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EDITORIAL

E
ste Correio abre espaço para uma forma de articular as dimensões
heterogêneas que compõe o humano.
O heterogêneo implica as relações entre Real, Simbólico e Imaginá-
rio, que colocam em questão corpo, palavra e imagem em suas complexas
articulações. Os textos desta edição privilegiam “o corpo posto em cena”,
seja através da dança, da performance, do teatro, ou das narrativas que
tentam dar conta das transformações corporais. Trabalho sempre impossível
de completar como nos lembrou Freud; uma vez que as articulações entre o
significante e o real apresentam singularidades que o imaginário não conse-
gue recobrir totalmente.
Além disso, o corpo em cena joga com consistência e evanescência,
termos com os quais a prática psicanalítica se ocupa ao escutar o sintoma,
que é sempre sinal do sujeito. Sujeito do inconsciente, dividido, com um
desejar intransitivo.

*****

2007. Neste ano o voto é o de relançar o trabalho institucional que


avançou, no ano que concluímos, em torno das propostas de pesquisa e
intervenção e no estudo dos seminários de Lacan – neste número contamos
com a tradução do capítulo “Tiquê e automaton”, sem. XI.
A trajetória do ano que se inicia é a da leitura compartilhada do semi-
nário “A Angústia”, de Lacan, movimento de atualização e discussão das
interrogações sobre o tema da angústia, tão atual para a clínica (psicanalíti-
ca, psiquiátrica, médica, psicológica); quanto para nossos enlaces com a
cultura e a ciência. Seguimos.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 1


NOTÍCIAS

ASSEMBLÉIA

Data: 23/03/2007
Local: Sede da APPOA

JORNADA DE ABERTURA
“ANGÚSTIA”

Data: 24/03/2007
Local: Santander Cultural

NÚCLEO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇAS

O núcleo de psicanálise de crianças da APPOA é um espaço de


estudo e discussão das especificidades levantadas pelo trabalho psicanalíti-
co com a infância. As reuniões têm freqüência mensal e acontecem sempre
no segundo sábado de cada mês, das 10h às 12h. O próximo encontro será
no dia 13 de janeiro.
Nesta reunião, iniciaremos o debate em torno do tema da angústia na
infância, o qual será o eixo de nosso trabalho ao longo do ano. Neste encon-
tro, para discussão dessa temática, contaremos com a participação de Alfredo
Jerusalinsky.
As reuniões do núcleo são abertas a todos os interessados.

MUDANÇA DE E-MAIL

Rosane Monteiro Ramalho informa seu novo e-mail:


rosaneram@gmail.com

2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


BECKER, Â. L. Narrar, subjetivar, dançar.

NARRAR, SUBJETIVAR, DANÇAR

Ângela Lângaro Becker

Narrar e dançar têm algo em comum:


é preciso lembrar daquilo que não se sabe, é quase como refazer-se,
pois o que se cria se escreve também no corpo.

C
onvido-os a seguir comigo neste narrar/dançar de um grupo de baila-
rinos que, como psicanalista, acompanhei de perto desde o seu
início, ao longo do processo de criação, até o surgimento da obra.
Este trabalho, que inicia para homenagear a mulher contemporânea, teve a
inspiração inicial na obra de Marcel Duchamp: “A noiva despida por seus
celibatários”. A idéia não foi retratar a obra, mas deixar-se associar e recriar
sob os efeitos da sua inspiração. Esta obra de Duchamp foi iniciada em 1915
e definitivamente inacabada em 1925, quando, por acidente, um pedaço do
vidro que a envolve fica rachado. A fragilidade e a transparência do suporte, o
aspecto mecânico das imagens, o tema erótico-delirante e a incorporação
do acaso na (ir)realização do trabalho foram detalhes de grande importância
na composição da obra performática deste grupo.1 A idéia de uma noiva que
representa o sonho romântico, ao mesmo tempo que fragmentada pela ra-
chadura do vidro, por um véu que se despedaça, pelo sonho que não conse-
gue encobrir o real, nos dá os elementos da obra de Duchamp naquilo que foi
inspiração para compor esta performance. A idéia dos vidros no jogo de
encobrir e revelar remeteu à função do véu em Lacan. Bailarinos e coreógrafo
imbuíram-se do conceito lacaniano em seminários de estudo que se alterna-
vam com a composição coreográfica.

1
O grupo Meme produz coreografias que se integram com dança, teatro e artes plásticas
numa proposta que se aproxima de um processo de performance. É coordenado pelo
coreógrafo Paulo Guimarães (Laco). Esta obra está sendo apresentada em Porto Alegre
durante o mês de dezembro/2006.

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SEÇÃO TEMÁTICA

No Seminário da Relação de Objeto, Lacan nos diz em relação ao


conceito de véu: “o que se pode transmitir na troca simbólica é sempre algu-
ma coisa que é tanto ausência quanto presença. Ele é feito para ter essa
espécie de alternância fundamental, que faz com que, tendo aparecido num
ponto, desapareça, para reaparecer num outro. Em outras palavras, ele cir-
cula.”2 (p.155) O véu encobre o objeto, mas ao mesmo tempo encobre a
falta, o que produz este mais além que sustenta o desejo. “É nisso mesmo
que o homem encarna, idolatra seu sentimento, deste nada que está para
além do objeto do amor.”3 (p.158)
Na produção artística, o véu fica representado pelo tecido que se apre-
senta como fios. Os fios que são enrolados e desenrolados durante todo o
espetáculo permeiam as cenas que dão sentido ao feminino. Ao mesmo
tempo, o cenário é composto de panos nos quais são costuradas peças de
roupas femininas, que não são vestidas, mas estão presentes como referên-
cias daquilo que preenche o corpo e o cotidiano feminino, trazendo a idéia da
castração na sua afirmação e negação. Certamente que aí não se trata ape-
nas do feminino, mas daquilo que é constituinte essencial do humano: essa
relação ilusória com a realidade, que o feminino só faz lembrar e sustentar. O
espetáculo desenrola-se como este fio, que, metonimicamente, traz cenas
compostas por traços fragmentados da vida feminina. Não apenas cenas,
mas gestos que são explorados a partir da relação que cada bailarina tem
com seu próprio corpo, dos seus pedaços, das suas partes mais oferecidas
ao olhar do outro e daquelas que trazem a cada uma um maior questionamento
sobre o feminino.
A revolução provocada por Duchamp está presente no processo da
performance, na medida em que não há na composição da obra nenhuma
proposta a fazer revelações fundamentais, não há nenhum grande gesto e
nenhuma grande causa a ser defendida. O que está presente é o cotidiano e

2
Lacan, J.Jacques. O seminário 4 - A relação de Objeto. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1995.
3
Idem.
4
(Lacan, 1957)

4 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


BECKER, Â. L. Narrar, subjetivar, dançar.

o íntimo, numa provocação a que cada expectador encontre algum traço de


si em algum fragmento da obra. A postura ética que talvez se possa aí definir
é de descolar o corpo feminino da lógica da eficácia e da produtividade; a
lógica de mercado, que padroniza os corpos e os retira de sua história. O
compromisso ético que se engaja com a posição de um olhar psicanalítico é
acompanhar o processo de resgate do corpo, como corpo/palavra, corpo/
escrita, como véu propriamente, como no dizer de Lacan, o corpo na sua
função “sujeito-objeto-mais além”4. Neste processo, a lógica que está em
jogo, mesmo no corpo nu, é a lógica simbólica, que produz história e que faz
transmissão.
Como já foi mencionado num outro artigo5, a composição cênica des-
te processo aproxima-se da narrativa produzida pela escuta psicanalítica na
clínica. Não há, com isso, intenção de propor uma clínica do artista ou das
obras de arte, mas sim poder escutar o sujeito contemporâneo, do qual
nossa clínica é composta, como aquele cuja palavra é também corpórea, e
cujo corpo também compõe narrativas. Isto nos posiciona diferentemente
diante de questões que carregam certas ilusões como “o que diz respeito ao
corpo é necessariamente mais narcísico e menos simbólico do que o que se
coloca em palavras? ou mesmo: a imagem valeria mais do que 1000 pala-
vras? Lembrando ainda o que Marcel Duchamp denomina como “coeficiente
artístico”, podemos pensar o processo de criação como extremamente pró-
ximo à experiência de um processo analítico: “o coeficiente artístico é como
uma relação aritmética entre o que parece inexpresso embora intencionado
e o que é expresso não intencionalmente”. A obra de arte é então tomada
como o resultado deste processo em que a tentativa de encobrir o Real é, ao
mesmo tempo, sua revelação.
No acompanhamento da produção desta performance, o processo de
criação foi composto de várias narrativas que, na tentativa de dar conta de

5
Becker, Ângela. “Narrativas em cena: desejo e criação no processo da performance” in
Narrar, construir, interpretar. Revista da APPOA nº 30, junho/2006.

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SEÇÃO TEMÁTICA

um saber sobre o feminino, produziam, ao mesmo tempo, mais incertezas,


provocavam faltas, o que levava à produção de novas ficções. As narrativas
ficcionais que produzimos a partir de nossa infância, para poder dar conta de
nossas origens, são produzidas a partir de imagens sobre o funcionamento
de um corpo que poderia se dizer coletivo, já que ele é composto pelas
referências do funcionamento do corpo infantil e daquele do adulto. Coletivo
também no que diz respeito à tentativa de dar corpo ao Outro. Essas ques-
tões dizem respeito a uma certa generalização sobre o ser humano, isto é,
são produzidas teorias que pretendem sustentar uma posição investigativa
sobre a origem da humanidade. Narrativas compostas de corpo, imagens
que falam. Se o Real está no corpo, a ficção também se dá a partir dele.
Pode-se dizer que o trabalho artístico, da forma como o acompanhei, foi a
composição de uma narrativa de modo a dar conta de um corpo coletivo. A
noiva, o vidro e o véu foram significantes de trabalho, fios condutores para
tecer uma rede composta por diversos estilos narrativos: a encenação tea-
tral, a coreografia, o texto falado e cantado, a composição musical feita
especialmente, as instalações que montam o cenário na obra plástica da
artista6 e o relato subjetivo de cada uma das histórias pessoais.
A riqueza do processo está especialmente na possibilidade de OLHAR
a linguagem presente. O que é falado, não se pode ver, mas se pode olhar,
pois o corpo que fala não reproduz o que se diz, ele interpreta. E quando no
trabalho do analista dirigido ao artista há o pontuar de alguns significantes, a
surpresa é OLHAR os efeitos destas pontuações, efeitos de construções
coletivas, que se desenrolam como em associações livres. Como refere Didier-
Weill, o que na dança se vê é aquilo que é invisível: “Desse terceiro ponto em
que a palavra e a imagem cessam de estar dissociadas, pode aparecer um
outro tipo de olhar, completamente diverso daquele do ‘olho mau’: esse novo
olhar que o analisando encontra no fim da análise é contrariamente ao olhar

6
Os artistas que trabalharam respectivamente nesta composição foram: Margarida Rache
(artista plástica), Arthur Barbosa (trilha sonora) e Marisa Rotenberg (preparadora vocal)

6 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


BECKER, Â. L. Narrar, subjetivar, dançar.

que tudo sabe, um olhar que não sabe tudo e que está, por isto mesmo,
disposto a poder não reconhecer o que há de invisível no sujeito.”(p.24)7
Este é um processo onde o ator/bailarino produz uma entrega diferen-
te daquele do romantismo ou do academicismo, em que era preciso identifi-
car-se ao sublime de tal forma que tudo o que dizia respeito ao sujeito devia
estar encoberto. A entrega era fazer-se objeto de uma idéia, o sujeito estava
fora. O que está em jogo, na dança contemporânea não é propriamente uma
idéia, mas o próprio sujeito. Ele está entregue ao processo de refazer-se, de
ser outro propriamente, de fazer da sua vida cada vez um novo romance,
como referiu M. Rita Kehl8, quando caracterizava o sujeito contemporâneo.
Neste caso, fazer-se a cada nova obra, a cada novo espetáculo. As histórias
de mulheres, descobertas tão parecidas e de saídas tão diferentes, resulta-
vam, muitas vezes, num empréstimo de traços identificatórios, através de
um processo mimético que possuía ritmo próprio de criação. A cada relato
pessoal, percebiam-se os efeitos na composição coreográfica e a cada core-
ografia composta, a escuta de novo relato. Um processo de dançar e falar,
isto é, narrar de si próprio, através do corpo e da palavra num entrelaçamento
que buscava cada vez menor distância entre um e outro.
A proposta é permiti-lo inacabado e que seu (in)acabamento a cada
apresentação seja diferente, por força do público. O público é o Outro que se
dá a ver. Mas este também é chamado a compor o espetáculo, não na forma
de uma abordagem direta ou agressiva, como alguns estilos de performances
propõem, mas na forma de uma intensa identificação com a coreografia que
não apenas expõe o cotidiano, mas o belo naquilo que o trágico sustenta de
beleza. No desenrolar dos fios aparecem os enredos amorosos, os emara-
nhados da vida que sufocam, mas também os fios dos tecidos que protegem
o sono, o descanso, o aconchego. Os fios são lavados, como se fossem
roupas, fios também são os fios dos cabelos, em que a lavagem é quase um

7
Didier-Weill, Alain. A Nota Azu”. Ed. Contracapa. Rj, 1997.
8
Kehl, M. Rita. “Minha Vida daria um Romance” In: Psicanálise, Literatura e estéticas da
Subjetivação. Rio de Janeiro : Imago, 2001.

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SEÇÃO TEMÁTICA

ritual, cabelos como véus femininos. O banho é também ritual de passagem


entre as gerações de mulheres que oferecem às mais novas, imagens de
pureza e de erotização. Fios são esconderijos das púberes cujo corpo ainda
lhes é completamente estranho e que nenhum modelo familiar parece ser o
seu. A herança feminina lhe empresta soutiens (sutiãs) de todos os tama-
nhos e formatos que ficam ligados entre si formando um longo fio que a
convida a encontrar seu corpo num daqueles modelos. Os fios também enro-
lam mãe e filha num duo intenso em que os gestos transmitem claramente a
ambivalência que ali predomina. O véu está presente na forma, e uma tela
que faz do corpo da bailarina sombras que dançam, surpreendendo o
expectador numa posição de “voyeur”. Mas o véu está ausente na noiva, em
que somente o passo marcado e o gesto do bouquet (buquê) faz menção ao
casamento. Noiva que se encanta e desencanta, alternando gestos triunfan-
tes com desilusões profundas, até chegar a um certo equilíbrio, o que faz
com que todas as mulheres casem junto com ela.
A dança contemporânea e especialmente a performance podem ser
subjetivantes, na medida em que seu processo possibilita substituir a de-
manda ao Outro: “para onde devo ir?” pelo mergulho na busca de si mesmo,
através da confiança neste guia que a música representa. Como nos lembra
Didier Weill: “...arrancando o sujeito de sua latência, a música tem a propri-
edade de subverter todas as relações dualistas, já que por um lado ela adver-
te o sujeito de que se tornou este lugar onde ela dança – como se ela esti-
vesse então na propriedade dele – e por outro lado adverte o sujeito de que
ele pode dançar nela, como se estivesse na propriedade dela.”9 Acompanhar
o processo de formação desta obra, na posição de um analista, é como
cuidar da sua direção, no sentido da direção da cura e não do próprio pacien-
te, como refere Lacan10. É cuidar de uma trajetória que não se sabe bem o

9
Didier-Weill, Alain. Invocações. Rio de Janeiro: Cia de Freud ed., 1999. (p.18)
10
Lacan, Jacques. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. In: Escritos. Rio
de Janeiro : Zahar ed., 1966.

8 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


BECKER, Â. L. Narrar, subjetivar, dançar.

seu rumo, mas que possa estruturar-se, mesmo na costura de tantos reta-
lhos, esvaziando-se de tantas certezas, deixando-se compor pelo dentro e o
fora, num rumo desconhecido cuja composição final é reconhecida sempre
como inacabada.

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 9


SEÇÃO TEMÁTICA

A DANÇA COMO UM MOVIMENTO


EM DIREÇÃO AO OUTRO

Luciana Paludo1

“Movimento, tato, visão aplicam-se, a partir de então, ao outro e a


eles próprios, remontam à fonte e, no trabalho paciente e silencioso do
desejo, começa o paradoxo da expressão.
Ora, essa carne que se vê e se toca não é toda a carne, nem essa
corporeidade maciça, todo o corpo. A reversibilidade que define a carne
existe em outros campos, é mesmo incomparavelmente mais ágil, e capaz
de estabelecer entre os corpos relações que desta vez, além de alarga-
rem, irão definitivamente ultrapassar o campo do visível. (...) Esta nova
reversibilidade e a emergência da carne como expressão constituem o
ponto de intersecção do falar e do pensar no mundo do silêncio.”2

A
tentativa que se estabelece nesta escrita é a de tecer uma relação
entre dança e psicanálise. Adianto que o texto foi escrito por alguém
que muito mais sabe de dança do que do tema proposto para a rela-
ção. No entanto, alguns estudos têm permitido, há algum tempo, um
entrecruzamento entre os dois assuntos. Penso a dança, – e aí preciso falar
na primeira pessoa – realmente, como uma emergência da carne, como
meio de expressão. Na forma mais bruta e, paradoxalmente, mais sutil, de
expressão. A expressão em sua configuração primeira, onde o empenho de
corpo todo era pressuposto para que os significados expressivos se consti-
tuíssem.

1
Bailarina e diretora do grupo “Mimese cia de dança-coisa”, de Porto Alegre. Bacharel e
Licenciada em Dança - PUC/PR e Fundação Teatro Guaíra; Especialista em Linguagem e
Comunicação - UNICRUZ e Mestre em Artes Visuais – UFRGS.
2
Merleau-Ponty, Maurice. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003; p. 140.

10 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


PALUDO, L. A dança como um movimento...

Escrevo este artigo após a temporada de estréia de um trabalho solo,


o qual chamei de “Um corpo bem de perto”. Hoje pela manhã, após a dança
que realizei ontem à noite, posso perceber o resto da sensação do movimen-
to, como se minhas células todas dançassem, ainda. Essas impressões tão
presentes me fazem pensar em como um movimento passado pode estar
atuante em um estado do ser. Movimento de dança, movimento de vida...
Movimentos. A sensação presente de um passado – e a consciência disso –
será tão mais efetiva quanto for o estado de atenção do indivíduo à sua
existência. E, para começarmos a refletir sobre existência, reflitamos um
pouco sobre nosso estado de ser... Corpo! É no corpo que as operações de
um presente se dimensionam. É a partir desse estado material que posso
perceber o tempo, que posso discernir entre os instantes que se findaram e
os que me aguardam para a ação. Dessa equação, temos a consciência do
presente.

“Equivale a dizer que meu presente consiste na consciência


que tenho de meu corpo. Estendido no espaço, meu corpo ex-
perimenta sensações e ao mesmo tempo executa movimen-
tos. (...). Por isso meu presente parece ser algo absolutamente
determinado, e que incide sobre meu passado. Colocado entre
a matéria que influi sobre ele e a matéria sobre a qual ele influi,
meu corpo é um centro de ação, o lugar onde as impressões
recebidas escolhem inteligentemente seu caminho para se trans-
formarem em movimentos efetuados; portanto, representa efeti-
vamente, o estado atual de meu devir, daquilo que, em minha
duração, está em vias de formação.”3

A dança, no sentido existencial próprio, tem sido um mecanismo todo


de expressão. Conforme escrito na citação de Merleau-Ponty, no início des-

3
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio da Relação do Corpo com o Espírito. São
Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 162.

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 11


SEÇÃO TEMÁTICA

te artigo, a expressão nasce de um trabalho paciente e silencioso de um


desejo. Assim, podemos pensar que a expressão se materializa em distin-
tas formas, algumas reconhecidas enquanto arte. E a arte, longe de todas
as separações em categorias, seria essa espécie de expressão formal, a
qual, por eleição de determinados materiais, encontra sua configuração atra-
vés de um sujeito. As linhas de contorno (fronteiras de campos na arte) se
tornam, neste sentido, meros limites operatórios, na opção da expressão de
cada artista.
Para falar em dança, é essencial que se tenha em mente que o “ma-
terial” operacional dessa arte é o corpo; será ele que dará forma à idéia do
criador em dança. Para isso deverá estar sensível e preparado, de modo a
poder transmitir o que se pretende em uma obra. Corpo: matéria (fr)ágil,
carregada de memórias; presença que comporta limites. A todo instante
estamos no limiar da existência, entre o existir e o “de repente” não estar
mais aqui – embora esqueçamos disso. A dança, porém, nos faz lembrar...
A dança é uma forma efêmera, que existe no momento em que o corpo do
dançarino está a realizar a performance. E os corpos dos espectadores, em
tempo simultâneo, estão a interagir com suas respectivas recepções do ato
que está sendo feito. É ali que existe a dança. Acabada, temos que confiar
em nossas impressões para poder emitir alguma opinião, para pensar e raci-
onalizar sensações e poder falar sobre ela.
Pensemos, então, em uma dança como um modo de intercambiar
experiências. O ato de transmissão de imagens geradas por um corpo, quando
esse se posta como material constituinte de uma obra em dança estabelece
uma relação com a imagem corporal de quem observa. Schilder ensina: “A
apresentação visual dos movimentos do outro é capaz de evocar as repre-
sentações de movimento similar no corpo do observador; como todas as
representações motoras, tende a se expressar imediatamente num movi-
mento. ”4 Ao estudar o mecanismo de constituição da imagem corporal pôde-

4
SCHILDER, Paul. A Imagem do Corpo – As energias constitutivas da psique. São Paulo:
Martins Fontes, 1999; p. 274.

12 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


PALUDO, L. A dança como um movimento...

se compreender que tal construção é determinada e guiada por nosso sistema


de conflitos e desejos, que se voltam para determinada realidade. Nesse trânsi-
to é que se define a experiência da construção da imagem do corpo próprio.
A hipótese deste estudo é que as imagens geradas por um corpo, no
ato de uma apresentação de dança, interferirão de alguma maneira nas per-
cepções e representações de corpo (próprio e do outro), de quem as pode ver.
Talvez essa seja uma perspectiva utópica de meu pensamento, em relação à
dança. Ao pensarmos em perspectivas utópicas da arte, podemos dizer que a
arte pode oferecer ao espectador o que não se vê, ou seja, signos para que
ele próprio realize o sentido; espaços de ausência e silêncio; apresentar
uma forma pelo seu avesso, seu interior… Pela negativa (que também é uma
forma de mostrar); instigar a tolerância para o vazio, reverso da razão econômi-
ca; recuperar esperanças adormecidas. Propor uma ação contra a anestesia
dos sentidos também pode ser visto como uma perspectiva utópica da arte.
Ao abordar a questão do corpo na obra de arte, imagina-se que esse
corpo possa produzir uma “imagem crítica” que, ao ser vista (através de um
estímulo sensorial dado pela visão e pelos aspectos sinestésicos de quem
vê), poderá desencadear uma percepção e um juízo sobre o próprio corpo do
observador e, possivelmente, sobre imagens e discursos de corpo vigentes
na sociedade. O corpo do qual se fala, neste caso, não é um “corpo espeta-
cular”, e sim, um “corpo experiência”; pelo ato vivenciado, na apresentação
da obra, tem a possibilidade de se “estender” a outros corpos. Ao gerar essa
imagem, compartilha a experiência e propõe uma maior consciência de “ser
corpo”. Aponta para um “despertar”.
Escrevo tudo isso numa perspectiva utópica pessoal talvez... Nem
todas as danças estão para serem enquadradas nesse pensamento. Mas,
observo que minha dança guarda esse traço, essa intenção. O trabalho solo
que estou apresentando no momento, o qual citei no início deste estudo,
“Um corpo bem de perto”, se desdobrou a partir de meus estudos no mestrado
em Artes Visuais5, onde, como último trabalho, realizei uma série a qual
5
Mestrado em Artes Visuais – Área de concentração em Poéticas Visuais (Performance),
no Instituto de Artes da UFRGS, defendido em junho de 2006, cuja metodologia consistiu em
produzir trabalhos de arte e, posteriormente, tecer uma articulação teórica sobre os feitos.

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SEÇÃO TEMÁTICA

chamei “Sulcos na carne”. Dessa série resultaram dois trabalhos: ao primei-


ro denominei “Você tem duas escápulas”; ao segundo, “Daquilo que se es-
vai”.

Dois trabalhos para dialogar sobre o que se pretende transmitir.

“Você tem duas escápulas”, 2006.

“Daquilo que se esvai”, 2006.

“Sua textura carnal se nos apresenta como ausente de toda a


carne, é um sulco que se traça magicamente sob nossos olhos
sem que ninguém o traçasse, certo oco, certo interior, certa
ausência, uma negatividade que não é um nada, estando limita-
da precisamente a estas cinco notas entre as quais se instala,
a esta família de sensíveis que chamamos luzes”.6

Nesses dois trabalhos, este corpo [(m)eu], material constituinte de


minhas idéias em arte, se vale de seus signos mais carnais, seus ossos e
todos os sulcos que os anos intensos de prática na dança inscreveram sob
e sobre minha pele. Digo que são “imagens-metáfora”, que apontam inicial-

6
Merleau-Ponty, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003; p. 145-146.

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PALUDO, L. A dança como um movimento...

mente outras coisas, visíveis ou invisíveis do corpo próprio, e, posteriormen-


te, se estendem ao corpo de outrem. Têm, em sua intenção, despertar no
corpo do outro do “desejo de ser corpo”.
Por exemplo, em “Você tem duas escápulas”, tautologicamente, po-
demos ver esta imagem apenas como um corpo demonstrando todas as
ações que as escápulas podem realizar... Com movimentos articulares exaus-
tivos, tal tarefa, que se imprime na imagem, também é uma metáfora. Ora,
as escápulas estão às nossas costas, não as vemos; podemos, quando
muito, tocá-las, ou vê-las pelo duplo do espelho. Só podemos ver claramente
as escápulas no corpo do outro... Muitas questões neste parágrafo.
A imagem das escápulas aponta para as coisas que não estão aces-
síveis aos nossos olhos, em nosso corpo. E o corpo é o que nos confere a
existência – e não entremos aqui em esperanças metafísicas! Pensemos
nesse corpo como único. Experiência única; presente. Estado atual. Matéria
que atualiza dados virtuais do que pudemos experimentar. Pensemos em
nossa consciência de ser corpo – se isso se apresenta para nós como um
dado presente... Lembremos o quanto de nossa imagem é constituída pelo
corpo de outrem, num intercâmbio contínuo de imagens que se transmutam
em experiências compartilhadas. A imagem-metáfora das escápulas aponta
ao que não se anuncia à nossa visão, em termos de corpo próprio. Em
analogia podemos pensar nos dados a nosso respeito que nos ficam ocultos
e que, via de regra, só podem ser verificados e percebidos no outro.
No outro trabalho da série “Sulcos na carne”, o qual chamei “Daquilo
que se esvai”, uso as “saboneteiras” (sulcos produzidos pelas clavículas)
como um depositário de água, enchendo-as e esvaziando-as. Qual a utilida-
de disso? Isso pode ser dança? Ridículo, patético e obediente ao que de-
manda a minha vontade... Este é o meu corpo, que se dispõe como material,
que se anuncia enquanto imagem e se lança em direção ao outro para com-
partilhar sua experiência. O que, realmente, quer essa imagem? E essas
palavras todas?
Machado de Assis, em seu célebre conto “O espelho – esboço de
uma nova teoria da alma humana”, escreveu: “a melhor definição do amor

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 15


SEÇÃO TEMÁTICA

não vale um beijo.” 7. Então vou parar de falar em imagens de dança, vou
parar de instigar imagens em palavras... Melhor seria ver uma dança; signos
rítmicos de uma expressão que solicita o corpo todo. Vejamos o que Foucault
nos diz sobre os signos:

“O mundo é coberto de signos, que é preciso decifrar, e estes


signos, que revelam semelhanças e afinidades, não passam,
eles próprios, de formas de similitude. Conhecer será, pois,
interpretar: ir da marca visível ao que se diz através dela e, sem
ela, permaneceria palavra muda, adormecida nas coisas.. “ 8

José Gil nos diz: “A escrita abre a ameaça de uma distância: é signo
de um signo, a palavra. (...) A palavra enche-se das forças do corpo (do
fígado, das entranhas, do estômago) e das forças da coisa nomeada.” 9 Digo
que cada palavra escrita está impregnada das forças de meu corpo, uma vez
que é resultado de pura experiência. Nesse sentido, este breve artigo foi feito
numa intenção contígua à minha dança, ou seja, chamar-lhes atenção ao
corpo, à experiência desse corpo que, como o passar dos anos deixamos de
ter. Deixamos de ter a experiência corpórea mais efetiva, pela “acomodação
do sofá” e o corpo em si, pois a carne é matéria finita. Como sugestão, ficam
os conselhos de que possam realizar coisas simples como rolar no chão,
andar descalços, virar algumas cambalhotas (o que podemos fazer em uma
aula de dança). Uma maneira singela de agir, que pode nos restituir, aos
poucos, a experiência de “ser corpo”.
A capacidade de ter ou perceber experiências corpóreas se inscreve
como uma vontade. Está, virtualmente, como uma potência no corpo; pode

7
Machado de Assis. Contos Definitivos / Machado de Assis. 3ª.ed.rev.ampl. Porto Alegre:
Novo Século, 2000; p.36.
8
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 44.
9
Em Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D’Água, 1997. p. 117-118.

16 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


PALUDO, L. A dança como um movimento...

ser atualizada e realizada. Talvez uma imagem gerada por um corpo em ato,
na arte, possa desencadear em outros corpos a vontade de ser/estar no
mundo de maneiras não usuais; o querer ter experiências “simples”, capa-
zes de devolver maior mobilidade ao corpo, como uma metáfora do próprio
existir... Utopia, sim, pois se crê que essa imagem possa funcionar como
um corte nas acomodações, ou no fluxo de discursos sobre o corpo, vigen-
tes na sociedade de consumo. A dança, no sentido do presente estudo, se
realiza no desejo de “falar diferente” dessas imagens de corpo cristalizadas,
empacotadas e terceirizadas... Pré-moldadas.
As reflexões feitas a partir de minha experiência com a dança, de
estar presente numa estrutura de uma obra de arte, me fizeram ter uma
consciência plena da finitude e dos limites do corpo. A obra em dança exis-
te, mas, a cada apresentação deve ser remontada, naquele instante! Parece
óbvio, mas é aterrorizante essa idéia. Quantas vezes tive de atuar em estado
de não tão perfeita saúde... E os estados de debilidade corporal sempre me
trazem a questão do limite e do fim. E cresce, paradoxalmente, o desejo da
expressão, no seu silêncio interior, no seu anseio de sair, em direção ao
outro e, enfim, se constituir.
No momento em que realizo uma dança meu corpo se estende até o
limiar do corpo de outrem... Pelo olho, sim. É assim que se traduz. Sendo
assim,

Sou uma gravura efêmera


Sólido-rarefeito
Sujeito
Quase objeto
Quase coisa
Disposto a ser
Tudo que vejo e experimento
Pela pele
Pelo olho
Por todos os orifícios.

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 17


SEÇÃO TEMÁTICA

Alguns autores e suas obras que auxiliaram a construir esse raciocí-


nio:

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas – Volume I. 7ª.ed. São Paulo:


Brasiliense, 1994. Texto O Narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov. [Para a questão de intercambiar a experiência.].
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do
corpo com o espírito. 2ª.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [O passado
operante.].
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Pau-
lo: Ed. 34, 1998 – (1ª reimpressão 2005). [O que atrai o meu olhar para as
coisas. A imagem crítica.].
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8ª.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. [A coisa em si e as designações.].
GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’água, 1997.
[Concepções magníficas sobre corpo em uma razão histórica e filosófica].
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2ª.ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1999. [Obra que me iniciou nos estudos sobre a
percepção].
___________ . O Visível e o Invisível. 4ª.ed. São Paulo: Perspectiva,
2003. [Nem tudo se nos apresenta aos olhos.].
LÉVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Editora 34, 2001. [Concei-
tos de virtual, atual, potencial e real; uma aula!]
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim Falou Zaratustra – um livro para to-
dos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. [Zaratustra,
o dançarino, em suas danças e observações de mundo. Sempre me faz
companhia].
ONFRAY, Michel. A escultura de si: a moral estética. Rio de Janeiro:
Rocco, 1995. [Leiam depois de Zaratustra].
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2004. [Leiam!]
____________ . Os cinco sentidos – Filosofia dos corpos misturados.
São Paulo: Bertrand Brasil, 2001. [Michel Serres nos propõe, na ritmicidade

18 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


PALUDO, L. A dança como um movimento...

de sua escrita, uma experiência corpórea].


SCHILDER, Paul. A imagem do corpo – As energias constitutivas da
Psique. 3ª.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [Sobre a constituição da
imagem corporal].

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 19


SEÇÃO TEMÁTICA

CORPO E PRODUÇÃO DE NARRATIVAS


NA FORMAÇÃO DOCENTE

Maira F. Brauner

A
s condições neurofuncionais possibilitam o funcionamento orgânico
e o movimento, porém não o determinam. Em termos lacanianos, é a
partir do desejo do Outro primordial que o bebê humano pode ser
inscrito na rede significante da filiação que o constitui e, portanto, deixar de
ser um simples “bife com olhos” para poder vir a ocupar um lugar na sua
história, como sujeito desejante com um corpo em movimento. Neste senti-
do, e segundo Molina, “o bebê tem de ser inserido nas histórias míticas das
linhagens familiares pelos psiquismos parentais; por isto é designado com
um nome e também significado em função dos personagens do mito familiar
que ele terá de encarnar. Encarnar estes significantes familiares, imaginári-
os e simbólicos, que conformam a trama da ficção familiar a qual está in-
gressando é o preço que tem de pagar para estar sujeitado e atingir o status
psíquico, além do somático”.
E, tamanha é a incompletude e prematuridade de um ser humano ao
nascer, que tal construção, segundo Molina, “tem de continuar a ser produzi-
da no psiquismo parental enquanto aquele continue o processo de desenvol-
vimento, pois eles terão de lhe sustentar projetos simbólicos assim como
lhe oferecer todos os suportes imaginários necessários para que o desenvol-
vimento se organize na sincronia e na diacronia”. Suportes imaginários que
possibilitem ao sujeito um processo de reconstrução das versões do si mes-
mo, com as necessárias ressignificações dos mitos familiares e fundadores
de sua história para, através dessa reconstrução, fabricar um lugar possível
para si no social.

1
Trata-se de uma pesquisa interdisciplinar, interdepartamental e interinstitucional, numa
parceria que está sendo proposta entre FAPA – Faculdades Porto Alegrenses e APPOA,
cuja coordenação está a cargo de Ângela Becker e Maira Brauner.

20 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


BRAUNER, M. F. Corpo e produção...

Tal é o dilema com o qual se enfrenta o adolescente na expectativa da


reconstrução destas versões: precisa romper com os ideais parentais para
abandonar o corpo da infância – um corpo assexuado –, e assumir um novo
corpo, uma nova voz, uma nova posição sexuada – um corpo próprio, com
suas próprias marcas, com seu estilo –; enfim, uma nova imagem de si: a de
um sujeito com um corpo sexuado e desejável, com o qual se fará ver, reco-
nhecer e re-apresentar ao outro: agora, não mais como o “Guguinha, da
mamãe!” – mas, sim, o “Guto” –, como os amigos o chamam. “Em casa tudo
bem, mas ... na rua... não me chama de Guga e muito menos de Guguinha,
tá?!”, disse-me, um dia, meu filho adolescente.
Pergunto, a partir daí, quais os suportes imaginários e simbólicos que
os adolescentes podem contar para organizar seus próprios projetos simbó-
licos? Se, por um lado e em relação ao espaço privado da família, é no
psiquismo parental que o pequeno sujeito encontra-se alienado, por outro e
em relação ao espaço público do social, em quais ancoradouros o sujeito
adolescente pode buscar significantes que lhe garantam sustentação? Pen-
sando a escola como uma instituição que pode representar essa passagem
do espaço privado ao espaço público, quais os suportes imaginários que
oferece para que os adolescentes possam construir novas versões do si
mesmo? Especialmente neste momento do desenvolvimento, no qual a alie-
nação do sujeito não é mais em relação ao outro semelhante – o casal
parental -, mas, sim, em relação ao Outro – a instância simbólica da cultura,
portanto, do social. Neste sentido, quais os projetos simbólicos que os pro-
fessores, na condição de representantes desse Outro, possuem em relação
aos seus alunos adolescentes, neste momento da contemporaneidade em
que a própria imagem de professor encontra-se numa situação de “menos-
valia”?
Nesta direção, quais os suportes imaginários que são ofertados aos
adolescentes –seja no campo da música, da escrita, da dança, do teatro,
das artes, dos esportes –, com os quais poderá contar, tanto em nível
institucional quanto social, permitindo-lhes uma inscrição e uma circulação
no social desde suas condições enunciativas e discursivas? Refiro-me a

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 21


SEÇÃO TEMÁTICA

suportes imaginários que possibilitem produções narrativas. Entendendo-se


por narrativa, a produção a posteriori, de um lugar de verdade, de uma predi-
ção que implica o sujeito nos rumos de sua história e de seu destino, pois,
desde a perspectiva freudiana, narrar é construir num segundo tempo, uma
versão do Outro, uma versão da própria história, de um lugar de origem des-
de onde se teria sido esperado num primeiro tempo. Produções que permi-
tem ao sujeito adolescente dar-se-a-ver e ser reconhecido pelo outro desde
sua singularidade.
O que vemos, muitas vezes, são enfrentamentos entre os ideais soci-
ais, os ideais da educação e os ideais...do adolescente? O que lemos, o que
escutamos e o que olhamos da e na produção do adolescente? Quais os
espaços, possibilidades e recursos simbólicos e imaginários que os adoles-
centes possuem para ressignificarem e reconstruírem novas versões do si
mesmo no social?
Didi-Huberman em um de seus livros intitulado “O que vemos, o que
nos olha”, lança o seguinte interrogante: “o que nos olha no que vemos?”
Tomando como ponto de partida para suas reflexões teóricas o univer-
so das artes plásticas, especificamente a arte minimalista, nesta obra, o
autor, que é um filósofo, estabelece uma concepção dialética da imagem,
tomando-a como o objeto do VER e do OLHAR, instaurando,
concomitantemente, uma diferença entre essas duas ações: de ver e de
olhar.
O autor, que é um leitor atento de Freud, associa neste trabalho sua
leitura também atenta sobre as concepções de Walter Benjamin, acerca dos
processos de construção e fabricação de sentidos, através da relação do
sujeito com a imagem. Se, por um lado, os críticos de arte e os próprios
artistas situam a arte como “algo que se vê, que se dá simplesmente a ver”,
impondo dessa maneira a especificidade de uma presença, Didi-Huberman
rompe com essa concepção, afirmando que, contrariamente, a imagem nos
impõe um movimento retroativo, assintótico, a partir do qual retorna a nós a
marca de uma ausência, de um vazio, de uma perda, ou poderíamos dizer,
de uma falta.

22 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


BRAUNER, M. F. Corpo e produção...

O autor assinala então, que não se trata de uma ação simplesmente


de VER, senão que de OLHAR, afirmando que “Olhar seria compreender que
a imagem é estruturada como um diante-dentro, [...] como um limiar intermi-
nável. Ou seja, que diante da imagem [...]todos estão como diante de uma
porta aberta dentro da qual não se pode passar, não se pode entrar (idem).”
Nesse sentido, podemos dizer que “olhar” faz borda... arma uma superfície...
cria um continente.
Didi-Huberman nos diz ainda que, diante de uma imagem, quando a
olhamos e nos sentimos olhados por ela, vivemos a sensação de uma “inqui-
etante estranheza”, sensação de incompletude, de que algo aí escapa, falta.
E, para pensar sobre essa sensação, se vale da concepção de “jogo”, utili-
zando o famoso jogo do carretel de Freud, ou seja, o Fort-Da, jogo da pre-
sença-ausência.
Partindo do pressuposto que o “jogo” supõe ou engendra um “poder
próprio de lugar”, o autor afirma que a partir dessa dialética do jogo visual o
que se opera diz respeito a uma dialética de alienação, ou seja, trata da
“imagem de uma coerção do sujeito a desaparecer ele próprio – trata-se de
um esvaziamento de lugares. A ausência, diz ele, é o que dá conteúdo aos
objetos”. Didi-Huberman nos diz que “ (...) é talvez no momento mesmo em
que se torna capaz de desaparecer ritmicamente, enquanto objeto visível,
que o carretel se torna uma imagem visual”.
Podemos inferir que é precisamente neste movimento de presença-
ausência que uma imagem se constitui e que essa dialética do jogo visual
institui a possibilidade de que os sujeitos possam se identificar com as posi-
ções em jogo: tanto na posição de quem olha, quanto na de quem é olhado.
Neste jogo se encontram tanto o bebê que olha e é olhado por sua mãe,
quanto sua mãe que olha e é olhada por seu bebê. Ou seja, estamos falando
da pulsão escópica, cuja função do olhar somente entra em funcionamento,
enquanto pulsão, no momento do encontro com o olhar desejante do outro
materno.
Neste sentido, o sujeito na adolescência vê-se novamente confronta-
do com uma demanda em relação ao olhar do outro, para reassegurar, sus-

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 23


SEÇÃO TEMÁTICA

tentar e testemunhar a perda do corpo da infância e o acesso a um corpo


sexuado, desejante e desejável, quando, após dedicar algumas horas diante
do espelho enfeitando-se, produzindo-se, formula frases do tipo: “mãe, eu tô
bonito?! “
Entretanto, não é essa imagem que está para ser testemunhada, mas
o que dela se representa. E, por mais que o adolescente ainda necessite de
um alicerce no olhar, no desejo e no psiquismo parental, é no grupo de pares
que vai buscar testemunho e sustentação, inclusive para poder dar conta da
passagem do espaço privado para o espaço público.
Seguindo Didi-Huberman, trata-se da dialética do jogo visual, num jogo
de presença-ausência e, portanto, de uma reatualização do Fort-Da, a partir
da qual o adolescente busca no social significantes que lhe possibilitem a
construção de novas versões do si mesmo, endereçando ao outro suas pro-
duções. Trata-se de um esvaziamento de lugares na relação com o outro
semelhante, na expectativa da fabricação do novo – aquele a partir do qual
possa fazer-se reconhecer. “Quem sou eu? Um emo ou um gótico? Um
maconheiro ou um engenheiro? Um chefe de gangue ou um chefe de família?
Uma bailarina ou uma princesa? Uma professora ou uma empresária? Uma
anoréxica ou uma gordinha gostosa! Um alienado ao outro semelhante ou
um alienado ao Outro?” Exercício mimético que, como afirma Benjamim,
não se trata da pura captura do idêntico, senão que da possibilidade de
reconhecer e produzir semelhanças. Walter Benjamin tenta pensar a seme-
lhança sempre a partir de uma certa independização entre elementos iguais,
procurando garantir a autonomia da figuração simbólica. Diferencia, portan-
to, a imagem da coisa em si, reafirmando o trabalho de construção, criação
e transformação necessários ao processo de significação e produção da
semelhança. Portanto, segundo ele, a função da atividade mimética seria a
de marcar a diferença, porém sem perder a semelhança, garantindo ao sujei-
to a possibilidade de uma determinada filiação.
Em outras palavras, através do exercício da atividade mimética dá-se
o início da construção ficcional e mítica de uma origem e de uma história
possíveis, a partir da captura dos traços unários, com os quais pode cons-

24 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


BRAUNER, M. F. Corpo e produção...

truir semelhanças com o um – o Outro, instância simbólica da cultura, para


ser inscrito na cadeia significante da filiação, porém garantindo diferenças
com o outro semelhante e, a partir deste lugar, do lugar da diferença, o
sujeito tem a possibilidade de saber algo sobre si mesmo. Atividade essa
que inicia na fase pré-especular do desenvolvimento do sujeito e continua a
acontecer na adolescência.
No projeto de pesquisa intitulado “Corpo, Arte e História: a importân-
cia da construção de narrativas na constituição de subjetividades e na inclu-
são social”, temos1 dois grandes objetivos. Por um lado, investigar funda-
mentos históricos, culturais e artísticos de três comunidades da cidade de
Porto Alegre, quais sejam: Maria da Conceição, Joana D’Arc e Chico Men-
des, a fim de transformá-los em narrativas orais, cênicas e/ou escritas, utili-
zadas pelos adolescentes de tais comunidades e que tais narrativas possibi-
litem seu reconhecimento pelas comunidades, bem como sua inclusão como
diversidades singulares dentro do laço social ao qual pertençam. Por outro
lado, oferecer um espaço alternativo de formação aos alunos dos cursos de
licenciaturas, desenvolvendo a capacidade de reconhecer as diversidades de
valores, padrões e comportamentos de cada comunidade e valorizá-las na
sua forma criativa, através de reflexões acerca da importância das singulari-
dades, dos processos de subjetivação, da reedição da dialética do jogo visu-
al na relação professor-aluno, dos efeitos assintóticos da imagem e, portan-
to, dos estranhamentos e inquietações que se produzem nesta relação.
Perceber a si mesmo e ao outro, é o primeiro momento do reconheci-
mento da diferença. Partir do pressuposto de que um sujeito pode agir, falar
e fazer escolhas é situá-lo em um lugar simbólico dentro do universo simbó-
lico da linguagem, que lhe permita ocupar a posição de sujeito desejante
capaz de iniciar o trabalho de construção de seus saberes e suas produções

1
Trata-se de uma pesquisa interdisciplinar, interdepartamental e interinstitucional, numa
parceria que está sendo proposta entre FAPA – Faculdades Porto Alegrenses e APPOA,
cuja coordenação está a cargo de Ângela Becker e Maira Brauner.

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 25


SEÇÃO TEMÁTICA

narrativas, fazendo-se valer de seu corpo, seus movimentos e seu desejo de


saber, para dar-se-a-ver ao outro, na condição de sujeito desejante. Conside-
ro estes elementos fundamentais na formação docente – um olhar do profes-
sor que crie continente, arme superfície e faça borda na produção e no reco-
nhecimento do sujeito adolescente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
COSTA, A.M.M. Corpo e escrita: relações entre memória e transmissão da expe-
riência. Rio de Janeiro: Redume Lumará, 2001.
______. A ficção do si mesmo. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 1998.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha, SP: Editora 34, 1998.
FREUD, S. [1905] Três ensaios sobre a sexualidade. In: ___. Obras Completas.
São Paulo: Imago, 1996. v. VII.
GAGNEBIN, J.M. Sete aulas sobre linguagem, memória e história, Rio de Janeiro:
Imago, 1997
JULIEN, P. Abandonarás teu pai e tua mãe, Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2000.
MOLINA, S. A representação da vida e da morte no laço mãe-bebê. Texto inédito.

26 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


ROSSINI, E. Movimento, ação e tarefa...

MOVIMENTO, AÇÃO E TAREFA NAS


PERFORMANCES DA SÉRIE
OBJETOS PARA AÇÃO

Élcio Rossini

O
“ bjetos para ação” é uma série de performances nas quais forma e
movimento do corpo interceptam-se. Esses trabalhos vivem da tran-
sitória efemeridade do instante, respiram e animam-se com o movi-
mento do corpo. Quando separados, objeto e movimento, o que podemos ver
são apenas potencialidades, latências.
A idéia de relacionar o movimento do corpo a um objeto inventado para
esse fim veio inicialmente através da observação e das experiências que eu
vinha fazendo com coisas que podem conter o ar. A partir daí surgiram os
objetos “Infláveis”. Feitos com tecidos finos e leves, esses objetos são reci-
pientes que podem reter o ar, mas o ar neles aprisionado escapa sempre e
para enchê-los o corpo do performer precisa movimentar-se, agitar os bra-
ços, deslocar-se pelo espaço. Conduzido pelo performer, o objeto engole o
ar e é ele, o ar, que dá ao objeto um corpo transitório que se ergue pleno no
espaço, para em seguida achatar-se contra o chão.
O movimento está em todas as coisas, os sólidos vibram em sua
ordem molecular, os pensamentos fluem em imagens. O movimento não
cessa. O ar toca minha pele, o som que vem de longe atravessa a sala e o
meu corpo, e segue seu trajeto. Meu pensamento não pára, imagens estão
sendo construídas e desconstruídas, às vezes, como agora, adquirem corpo
(?) pelo movimento dos meus dedos sobre o teclado, falsa ilusão. As ima-
gens mentais são mais rápidas que os dedos. As palavras, depois de im-
pressas no papel, adormecerão por um tempo. Talvez, em outro momento,
lidas, animem-se, provocando uma outra imaginação.
Corro e encho um recipiente de tecido com ar. O ar, aprisionado, atra-
vessa a superfície do tecido e dela escapa para o espaço aberto. Provoco
movimentos desnecessários que são acolhidos no tempo e no espaço dos

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 27


SEÇÃO TEMÁTICA

lugares. Por quê? Para satisfazer meu corpo que não se aquieta, que não
repousa nunca? Ar que entra e sai, sangue que corre pelas veias, suor que
brota dos poros. Talvez, para oferecer as imagens interiores que, assim como
o corpo, jamais interrompem seu fluxo, existência no mundo apenas para
serem tocadas pelas mãos, para serem vistas pelos olhos.
Para o teatro e a dança, o corpo é a origem do movimento, é a partir
do corpo que todo o espaço é articulado. O gesto que surge espontanea-
mente é repetido até a justa medida desejada. Mas a precisão planejada
para a repetição de todas as noites, repetição que a dança e o teatro quase
sempre exigem, não pode retirar da ação sua natureza efêmera, sua cons-
tante novidade. O movimento do corpo, por mais preciso e planejado, nunca
é exatamente o mesmo, está sempre se dissipando no tempo e no espaço,
para ser reinventado a cada nova apresentação.1
Para definir o movimento, Jacques Lecoq2 estabelece uma relação
entre movimento e imobilidade: “tudo que se move é reconhecido em função

1
O teatro e a dança sempre estiveram associados ao corpo, surgiram no corpo e através do
corpo. Mas, nas artes visuais, o corpo humano por muitos séculos figurou apenas como
algo para ser representado pela pintura e pela escultura. Rosselee Godberg, em seu livro
“Arte da performance”, apresenta um detalhado levantamento da história da arte da
performance. Os futuristas tiveram papel importante para o desenvolvimento de uma ex-
pressão que tem o corpo como suporte. Foi nos encontros promovidos pelos artistas defen-
sores do movimento que surgiram as primeiras experiências que dariam origem à arte da
performance. As seratas futuristas apresentações caóticas que, procurando redefinir os
valores artísticos vigentes, valiam-se dos mais diversos meios para propagarem suas idéi-
as. Participavam dessas apresentações poetas, pintores, atores, músicos. Defensores do
teatro de variedades, os futuristas trabalharam com conceitos como o distanciamento e o
teatro sintético. Não apenas os futuristas realizaram experiências no campo do que hoje
denominamos “arte da performance”, mas todos os movimentos de vanguarda que se segui-
ram desenvolveram práticas semelhantes.
No final dos anos 50 início dos anos 60, trabalhos individuais e em colaboração trarão para
arte o corpo não apenas como algo do mundo para ser representado, mas como instrumento
e veículo da obra de arte.
2
LECOQ, Jacques. “O movimento com M maiúsculo”. Disponível em www.grupotempo.com.br/
tex _lecmov.htm.

28 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


ROSSINI, E. Movimento, ação e tarefa...

de um elemento escolhido como referência imóvel”.3 Trabalhando a partir de


polaridades, Lecoq amplia sua definição do movimento, constatando que “o
movimento se dá nas relações de equilíbrio e desequilíbrio, em ligações com
as leis da gravidade”.4 A ruptura do equilíbrio produzida por duas forças em
conflito gera um movimento de deslocamento, portanto o movimento é com-
posto por seqüências de forças em oposição. Lecoq identifica na imobilidade
(ou ponto fixo) algo que ele considera de extrema importância para o teatro e
ilustra essa observação da seguinte maneira: “ao colocar um chapéu na
cabeça, a presença do chapéu será reforçada se eu o mantiver fixo no espa-
ço por um instante, e se o colocar em minha cabeça com um movimento que
engaje o corpo inteiro”.5
Rudolf Laban,6 que desenvolveu um detalhado estudo do movimento
do corpo humano, define o movimento a partir do espaço e de suas relações
com o corpo. Para Laban, o movimento pode ser definido como uma mudan-
ça de posição do corpo ou de suas partes no espaço e pode ser explicado,
parcialmente, segundo essas mudanças de posição no espaço. A união do
ponto inicial, onde o movimento começa, e aquele outro onde o movimento
termina, é a trajetória pela qual se desloca o movimento. Laban destaca que
espaço e movimento se determinam mutuamente. 7
Merleau-Ponty,8 em “Fenomenologia da percepção”, infere que a rela-
ção entre o corpo e o espaço se dá a partir do corpo: “para mim não haveria
espaço se eu não tivesse corpo.”9 Suas considerações sobre o movimento
irão relacionar tempo e espaço, visto que, para ele, o corpo “habita o espaço
(e também o tempo), porque o movimento não se contenta em submeter-se

3
Idem, ibidem, pág. 1.
4
Idem, ibidem, pág.1.
5
LECOQ, Jacques. Op. cit., pág 2.
6
LABAN, Rudolf. Dança educativa moderna. São Paulo: Ícone, 1990.
7
Idem, ibidem, pág. 85.
8
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
9
Idem, ibidem.

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 29


SEÇÃO TEMÁTICA

ao espaço e ao tempo, ele os assume ativamente, retoma-os em sua signi-


ficação original, que se esvai na banalidade das situações adquiridas.”10
A ação pode ser compreendida como um conjunto de movimentos
que são organizados com um objetivo determinado. A ação pode assumir
qualidades dramáticas. Uma ação dramática origina-se a partir de um confli-
to. Se estendo o braço para pegar um objeto qualquer e uma força oposta
retém meu movimento, surge, nesse momento, um impasse, e essas duas
forças contrárias disputam a direção definitiva do movimento. O que impede
meu braço de alcançar o objeto desejado pode ser uma força externa ao meu
corpo, por exemplo, um obstáculo físico, como um muro ou um outro corpo.
O obstáculo pode também ser uma força interior e subjetiva: uma dúvida é
suficiente para estancar o movimento anteriormente decidido. A utilização
da ação dramática trás, quase sempre, questões relativas ao personagem.
E o personagem não é um elemento pertinente à pesquisa com os “Objetos
para ação”, por isso, o drama cabível para estes objetos é aquele que surge
de uma relação concreta entre o objeto e o movimento do corpo do performer.
Quando investigo as ações corporais com os objetos “Infláveis”, por exem-
plo, os movimentos do corpo estão o tempo todo submetidos a forças con-
trárias a eles, forças vindas da massa de ar retida no objeto ou do peso do
tecido. Para encher de ar um objeto de tecido há um embate corporal, um
conflito necessário, mas que é totalmente resolvido nos termos objetivos do
movimento corporal. O “drama” que o corpo vive para resolver o problema de
encher e manter o ar dentro do objeto existe na medida das necessidades
reais que a tarefa propõe. O performer não enfatiza as oposições que os
movimentos do seu corpo enfrentam utilizando artifícios. Ele não simula ou
enfatiza o esforço valendo-se de recursos como a ampliação do gesto, as
expressões faciais ou o uso da pausa, por exemplo.11 A pausa existirá se o

10
Idem, ibidem.
11
A pausa pode funcionar como ênfase de uma ação passada ou precedente. A pausa
dramática é um recurso bastante utilizado no teatro.

30 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


ROSSINI, E. Movimento, ação e tarefa...

corpo assim exigir, como uma interrupção do esforço com o objetivo de rela-
xar a musculatura, recuperar as forças ou ainda para esperar o ar entrar no
objeto.12 Por isso venho utilizando a noção de tarefa13 para realizar as
performances com os “Objetos para ação”.
Mesclando diferentes linguagens como música, dança, teatro e vídeo,
a arte da performance é um híbrido no qual o desempenho corporal e a pre-
sença do performer são elementos fundamentais. Nos anos 60 e 70, os
artistas ligados à dança e às artes visuais, passaram a trabalhar em colabo-
ração propondo tarefas aos participantes de seus happenings e performances.
Esse procedimento tinha por objetivo não estruturar as performances sob os
mesmos princípios que a dança e o teatro vinham fazendo até então. A tarefa
é um procedimento que pode ser encontrado em muitos trabalhos de artistas
que hoje são referência para o estudo da performance.
A noção de tarefa colabora no sentido de enfatizar a trajetória objetiva
da ação, porque para sua realização o supérfluo deve ser descartado. A
tarefa não exige elementos decorativos ou qualquer tipo de acessórios; para

12
Quando o ar entra no objeto, sua velocidade, algumas vezes, é menor que a velocidade
dos movimentos corporais que provocaram sua entrada. Quando essa diferença de veloci-
dades acontece, é preciso esperar que o ar se distribua dentro do objeto de tecido, sendo
então necessária a pausa.
13
Uma série de experiências utilizando a noção de tarefa foram realizadas nos anos 60 e 70
em especial pelos Happenings de Alan Kapprow, Geroges Brechet, Wolf Wostel e pelos
artistas da Juddson Church. Encontramos inúmeros relatos de danças, performances e
happenings que utilizaram essa noção de diversas maneiras. Kapprow, Wostel e Brecht
propuseram tarefas para serem realizados por uma única pessoa ou convocando grandes
grupos de participantes. Já, Trischa Brawn propôs para seus bailarinos escaladas nas
paredes de edifícios.
As tarefas propostas pelos artistas das décadas de 60 e 70, em especial os artistas norte
americanos, apontavam, em sua maioria, para as questões surgidas na arte naqueles anos,
como por exemplo, o interesse pelas ações cotidianas e elementares do corpo, a inclusão
do acaso e ainda as questões envolvendo arte e vida.

C. da APPOA, Porto Alegre, n.154, janeiro 2007. 31


SEÇÃO TEMÁTICA

realizar a tarefa o performer precisa articular objeto, corpo e espaço de ma-


neira a atingir o objetivo proposto14.
Em minhas performances para encher objetos infláveis, por exemplo,
preciso capturar o ar que está em todo o espaço. Presença que não se deixa
ver, mas que tudo ocupa. É o movimento do meu corpo que conecta ar e
objeto. O corpo movimenta-se, desloca-se pelo espaço, desarruma o ar e
agita a serenidade invisível de sua presença. O corpo sente o ar, mas não o
vê, respira, mas não o vê. O corpo enche-se de ar e, motivado pela vida que
dele extrai, agita-se, desloca-se e leva consigo pelo espaço esse objeto
vazio. Essa forma murcha engole a substância que a revela. Cheia de ar, a
forma deixa-se ver por inteiro.
O corpo, assim como a forma manipulada, está sempre enchendo e
esvaziando. O corpo está todo no espaço e é a partir dele que o espaço
multiplica suas direções. O corpo, ligando essas duas naturezas, objeto e
ar, desdobra cores e formas. Amalgamados, objeto, ar, corpo, movimento e
espaço encontram-se no tempo, propondo ritmos e durações.

14
A formulação de uma tarefa, na maior parte das vezes, não delimita “como” a tarefa deve
ser realizada. Não esclarecendo o “como”, a trajetória da ação torna-se matéria maleável,
podendo adquirir modulações que estarão de acordo com a experiência e a preparação
corporal do performer. A “interpretação” da tarefa terá sem dúvida escolhas subjetivas, que
contudo não estarão subordinadas a uma lógica de representação e sim às capacidades do
corpo do performer.

32 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


LACAN, J. O seminário - Livro XI...

V
TIQUÊ E AUTÔMATON *

Jacques Lacan
Tradução: Claudia Berliner

A psicanálise não é um idealismo.


O real como trauma.
Teoria do sonho e do despertar.
A consciência e a representação
Deus é inconsciente.
O objeto pequeno a no fort-da.

V
ou prosseguir hoje com o exame do conceito de repetição, tal como
aparece no discurso de Freud e na experiência da psicanálise.
Pretendo frisar o fato de que, à primeira vista, a psicanálise tem o
feitio apropriado para nos conduzir a um idealismo.
Deus sabe o quanto a acusaram disso – reduz a experiência, dizem
alguns, que nos incita a encontrar nos apoios duros do conflito, da luta, até
da exploração do homem pelo homem, as razões de nossas deficiências –,
ela conduz a uma ontologia das tendências, as quais considera primitivas,
internas, todas já dadas pela condição do sujeito.
Basta nos reportarmos ao traçado dessa experiência desde seus pri-
meiros passos para ver que, ao contrário, nada nela permite nos resolvermos
em um aforismo tal como a vida é sonho. Não há práxis mais orientada para
o que, no coração da experiência, é o núcleo do real do que a análise.

1
Esse real, onde encontramos com ele? De fato, é de um encontro, de
um encontro essencial, que se trata no que a psicanálise descobriu – de um

*
Tradução da aula do Seminário “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 33


SEÇÃO DEBATES

encontro marcado ao qual somos sempre chamados com um real que


escapole.1 Foi por isso que pus no quadro algumas palavras que hoje nos
servem de ponto de referência para o que queremos expor.
Primeiro, a tiquê, que tomamos emprestado, como lhes disse a últi-
ma vez, do vocabulário de Aristóteles na busca de sua pesquisa sobre a
causa. Traduzimo-lo por o encontro com o real2. O real está mais além do
autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos que o princípio do
prazer nos impõe.3 O real é o que sempre jaz por trás do autômaton4, e toda
a investigação de Freud evidencia que é isso o que o preocupa.
Recordem o desenvolvimento, tão central para nós, do Homem dos
lobos, para entender qual é a verdadeira preocupação de Freud à medida que
a função da fantasia se revela para ele. Empenha-se, de modo quase angus-
tiado, em indagar qual é o encontro primeiro, qual o real que podemos afirmar
estar por trás da fantasia. Ao longo de toda aquela análise, sentimos que
esse real arrasta consigo o sujeito, e quase a força5, dirigindo a tal ponto a
investigação que podemos hoje nos perguntar se essa febre, essa presença,
esse desejo de Freud não foi o que, no seu paciente, condicionou o acidente
tardio de sua psicose.
Assim, não cabe confundir a repetição nem com o retorno dos signos,
nem com a reprodução ou a modulação pela conduta de uma espécie de
rememoração atuada. Algo de sua verdadeira função, de sua verdadeira na-
tureza nos é sempre roubado [volé] na análise por algo que temos de reco-
nhecer como sendo uma debilidade na conceituação que os analistas fize-

1
Estenografia: É de fato da estrutura desse encontro, da função nodal, da função repetitiva
de um encontro essencial, de um encontro marcado ao qual somos sempre chamados com
um real que escapole, que se trata em tudo o que a psicanálise descobriu.
2
Estenografia: esta frase não consta da estenografia.
3
Estenografia: Além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência, [ele] designa o que
[nos] impõe o princípio do prazer.
4
Estenografia: É isso que sempre jaz por trás, e toda a investigação de Freud evidencia que
é isso o que o preocupa.
5
Estenografia: arrastando consigo o sujeito e pressionando-o.

34 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


LACAN, J. O seminário - Livro XI...

ram da transferência, identificando-a de certo modo à repetição.6 Ora, é jus-


tamente nesse ponto que cabe fazer a distinção.
Freud expressou a relação com o real que ocorre na transferência
dizendo que nada pode ser apreendido in effigie, in ausentia – contudo, a
transferência não nos é dada como efígie e relação com a ausência? Só
conseguiremos deslindar essa ambigüidade da realidade em questão na trans-
ferência a partir da função do real na repetição.
De fato, o que se repete é sempre algo que se produz – a expressão
diz bem sua relação com a tiquê – como que por acaso. É pelo que nós,
analistas, nunca nos deixamos enganar, por princípio.7 Ao menos afirmamos
sempre que não devemos nos deixar pegar quando o sujeito nos diz que,
naquele dia, aconteceu uma coisa que o impediu de realizar sua vontade,
qual seja, vir à sessão. Não convém tomar as coisas ao pé da declaração do
sujeito – tanto mais que aquilo que nos interessa é precisamente esse trope-
ção, essa fisga8 que encontramos a cada instante. É esse o modo de apre-
ensão por excelência que rege nosso novo deciframento das relações do
sujeito com o que faz sua condição.
A função da tiquê, do real como encontro – o encontro na medida em
que pode ser falhado, em que é essencialmente encontro falhado – apre-
sentou-se na história da psicanálise primeiro sob uma forma que, por si só,
já basta para despertar nossa atenção: a do trauma.

6
Esta frase é a da estenografia. Versão Miller: A repetição é algo que, por sua verdadeira
natureza, está sempre velado [voilé] na análise, por causa da identificação na conceituação
dos analistas da repetição e da transferência.
7
Estenografia: O que se repete, como de fato nos mostra toda a experiência da análise, é
sempre algo cuja relação com a tiquê nos é suficientemente designada pela expressão que
melhor figura aquilo diante de quê, a todo instante, nos vemos detidos e que nos retém, de
onde quer que isso aparentemente venha na experiência, não só de dentro, mas também de
fora: o que se produz “como que por acaso”. Pelo que nós, analista, nunca nos deixamos,
por princípio, digamos, enganar (ou: no que, nós, analista, nunca caímos, por princípio,
digamos, feito patinhos.).
8
A palavra em francês é accroc, que é um rasgão feito por um prego, um espinho; aquilo que
engancha e provoca o rasgão; e, em sentido figurado, o que retarda, impede a conclusão de
um negócio, de um projeto, em suma, um empecilho. Poderíamos dizer que é algo que fisga
e rasga, idéias contidas na palavra fisga.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 35


SEÇÃO DEBATES

Não é notável que, na origem da experiência analítica, o real tenha se


apresentado sob a forma do que há nele de inassimilável, sob a forma do
trauma, determinando tudo o que vem depois e impondo-lhe uma origem
aparentemente acidental?9 Estamos aí no cerne do que nos possibilita com-
preender o caráter radical da noção conflituosa introduzida pela oposição do
princípio de prazer ao princípio de realidade – motivo pelo qual não se pode
conceber o princípio de realidade como tendo, por sua ascendência, a última
palavra.
De fato, concebe-se o trauma como devendo ser tamponado pela
homeostase subjetivante que orienta todo o funcionamento definido pelo prin-
cípio do prazer. O que nossa experiência nos coloca então como problema é
que é justamente no seio dos processos primários que vemos conservada a
insistência do trauma em se fazer lembrar. De fato, o trauma reaparece ali, e
muito freqüentemente com o rosto descoberto. Como pode o sonho, porta-
dor do desejo do sujeito, produzir o que faz ressurgir repetidamente o trauma
– se não seu próprio rosto, ao menos a tela por trás da qual o trauma ainda
está indicado?
Concluamos que o sistema da realidade, por mais extensamente que
se desenvolva, deixa prisioneira das redes do princípio do prazer uma parte
essencial do que é indiscutivelmente real.
É essa realidade, por assim dizer, que temos de sondar, realidade
cuja presença supomos exigível para que o motor do desenvolvimento, tal
como Melanie Klein por exemplo o concebe, não seja redutível ao que cha-
mei agora há pouco a vida é sonho.10

9
Estenografia: determinando tudo o que vem depois como algo que impõe ao desenvolvi-
mento uma origem aparentemente acidental.
10
Estenografia: É isso que temos de sondar, essa “realidade” por assim dizer, que represen-
ta para nós sob uma forma capital essa presença supostamente exigível – para que o
desenvolvimento, o encadeamento, o desencaixe, por assim dizer, da teoria mais recente da
análise (aquela que Melanie Klein por exemplo concebe como dando o movimento do desen-
volvimento) não seja redutível ao que chamei agora há pouco “a vida é sonho”.

36 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


LACAN, J. O seminário - Livro XI...

A essa exigência correspondem os pontos radicais no real que cha-


mei de encontros e que nos fazem conceber a realidade como unterlegt,
untertragen11, o que, com a magnífica ambigüidade que essa palavra tem na
língua francesa, poderia ser traduzido por souffrance12. A realidade se apre-
senta em suspenso, à espera. E o Zwang, a compulsão, que Freud define
pela Wiederholung [repetição], rege os próprios rodeios do processo primá-
rio.
O processo primário – que não é outro senão aquilo que tentei definir
nas últimas lições sob a forma do inconsciente – temos uma vez mais de
apreendê-lo na sua experiência de ruptura, entre percepção e consciência,
nesse lugar, como lhes disse, intemporal, que obriga a formular o que Freud
chama, numa homenagem a Fechner, die Idee einer anderer Lokalität – [a
idéia de] uma outra localidade, um outro espaço, uma outra cena, o entre
percepção e consciência.

2
Apreender esse processo primário é algo que podemos fazer a todo
instante.
Outro dia, fui despertado de uma soneca em que buscava descanso
por algo que batia à minha porta já antes de eu acordar. Porque13 com aque-
las batidas apressadas eu já tinha formado um sonho, um sonho que mani-
festava para mim algo diferente daquelas batidas. E quando acordei, se to-
mei consciência das batidas – dessa percepção – foi por ter reconstituído
em torno delas toda a minha representação. Sei que estou ali, a que horas

11
Unterlegen, literalmente pôr debaixo, pôr em baixo, calçar; untertragen, literalmente carre-
gar por baixo, suportar, suster.
12
Do latim sufferre, sofrer, sustentar, suster. O Dicionário Aurélio consigna para “sofrer” a
acepção de padecer com paciência. Em francês, a expressão “en souffrance” tem sentido
de sofrimento, mas também de algo que está à espera de algo indeterminado, pendente, em
suspenso. Uma carta (lettre) en souffrance é aquela que fica na posta-restante à espera de
ser buscada.
13
Este “porque” não está na estenografia, a frase começa em “Com aquelas batidas”.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 37


SEÇÃO DEBATES

adormeci e o que buscava com aquele sono. Quando o barulho da batida


chega, não à minha percepção, mas à minha consciência, é porque minha
consciência se reconstituiu em torno dessa representação – porque sei que
estou sob o toque de despertar, que fui knocked [up]14.
Só que nesse caso, preciso me indagar sobre o que eu sou naquele
momento – no instante, tão imediatamente antes e tão separado, que é
aquele em que comecei a sonhar sob essa batida que foi, aparentemente, o
que me despertou. Eu sou, que eu saiba, antes que eu desperte (avant que
je ne me réveille), – esse ne dito expletivo, já em algum de meus escritos
designado, é o próprio modo de presença desse eu sou de antes do desper-
tar.15 Ele não é nada expletivo, é antes a expressão de minha impleção/
impleância [impléance]16, cada vez que ela tem de se manifestar. A língua, a
língua francesa define-o bem no ato de seu emprego. Digo aurez-vous fini
avant qu’il ne vienne? [Será que você não acaba antes de ele chegar?] quan-
do me importa que você tenha acabado, e Deus queira que ele não venha
antes. Digo passerez-vous, avant qu’il vienne? [Você passa antes de ele
chegar?], pois, quando ele chegar, você já não estará mais aqui.
Notem para onde os estou conduzindo – para a simetria dessa estru-
tura que me faz, depois do toque de despertar, aparentemente só poder me
sustentar numa relação com minha representação, a qual, aparentemente,
faz de mim [moi] tão-somente consciência. Reflexo, de certa forma, involutivo,
no sentido de que, na minha consciência, é minha representação que recu-
pero.
Isso é tudo? Freud insistiu muito na necessidade – ele nunca o fez –
de retomar a função da consciência. Talvez possamos entender melhor de

14
Batido, despertado por um chamado (gíria inglesa).
15
Estenografia: Nesse momento, eu sou, que eu saiba, antes que eu desperte (avant que je
ne me réveille), esse “ne” expletivo, dito expletivo, que já em algum de meus escritos
designava o modo mesmo de presença desse “eu sou” de antes do despertar.
16
Na estenografia há uma nota de rodapé nesse trecho, em que há também uma diferença
quase homofônica: a expleção [explétion] de minha impleância: cf. Damourette e Pichon.
[Autores de Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la langue française (1911-
1940)].

38 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


LACAN, J. O seminário - Livro XI...

que se trata ao entender o que há ali que motiva o surgimento da realidade


representada – a saber, o fenômeno, a distância, a hiância mesma que o
despertar é.
Para ressaltá-lo, voltemos ao sonho – também todo ele construído
sobre o barulho – que todos vocês tiveram o tempo de reler na Interpretação
dos sonhos. Lembrem-se do pobre pai, que foi procurar, no quarto vizinho
[àquele] onde repousa seu filho morto, algum repouso – deixando o filho sob
a guarda, nos diz o texto, de um ancião, de um outro velho – e que se vê
atingido, despertado por algo que é o quê? Não somente a realidade, o cho-
que, o knocking de um barulho feito para chamá-lo de volta ao real, mas algo
que traduz, no seu sonho precisamente, a quase identidade do que aconte-
ce, a própria realidade de um círio caído incendiando o leito onde repousa
seu filho.
Eis aí algo que parece pouco indicado para confirmar a tese de Freud
na Traumdeutung de que o sonho é a realização de um desejo.
Vemos surgir aí, quase que pela primeira vez na Traumdeutung, uma
função do sonho que é aparentemente secundária: aí, o sonho só satisfaz a
necessidade de prolongar o sono. Então, o que Freud quer dizer ao pôr ali,
nesse lugar, precisamente esse sonho, e ressaltando que ele é em si mes-
mo a plena confirmação de sua tese sobre o sonho?
Se a função do sonho é prolongar o sono, se o sonho, afinal, pode se
aproximar tanto da realidade que o provoca, não se pode dizer que a essa
realidade se poderia responder sem sair do sono? Existem atividades
sonambúlicas, afinal. A pergunta que se coloca e que, de resto, todas as
indicações anteriores de Freud nos permitem formular, é O que desperta?
Não seria, no sonho, uma outra realidade? – realidade que Freud nos descre-
ve assim: Dass das Kind an seinem Bett steht, que o filho está ao lado de
sua cama, ihn am Arme fasst, pega-o pelo braço e lhe murmura em tom de
censura, und ihm vorwurfsvoll zuraunt: Vater, siehst du denn nicht, Pai, você
não vê, dass ich verbrenne? que estou queimando?
Não há mais realidade nessa mensagem que no barulho por meio do
qual o pai também identifica a estranha realidade do que ocorre na peça

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 39


SEÇÃO DEBATES

vizinha? Por essas palavras, não passa a realidade faltosa que causou a
morte da criança? O próprio Freud não nos disse que nessa frase devemos
reconhecer algo que, para o pai, essa frase, essas palavras perpetuam, pa-
lavras para sempre separadas do filho morto (e que lhe terão sido ditas,
supõe Freud, “talvez por causa da febre”, quem sabe?)17, no pai perpetuam a
pergunta, a angústia, o remorso de que aquele que ele pôs perto do leito do
filho para zelar, o ancião, talvez não esteja “à altura de cumprir a contento
sua tarefa”, die Besorgnis dass der greise Wächter seiner Aufgabe nicht
gewachsen sein dürfte, talvez não esteja à altura de sua tarefa. De fato, ele
pegou no sono.
Essa frase dita sobre a febre não remete vocês ao que, numa de
minhas últimas falas18, chamei a causa da febre? A ação (por mais premente
que seja ao que tudo indica) de acudir ao que está acontecendo na peça ao
lado, não será talvez também sentida como sendo de todo modo, agora,
tarde demais relativamente àquilo de que se trata, a realidade psíquica que
se manifesta na frase pronunciada? O sonho perseguido não é essencial-
mente, por assim dizer, a homenagem à realidade faltosa, a realidade que já
não pode se dar exceto repetindo-se indefinidamente, em um indefinidamen-
te nunca alcançado despertar? Que encontro pode haver doravante com esse
ser para sempre inerte – mesmo que seja devorado pelas chamas – senão
aquele que se passa justamente no momento em que a chama, por aciden-
te, como que por acaso, vem ao seu encontro? Onde está ela, a realidade,
nesse acidente, senão que algo se repete19, mais fatal em suma, por meio
da realidade – de uma realidade onde aquele que estava encarregado de

17
Esta última frase é da estenografia. Na versão de Miller há algo que perpetua as palavras,
ao passo que na estenografia, são as palavras que perpetuam – é a diferença, em francês,
entre um qui (reconnaître ce qui perpétue pour le père ces mots) e um que (reconnaître ce
que, pour le père, perpétue cette phrase, ces mots).
18
Lição 2 deste seminário.
19
Miller: sinon qu’il se répète quelque chose = senão que algo se repete; estenografia: sinon
qu’il [l’accident] répète quelque chose – senão que ele [o acidente] repete algo.

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LACAN, J. O seminário - Livro XI...

velar junto ao corpo continua adormecido, aliás mesmo quando o pai apare-
ce depois de ter despertado.
Assim o encontro, sempre falhado, se deu entre o sonho e o desper-
tar, entre aquele que ainda dorme e de cujo sonho não ficaremos sabendo, e
aquele que só sonhou para não acordar.
Se Freud maravilhado vê nisso a confirmação da teoria do desejo é
porque se trata de algo diferente de uma fantasia preenchendo um anseio.
Não é nem mesmo que no sonho se afirme que seu filho ainda vive,
mas que essa visão atroz designe um além que nele se faz ouvir. É que o
desejo ali se presentifique, da perda imajada no ponto mais cruel do objeto.20
É que no sonho se dê o encontro verdadeiramente único. Depois disso, o
desejo não pode subsistir exceto como luto, depois disso, a realidade não
tem mais sentido do que limpeza de escória [opção de tradução: não tem
outro sentido senão a limpeza da escória].21 Somente um rito, um ato sem-
pre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável, pois ninguém pode
dizer o que é a morte de um filho, exceto o pai enquanto pai –, isto é, ne-
nhum ser consciente.
Pois a verdadeira fórmula do ateísmo não é que Deus está morto (mes-
mo quando funda a origem da função do pai no seu assassinato, Freud está
protegendo o pai), a verdadeira fórmula do ateísmo é que Deus é inconscien-
te.
22
O despertar nos mostra o acordar da consciência do sujeito na re-
presentação do que aconteceu – o deplorável acidente da realidade, ao qual

20
Frase de difícil interpretação, recebeu muitas traduções. Original: C’est que le désir s’y
présentifie, de la perte imagée au point le plus cruel de l’objet. Traduções: En él, el deseo se
presentifica en la pérdida del objeto, ilustrada en su punto más cruel [Paidós, Mauri e Sucre];
O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto [Jorge Zahar,
Magno]; Desire manifests itself in the dream by the loss expressed in an image at the most
cruel point of the object. [??, encontrado na internet].
21
Esta última frase não consta da versão Miller. Todo este parágrafo foi traduzido diretamen-
te da estenografia.
22
Estenografia (salto em Miller): Mas o que se revela, é preciso buscá-lo, vê-lo na realidade
antes do despertar.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 41


SEÇÃO DEBATES

nada mais resta senão acudir! Mas, que acidente foi este, quando todo o
mundo dormia, aquele que quis descansar um pouco, aquele que não conse-
guiu manter a vigília e aquele sobre quem, sem dúvida, diante de seu leito,
alguém bem intencionado deve ter dito: Ele parece estar dormindo, quando a
única coisa que sabemos é que, nesse mundo todo ele adormecido, somen-
te a voz se fez ouvir: Pai, não vê que estou queimando? A própria frase é um
facho – por si só, põe fogo onde cai – e não vemos o que queima, pois a
chama nos cega para o fato de que o fogo pega no Unterlegt, no Untertragen,
no real.23
É bem isso o que nos leva a reconhecer nessa frase do sonho desta-
cada do pai em seu sofrimento [souffrance] o avesso do que será, quando
ele acordar, sua consciência, e a nos perguntar qual o correlativo, no sonho,
da representação. Essa questão é tanto mais impressionante por vemos
aqui o sonho verdadeiramente como o avesso da representação – é a imagética
do sonho, e a oportunidade de sublinharmos o que Freud, quando fala do
inconsciente, designa como sendo aquilo que o determina essencialmente,
o Vorstellungsrepräsentanz. O que quer dizer, não, como traduziram de
maneira monótona, o representante representativo, mas o lugar-tentente
[tenant-lieu] da representação24. Veremos sua função em seguida.
Espero ter conseguido fazer vocês captarem o que, do encontro como
encontro para sempre falhado, é nodal aqui e realmente sustenta, no texto
de Freud, o que lhe parece ser absolutamente exemplar nesse sonho.
O lugar do real, que vai do trauma à fantasia – na medida em que a
fantasia nunca é mais que a tela que dissimula algo totalmente primeiro e

23
Estenografia: A própria frase é um facho. Por si só, põe [porte] fogo onde cai, não vemos
o que queima, pois a chama cega para o que ele carrega [porte], para o unterlegt, para o
υποκειµενον (upokeimenon), para o real. É bem isso o que nos leva [porte] a reconhecer
nessa frase, nessa peça destacada do pai em seu sofrimento [souffrance]...
24
Outras possibilidades: o que faz as vezes/ o representante/ a representância / o suplente/
o substituto/ o deputado. Vide verbete “representação” de Josiane Thomas-Quilichini no
Dicionário de Psicanálise Freud & Lacan, vol. 2, trad. Marcos do Rio Teixeira, Ed. Ágalma.

42 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


LACAN, J. O seminário - Livro XI...

determinante na função da repetição25 –, é isso o que temos de identificar


agora. Eis aí, de resto, o que, para nós, explica tanto a ambigüidade da
função do despertar quanto da função do real nesse despertar. O real pode
ser representado pelo acidente, pelo barulhinho, pelo pouco-de-realidade que
prova que não estamos sonhando. Por outro lado, porém, essa realidade não
é pouca, pois o que nos desperta é a outra realidade escondida atrás da falta
do que ocupa o lugar de representação – é o Trieb, nos diz Freud.
Cuidado! Ainda não dissemos o que é esse Trieb – e se, por falta de
representação, ele não comparece, esse Trieb de que se trata, podemos ter
de considerá-lo como não sendo mais que Trieb por vir.
Como não ver que o despertar tem duplo sentido – que o despertar
que nos ressitua numa realidade constituída e representada é uma reitera-
ção inútil? *25 É para além do sonho que devemos buscar o real – naquilo que
o sonho encobriu, envolveu, escondeu por trás da falta da representação, da
qual só existe lá um lugar-tenente. Esse real, mais que qualquer outro, é que
comanda nossas atividades, e é a psicanálise que o designa para nós.

3
Freud encontra assim a solução para o problema que, para o mais
arguto dos questionadores da alma antes dele – Kierkegaard – já se centrava
na repetição26.

25
Estenografia: Esse ponto do lugar do real que vai do trauma à fantasia, na medida em que
a fantasia nunca é outra coisa senão a tela que o dissimula, tem algo de totalmente primeiro,
determinante na função da repetição.
*25
A expressão que Lacan usa – fait double emploi –, foi traduzida literalmente em várias
traduções como “tem duplo emprego” ou equivalentes, mas é uma expressão dicionarizada
com sentido claro. Cf. Dictionnaire de l’Académie française: No domínio da contabilidade
– Double emploi, o que foi empregado, registrado duas vezes na coluna de entradas ou de
saídas numa contabilidade. Diz-se também, na linguagem corrente, de tudo o que se repete
inutilmente: Cela fait double emploi.
26
Kierkegaard, S. La reprise. Tradução, introdução e notas de Nelly Viallaneix. Paris:
Flammarion, 1990. Mais informações: http://www.ifen.com.br/
index.php?arq=artigo2001leo.htm ; http://sorenkierkegaard.org/kw6b.htm

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 43


SEÇÃO DEBATES

Convido vocês a relerem o texto que leva esse título [A Repetição],


deslumbrante em sua leveza e ironia, verdadeiramente mozartiano em seu
modo donjuanesco de abolir as miragens do amor. Com acuidade, sem répli-
ca possível, é ressaltado o traço de que, em seu amor, o jovem que
Kierkegaard retrata de modo a um só tempo comovente e zombeteiro, esse
jovem só a si se dirige por intermédio da memória. Com efeito, não há aí algo
mais profundo que a fórmula da Rochefoucauld, segundo a qual poucos seri-
am os homens que experimentariam o amor se não lhes tivessem explicado
seus modos e caminhos? Sim, mas quem começou? E tudo não começa
essencialmente pelo engano do primeiro a quem se endereçava o encanta-
mento do amor, que fez esse encantamento passar por exaltação do outro,
fazendo-se prisioneiro dessa exaltação, da perda de fôlego, que, com o ou-
tro, criou a mais falsa das demandas, a da satisfação narcísica, seja ela a do
ideal do eu, ou do eu que se toma por ideal?27
Tal como em Kierkegaard, em Freud não se trata de nenhuma repeti-
ção assentada no natural, de nenhum retorno da necessidade. O retorno da
necessidade visa ao consumo posto a serviço do apetite. A repetição pede o
novo. Volta-se para o lúdico, que faz desse novo sua dimensão – isso, Freud
também nos diz no texto do capítulo cuja referência lhes dei da última vez.
Tudo o que, na repetição, varia, se modula, não é mais que alienação
de seu sentido28. O adulto, ou até a criança mais crescida, exigem o novo
em suas atividades, no jogo. Mas esse deslizamento vela o verdadeiro se-
gredo do lúdico, a saber, a diversidade mais radical constituída pela repeti-
ção em si. Vejam-na na criança, em seu primeiro movimento, no momento
em que se forma como ser humano, manifestar-se como exigência de que a

27
Estenografia: Sim, mas quem começou? E tudo não começa essencialmente pelo engano?
A quem se endereçaria o primeiro que, dizendo o encantamento do amor, fez passar esse
encantamento por exaltação do outro, fazendo-se prisioneiro dessa exaltação até perder o
fôlego, aquele que com a oferta criou a mais falsa das demandas, a da satisfação narcísica,
seja ela a do ideal do eu ou do eu que se toma por ideal?
28
Estenografia: ... alienação de sua essência. [Essa diferença de escuta deve-se à homofonia:
de son sens/de son essence.]

44 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


LACAN, J. O seminário - Livro XI...

história contada seja sempre a mesma, que sua realização narrada seja
ritualizada, isto é, textualmente a mesma. Essa exigência de uma consis-
tência distinta dos detalhes de seu relato significa que a realização do
significante nunca conseguirá ser suficientemente cuidadosa em sua
memorização para chegar a designar a primazia da significância como tal.
Logo, desenvolvê-la variando as significações é aparentemente evadir-se dis-
so. Essa variação faz esquecer a meta da significância transformando seu
ato em jogo e proporcionando-lhe felizes descargas do ponto de vista do
princípio do prazer.
Embora Freud, ao perceber a repetição na brincadeira de seu neto, no
fort-da reiterado, sublinhe que a criança abafa o efeito do desaparecimento
da mãe fazendo-se o agente deste, esse fenômeno é secundário. Como
sublinha Wallon, não é de primeiro que a criança vigia a porta por onde a mãe
saiu, marcando assim que espera revê-la ali; antes disso, é para o próprio
ponto em que ela o deixou, para o ponto próximo que ela abandonou perto
dele que ele dirige sua vigilância. A hiância introduzida pela ausência dese-
nhada, e ainda aberta, fica sendo causa de um traçado centrífugo onde o que
cai não é o outro enquanto figura onde o sujeito se projeta, mas esse carretel
ligado a ele próprio por um fio que ele segura – onde se exprime o que dele
se destaca nessa experiência, a automutilação, a partir da qual a ordem da
significância irá se pôr em perspectiva. Pois o jogo do carretel é a resposta
do sujeito a o que a ausência da mãe criou na fronteira de seu território, na
borda de seu berço, ou seja, um fosso, em torno do qual nada mais resta a
fazer senão o jogo do salto.
Esse carretel não é a mãe reduzida a uma bolinha por meio de não sei
que jogo digno dos jivaros29 – é uma coisinha do sujeito que se destaca
embora continue sendo dele, continue sendo segurada. Cabe dizer, imitando
Aristóteles, que o homem pensa com seu objeto30. É com seu objeto que a

29
Indígenas sul-americanos que praticavam a redução de cabeças.
30
Estenografia: ... o homem pensa com sua alma, é com ela que salta as fronteiras...

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 45


SEÇÃO DEBATES

criança salta as fronteiras de seu território transformado em poço e que co-


meça a pronunciar as palavras mágicas. Se for verdade que o significante é
a primeira marca do sujeito, como não reconhecer aqui – pelo simples fato
de que esse jogo vem acompanhado de uma das primeiras oposições31 que
aparecem – que o objeto a que essa oposição se aplica em ato, o carretel, é
ali que devemos designar o sujeito.32 A esse objeto daremos posteriormente
seu nome na álgebra lacaniana – o pequeno a.
O conjunto da atividade simboliza a repetição, mas não, de modo
algum, a de uma necessidade que pediria o retorno da mãe e que se mani-
festaria muito simplesmente pelo choro. É a repetição da partida da mãe
como causa de uma Spaltung no sujeito – superada pelo jogo alternante,33
fort-da, que é um aqui ou lá, e que só visa, em sua alternância, ser fort de um
da e da de um fort. O que ele visa é essencialmente o que não está lá,
enquanto representando – pois é o próprio jogo que é o Repräsentanz da
Vorstellung. Que acontecerá com a Vorstellung quando, de novo, esse
Repräsentanz da mãe – no seu desenho marcado pelos toques, pelos
guaches do desejo – vier a faltar?
Eu também vi, com meus próprios olhos, abertos pela adivinhação
materna, como a criança, traumatizada por minha partida apesar de seu
apelo precocemente esboçado com a voz e não mais renovado por meses
inteiros, eu a vi, muito tempo depois, ao pegar essa mesma criança no colo,
eu a vi deixar sua cabeça pender sobre meu ombro para cair no sono, o sono
que é o único capaz de lhe devolver o acesso ao significante vivo que eu era
desde a data do trauma.

31
Na edição Jorge Zahar, há um erro nesta passagem: no lugar de “uma das primeiras
oposições” está “uma das primeiras aparições”.
32
Estenografia: Pois, se for verdade que o significante é a primeira marca do sujeito, como
não aplicá-lo aqui e pelo simples fato de que esse jogo vem acompanhado do surgimento de
uma das primeiras oposições fonêmicas que escandem seu ato involutivo (isto é, de
alternâncias restitutivas), como não reconhecer que (aquilo a que essa oposição se aplica
em ato) é ali que devemos designar o sujeito! – Nomeadamente no carretel a que, posterior-
mente, daremos seu nome na álgebra lacaniana com o termo lacaniano a.
33
Estenografia: [oração omitida]: ... , um vel que é um velle, [vel =ou; velle = querer].

46 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


LACAN, J. O seminário - Livro XI...

Vocês verão que esse desenho que hoje lhes fiz da função da tiquê
nos será essencial para retificar qual o dever do analista na interpretação da
transferência.
Contento-me em destacar hoje que não é à toa que a análise se pro-
põe a modular de maneira mais radical essa relação do homem com o mun-
do que, por muito tempo, foi tida por conhecimento.
Se, nos escritos teóricos, é tão freqüente ver o conhecimento remeti-
do a algo análogo à relação entre a ontogênese e a filogênese, é por uma
confusão, e mostraremos a próxima vez que toda a originalidade da análise
está em não centrar a ontogênese psicológica nas supostas fases, que não
têm literalmente nenhum fundamento discernível no desenvolvimento observável
em termos biológicos. Se o desenvolvimento é todo ele animado pelo aciden-
te, pelo tropeção da tiquê, é na medida em que a tiquê nos leva de volta ao
mesmo ponto no qual a filosofia pré-socrática buscava motivar o próprio mun-
do.
Ela precisava encontrar em algum lugar um clinâmen. Demócrito, ao
tentar designá-lo, já se pondo como adversário de uma pura função de
negatividade para nela introduzir o pensamento, nos disse: não é o midhén
[midhén] que é essencial, e ele acrescenta – mostrando-lhes que, desde o
começo do que uma de nossas discípulas chamou de a etapa arcaica da
filosofia, o jogo de palavras, a manipulação das palavras era utilizada tal
como no tempo de Heidegger –: não é um midhén, é um dhén [dhén], o que,
em grego, é um palavra inventada. Ele não disse (en [en = o um] para não
falar do (on [on = ser], disse o quê? – disse, respondendo à questão que nos
interessou hoje, a do idealismo. – Nada, talvez? Não – talvez nada, mas não
nada.

RESPOSTAS
F. DOLTO: Não vejo como poderíamos prescindir das fases para des-
crever a formação da inteligência antes dos três ou quatro anos. Acho que no
que diz respeito as fantasias de defesa e de velamento da castração, de par
com as ameaças de mutilação, precisamos nos referir às fases.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 47


SEÇÃO DEBATES

A descrição das fases, formadoras da libido, não deve ser referida a


uma pseudomaturação natural, que permanece sempre opaca. As fases se
organizam em torno da angústia de castração. O fato copulatório da introdu-
ção da sexualidade é traumatizante – eis uma fisga de bom tamanho – e tem
uma função organizadora para o desenvolvimento.
A angústia de castração é como um fio que perfura todas as etapas
do desenvolvimento. Ela orienta as relações anteriores a seu aparecimento
propriamente dito – desmame, disciplina anal etc. Cristaliza cada um des-
ses momentos numa dialética que tem por centro um mau encontro. Se as
fases são consistentes, é em função de seu registro possível em termos de
mau encontro.
A mau encontro central está no plano do sexual. Isso não quer dizer
que as fases adquirem uma coloração sexual que se espalharia a partir da
angústia de castração. É, ao contrário, porque essa empatia não se dá que
se fala de trauma e de cena primitiva.
12 de fevereiro de 1964.

48 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


GOLDENBERG, R. Pós-escrito à tradução.

PÓS-ESCRITO À TRADUÇÃO
CONTINUAÇÃO DO DEBATE SOBRE A TRADUÇÃO DO TERMO
“PARLÊTRE”, INICIADA NO CORREIO DE DEZEMBRO/2006
(SESSÃO NOTÍCIAS)

Ricardo Goldenberg

Q
“ uerida Claudia Berliner e demais appoetas a propósito do “parlente”
sugerido no último correio. Foi a primeira tradução circulando na
Escuela Freudiana de Bs As lea nos idos de 1979. Embora seja
inegavelmente elegante, carrega consigo um problema conceitual serissimo.
Muito resumidamente, Lacan entra da mão de Heidegger, desde 1954, na
crítica feroz à metafísica moderna, que consiste no esquecimento, devido a
Descartes, da pergunta pelo ser do ente que estava em pauta desde os
pressocráticos via aristóteles até o sec.xvii. Trata-se de mostrar q confundir
o ser com o ente tem sido a catástrofe metafísica da modernidade. Lacan
concorda e entende q a experiência freudiana deveria entrar no debate intro-
duzindo seu sujeito dividido pela fala. Parlêtre, que aliás vem substituir o
problemático conceito de inconsciente, está chamado a relembrar a esque-
cida pergunta que o ente que somos faz sobre seu ser (o que Heidegger
denomina Dasein) no interior de toda a problemática da falta-para-ser que a
metonimia impõe. Portanto, traduzir por “parlente” não é apenas uma traição
que apaga com o cotovelo o que se escreve com a mão, como a verdadeira
criação do anti-conceito de parlêtre; ou seja, fazer com que o conceito em
português diga exatamente o contrário que o conceito (porque se trata de um
conceito,não só de poesia) em francês tenta dizer. Em suma, seria uma
verdadeira operação de recalque.”

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 49


RESENHA

VIDA E ARTE – A EXPRESSÃO


HUMANA NA SAÚDE MENTAL
GUTFREIND, Celso. Vida e arte: a expressão humana na
saúde mental. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. 205p.

A
experiência dessa leitura foi um exem-
plo de diálogo intenso que a relação com
os livros pode nos oferecer. A sensibili-
dade dessa produção narrativa, que não cessa
no seu registro textual, me conduziu tanto a ex-
periências vividas quanto a novas que virão – pelo
menos no “espaço” que abriu em mim. Interes-
sante esse movimento de “ler” a experiência hu-
mana num texto tão próximo que até parece nos-
so. De repente é por isso que o autor começa dizendo da idéia de um livro
diferente. Em suas palavras: “Não nasceu como livro”. Questão posta no
título da obra “Vida e Arte” em que é difícil definir onde estão os limites de
origem. Sem dúvida a abordagem do autor sobre a expressão humana é a
arte. É a vida. É a arte da vida. Como a nossa criação e como a criação
desse livro.
No início da obra, ganhamos uma surpresa: o relato da experiência
contada da introdução dos acadêmicos de medicina nos ensinamentos so-
bre a pessoa, em que recebem ao invés da esperada anatomia, um bebê. O
impacto da vida é fantástico. As lições que seguem no capítulo dois, sobre
as intervenções precoces pais-bebês, são tão ou mais complexas que qual-
quer outro ensinamento. Mas esteticamente me arriscaria a dizer que se
trata da mais bela. Elucidar-se a respeito das formas da vida e das experiên-
cias éticas e estéticas da responsabilidade da família, dos adultos e dos
cuidadores (incluindo os profissionais da saúde) é o que tão bem qualifica o
nosso lugar, sejamos pais ou profissionais. De forma ainda surpreendente, o
autor propõe a sua definição de “elaborar” uma receita para um terapeuta de
crianças, como um “bruxo” bom que põe num caldeirão ingredientes de sa-

50 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


RESENHA

bedoria, humildade e autenticidade. Dolto já nos apresentou essa coragem


quando diz que o terapeuta é uma presença humana que escuta. Continuo
dizendo que é coragem porque os passos da receita formulada indicam um
caminho psíquico pessoal e intransferível. Ao mesmo tempo em que brincar
é trabalhar.
Os relatos de caso no capítulo quatro e os ensinamentos do capítulo
cinco nos mostram os caminhos das histórias de vida através do conceito de
transgeracionalidade e apontam o eixo afetivo como aquele preponderante
para a saúde mental. Quantas lições advindas da experiência clínica e da
conjunção do trabalho dos terapeutas. Novas abordagens e possibilidades
de intervenção sendo construídas. Novas leituras e novas interpretações nos
capítulos seis e sete, que seguem tratando a expressão humana dos ado-
lescentes. Já ao escrever sobre a expressão dos adultos, a proposta do
autor é de buscar a criança do adulto. A clínica é revisitada.
Do início ao fim do livro, a saúde é compreendida em sua amplitude,
ganhando o espaço mental que lhe confere. Humanização é a palavra-chave
desse livro. O autor segue compartilhando sua experiência pessoal e profis-
sional nos contando histórias que versam sobre religião, poesia, trabalho,
sexo. Isso tudo através dos verbos do aprender, imaginar, criar e ser. Os
caminhos da vida e arte.

Ana Carina Motta Klein1

1
Psicóloga, Professora ULBRA Cachoeira do Sul.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007. 51


AGENDA

JANEIRO – 2007

Dia Hora Local Atividade


04, 11, 19h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Eventos
18 e 25
04, 11, 21h Sede da APPOA Reunião da Mesa Diretiva
18 e 25
22 20h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão do Correio
05 e 19 15h15min Sede da APPOA Reunião da Comissão da Revista
05 e 12 8h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Aperiódicos

PRÓXIMO NÚMERO

JORNADA DE ABERTURA

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 154, janeiro 2007.


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O MAIS NOVO LANÇAMENTODA APPOA:

REVISTA N°31: FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE

EDITORIAL
TEXTOS
Conceitos em psicanálise e fundação de um campo – Ana Costa

O equilibrium do desejo do analista – Siloé Rey

O infantil na transferência – Gerson Smiech Pinho

A transferência e o desejo do professor – Rosana de Souza Coelho

Sobre determinação – Maria Ângela Bulhões

Escrita da utopias: litoral, literal, lutoral – Edson Luiz André de Sousa

O texto que não cabe na página – Fernanda Pereira Breda

Notas da pulsão – Heloisa Helena Marcon

Afânise – Ligia Gomes Víctora

A agressividade nos limites da linguagem – Luís Fernando Lofrano de


Oliveira

Estranha vagância na língua – Marta Pedó

O que funda o sujeito – Carmen Backes

e n e a o t i l – Otávio Augusto Winck Nunes

RECORDAR, REPETIR, ELABORAR


Sobre a significação psicológica da negação em francês –
J. Damourette e Ed. Pichon

ENTREVISTA

VARIAÇÕES
A Psicanálise entre o peso e a leveza – Abrão Slavutzky
Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events
in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE


GESTÃO 2005/2006
Presidência: Lucia Serrano Pereira
1a Vice-Presidência: Ana Maria Medeiros da Costa
2a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees
1a Secretária: Marieta Madeira Rodrigues
2a Secretária: Ana Laura Giongo e Lucy Fontoura
1a Tesoureira: Maria Lúcia Müller Stein
2a Tesoureira: Ester Trevisan
MESA DIRETIVA
Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ângela Lângaro Becker, Carmen Backes,
Edson Luiz André de Sousa, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora,
Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Ângela Cardaci Brasil,
Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz, Maria Cristina Poli, Nilson Sibemberg,
Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira e Siloé Rey

EXPEDIENTE
Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre
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Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956
Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.
Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do Correio
Coordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro
Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschimidt, Fernanda Breda, Henriete
Karam, Liz Nunes Ramos, Márcio Mariath Belloc, Maria Cristina Poli, Marta Pedó,
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior, Robson de Freitas Pereira,
Rosane Palacci Santos e Tatiana Guimarães Jacques
S U M Á R I O
EDITORIAL 1
NOTÍCIAS 2
SEÇÃO TEMÁTICA 3
NARRAR, SUBJETIVAR, DANÇAR
Ângela Lângaro Becker 3
A DANÇA COMO UM MOVIMENTO
EM DIREÇÃO A OUTRO
Luciana Paludo 10
CORPO E PRODUÇÃO DE NARRATIVAS
NA FORMAÇÃO DOCENTE
Maira F. Brauner 20
MOVIMENTO, AÇÃO E TAREFA
NAS PERFORMANCES DA SÉRIE
Élcio Rossini 27

SEÇÃO DEBATES 33
SEMINÁRIO XI - CAPÍTULO V
Jacques Lacan 33
COMENTÁRIO “PARLENTE”
Ricardo Goldenberg 49

RESENHA 50
VIDA E ARTE: A EXPRESSÃO
HUMANA E A SAÚDE MENTAL 50
AGENDA 52
N° 154 – ANO XIV JANEIRO – 2007

CORPO EM MOVIMENTO

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