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1, OS “MILAGRES” DO CAPITALISMO CONTEMPORANEO A primeira vez que se falou de “milagre econémico”, no apés guerra, foi em relagao a Alemanha Ocidental, cuja répida recuperagao, na década de 50, nos quadros da “economia social de mercado” do Prof. Erhard, surpreendeu a maioria dos observadores. Na ocasiao, 0 “milagre alemao” serviu de apanagio propagandistico ao neoliberalismo renascente que se iria opor ao dirigismo estatal, de molde keynesiano, entéo em voga Nos anos 60, surgiu em cena o “milagre japonés”, cujas taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de cerca de 10% ao ano, sustentadas por mais de uma década, marcaram novo recorde nos anais de crescimento “auto-sustentado” (o que quer que isso signifique) do capitalismo contemporaneo. O “milagre japonés"’ também teve funcao propagandistica. Ele serviu para fundamentar a proposta de uma “nova’’ politica de desenvolvimento, baseada no fomento as exportacoes, a partir das vantagens propiciadas pela disponibilidade de mao-de-obra abundante e a prego médico. Comega-se, agora, a falar do “milagre brasileiro”. talvez algo apressadamente, apés 4 anos (de 1968 a 1971) de crescimento acelerado do PIB brasileiro. Presumivelmente, 0 ‘milagre brasileiro” retine as exceléncias do neoliberalismo alemao e do crescimento “para fora” japonés a outra peculiaridade: um mercado de trabalho perfeitamente disciplinado, resguardado de qualquer “distributivismo” prematuro que pudesse deslanchar a temida espiral de pregos e salarios. E bastante claro que os ““milagres econémicos” tém, sobretudo, carater politico. Eles sau promovidos mediante os meios de comunicacao de massa para popularizar determinados aspectos da politica econémica, aos quais se atribui grande eficacia na promogao do crescimento. Nao obstante. é inegavel que as economias “milagrosas” de fato apresentam ou apresentaram elevadas taxas de crescimento e por periodos relativamente longos. E este Ultimo aspecto que torna o desempenho destas economias excepcional, no quadro atual e histérico do capitalismo. Nao ¢ infrequente que economias capitalistas apresentem elevadas taxas de crescimento durante periodos de auge conjuntural, 0s quais, no entanto, soem ser limitados, sendo seguidos por crises ou recessées. A intermiténcia do crescimento é uma das marcas caracteristicas do capitalismo. Quando a economia de um pais capitalista consegue sustentar taxas elevadas de crescimento por um prazo algo mais longo (10 anos ou mais), 0 fato requer alguma explicacao especifica, o que permite (quando ha interesse nisso) a proclamagao de um “milagre Até as vésperas da 2 Guerra Mundial, 0 ciclo de conjuntura era aceito como algo inerente ao capitalismo. A sua manifestagao estava claramente ligada a fenémenos monetérios: a fase de ascensao caracterizava-se pela alta dos pregos e juros (reais) baixos, ao passo que a crise e a depressao eram marcadas pela queda dos pregos e elevacao dos juros. As discussdes a respeito do carater “monetario” ou “real” do ciclo foram infindaveis. A sugestao de Keynes, 5 de que uma manipulagao adequada da oferta de meios de pagamentos poderia evitar a crise ou acelerar a recuperacao, feita durante a depressao dos anos 30, encontrou, afinal, aplicacao pratica porque, na maioria dos paises industrializados, as regras do padrao-ouro ja tinham sido entao de fato abandonadas. Embora as tentativas de politica anticiclica, postas em pratica antes da 2* Guerra, nao tenham dado resultados muito brilhantes na maioria dos paises, 0 importante é que, apés 0 conflito, © controle da oferta de meios de pagamento pelo Estado estava firmemente implantado, inaugurando-se assim uma nove fase da evolugao do capitalismo, em que 0 ciclo Classico” (durante 0 qual a reprodugao passa de simples a ampliada e depois a contraida) nao mais aparece. O surgimento do neocapitalismo — um capitalismo sem crises — causou natural euforia nos meios conservadores e reformistas, até que se percebeu que, longe de ter sido abolido, 0 ciclo de conjuntura mudou de forma, perdendo intensidade e podendo ser politicamente manipulado, mas sem que 0 capitalismo passasse a gozar de crescimento sem solugao de continuidade. Sao as caracteristicas deste novo ciclo de conjuntura que permitem entender a excepcionalidade do crescimento continuado de certas economias capitalistas, que consequem, em virtude de circunstancias tambem excepcionais, escapar a fase do ciclo (novo) por um periodo algo mais alongado. E preciso, inicialmente, deixar claro que. por mais planejado e monopolizado que o capitalismo atual se tenha tornado, as decisoes basicas, que determinam a vida econémica ou. mais especiticamente, a reproducao do capital, continuam sendo adotadas de forma descentralizada, em obediéncia a indicadores de mercado. Nao ha qualquer coordenagao previa que compatibilize, efetivamente, a produgao dos inumeros valores de uso com os requisitos da valorizacao do capital ‘A producao de cada valor de uso, em termos de quantidade e qualidade, ¢ decidida no Ambito de macrounidades (oligopolios), tendo em vista certa estrutura da demanda, a qual € alterada necessariamente por esta mesma decisao, a medida que a dependéncia interindustrial torna solidarios todos os ramos espcializados de producao. 0 capitalism monopoiista, tanto quanto 0 competitivo, é incapaz de prever e muito menos de controlar 0s efeitos cumulativos que decorrem do proprio carater da reproducao ampliada, que implica em inovagées tecnologicas, alteragées na reparticao da renda, na elasticidade-renda da demanda pelos diferentes valores de uso € na propensao marginal a consumir dos varios estratos de renda. (O que cacaracteriza 0 capitalismo monopolista contemporaneo nao é a capacidade de prever todas as repercussées relevantes de uma aceleragao do crescimento, a qual se apresenta de forma diferente em cada lugar e em cada momento, mas o fato de possuir mecanismos politicos de controle que permitem corrigir 05 piores desequilibrios, decorrentes da anarquia do mercado, mecanismos que. em certas circunstancias (como se vera). exigem a paralisagao do crescimento ou, ao menos, sua desaceleracao. Quando uma economia capitalista cresce, ela gera poderosos estimulos para continuar crescendo e a taxas cada vez maiores. A parte consumida do acréscimo de renda se adiciona 4 demanda por bens de consumo, estimulando 0 Departamento Ii (produtor destes bens) a aumentar sua producao. A medida que os estoques se reduzem e a utilizaco da capacidade de produgao aumenta neste Departamento Il, aumenta tambem sua demanda por bens de produgao para reposi¢ao e ampliagdo da capacidade, estimulando o Departamento | (produtor de bens de produ¢ao) a expandir sua produgao numa taxa ainda maior, pois boa parte dela destina-se a repor e a ampliar sua propria capacidade de produgao. Desta maneira, 0 Departamento | absorve a parte nao consumida (poupada) do acréscimo de renda. O pesadelo keynesiano de uma decrescente propensdo marginal a consumir, devido a saturagao das necessidades dos consumidores, nao se verifica a medida que o lancamento de novos produtos e de novos modelos de produtos ja existentes, devidamente amparado pelo 6 condicionamento publicitario, garante a multiplicagéo de neces$dQ@RBRAR grande parte psicologicas, forgando um crescimento do consumo compativel dam.o da renda. Os mecanismos de promocao do consumo, na realidade, soem funcionar com estupenda perfeigao (dai a sociedade de consumo), tornando a acumulagao relativamente insuficiente, 0 que tende a desencadear forte demanda por crédito. Neste ponto, o Estado entra em cena. Controlando 0 crédito, isto é, a oferta de meios de pagamento, o Estado pode expandi-lo, criando condigées para um surto inflacionario, 0 qual tem por fungao primordial transferir a renda dos individuos com rendimentos fixos (assalariados sobretudo) para as empresas, cujos lucros aumentam, crescendo em conseqiiéncia a poupanca institucional (lucros retidos) e, portanto, a acumulagao. Neste caso, o crescimento acelera-se gracas a certa inflagao. Na hipotese improvavel de o Estado se negar a expandir 0 crédito, a escassez de oferta de poupanga faz com que se eleve a taxa de juros, 0 que tende a desviar maior parcela de recursos para aplicag6es puramente financeiras (elevacao da preferéncia pela liquidez, na terminologia keynesiana), limitando ainda mais a acumulagao. Cria-se uma situacao de inflacao reprimida, na qual o custo dos investimentos tende a tornar-se proibitivo, restringindo a expansao do Departamento I, cujo crescimento se desacelera, atingindo, mais cedo ou mais tarde, também 0 Departamento I, pois a demanda pelos bens de consumo provém, em boa parte, da renda gerada no Departamento I, Reproduzir-se-ia, deste modo, a crise “classica”, que sempre estava ligada a uma oferta mais ou menos rigida de meios de pagamento, cuja expansao estava limitada a disponibilidade de lastro metalico. Como se vé, a crise “classica” evitada pelo capitalismo contemporaneo precisamente a medida que gracas & manipulagao estatal da oferta de meios de pagamento, ele se torna mais suscetivel a inflacao E preciso, neste ponto, evitar o possivel equivoco que resulta da verificagao de que os monopélios (principalmente os conglomerados) sao praticamente independentes do mercado de capitais, sendo capazes de mobilizar internamente (por meio da reten¢ao de parte dos lucros) os recursos que desejam acumular. Embora o fato seja inegavel, sua significacao restringe-se ao plano microeconémico, em que a auto-suficiéncia financeira distigue (entre outras caracteristicas) a empresa monopolistica da competitiva No plano macroeconémico, porém, o conjunto das empresas s6 pode expandir o ambito da acumulacao, ou seja, elevar a parcela do produto que se converte em novo capital mediante duas formas: ou capta maior parcela da renda individual sob a forma de poupanga voluntaria ou obtém-nas elevando os pregos de modo a aumentar seus lucros @, portanto, a parte no distribuida dos mesmos, impondo aos individuos (basicamente aos assalariados) uma poupanca forgada. O que se tenta mostrar acima 6 que, quando a economia se encontra em crescimento, a concorréncia monopolistica, que se faz sobretudo mediante a publicidade, tende a elevar ou a manter alta a propensao dos individuos a consumir, o que torna insuficiente a primeira alternativa.' Deste modo, 0 aumento da poupanga, ou seja, da acumulacao, s6 pode se dar mediante a segunda alternativa, a inflacionaria que, para se tornar real, tem de ser sancionada pela politica monetaria do Estado. A correlagao entre crescimento econémico e inflacéo pode ser empiricamente comprovada em grande numero de paises. A inter-relacao entre os dois fenémenos resiste, no entanto, @ andlise tedrica, a medida que ela se compde de um complexo de reforgos causas cumulativas que assumem forma e peso especifico a cada momento e lugar. Assim, 0 Estado da economia no momento em que o crescimento se inicia ou se acelera vai determinar © prazo a partir do qual as pressées inflacionarias, decorrentes do crescimento, se fazem sentir sob a forma de uma efetiva e continuada elevacao do nivel geral de precos. Este prazo vai depender, entre outros fatores, do montante de capacidade ociosa em setores estratégicos (tais como energia, transporte, armazenamento, comunicagées). do balango de pagamentos, da disponibilidade de reservas cambiais, da evolucao da capacidade de importar etc. Deste modo, pode haver economias em que a inflagao s6 se manifesta apés alguns anos de 7

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