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1901

É sempre com saudade e respeito que remexo nas coisas que meu pai deixou num pequeno
quarto-de-bagunça que mantinha em seu sítio. Na simplicidade das prateleiras com madeira
rude, uma imagem de Santo Antônio de Categeró, pelo qual desenvolveu devoção depois de um
período em São Paulo. Hospedava-se na minha casa e numa de suas andanças errantes pela
paulicéia deu com os costados num bairro chamado Freguesia do Ó. Gostava de conhecer sem
pressa, como quem perdeu o rumo e o relógio. Quando cansava, lá pelas tantas, encontrava
remanso numa lanchonete qualquer, onde comia algum salgado devidamente acompanhado por
uma cerveja. Pois foi na Freguesia do Ó que encontrou o santo negro de Categeró, nascido na
África e morto na Sicília. Nunca entendi bem por que meu pai identificou-se com este santo,
somando-se a outras coisas tantas que não sei explicar e sequer tenho o direito de furungar.
Naquele quartinho estava um fogareiro espetacular, a querosene, cujo cheiro jamais saiu de
minhas recordações aromáticas. Era bastante usado na casa de minha avó, na rua Assis Brasil.
Quando o trouxe para casa o limpamos e o testamos. Funciona com perfeição, a despeito de
seus prováveis quase cem anos. Quanto café ou água para rodas de chimarrão não foram
preparados com a ajuda daquela peça digna de museu?
Há no quarto-de-bagunça panelas velhas, chaleiras amassadas, pratos pobres, talheres
retorcidos, tudo num armário que se salvou da arca de Noé em que também guardava
mantimentos para solenes paneladas e uma garrafa de cachaça, que nunca deixou de apreciar.
Fez do sítio o lugar de encontro com os amigos, o recanto em que diluiu suas tristezas,
pulverizou seus desencantos e rezou por dias melhores. E por um final de vida digno. Mais
amigo que muitos de seus amigos o foram, soube dar de ombros para as contrariedades.
Não tenho pressa em remexer em suas coisas. São poucas. São modestas e empoeiradas. Se o
fizer com pressa perderei a chance de haurir um pouco de sua alma, permitirei que se esfumace
o que congelou na bagunça de quem esperava voltar para arrumar melhor suas tralhas. Um belo
dia foi o último. Não mais voltou nos longos anos em que sua memória foi-se esboroando como
biscoito de fubá. Como longe esteve de ter sido mesquinho, tenho ali uma chance de me tornar
alguém melhor. E lograrei quem sabe algum avanço quanto mais despojado me tornar.
Na última vez encontrei dentro de uma bacia dois ventiladores. Ambos são peças de museu. O
mais novo, que meu pai levava para todo o canto, tem pelo menos sessenta anos e estampa o
nome do fabricante, que por sinal não desapareceu. Os dois têm em comum a total falta de
segurança. O aramado que envolve o hélice não impede que alguém coloque dedos e mesmo a
mão e por certo as pás metálicas castigariam com severidade um descuidado qualquer.
O ventilador mais velho é preto, tem aramado elegante na cor de cobre, uma chave seletora para
duas velocidades e tem uma particularidade que o torna especial. Pertenceu à Redação do
Jornal O Progresso desde sempre e dele me lembro a partir dos primeiros contatos que tive com
esta casa. Nem lembro quando entrei na Redação pela vez primeira mas arriscaria afirmar que
bem antes dos cinco anos passei a visitar as instalações de O Progresso, levado pela mão de
meu pai e pelo generoso destino.
Limpamos em oficina apropriada os dois ventiladores, com muito cuidado, e os ligamos na
tomada. Suprema ousadia, pronta para um compreensível revés. Era uma rematada tolice. O
que nos dera na cabeça? Eis que até o mais velho funcionou, esnobando saúde e revelando que
até o movimento giratório alternado estava operante. Com mais de cem anos, fabricado num
tempo em que as coisas eram feitas para durar, esbanjou discrição aerodinâmica. Levei o
ventilador mais velho para minha sala de trabalho e o coloquei sobre a mesa. Com reverência
pelos anos, me posicionei bem ao seu alcance, tornei a ligá-lo e usufrui da metáfora. Cento e
onze anos depois somos movidos pelos mesmos ventos da fundação deste semanário. Não foi
só o ventilador quem resistiu. Como ele, subsistiu o ideal de fazer algo além dos interesses
menores, ideal de que foram portadores muitos, dentre os quais meu avô, meu pai e meu irmão.
Ainda restam alguns objetos que meu pai esqueceu por lá, como num dia qualquer cada um de
nós deixará rastros para a posteridade, como um recado que se deve degustar. Como um vento
que vem de longe, de tão longe que o tempo até parou e se fez eternidade.

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