ficar dentro da
gaiola. — Dê um tiro neles!
Rhodan aproximou-se do papagaio, olhou bem firme nos seus olhos e disse de
repente:
— Se você abrir a boca mais uma vez num momento inoportuno, nós lhe
aplicaremos um bloqueio hipnótico. Entendido?
A partir deste momento, o louro ficou outro. Não abriu mais o bico.
Novamente a voz fina de Smith:
— Devemos abrir a escotilha. Um Major Behnken com quatro homens formarão o
comando de aprisionamento. Que devo responder?
Rhodan fez um sinal para o velho capitão.
— Que podem vir a bordo — ordenou Graybound, com sentimentos contraditórios
dentro de si. Não estava nada seguro e não se sentia bem, mesmo com a presença de
Rhodan. — A escotilha será aberta.
Rhodan fez um sinal para Gucky.
— Nós dois vamos nos esconder na cabina de rádio. Procure conversar com o major
e convencê-lo. Estamos aqui às suas costas. Mas não se esqueça de que quero fazer tudo
para não ser visto. Pretendo regressar à Terrânia sem chamar a atenção de ninguém. Não
devem saber, por ora, que o primeiro aparelho com propulsão linear fracassou.
Parou um instante, hesitando.
— Não, não fracassou, propriamente. Fizemos uma maravilhosa descoberta, isto
sim.
Quando Graybound julgava que ia ouvir a grande descoberta de Rhodan, teve uma
grande desilusão. O administrador desapareceu na cabina de rádio com Gucky.
O capitão ordenou para que a escotilha fosse aberta.
Rex Knatterbul desceu, a fim de receber o major e conduzi-lo à central de comando.
Seu rosto estava sem expressão; suas mãos, porém, caídas e contraídas em punho, diziam
muito do seu estado de espírito. Graybound continuava esperando. Estava certo de que
não lhe ia acontecer muita coisa. Em caso de extrema necessidade, traria o major para a
cabina de rádio e ele certamente haveria de ter uma boa surpresa. Mas, se pudesse
contornar a situação, estaria atendendo o pedido de Rhodan.
Toureiro vira Rhodan desaparecer e devia julgar estar agora sozinho com seu amo.
Abriu a porta da gaiola e voou para o ombro de Graybound.
Ouviram-se sons de vozes no corredor e, logo a seguir, entraram o Major Behnken e
dois cadetes, com pistolas energéticas na cintura. O Major Behnken deu dois passos à
frente e parou. Incrivelmente calmo, seu olhar se deteve longamente em Graybound,
passando depois para um sorriso entre o desprezo e a ironia.
— O senhor, portanto, é o “legendário” Samuel Graybound? Para ser sincero, tenho
de confessar que o imaginava bem diferente.
— Obrigado pela franqueza — disse bem descontraído, fazendo um grande esforço
para se manter calmo. — E o senhor é Behnken?
Por um instante, o comandante do cruzador pareceu perplexo, depois seu rosto ficou
corado.
— Major Behnken! — repetiu com certa entonação. — Para o senhor, simplesmente
major!
— Bem, major, para o senhor eu sou também simplesmente capitão, entendido?
O Major Behnken enrubesceu mais ainda. Os dois cadetes a seu lado estavam de
cara fechada, mas, no fundo, seus olhos tinham um brilho de prazer...
— Homem! — gritou o Major Behnken, perdendo seu autodomínio, bufando de ira.
Graybound estava mantendo a calma, pensando sempre no pedido de Rhodan.
— Admiro seu dom, ou melhor, seu senso de observação, major — disse sorrindo
amavelmente, mas com tanta afabilidade que seu interlocutor não podia resistir. — Sou
homem, é certo. Mas posso perguntar, com todo o respeito, a que espécie de mamíferos o
senhor pertence?
Gucky, que estava agachado na cabina de rádio com Rhodan e Smith, começou a
sorrir alegre. O velho capitão lhe estava agradando cada vez mais. Se o negócio
continuasse assim, seria uma viagem fantástica.
— Então? — insistiu o velho globetrotter do espaço, quando viu que não vinha
resposta.
Mas Behnken não pensava mais em conversar com aquele capitão maluco. Fez um
sinal aos dois cadetes.
— A situação aqui está sob meu controle. Reúnam-se aos outros dois e examinem a
nave. O primeiro-oficial vai conduzi-los.
Depois que Rex desapareceu com os cadetes, virou-se novamente para Graybound.
— E agora, vamos ter uma conversinha, meu velho. Você procurou me ridicularizar
na frente dos meus subordinados. Quase que conseguiu, hein? Mas ai de você, se
encontrarmos a menor irregularidade em sua Lizard.
O capitão continuava sorrindo.
— Pode procurar, major, não vai encontrar nada, a não ser brinquedos e ursinhos de
pelúcia. Será que são proibidos?
— Espere — gritou de novo o major, zangado. — Quando queremos, sempre
achamos alguma coisa...
— Ah! É assim? Quando o senhor quer, sempre acha alguma coisa? Isso é
fantástico! Quer dizer que o senhor pode simplesmente incriminar alguém, só porque não
vai com a cara desse alguém? O que diria seu chefe, o Administrador Perry Rhodan,
sobre tudo isto?
— De qualquer maneira, se nós cassássemos a patente de gente como você, que só
faz rotas incertas e negócios escusos, dificultando nosso trabalho, ele nos seria grato.
A cabeça de Graybound começou a ferver. Tudo, menos críticas às suas qualidades
de piloto espacial! Aí o sangue começava a esquentar, esquecendo todas as medidas de
cautela. Em outras palavras: quando lhe tocavam na honra profissional, voltava a ser o
velho Samuel Graybound.
— Seu idiota! — gritou tão alto que o major, sem querer, deu um passo para trás e
bateu com as costas na porta da cabina de rádio. — Ridículo boneco fardado,
completamente oco! Se me disser mais uma palavra inconveniente, vou perder a cabeça.
Entendeu? Seu... seu... major!
Não se lembrou na hora de um bom nome, bem pesado, para xingá-lo. Também
Toureiro, que assistia a tudo com entusiasmo, queria agora ajudar seu amo.
— Major vigarista! Major! — gritava estridente.
Behnken era um bom oficial da Frota Espacial e fora sempre fiel cumpridor de seus
deveres. Mas aquele encontro com o Capitão Graybound exigia demais de seu sistema
nervoso. Mas antes que sua mão pudesse atingir a coronha da pistola na cintura, abriu-se
a porta da central de comando. Entraram os quatro cadetes, tendo à frente Rex
Knatterbul, trazendo na mão um ursinho de pelúcia. A cara do primeiro-oficial falava
mais do que qualquer palavra e Graybound perdeu toda esperança.
— Olá, rapazes! — disse com voz sumida, fazendo um gesto para os cadetes.
— Senhor, encontramos contrabando a bordo — disse um deles, sem dar atenção ao
cumprimento pouco cerimonioso do capitão.
O rosto do Major Behnken se iluminou de um momento para o outro.
— Deixe-me ver este ursinho.
— Senhor, por favor descubra o senhor mesmo...
O cadete tirou o bichinho das mãos de Rex, entregando-o ao major. Behnken, que o
pegou meio sem jeito, ergueu-o contra a luz, descobrindo nas costas um buraco, tapado
com pano. Olhou bem para dentro e viu algo...
Estava triunfante como um gladiador que apontasse a lança para seu rival estirado
no chão.
— Isto aqui, ilustríssimo, vai pôr um ponto final na sua carreira. Sua nave será
confiscada e um de meus oficiais vai conduzi-la para a Terra. E o senhor, seu “civilista”,
vai passar o resto do vôo no meu cruzador. Temos lá uma linda cabina, enfeitada com
cadeados de segurança. Lá poderá ficar mais calmo e medir melhor suas palavras.
— Carrasco! — começou Toureiro, como se tivesse entendido cada palavra. —
Assassino vagabundo, vou contar isso a sua mulher...!
— E o papagaio — continuou o major com voz fria — será atirado para fora da
nave.
Graybound, furioso, deu um pulo para frente.
— O senhor não vai fazer isto — ameaçou de olhos arregalados — do contrário
vamos ter uma desgraça aqui dentro!
— Mais uma ameaça! Vocês ouviram, Jenner e Klod. Para isto, mais dois meses de
prisão.
Graybound arriscou um olhar desesperado para a cabina de rádio. Conforme o
combinado, estava na hora de Rhodan intervir. Se não acontecesse isso, ficaria os
próximos dez anos atrás das grades só por desonra e ofensa graves a um oficial da Frota
Espacial.
— O que o senhor entende por ameaça? Está escrito no seu manual de serviço que
os papagaios são obrigados a aprender a voar no vácuo? Olhe aqui, seu malvado,
Toureiro vai comigo onde eu for, até mesmo para a prisão.
O major acabou perdendo a paciência e ordenou a seus cadetes:
— Jenner, Klod! Algemem este barba-ruiva e levem-no para o cruzador. Depois
mandem para cá o Tenente Drummond. Ele conduzirá para a Terra a Lizard. Que nome
traiçoeiro, hein?
Para tremendo alívio de Graybound, não teve de agir como seus ânimos, já agora
bastante alterados, desejavam, pois Perry Rhodan saiu da cabina de rádio, atravessou a
porta que dava para o corredor e se postou diante do major.
— Capitão Samuel Graybound ficará aqui, major. O senhor foi vítima de um erro.
Major Behnken virou-se para trás, como se uma cobra o tivesse mordido. Devido à
iluminação deficiente, não reconheceu imediatamente Rhodan. Além disso, o uniforme
do administrador não estava de acordo, como manda o figurino militar, devido à
aterrissagem forçada e à longa permanência no estranho planeta.
— Quem é o senhor? — perguntou irado a Rhodan. — Estava também escondido
por aqui? A julgar pelo uniforme, o senhor é um oficial que desertou da Frota Espacial. O
que estaria procurando aqui nesta nave de contrabando?
Enquanto o major esbravejava, um dos cadetes, Jenner, lhe fazia sinais
desesperados. Os olhos quase lhe saltavam das órbitas e sua boca murmurava algo.
Aparentemente tinha uma mensagem importante para o major, não ousando, porém,
interromper suas palavras.
Graybound, por seu turno, se arqueava de tanto rir. Quase perdia o fôlego, de tão
cômica que achou a situação. O Administrador do Império Solar, sendo descomposto por
um major, como se fosse um simples colegial. E o que mais impressionava a Graybound:
Rhodan não deixava de sorrir.
Quando o major terminou a verborréia, o cadete Jenner bateu continência e disse:
— Senhor, há um grande equívoco em tudo isto. É o...
— Por favor, Jenner, abra mais a boca quando quiser falar comigo.
— Eu... eu... — Jenner não conseguiu falar: faltou-lhe o ar.
O major foi ficando preocupado. “Será que ele conhecia o homem escondido na
velha nave de Graybound?”
— Quem é o senhor? — repetiu indeciso para Rhodan.
Mas de repente sua voz se embargou, o queixo lhe caiu e os olhos se arregalaram.
Gucky saiu também da cabina de rádio, passou solene pelo posto de comando,
colocando-se tranqüilamente diante do Major Behnken.
— Então, major, ainda deseja dizer alguma coisa?
Behnken olhava para Gucky como se fosse uma assombração.
Se já não tivesse reconhecido Rhodan, não podia deixar de reconhecer Gucky, que
até um cego perceberia com seu cajado.
— O rato-castor! — exclamou Behnken. — Gucky?
O rato-castor se sentia feliz e, com os olhos cintilantes, disse a Rhodan:
— Está vendo quem de nós é mais célebre? Sempre lhe disse que você é um simples
homem entre muitos e muitos milhões. Agora, eu, sou um rato-castor e existem muito
poucos da minha espécie.
O pobre do Major Behnken estava de novo de boca fechada e seu rosto passara do
vermelho para o branco-cadavérico. Não se sentia bem e Graybound, homem que não
guardava rancor, puxou-lhe prestativo uma cadeira.
— O senhor... o se... nhor é Perry Rhodan, o administrador?
Caiu na cadeira e fechou os olhos. Por um triz que não perdeu os sentidos.
— Major Behnken, ouça bem o que lhe tenho a dizer — começou Rhodan,
arrancando-o do estado de semi-inconsciência. — O senhor disse e fez alguma coisa que
ultrapassou sua competência. Vamos esquecer tudo isto, sob determinadas condições.
O major abriu os olhos de novo, fixou-os por um momento em Rhodan e se levantou
de um pulo, perfilando-se. Parece que sua cabeça voltara a funcionar.
— Sir!
— O senhor vai esquecer também tudo o que viu aqui na Lizard. O senhor e seus
quatro cadetes. Será que me expressei com clareza e nossa combinação está bem
entendida?
— Mas as mercadorias de contrabando...
— Este honrado capitão — apontou para Graybound — comercia a meu serviço.
Será que o senhor quer duvidar da legitimidade de minhas ações, major?
Behnken se assustou com a pergunta.
— Naturalmente não, sir, estava pensando, porém, que...
— Esqueça-se, pois, de nosso encontro, certo? Quero esquecer também algumas de
suas afirmações — e olhando demoradamente para os cadetes: — E se vocês fizerem
questão de continuarem pertencendo à Frota Espacial, recomendo-lhes a mesma coisa.
Esqueçam que o Capitão Graybound faz contrabando e tentem não se lembrar de que me
viram a bordo da Lizard. E agora, meus senhores, lhes desejo boa viagem.
Cumprimentou com a cabeça o Major Behnken e deixou o posto de comando.
Gucky saiu atrás como um cão fiel, não sem antes dar uma piscadela para o velho
capitão. Como já foi dito, Gucky se tornava, cada vez mais, fã de Graybound.
Considerava-o um homem bom.
Major Behnken olhava agora para o capitão, um tanto pensativo. Afinal de contas,
ele não era nenhum desmancha-prazeres e também não se sentia ainda na idade de pensar
na aposentadoria. Um sorriso tímido aflorou em seus lábios e provou que sabia
compreender a situação e se adaptar a ela.
— Desculpe-me o acontecido, Capitão Graybound. Fazemos o controle de rotina
neste setor, compreende? É o nosso dever. Fico contente em saber que sua carga está em
ordem e lhe desejo um bom vôo.
— Mentiroso! — guinchou Toureiro, vingativo e inclemente.
O major não gostou, teve uma reação, mas dominou-se.
— Capitão, o senhor tem uma ave muito inteligente. Passe bem.
Graybound agradeceu e apontou para a porta.
— Rex, acompanhe os senhores até a escotilha. Cuide para que não se esqueçam de
atarraxar o capacete, antes de deixarem a nave.
O velho capitão tinha nos lábios um sorriso feliz. Depois que o posto de comando
ficou vazio e a porta se fechou, deixou-se cair na cadeira. Alguém pigarreou nos fundos.
Era Henry Smith que saía da cabina de rádio. Acanhado e desajeitado, estava ele ali,
sorrindo para seu chefe.
— Chefe, o senhor deu uma lição neles, hein?
Quando viu Graybound, sorrindo amigavelmente para ele e falando com voz
moderada, ficou admirado.
— Graças a Deus, Smith. Tenho que agradecer, antes de tudo, a você, pois me
ajudou muito. Sem você não teríamos encontrado Rhodan.
Smith voltou feliz para seu posto de trabalho e sublinhou de vermelho a data. Nunca
se sentira tão bem em sua vida. É verdade que o Capitão Graybound não passara pelo
Instituto de Cosmonáutica para fazer a tal reciclagem, mas alguma coisa havia mudado
muito nele. Parecia agora um perfeito cavalheiro.
Toureiro balançava a cabeça, como que desaprovando a mudança sofrida por seu
amo. Para ele, parecia que o mundo estava acabando.
Rex voltou para seu posto e, segundos depois, a Lizard entrou em transição,
alcançando ainda no mesmo dia o sistema solar pátrio. Antes que a nave, com uma
velocidade de 0,2 da da luz, entrasse na órbita do planeta, Rhodan penetrou pela última
vez no posto de comando, em companhia de Bell. Graybound se levantou educadamente,
oferecendo sua poltrona ao administrador.
— Preste atenção, amigo Graybound, nossa gente vai ficar a bordo até amanhã,
quando então serão apanhados. Por favor, mantenha segredo sobre o que aconteceu,
principalmente sobre minha presença em sua nave. Aja como se nunca me tivesse
encontrado. Isso tem de vigorar pelo menos até a versão oficial, que deve ser dada sobre
meu retorno. Não seria absolutamente aconselhável que outros soubessem que o primeiro
vôo experimental da propulsão linear foi um quase fracasso. Acho que estamos nos
entendendo, não é verdade?
— Perfeitamente, sir!
— Ótimo! Agora mais uma coisa importante. Você pertence à companhia
“Globetrotter das Estrelas”, não é? Vou oferecer futuramente contratos de serviço à sua
firma, que, naturalmente, vocês podem aceitar ou não, conforme desejarem. Neste
momento vamos tratar de lhes indenizar o prejuízo que tiveram devido ao retorno. Você
acha que cinqüenta mil solares de indenização bastam?
Graybound procurou apoio, olhando surpreso para Rhodan.
— Cinqüenta mil...? — aspirou profundamente. — Puxa, para conseguir uma
quantia desta, eu precisaria fazer dez viagens! Além disso, o fato de lhes ter prestado
socorro foi a coisa mais natural deste mundo e...
— Você teve ou não teve um prejuízo financeiro com o tempo perdido?
Bell estava ao lado dele, fazendo-lhe um sinal com os olhos, para que dissesse sim.
O capitão, meio acanhado, fez que sim.
— Então? — suspirou Rhodan, mais aliviado. — Vou lhe remeter o dinheiro em
nome da “Globetrotter das Estrelas” e não no seu nome, para não despertar a atenção de
ninguém...
— Para mim, também é melhor, por causa da minha Ludmila.
— Como, por favor?
— Ah! Minha mulher, o senhor sabe...
— Compreendo — disse Rhodan mostrando respeito por seus sentimentos. — Então
você é casado? Meus parabéns!
A expressão da fisionomia de Graybound valia a pena ser estudada. Era um misto de
felicidade e de acanhamento.
— Compreendo, meu amigo — disse Bell, que até então se mantivera calado. — A
julgar pelo seu tipo, sua esposa deve ser uma mulher muito enérgica. O senhor tem medo
dela? Mas você não tem cara de maria-vai-com-as-outras!
— É... — disse Graybound acanhado. Talvez devido à presença do primeiro-oficial,
Rex Knatterbul, que já estava penetrando com segurança na atmosfera da Terra, na
direção de Terrânia, o capitão não fez mais nenhum comentário.
O ronco dos motores cessou. A Lizard terminara sua viagem. Toda sua carga —
ursinhos de pelúcia para Tuglan — estava intacta nos porões da nave. Com exceção de
um ursinho que Gucky apanhara — “como lembrança”, dizia ele.
Rhodan esticou a mão para Graybound.
— Adeus, capitão! Nós lhe devemos muito. Se estiver um dia em dificuldades,
lembre-se de que tem bons amigos. Eu, mister Bell, Gucky e mais setenta e nove oficiais,
estamos gratos. Assim sendo, todos os cientistas e tripulantes da Frota, também.
Estaremos sempre prontos para ajudá-lo. E acredite, capitão, o senhor e eu ainda nos
encontraremos. A Terra precisa de homens como o senhor. Agora e sempre.
Graybound estava profundamente comovido. Pigarreou acanhado e apertou a mão
de Rhodan, fazendo a mesma coisa com Bell.
Naquele momento apareceu Gucky. Depois de fechar a porta, encaminhou-se para o
velho lobo-do-espaço. Com um salto colocou-se na altura do peito do barba-ruiva e lhe
deu um abraço. Depois se ouviu um ruído diferente... o rato-castor havia beijado o rosto
do velho capitão.
— Vou contar tudo para Ludmila! — disse Toureiro, ciumento, fazendo a pior
ameaça possível.
Depois Gucky pulou para o chão e pegou na mão de Rhodan e de Bell.
— Até logo mais, Samuel!
E diante dos olhos arregalados de Graybound, os dois homens e o rato-castor se
desmaterializaram.
Ficou na cabina, acompanhado por Rex e por Smith.
Envergonhado, esfregou os olhos e percebeu, de repente, que seus dois auxiliares o
fitavam espantados. Empertigou-se e sua estatura pareceu crescer uns dez centímetros.
— O que vocês estão xeretando aí? — disse com voz mais forte, dando um murro na
mesa dos mapas, quase quebrando-a. — Não têm nada para fazer? Vamos partir amanhã
de manhã. Preparem tudo. Rota: oficialmente, para Tuglan. Não oficialmente... vocês
sabem para onde. Estão esperando pelos ursinhos de pelúcia. Desta vez não vai haver
folga. Vamos ao trabalho, preguiçosos.
Rex sorriu e apanhou os mapas caídos no chão. Smith examinava mecanicamente
seus aparelhos, pois estava com o pensamento voltado para outra coisa. Muito mudara
por ali. O patrão parecia agora um homem normal e isto era muito bom. É claro que
“calmo” demais não serviria para ser um comandante.
Graybound deixou a nave, sozinho, como qualquer observador podia ver. Com
passos cadenciados, tomou a direção do portão da alfândega, onde o Tenente Dopner o
aguardava com olhar curioso.
— Oba! Já de volta? Qual é a carga? Pigarreando, disse sorrindo:
— Brinquedos e ursinhos de pelúcia, de Tuglan para a Terra.
E passou garboso por Dopner, que o ficou olhando de boca aberta.
— O... o quê?
— Vou levar de volta amanhã. O negocio não presta e ficou encalhado... Se você
não está acreditando, dê uma chegada na nave e faça uma vistoria. Não quer não?
Não esperou por resposta e seguiu tranqüilo seu caminho.
— Onde está sua bela esposa? — perguntou Toureiro, empoleirado no seu ombro.
Depois, com mais força ainda repetiu: — Onde está?
— Cale a boca — gritou-lhe Graybound, não dando confiança a alguns curiosos que
estavam por ali sem fazer nada.
Não quis pegar táxi, mas fez questão de ir a pé ao longo do extenso espaçoporto.
Sentia-se feliz por pisar num chão firme, um chão bom como o da Terra. O céu estava
azul e o Sol, gostosamente quente, obrigou Graybound a desabotoar o casaco do
uniforme.
E começou então a cantar uma velha modinha. Toureiro, em seu ombro,
acompanhava a melodia com um assobio estridente.
Assim caminhou o Capitão Graybound pela avenida que contornava o enorme
campo de pouso de Terrânia, contente consigo e com o mundo.
— Ah! O velho Graybound voltou. Estou curioso para saber quando é que vão
cassar sua licença. Um tipo assim não merece andar pelo espaço. Andando por toda parte
com um papagaio nas costas, torna-se ridículo. Mas, se um dia ele se encontrar com
Rhodan, vai tirar o cavalo da chuva. O chefe não é tão complacente como nós aqui...
E um sargento acenou-lhe, pensativo.
O Capitão Graybound respondeu apenas com um movimento da mão, sem
interromper a bela cantiga, nem seu passo cadenciado. Uma pedra estava à margem da
avenida, ele a chutou com força, no ritmo certo, imaginando que a pedra fosse um certo
Major Behnken... ou mesmo o Major Rammbüggl. Ou qualquer outra pessoa desumana!

***
**
*

O globetrotter do espaço era mesmo uma figura


singular. Outro tipo singular, de características
fantásticas, devia ser o Coronel Nike Quinto, chefe da
Divisão III, entidade específica para entrar em ação no
espaço em casos de perigo ou acidentes que envolvessem
as cosmonaves terranas.
Em A Divisão III Entra em Ação, título do próximo
volume, Nike e seus comandados viverão cenas
eletrizantes.

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