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Minha carne é de papelão

Os últimos resquícios do século morto


vão se deixando ver pela última vez, o sinal ana-
lógico, foi anunciado, vai ser desligado, vai ser torn-
ar fotografia amarelada, coisa de muito
haver só na memória, estática. Talvez
daí o chuvisco, ou seja, apenas um rabisco,
que teimo em fazer no pensamento,
como forma de estar vivo, de tentar
não permitir que o corpo fique atado
ao século passado, como o sinal, sinal dos
tempos? Lamentos que tenho e que não
digo, nunca revelo.
O velho novelo, ou novela, que tem
a ponta emperrada sabe-se lá onde.
Certo é que estou cansado,
acho,
a marcha que não passo
me leva avante, atravesso
mais um semáforo. A metá-
fora é o fogo que esfria re-
colocando o frio, mudando os móveis
internos, todos fora do lugar.
Sigo conforme, no conforto,
desconfortável no auto-
móvel. Penúltimo
modelo, é preciso ter onde chegar,
outro degrau, o topo é sempre só
o penúltimo andar. Não se pode ter tudo,
mas deve-se tudo
querer. Queria estar
perto do mar ou morto,
qualquer coisa com cheiro
de sal. Bem ou mal,
estamos vivos, respiramos,
se muito. Passo as tardes
sob os cuidados do ar-condicionado, sor-
rio aos vizinhos de baia, finjo que somos
importantes, afinal, é preciso
aceitar a ficção que sabemos ser.
Não há segredo, um papel,
é só um papel,
usado, se há erro, amassado
vai a cesto, é certo,
ainda que caia fora,
ainda que não se recicle. O ciclo dos
dias, fatias
de horas sem recheio,
o vazio vago de ruas nas horas
menos úteis. UTI’s que não salvam
ninguém. É tarde. Já se
sabe, a manhã não demora. O tempo
livre empenhado em tentar
não desistir, existir, é coisa que
custa. Estou cansado, certamente,
suponho.
Há tempos que não sonho.
Quando sonhava, há tempos,
era com a sombra de uma
porta, entre-
aberta. Não saio por onde
não sei
onde vai dar. Talvez, tudo vá dar
no mesmo lugar. Um mês
a esmo passei entre os animais,
enfiado no mato. Não aprendi nada.
Só a ter, mais, pressa. A praça cheia
é coisa que me aquieta, arquiteta
em mim o que trago escondido, de mim mesmo.
Buzino. Por convicção de não saber
o motivo. Que pressa há em sentar-se, sozinho, frente ao prato de
sopa, que ficará frio em pouco tempo, já
que fome é coisa que não me lembro,
como, mas como que por costume,
como respirar, tomar banho, trocar a cueca,
não contar sobre o dia. Antigamente,
perdia a hora, algumas vezes, a vantagem de
não dormir é não se atrasar,
vigiar as horas,
para que não nos enganem,
a traição do tempo é algo que não
se pode perdoar. É preciso estar atento,
atentam contra nossa posição o tempo todo,
ao todo,
já foram mil minibatalhas só na data atual
. Sei datas
de cor, o coração é que não sabe
de nada, nada grava, há tempos que já não tem
outra função. A pura técnica,
a arte sem forma, só teoria,
a teoria das cordas,
dar corda apenas,
acordo, nada que represente qualquer gravidade,
apenas o pulsar, fazer circular
a força, o sangue espesso. Às vezes é
incrível, sabe-se lá o motivo. Por qual razão a corda não
se rompe. Estreita que deve ser. Só soa
por acaso, efeito colateral,
apenas chega na frequência errada. Não há
o que decifrar. Devorar a sopa fria. Manter a má-
quina sustentada, fazê-la movimentar.
A conta, se faz favor. É cansaço,
sim,
não sei,
provável.
Ainda que não se possa provar que estou sendo roubado,
sinto que é muito a parte que damos e
nada
o que nos é dado em troca. Estamos sim,
muito obrigados,
muito obrigado.
Que bom que perguntam. Estou cansado. Não, acho que
é sono apenas. Fico assim quando não durmo bem. É só isso.
Não é nada.
Espero só essa proposta, depois eu paro. Depois desacelero. Depois des-
canso. Caso
saia logo, logo tiro dois dias,
consigo ir ao banco,
mercado,
encontro marcado
com algum amigo,
que algum deve haver ainda vivo.
Estaciono. Tenciono sair,
tensiono meus músculos
moles. Ainda funcionam.
A fechadura é difícil. Queimada
a lâmpada da entrada, é tatear no escuro. Escudo contra
o olhar dos vizinhos. Em terra de vizinho, melhor
estar sozinho.
Vencida a primeira barreira, empurrar
a porta emperrada. Adentrada,
abrir envelope a dentada. As contas se acumulam,
crescer é pagar o que lhe é
imposto.
Impostor já de mim mesmo,
sento, e nem sinto,
o sofá, vinte por cento meu, o resto da loja.
O relógio não diz a hora, mas não se escala. Algo me
escala o pescoço. Deve ser cansaço, estou cansado, ou entendi tudo isso errado.
Quando puder, responda. Tenho sentido falta de algo que não me disse.

Peguei no sono, tive um dia difícil. Só vi agora. Veja bem...

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