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CAPITULO 6 INVENTANDO PESSOAS a ste artigo foi escrito para uma reunidio maravilhosamente diversificada, “Reconstruindo 0 individualismo”, realizada em Stanford no outono de 1983. Como novos modos de classificar criam, ou eliminam possibilidaces para a agio? Como as classificagdes de pessoas afetam as pessoas classificadas, como mudamos em virtude de sermos clasificados, e como as maneiras como mudamos tm uma espécie de efeito de feedback sobre nossos préprios siste- mas de classificaco? Um exame incompleto da questao do feedback pode ser encontrado em The Looping Effects of Human Kinds [Os Efeitos de Loopig dos Tipos Humanos] (1995). Usei um conjunto de exemplos para ilustrar a “biepolitiea” de Michel Foucault: a influéncia da estatistica sobre os modos como as pessdas 40 ENLEN- , As amplas circunstancias que cercam esse fendmeno foram descritas em The Taming of Chance (1990) [Domando 0 Acasol. O outro conjunto diz respeito a “anatomopolitica’ de Foucault. Fiz refe- réncia em um t6pico ao estudo que tem sido muito influenciado pelo proprio Foucault, qual seja, a homossexualidade. A histéria da homossexualidade é agora uma disciplina auténoma por seus proprios méritos, com suas préprias revistas especializadas, conferéncias e toda uma biblioteca. Entao passei para outro de meus exemplos: personalidade miltipla. Pesquisas ulteriores pro- duziram Rewriting the Soul: Multiple Personality and the Sciences of Memory [Reescrevendo a Alma: Personalidade Maitipla e as Ciéncias da Memérial (1995). Esse livro tem uma continuagao, Mad Travelers: Reflections on the Reality 115 116 TaN Hack of Transient Mental Illnesses [Viajantes Loucos: Reflex6es sobre a Realidade das Doencas Mentais Transitorias] (1998), que contém uma estarrecedora historia que fala por si. Existiam pervertidos antes do final do século dezenove? De acordo com Amold Davidson, “A resposta 6 nao... A perversio nao era uma doenga que estava de alcatéia na natureza, esperando por um psiquiatra com poderes especialmente agucados de observagao que a descobrisse escondida em toda parte. ‘¢2" (Davidson 2001, 24). Davidson nao est negando que existiram pessoas es- tranhas em todas as 6pocas. Ele esta afirmando que a perversio, como doenca, © 0 pervertido, como pessoa doente, foram criados no final do século dezeno- ve. A afirmacao de Davidson, uma das muitas hoje em circulacao, ilustra 0 que eu chamo de inventar pessoas. Tenho trés objetivos: quero um melhor entendimento de afirmacées Ho curiosas quanto a de Davidson; gostaria de saber se seria possivel haver uma teoria geral de inventar de pessoas, ou se cada exemplo é tio peculiar que exige sua propria historia nao generalizével; e quero saber como essa ideia de “inventar pessoas” afeta nossa ideia do que é ser um individuo. Devo advertir que meu interesse é filoséfico e abstrato, Imagino uma nogao filoséfica que chamo de nominalismo dinamico, e reflito muito pouco sobre a dinamica comum da interacao humana. Primeiro, precisamos de mais exemplos. Examino o mais enfadonho dos assuntos, as estatisticas oficiais do século dezenove. Elas abragem, obvia- mente, agricultura, educacao, comércio, nascimentos e poderio militar, mas ha uma caracteristica especialmente notavel da avalanche de ntimeros que se inicia por volta de 1820. Ela é obcecada por analyse morale, ou seja, a estatistica do desvio. E a andlise numérica do suicidio, da prostituicao, da embriaguez, da vadiagem, da loucura, do crime, les misérables. A contagem gerou suas propri- as subdivisdes e rearranjos. Encontramos classificagées de mais de 4 mil dife- rentes motivos entrecruzados para assassinato e pedidos para que a polici classifique cada suicidio individual de vinte € uma maneiras diferentes. Nao acredito que motivos ou suicidios desses tipos existissem antes que a pratica de Conté-los passasse a existir (Hacking 1982a). Novos escaninhos eram criados para enquadrar e enumerar as pessoas Mesmo censos nacionais e provinciais surpreendentemente mostram que as categorias nas quais as pessoas se encaixam se alteram a cada dez anos. Mu- dangas sociais criam novas categorias de pessoas, mas a contagem nao é um mero relato de desenvolvimentos. Meticulosamente, muitas vezes filantropica- mente, a contagem eriasnovasmanreiras eas PeeOse serem, 417 TNVENTANDO PESSOAS As pessoas espontaneamente passam a se encaixar em suas categorias. Quando 0s fiscais do trabalho na Inglaterra e no pais de Gales iam até as usinas, encontravam varios tipos de gente, classificadas frouxamente de acordo com as funcées e salrios. Mas depois que terminavam seus relatérios, os operdrios tinham modos precisos para trabalhar, e o proprietério tinha um claro conjun- to de conceitos sobre como empregar trabalhadores de acordo com os modos como ele era obrigado a classificé-los. Estou mais familiarizado com a criacao de tipos entre as massas do que com intervengdes que atuam sobre os individuos, embora eu realmente tenha examinado um tipo raro de insanidade. Afirmo que a personalidade miltipla como ideia e como fenémeno clinico foi inventada por volta de 1875: apenas um ou dois possfveis casos por geracdo haviam sido registrados antes dessa época, mas toda uma quantidade desses casos apareceu depois. Também des- cobri que a hist6ria clinica da personalidade cindida parodia a si mesma ~ 0 nico caso claro de sintomas classicos foi ha muito registrado como dois seres humanos bem distintos, cada um dos quais miltiplo. Houve a “dama de Mac- Nish”, assim chamada depois de um relato em The Philosophy of Sleep IA Filo- sofia do Sono], escrito pelo médico Robert MacNish, de Edimburgo, em 1832, uma certa Mary R. As duas seriam descritas em pardgrafos sucessivos como dois casos distintos, embora na verdade Mary Reynolds fosse a propria dama de personalidade cindida relatada por MacNish (Hacking 1986) Mary Reynolds morreu muito antes de 1875, mas nao fora considerada como um caso de personalidade miltipla até entéo, Nao ela, mas uma certa Félida x colocou a inddstria de personalidade cindida em movimento. Como o grande psiquiatra francés Pierre Janet observou em Harvard em 1906, a historia de Félida “foi o grande argumento de que os psicdlogos positivistas langaram mao na época das lutas herdicas contra o dogmatismo da escola de Cousin. Se nao fosse por Félida, nao é garantido que fosse haver uma cétedra de psicolo- gia no Collége de France” (Janet 1907, 78). Janet ocupou exatamente essa cdte- dra. As “lutas heréicas” foram importantes para nossas concepcoes fugazes do self, e para a individualidade, porque foi considerado que a cindida Félida re- futava a dogmitica unidade transcendental da apercepcao que tornava o self anterior a todo conhecimento, Depois de Félida, veio uma avalanche de miltiplos. A sindrome flores- ceu na Franca e, mais tarde, na América, que ainda é seu lar. Seré que quero dizer que nao existiam personalidades maltiplas antes de Félida? Sim. A nao ser por uns poucos exemplos muito antigos, que depois de 1875 foram reinter- pretados como personalidades miiltiplas classicas, no existia tal sindrome para a pessoa perturbada exibir ou adotar.

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