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JENKINS, Keith. 4 hisiéria repensada. 2 ed. Séo Paulo: Contexto, 2004. Disciplina: Introdugio a Histéria - Dacente: José Evangelista Fagundes ‘Texto némero: O que éa Histéria? Neste capitulo, quero tentar responder & pergunta que Ihe “da titulo. Para fazer isso, vou de inicio examinar‘o que a hist6ria € na teorla; depois, examinar o que ela € na pratica; , por fim, juntar teoria e pritica em uma definicao — uma definicao cética € irénica, construtda metodologicamente -, que espero ser abrangente © bastante para proporcionar a vocé um razodvel conhecimento nao apenas da “questéo da hist6ria", mas também de alguns dos debates e posigdes que a rodeiam, DA TEORIA No nivel da teoria, gostaria de apresentar dois argumen- tos. © primeiro (que esbogo neste pargrafo e desenvolvo em seguiida) € que a histéria constitui um dentre uma série de discursos a respeito do mundo. Embora esses discursos no ctiem © mundo (aquela coisa fisica na qual aparentemente vivemos), eles se apropriam do mundo e Ihe dao todos os significados que tém. O pedacinho de mundo que € 0 objeto (pretendido) de investigacdo da histéria € 0 passado. A histé- tia como discurso esta, portanto, numa categoria diferente 25 daquela sobre a qual discursa, Ou seja, passado e historia sio Coisas diferentes. Ademais, 0 passado e a historia ndo estao unidos um ao outro de tal maneiza que se possa ter uma, ¢ apenas uma leitura hist6rica do passado. O passado e a hist6=\ tia existem livres um do Outro; est&o muito distantes entre sj Ro tempo € No espago. Isso porque o mesmo objeto de in vestigacdo pode ser interpretado diferentemente por diferen, tes praticas discursivas (uma paisagem pode ser lida/inter- pretada diferentemente por gedgrafos, soci6logos, historia. dores, artistas, economistas et al.), 20 mesmo tempo que, em cada uma dessas Praticas, hd diferentes leituras interpretativas nO tempo © no espago. No que diz tespeito & histéria, a historiografia mostra isso muito bem, O pardgrafo acima nao € ficil. Fiz um monte de afirmagées, tas, na realdade, todas giram em torno da distingSo entre pas, sado e historia, Essa distincao é, portanto, essencial. Se for com: Preendida, ela ¢ 0 debate que suscita ajudarto a esclarccer que a histéria € na teoria. Por conseguinte, vou examinar as afirmagoes que acabo de fazer, analisando com alguma minticia a diferenga entre passado e histéria e, depois, considerando algumas das principais consequéncias dessa diferenca. Deixe-me comegar pela idéia de que a histéria, embora seja um discurso sobre o passado, esté numa categoria dife- rente dele. Isso pode lhe parecer estranho, porque falvez vocé nao tenha notado essa distingdo antes ou, do contréri 5 talvez ainda nao tenha se preocupado muito com ela. Uma das razées para que isso aconteca ~ ou seja, pdra que em geral a distingao seja deixada de lado ~ é que tendemos a perder de vista o fato de que realmente existe essa distingdo entre a hist6ria ~ entendida como 0 que foi escrito/registrado sobre 0 passado —e © préprio passado, pois a palavra “histé- tia” cobre ambas as coisas," Portanto, o preferivel seria sem- Pre marcar essa diferenga usando 0 termo “o passado” para tudo que se passou antes em todos us lugares ¢ a palavra “historiografia” para a hist6ria; aqui, *historiografia’ se refere 24 aos escritos dos historiadores. Também seria um bom critério (© passado como 0 objeto da atengao dos historiadores, a historiografia como a maneira pela.qual 9s historiadores 0 abordam) deixar a palavra “Histéria” (com H miaitisculo) para indicar 0 todo. No entanto, é dificil livrar-se do habito, e eu mesmo talvez use “hist6ria” para me referir a0 passado, 2 historiografia e a ambas as coisas. Mas lembre que, se e quando eu fizer isso, estarei levando em conta tal distingdo — e vocé deveria proceder da mesma maneira. Contudo, pode muito bem ser que esse esclarecimento sobre a distingdo entre passado e hist6ria pareca coisa va. Talvez vocé pense: *E daf? Que importancia tem isso?” Permi- ta-me oferecer trés exemplos de por que € importante enten- der a distinc entre passado ¢ histéria. 1. O passado jé aconteceu. Ble j4 passou, e os historiado- res s6 conseguem trazé-lo de volta mediado por veiculos muito diferentes, de que sio exemplo os livros, artigos, documentirios etc., e nao como acontecimentos presen- tes. O passado j4 passou, € a histéria 6 0 que os histori- adores fazem com ele quando poem mos & obra. A hist6ria € 0 oficio dos historiadores (e/ou daqueles que agem como se fossem historiadores). Quando os histori- adores se encontram, a primeira coisa que perguntam uns aos outros é: “No que vocés estio trabalhando?” Esse trabalho, expresso em livros, periddicos etc, € o que vocé lé quando estuda hist6ria. Isso significa que a hist6- ria esta, muito literalmente, nas estantes das bibliotecas ¢ de outros lugares. Assim, se voc® comegar a fazer um curso de hist6ria espanhola seiscentista (por exemplo), nio vai precisar ir ao século xvu nem & Espanha; com a ajuda de urna bibliografia, vai, isto sim, & biblioteca. ali que esté a Espanha seiscentista, catalogada pelo sistema decimal Dewey, pois auude mais os professores man- dam vocé ir para estudar? Claro, vocé poderia ir a outros lugares onde € possivel encontrar outros vestigios do Passado ~ por exemplo, aos arquivos espanhdis. Mas, aonde quer que v4, sempre teré de les/interpretar. Essa leitura nao € espontanea nem natural, Ela é aprendida (em varios cursos, por exemplo) e informada (ou seja, dotada de significado) por outros textos. A historia: (historiografia) é um constructo lingiifstico intertextual, 2. Digamos que voce esteja estudando parte do passado inglés (0 século xu, por exemplo) no secundétio britani. co. Vamos imaginar que vocé use um renomado com. pendio: England under the Tudors, de Geoffrey Elton, Na aula em que se trata de aspectos do século xv, voce faz anotagdes em classe. Mas, para os trabalhos eo gros- so da revisio da matéria, usa Elton. Na hora do exame, escreve a sombra de Elton. Ao passar, esta aprovado em historia inglesa, ou seja, est4 qualificado na andlise de- certos aspectos do *passado”, No entanto, seria mais acer- tado dizer que vocé passou nao em historia inglesa, mas ©m Geoffrey Elton ~ pois, nessa fase, o que é sua “leitu. a" do passado inglés senao uma leitura de Elton? 3. Esses dois rapidos exemplos da distificao entre passado € historia talvez fagam parecer que se trata de algo sem maiores conseqUéncias. Na realidade, porém, aquela dis- Lingo pode ter efeitos enormes. Eis outro exemplo para ilustrar isso: embora milhoes de mulheres tenham vivido no passado (na Grécia, em Roma, na Idade Média, na Africa, nas Américas...), poucas aparecem ita historia, isto €, nos textos de hist6ria. As mulheres, para citarmos uma frase, foram “escondidas da hist6ria", ou'seja, siste- maticamente excluidas da maioria dos relatos de historia- cores, Por conseguinte, as feministas estio agora engaja- das na tarefa de “fazer as mulheres voltarem para a histo. ria", ao mesmo tempo que tanto homens quanto mulhe- res vém examinando os constructos de masculinidade que so correlatos ao tema? Nesta altura, voc talvez 2 pare para considerar quantos outros grupos, pessoas, povos, classes foram e/ou sao omitidos das historias e Por qué; e quais poderiam ser as conseqiléncias se tais “grupos” omitidos dominassem os relatés hist6ricos e se os grupos hoje dominantes ficassem & margem. Posteriormente, diremos mais sobre a importéncia ¢ as possibilidades de tabalhar a distingio entre passado e hist6- tia. Por ora, eu gostaria de analisar outro argumento daquele pardgrafo anterior (p. 24) no qual digo que precisamos en- tender que o passado e a hist6ria nao esto unidos um ao outro de tal modo que se possa ter uma, e apenas uma leitura de qualquer fenémeno; que o mesmo objeto de investigagio é passivel de diferentes interpretagdes por diferentes discur- 80s; € que, até no 4mbito de cada um desses discursos, ha interpretagGes que variam e diferem no espago e no tempo. Para comecar a exemplificar isso, vamos imaginar que possamos ver uma paisagem inglesa através de uma janela (nao toda a paisagem, pois a janela a “enquadra” muito lite- ralmente). No primeiro plano, esto varias estradinhas; mais além, outras estradinhas, ladeadas por casas; h4 campos on- dulantes e, neles, casas de fazenda. Na linha do horizonte, a alguns quilémetros, vemos uma sucesso de morros baixos. No plano intermediatio, uma cidadezinha com uma feira. O céu é de um azul palido. Nao ha nada nessa paisagem que diga “geografia”. No entanto, est claro que um geégrafo pode julgé-la em termos geogrificos. Assim, ele pode “ler” que a terra exibe priticas padrdes de uso especificos; as estradinhas podem tornar-se parte de uma série de redes de comunicacao local e/ou regi- onal; as fazendas e a cidade podem ser “lidas” em termos de uma distribuicéo populacional especifica; cartas topograficas podem mapear o terreno; gedgrafos especializados, explicar © clima e, digamos, os tipos decorrentes de irrigago. Dessa maneira, 0 panorama poderia virar outra coisa: geografia. De maneira semelhante, um soci6logo, poderia pegar a mesma

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