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IDIOMA - 19 “SATIRA QUIDEM TOTA NOSTRA EST?” inde Coclhe da Siva Quintiliano (Id.C.),De institution oratoria, X, 1, atribuiaacriagio da sétira aos latinos. No entanto, a suaconstituigdo como género literario deve, em influéncia, a muitas fontes nao s6 latinas como gregas. O elemento primordial da sdtira, no ha diivida, é a Satura lanx, a bandeja das primicias, Em honra da deusa Ceres,donde cereal em portugués, divindade da sementeira, em latim satio, ofertava-se em gratidfio A sati: 9 OU ao estar saturado, que em latim se diz satis e satur, uma bandeja com os primeiros frutos colhidos. Mas, em 364 a.C., Tito Livio(séc. Ia.C.) nos relata que o Senado tinha importado da Etrdria os ludiones ou histriones, a fim de apaziguar o animo divino e arrefecer uma peste que assolava, entéo, 0 povo romano. Surpresos e deleitados com os movimentos de danga ¢ gracejos indecorosos, adotaram a novidade. A fescennina licentia, a permissividade da cidade etrusca Fescénia, se consagrou através das Confrarias dos Irmaos Arvais (de arua,os campos lavrados) ¢ Sdlios, cf. Varraio, De LL, V,85: “ Saliiab salitando”, devido aos seus movimentos rapidos e vivos, eles saltitavam; dai o nome da Confraria: os Salios (note-se que saltare,um_ iterativo intensivo antigo, foi superado porsalire; salitare € umhapax legémenon de Varrao, Portanto, ficou disseminado © valor magico dessa festividade das colheitas numa forma poética, consagrada com versos sattirnios. Suet6nio, apud Tassilo O. Spalding, registrou a disseminagao da irreveréncia fescenina nas Carmina Triumphalia dos soldados de César: Gallias Caesar subegit, Nicomedes Caesarem. Ecce Caesar mune triumphat qui subegit Gallias. Nicomedes non triumphat, qui subegit Caesarem. A atitude grotesca e simpléria do povo latino se depreende até na propria antropontmia, Seja na ordenagdio numérica dos filhos, seja num outro indicativo, por vezes, ridiculo. Assim, herdamos Tércio, Otévio de Tertius e Octauius;se a pessoa nascesse de manha, do latim mane, chamar-se-ia Manius; se no més de marco, em portugués Marcio, do adjetivo Martius; ou, entao, um aspecto caricatural do desenho da fava, lentilha, grao-de-bico, como, respectiva- mente, se apresenta a fisionomia de Fabius Lentulus Cicero. 42 IDIOMA - 19 Tais ingredientes irao compor o humor da comédia romana, principalmente. em Plauto. Hordcio (65 a 8 a.C.), na Ep. II,1,146, acusa esses opprobria rustica, ofensas risticas, de despertar 0 Gdio ¢ indignagdo per honestas domus impu- ne(149-50), pelas honestas casas impunemente. Até que grave uirus/ Munditiae pepulere (158-59), as coisas elegantes expulsassem a docntia obscenidade. O poeta venusino demarca para depois das Guerras Punicas (cirea 140 a.C.) 0 fato de Roma passar a apreciar as belas artes helénicas. Mesmo Lucilio (séc. II a.C.), que, para o autor de Sermones, € 0 marco inicial do género literdrio satfrico, imitava em demasia 0 cdustico ataque dos comedidégrafos mais contundentes da Grécia, principalmente Arist6fanes. E, 0 que 6 mais grave, sem 0 labor do verso cuidado, conforme Sat. 1,4,1-13. Nesta passagem esta o fundamento de nossa crenga numa influéncia da Comédia Antiga, apesar da restri¢4o horaciana a lima de Lucilio. Dada a convivéncia com as fabulae atellanae, nfo é descartavel a presenga delas quanto a personagem-tipo, como aqucla criada ou simples- mente ridicularizada por Catulo (segundo quartel do séc. 1a.C.). Assim, vale a transcrigdo pelo menos parcial dela: Chommoda dicebat, si quando commoda uellet Dicere, et insidias Arrius hinsidias, Et tum mirifice sperabat se esse locutun, Cum quantum poterat dixerat hinsidias. (LXXXIV) Catulo ressalta caricaturalmente a indiscrigao delatora do pedantismo intelectual deArrius, cujo nome, em termos literarios, j4o situa fonologicamente na vibrante /rr/, transformando 0 personagem em protétipo. O poema nos relata que Arrius foi enviado para a Sfria, 0 que proporcionou descanso para todos os ouvidos. Mas derepente chegou de ld a seguinte noticia que o mar jé nao tinha omesmonome:/am non Ionios esse, sed Hionios. Eis a personificagao do deslize social da linguagem: Arrius. Nas comédias atclanas, a configuragao do ridiculo se concentra na mascara, como 0 Bucco, 0 esttipido, inflatis buccis, com grandes bochecas. O elemento satirico se caracteriza desde cedo pelo exagero do ridiculo, manifesto no arremedo ou citagao parodistica, trocadilho, miscelfinea nao sé de assuntos como de recursos formais, isto €, a expressao prosimétrica: hibridismo de prosa e verso. A presenga desse género também se mescla & Comédia; no entanto, nao h4 nenhuma ligagdo especffica com o Drama Satirico do teatro helénico, j4 que o elemento satfrico prende-se, no caso do teatro grego, a0 ser 43 IDIOMA - 19 mitoldgico Satiro, palavra grega, enquanto a latinasatura ou satira relaciona- se com satis e satur. Evidentemente, 0 Drama satirico retine 0 grotesco ¢ osério, mas cle ¢ essencialmente uma tragédia sem tensao, descontrafda... E que sua tematica € a mesma da tragédia, mas travestida de malfcia, coisa peculiar aos Satiros. Aconstituigdo da sétira como género literério vai ser dupla: a) um género moralizante, com o sentimento de reformar 0 mundo, isto é, nao € apenas um “Castigat ridendo mores”, de Jean de Santeuil(1630- 1697), pois 0 seu objetivo € 0 bom senso, a fim de melhorar o ser social ¢ b) concebe-se uma satira para apenas provocar 0 riso, a partir da gozagao, da ironia, da raiva provocada, tudo 0 que corroa a aparéncia dos falsos valores, cultivados sob a mascara da hipocrisia... Observa-se o sério a partir do complexo simbolismo da mascara: dat aparédia, acaricatura, acaretae a macaquice, ingredientes do grotesco. Naoraro © grotesco deriva em melancélico; é que a expressao do humor destrutivo, quando presente no grotesco, nos opée a realidade do mundo circunscrito na esfera da perfeigao totalitaria ¢, nessa posigao solitaria, nos tornamos sombrios. Pertence ao primeiro grupo o poeta Horacio, que, estribado nos ensinamentos do pai, propala como se deveria comportar na vida. Numa passa- gem de sua obra, ele compara expressivamente a sordidez do avarento ja tao rico, mas insacidvel, 4 significagio do simbolismo do mito de Tantalo: Sordidus ac dines, populi contemnere uoces Sic solitus: " Populus me sibilat; at mihi plaudo Ipse dom, simul ac nurmmos conremplor in arca”. Tantalus a labris sitiens fugientia captat Flumina... Quid rides? mutato nomine de te Fabula narratur. (65-70) Rico, mas de uma avareza sérdida, acostumou-se a desprezar os rumores do povo assim: “O povo me apupa; mas, quando comigo mesmo, em casa, eu mesmo me aplaudo enquanto contemplo as moedas na arca”. & Téntalo sedento que tenta beber a dgua que foge dos labios. O caréter exemplar da histéria esta contido na pergunta do grande vate romano: De que ris? Mudado 0 nome, a narrativa fala de ti. Poeticamente rico € 0 discurso de Horacio. Tantalo é 0 simbolo do desejo incessante e incontido... sempre distanciado de concretizar a posse, o que é préprio da natureza humana. O vento tange para longe o cacho de uva quase alcangado. A dgua € insuficiente para saciar a sede, escoa entre os dedos Avidos, Assim as loucuras humanas sao dissecadas sob o bisturi epicurista de um poeta satfrico modelar. Imitations of Horace, de Alexander Pope (1688-1744), 44

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