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INTRODUÇÃO

Qualquer um que assistisse a posse da presidente Dilma Rousseff em 2015,


aproveitando o sol de Brasília em janeiro, veria que ela parou no carro diante da
catedral da cidade, rodeada de militares, e embarcou no "Rolls-Royce" presidencial,
passando a desfilar na esplanada dos ministérios acenando para o público, grande
parte composto por pessoas vestindo camisas vermelhas. Na retaguarda do cortejo,
estava a cavalaria da guarda presidencial, vestindo uniformes que relembram o
glorioso passado dos impérios europeus. No congresso, vários chefes de estado
estavam presentes para assistirem a posse do segundo mandato. Tudo decorrendo
conforme os rituais e procedimentos que um chefe de estado deve seguir ao assumir
o governo de um país tão rico em sua história e tradição. Durante seu discurso, a
presidente apelou para a “união” e o “diálogo”, fazendo promessas de combate à
corrupção e realização de reformas políticas.
Alguns meses antes — em novembro de 2014 — Celso Amorim, no discurso
de abertura da Primeira Jornada Estratégica da Chefia de Assuntos Estratégicos do
ECMFA (Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas), mencionou que os quatro
primeiros anos do governo da Presidente Dilma foram orientados pelo conceito de
Grande Estratégia, em que para o Brasil de hoje, essa estratégia projeta uma
coordenação de políticas que buscam a defesa dos interesses nacionais e a
contribuição para a paz mundial, políticas que se complementam e se reforçam. O
progresso social e econômico necessariamente passaria pela eliminação dos
obstáculos externos e pela projeção brasileira no mundo. A Grande Estratégia citada
por Celso Amorim parece estar alinhada com o discurso de posse da Presidente.
Entretanto, quem olhasse além da pompa ritualística, acompanhasse o
desenrolar das eleições de 2014, as convulsões que agitaram o país nos anos do
seu primeiro mandato, as crises e escândalos que acompanharam a trajetória do PT
no governo, não poderia permanecer com o sentimento de normalidade que
acompanhou a posse da presidente no congresso, muito menos com a esperança
da Grande Estratégia ou união e diálogo. Uma eleição com números tão próximos
demonstra que praticamente metade da população brasileira estava insatisfeita com
o governo no seu primeiro mandato. Insatisfação que foi encarnada na forma de
manifestações, vaias, panelaços e outros eventos que assombravam a presidente
onde quer que fosse. Em dezembro de 2014, jornais ao redor do mundo publicavam
notícias que profetizavam tempestade no segundo mandato, por conta dos erros no
primeiro.
Na superfície, os problemas na preparação das olimpíadas no Rio de
Janeiro, a inflação galopante, os gastos com a Copa do Mundo, a violência urbana
desenfreada e a grande parte da cúpula do PT e seus aliados envolvidos em
esquemas de corrupção envolvendo a Petrobras já indicavam sérios problemas que
acompanhariam o segundo mandato. A cada novo desdobramento da Operação
Lava Jato, mais um golpe de martelo estilhaçava a honra de nossa política. Talvez a
corrupção estivesse disfarçada de união e diálogo, e quando a união dos corruptos
se desenlaça, o caos político toma conta.
Do caos político, é possível observar a ascensão da polarização social,
onde palavras e expressões de efeito — como diálogo, união e paz mundial — se
dissolvem em sua própria evanescência. Conspirólogos emergem, principalmente
auxiliados pelas redes sociais modernas, onde cada ideologia dissonante procura
explicar as peças espalhadas do mosaico que formam a desordem política,
arregimentando para si uma massa militante que age com a histeria nascida da
insatisfação com as notícias diárias. A liberdade da circulação das diferenças atua
sem regras nem leis, e temos um vasto espectro de fragmentos dispersos de
“história acabada” (como interferência de agentes secretos americanos no período
do regime militar), onde o próprio desenrolar político externo exerce influência no
imaginário nacional, de forma que se dificulta cada vez mais enxergar as aspirações
reais do povo brasileiro.
Tobias Barreto, o célebre jurista e filósofo do Império, nos diz que “O único
meio de salvar e engrandecer o Brasil é tratar de colocá-lo em condições de poder
ele tirar, de si mesmo, quero dizer, do seio de sua história, a direção que lhe
convémi”. Desta forma, este ensaio procura trazer uma luz para a ebulição política
nacional através do que é mais decisivo na história de qualquer país, que é o que
fazem os homens que mandam. Mas seguindo a receita de Tobias Barreto, é
necessário cavar fundo no subconsciente das elites nacionais ao longo da história
do Brasil, para que possamos realmente refletir sobre o que seriam nossas
aspirações nacionais, e o que não são. O intuito do mergulho no passado é trazer
algo de sólido para o presente, que não se resuma a conceitos genéricos e
efêmeros como “tolerância, igualdade social e união”.
Somente com algo concreto do passado, poderemos seguir adiante com a
reflexão do presente, e em que pontos a elite nacional atual se afasta ou se
aproxima das aspirações nacionais reais, em que ponto podemos proteger nossas
vulnerabilidades, e até onde podemos retirar conclusões que não fiquem presas à
segunda década do século XXI, mas que solidamente possa apoiar reflexões para o
nosso futuro.
1 A IDENTIFICAÇÃO DAS ASPIRAÇÕES E VULNERABILIDADES
NACIONAIS

1.1 – Os alicerces Luso-Brasileiros

É inevitável buscar na herança da civilização e do Império Português as origens da


alma brasileira. Nossa história pode ter começado com as grandes navegações, mas
para compreender a formação de nosso povo heterogêneo, é necessário voltar à
própria formação da portugalidade. Portugal, hoje um pequeno território no limite da
Europa, já foi palco das mais diversificadas civilizações, onde as três principais
religiões monoteístas do planeta acabaram convergindo: o Cristianismo, o Judaísmo
e o Islamismo. O cristianismo é proveniente dos intrépidos apóstolos e mártires que
caminharam entre as hordas dos bárbaros para evangelizar os gentios. O Judaísmo
na península ibérica se materializa através da etnia Sefardita, advinda ainda das
grandes explorações dos fenícios, e bravamente resistiu às invasões mouras e
visigóticas. O Islamismo chegou através dos bravos conquistadores mouros, ainda
no início da Idade Média. De todas as origens, o ímpeto evangelizador, explorador e
conquistador penetra totalmente o DNA do povo que futuramente se lançaria ao mar
em grandes navegações.

Tais origens, entretanto, não são como camadas que podem ser superpostas, onde
sua união não manifeste problema algum. Embora as três civilizações monoteístas
tenham convergido, elas não formaram uma síntese. Houve um preço a se pagar por
esta fusão. Os componentes civilizacionais eram contraditórios pela própria teologia
das religiões: o Cristianismo nos oferece a revelação de Deus em Jesus Cristo, que
é a própria verdade personificada e oferece a salvação individual das almas. O
Judaísmo nos traz a ideia do triunfo final de Israel sobre todas as outras nações. O
Islã traduz a salvação das almas individuais com fundação de uma sociedade sacra
sob as leis maometanas contidas no Alcorão, onde o planeta pertence a Allah e
todos os seres humanos devem reconhecer isto.

Unido ao Cristianismo veio a ideia de sociedade civil de Roma, e o método de


pensamento grego para o desenvolvimento de sua teologia e organização social,
onde podemos ter um vislumbre em “Cidade de Deus” de Santo Agostinho – Dai a
Deus o que é de Deus, e dai a César o que é de César. Com o Islã, veio a ideia de
dominação despótica oriental unida ao ideal da Jihad, uma peça orgânica da
sociedade islâmica, que abrange quase todas as áreas da vida social. Unido ao
Judaísmo vem a ideia do messianismo, onde a sociedade triunfará em seus
momentos finais com a vinda de um herói nacional. Do que foi exposto acima,
podemos começar a empreender uma observação um pouco mais profunda sobre
aspirações civilizacionais que formaram nossa sociedade luso-brasileira.

Karl Wittfogel, em seu livro “Oriental Despotism, A Comparative Study of Total


Power”, investiga a correlação entre o que denomina “sociedades hidráulicas” e a
arte de governar através de um forte despotismo, onde a sociedade se submetia ao
poder do aparato estatal. Em paisagens áridas ou semiáridas, as sociedades
agrárias sedentárias prosperavam baseadas em uma economia hidráulica, através
de empreendimentos que requeriam ajustes sociais e políticos radicais. As diversas
famílias e clãs que formavam as sociedades deveriam trabalhar em conjunto e
subordinar-se a uma autoridade direta, para que a sociedade se mantivesse coesa,
sobrevivesse e resolvesse as suas eventuais querelas. A partir de então, uma casta
governante começou a se formar e dominar tais sociedades.
O sistema formado de fato é benéfico para a população de clãs e tribos, mas a casta
de líderes acaba dependendo dos empreendimentos coordenados por suas ideias
para se manter no poder. Seus funcionários os alertam para a necessidade de
satisfazer a população, mas como casta governamental, seu prisma sempre coloca
como filtro as suas próprias necessidades. Sobre Maomé, o profeta islâmico, Karl
Wittfogel diz1:
“Maomé, que viveu na árida Arábia, certamente entendia a importância da
irrigação para os cultivos bem-sucedidos, embora em seus enunciados
oficiais raramente se referia ao problema(…). Seus seguidores preservaram,
restauraram e até criaram vigorosas economias hidráulicas na Síria, Egito,
Iraque, Noroeste da África, Espanha e brevemente na Sicília.” (p. 127).

O Estado formado impede a cristalização de outras forças sociais em corpos


independentes de poder que possam contrabalancear a máquina política. Unindo as
leis religiosas do Alcorão, com a praticidade da economia hidráulica característica da
região de onde o Islã se originou, nasce um elemento de estatismo que irá compor e
caracterizar nossa sociedade, a partir da amálgama dos elementos formadores do
povo ibérico.

Unindo a nova religião do Oriente médio com seus métodos de guerra, eles
estenderam seu poder até a península ibérica.

Em um contraste agudo com os romanos que haviam anteriormente


conquistado a Europa ocidental, os árabes que conquistaram a Espanha
eram inteiramente familiares com o sistema de agricultura hidráulica, e em
seu novo habitat empregaram vigorosamente os mecanismos que foram
proveitosos em suas terras de origem. Debaixo da dominação muçulmana a
irrigação artificial evoluiu e se estendeu de acordo com os modelos
orientais(…), com oficiais e funcionários nomeados pelo governo. 2

1
Karl Wittfogel – Oriental Despotism, A Comparative Study of Total Power. Yale University
Press, 1957.
2
Op. Cit – Pg 215.
Efetivamente, ao olharmos a história da formação dos povos do oriente, como o
Egito, ou mesmo a história do Antigo Testamento, o padrão notado por Karl Wittfogel
é recorrente. Israel é guiada através do patriarca Moisés, e depois por Josué, que
lideram o empreendimento nacional de conquistar a terra prometida além do Jordão.
As tribos e clãs se submetem ao poder central que guia a sociedade e é responsável
pela superação das dificuldades encontradas no caminho. Maomé também unifica as
tribos árabes sob o Islã, e legisla sobre elas com as leis corânicas.

Estas características orientais e suas aspirações são um elemento formador da


cultura ibérica. Sérgio Buarque de Holanda aponta a diferença do iberismo para o
resto da Europa Ocidental3:

A Espanha e Portugal são, com a Rússia e os Países Balcânicos, um dos


territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com os outros mundos.
Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição, menos
carregada, em alguns casos, desse europeísmo que, não obstante, mantêm
como patrimônio necessário.(p. 31)

Paralelamente aos empreendimentos sociais desenvolvidos por essas sociedades,


se encontra o empreendimento militar, que acompanhava o esforço administrativo.
Assim foi possível a construção de obras de grande monta como a Grande Muralha
da China ou as Pirâmides do Egito.

O lado europeu que forma o povo português se dá com a expansão de Roma e ao


mesmo tempo a expansão cristã, que se choca e se funde com o oriente dentro da
península ibérica. Roma também dominava e organizava, mas em uma diferente
ordem de objetivos, com um gênio administrativo e jurídico jamais alcançado em
outra sociedade. Roma havia alcançado o topo da política.

3
- Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. 26º edição. Companhia das Letras -1995.
Tudo poderia ser observado através das esferas política, administrativa e jurídica:
balanços inesperados de poder, justiça coexistindo com ordem, constante renovação
de instituições, e acima de tudo, a invenção de um conceito de Estado. O Estado
Romano buscava a dominação política, com o estabelecimento de uma ordem que
não reconhecia limites geográficos, sociais ou econômicos. Exercia o controle
jurídico dos deuses e homens dos povos sob seu domínio, elevando ao nível de
cidadão romano as pessoas merecedoras entre os conquistados. O homem havia
encontrado um meio para exaltar seu orgulho ao mais alto grau através das
instituições romanas.

Nesse mundo de exaltação do orgulho humano que o evangelho de Cristo se


desenvolve, em clara contradição com o status quo. O cristianismo surge da religião
judaica, que esperava um messias portador da vitória de Israel. Em vez disso, se
submete ao poder de Roma, indo no caminho contrário das sociedades despóticas
observadas por Wittfogel, que utilizavam a religião como forma de afirmação
nacional. A decisão do apóstolo Paulo de deslocar a evangelização do Oriente para
o Ocidente mudou para sempre a história da Europa, e como consequência, as suas
aspirações.

Há uma diferença do Cristianismo para as demais religiões que formavam o império


multicultural de Roma, e que explica a violência do império à revelação bíblica. Nas
religiões antigas, a cosmovisão religiosa se cristaliza na estrutura social determinada
pelas verdades desta cosmovisão. No próprio Antigo Testamento é possível enxergar
isso, quando os descendentes de Arão eram os únicos a serem elevados ao cargo
de sacerdotes da comunidade. A religião do Egito trazia os faraós como divindades,
formando o estrato social que governava o povo. Maomé unificou as tribos em nome
da revelação dada a ele diretamente pelo anjo Gabriel. A organização social era
nada mais que a verdade religiosa encarnada. Os elementos teológicos serviam
para explicar os elementos políticos.

O cristianismo proclama uma verdade e autoridade acima da sociedade, onde não


há necessidade do Estado para acessar um plano espiritual superior. Deixa o povo
sob o governo de César, mas o retira do poder de Júpiter. Em algumas centenas de
anos, Roma já não tinha mais césares nem deuses. Suas cidades estavam
despovoadas e invadidas. Os líderes dos invasores eram bárbaros, homens
analfabetos, revestidos de armaduras de pele. Com o tempo, as multidões e os reis
já não adoravam as antigas águias imponentes, mas a cruz que era elevada em
todos os lugares.

Montesquieu nota uma diferença entre o cristianismo e os orientais, no seu livro


Espírito das Leis:

A religião cristã, através da estipulação de caridade, culto público e


participação nos sacramentos, demanda que todos sejam unidos, enquanto
os ritos chineses ordenam a separação. E como nós vimos, esta separação
depende, em geral, do espírito do despotismo. Isto mostra a razão porque
monarquias, e por certo, todos os governos moderados, são mais
consistentes com a religião Cristã.4

A teologia de Santo Agostinho acaba penetrando a mentalidade formadora dos


novos territórios evangelizados na Idade Média, onde a vida humana serve apenas
como preparação. O reino de Deus não ignora os reinos humanos, e estes devem se
submeter a um poder maior. Os seres humanos agora são impotentes para designar

4
- Baron de Montesquieu. The Spirit of Laws, Vol I, Livro XIX, capítulo 19.
e conceituar erros, e princípios de liberdade para discussões acabaram florescendo
entre as sociedades. Agora o imperador não podia mais proclamar dogmas, e
concílios eram convocados para determinar disputas.

Segue então um dos primeiros dilemas na bipolaridade entre cristãos e muçulmanos


que vieram a habitar a península ibérica. De um lado, havia a islamização sob as leis
corânicas, em uma espécie de modelo totalitário, com a amálgama dos povos
através de processos bélicos ou de processos sociais, e do outro, a manutenção de
processos políticos e culturais independentes da religião, com pessoas que se
submetiam às doutrinas para alcançar a sua salvação individual.

1.2 – Portugal

Raymundo Faoro abre o primeiro capítulo de seu livro “Os donos do Poder” com a
seguinte frase:

A Península Ibérica formou, plasmou e constituiu a sociedade sob o império


da guerra. Despertou, na história, com as lutas contra o domínio romano, foi
o teatro das investidas dos exércitos de Aníbal, viveu a ocupação
germânica, contestada vitoriosamente pelos mouros. Duas civilizações —
uma do ocidente remoto, outra do oriente próximo — pelejaram rudemente
dentro de suas fronteiras pela hegemonia da Europa.

Nota-se um esforço guerreiro por todas as partes que desejavam ocupar o território.
Tanto o Oriente quanto o Ocidente, nesta peleja, se submeteram ao poder central de
seus líderes para alcançar seu intento. Do caos brotou uma nova ordem, uma nova
monarquia. A Batalha do Ourique definira o cristianismo como fé vencedora e Dom
Afonso Henriques como o novo monarca.
Faoro chama atenção para a questão cultural do processo histórico, e recorre às
análises feitas por Max Weber acerca da formação de um Estado Patrimonial. A
coroa portuguesa obtém um imenso patrimônio rural, que se confunde com as
propriedades pessoais da casa real. A conquista dos territórios sarracenos se
incorporava ao domínio do rei, onde as normas racionais eram substituídas pela
justiça do príncipe e seus funcionários. Aqui, o orientalismo despótico toma a
imagem de um rei piedoso e cristão, pai e formador do povo. Os nobres, no lugar de
possuírem uma função social definida como no restante da Europa feudal, aqui eram
apenas funcionários da coroa.

Do patrimônio do rei — o mais vasto do reino, mais vasto que o do clero e,


ainda no século XIV, três vezes maior que o da nobreza — fluíam rendas
para sustentar os guerreiros, os delegados monárquicos espalhados no país
e o embrião dos servidores ministeriais, aglutinados na corte. Permitia,
sobretudo, a dispensa de largas doações rurais, em recompensa aos
serviços prestados pelos seus caudilhos, recrutados, alguns, entre
aventureiros de toda a Europa.5

O domínio centralizador acabou se expandindo para a economia, onde cabe ao rei-


empresário se articular com os comerciantes do sistema mercantilista, imprimindo ao
Estado as atividades ultramarinas. Este, se atirando ao desenvolvimento das
expansões marítimas, planeja a exploração das novas terras seguindo as normas
senhoriais de guerras de pilhagem e apropriação das riquezas por meios fiscais,
favorecendo a nobreza amiga do rei, e ao mesmo tempo domesticando-a.

A burguesia se acomoda a este modelo, impedindo sua emancipação e posse


efetiva dos meios de produção, ao contrário da burguesia da Europa feudal, que se
lança ao capitalismo efetivo a partir do século XVI. O príncipe espreita todas as
atividades comerciais através de seus funcionários, e estas permaneciam presas

5
- Raymundo Faoro, Os Donos do Poder.
aos vínculos do soberano, formando o corporativismo. O princípio unificador da
sociedade era sempre o governo, aliado ao sentimento religioso.

Cabe a elaboração dos princípios teóricos do Estado aos juristas e filósofos que se
encontram à disposição da coroa. A teoria se baseia em uma ideia de mediação
entre os elementos feudais e os preceitos cobiçados pelos comerciantes e
mercadores, principalmente após a Revolução de Avis, em que estes tiveram
participação política fundamental. A elaboração de leis e o exercício da justiça
surgem como importantes funções do monarca, abaixo apenas da aplicação do
direito canônico. Ao elaborar a legislação relativa à Igreja, constava uma declaração
de comprometimento do rei e seus sucessores em seguir os preceitos de Roma,
sendo sem valor as leis que porventura contrariassem os regulamentos eclesiais.

O papel do monarca aponta para um novo modelo de monarquia, no qual o rei não
abdica do poder militar, e se afirma como legislador e juiz. A escrita contribuiu como
recurso político para reforçar a construção de um aparelho administrativo onde os
tentáculos do Estado crescem continuamente, se sobrepondo a todos os outros
poderes de base local ou de outros corpos sociais, tão comuns na Idade Média
feudal. Isto criou a tendência do alastramento da urbanidade para a vida rural, onde
leis orais predominavam pela tradição, e assim criando a dominação do campo,
onde este agora tinha a obrigatoriedade de suprir e abastecer os centros urbanos.
O senhor rural era, desta sorte, um cobrador de rendas e foros, convertidos
em dinheiro. O sistema se desviava da economia natural, ajustando-se aos
interesses ligados ao comércio. (...)
O contexto econômico de Portugal, no século XV, obedece a um núcleo
ativo, dinâmico, associado ao Estado. Burguesia e domínio territorial
estavam domesticados ao mesmo fim, sob as rédeas do soberano. A
empresa marítima não encontrou resistências, no reino, de uma facção
agrária.6

6
- Raymundo Faoro, Donos do Poder, Capítulo 2: A revolução Portuguesa, da Aventura
O fator social contribuiu naturalmente para este desenvolvimento. No Norte e no Sul,
o estado bélico era comum. A sociedade se organizou para a guerra e se estratificou
neste sentido. Nas fronteiras setentrionais, a sociedade era cristã e peninsular,
oriunda do feudalismo europeu, com costumes rurais. Ao sul, a população de origem
islâmica era organizada em centros urbanos e com atividades comerciais mais
intensas. A sobreposição dessas sociedades acabou criando uma entidade política
que não era baseada na terra, ou tradições existentes anteriores. Nem árabes e nem
cristãos acabaram por zelar rigorosamente sua cultura, não se opondo à influência
diversificada. Se formaram os moçárabes – naturais portugueses que assimilavam o
idioma islâmico e sua cultura, sem deixar a fé católica – e os mudéjares – o árabe
que se submetia do mesmo modo ao cristianismo.

O papado persistentemente trabalhava na ação harmoniosa entre os reinos cristãos


hispânicos para organizar uma frente comum aos muçulmanos, encetando a
ideologia das cruzadas nos povos ibéricos. As ordens religiosas-militares, em
conjunto com os corpos militares portugueses, alcançaram uma vitória fundamental
em 1212, assinalando o declínio dos Almóadas na Península Ibérica. Efetivamente,
isto levou a mais uma tendência no sentido de centralização ao longo do tempo,
ocorrendo a nacionalização de algumas ordens militares-religiosas, como a Ordem
dos Cavaleiros de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A conclusão desta série de fenômenos civilizacionais que formam o organismo


nacional português é o aparecimento de Lisboa como centro de atividade marítima,
onde há tempos os mercadores ingleses, normandos e genoveses que desejavam

Ultramarina ao Capitalismo de Estado.


desempenhar suas atividades comerciais no Rio Tejo atuam, dando um destino
definido aos novos empreendimentos que a coroa estabeleceria: a expansão
marítima.
1.3 – A expansão marítima portuguesa

O mar ocupava grande importância na vida do reino, onde a população encontrava


seu sustento na vasta gama de atividades marítimas, como pescaria, extração de sal
e familiarização com navegação de cabotagem. Ligava cidades e regiões costeiras
com o transporte de mercadorias ou pessoas. Também desempenhava importante
papel nos mitos e folclores da população cristã com diversos contos, como o mito do
reino de um Papa do Oriente, a famosa terra de Preste João, descendente direto de
um dos reis magos que haviam visitado Jesus. Esta lenda excitava a mais pia
curiosidade aventureira dos cristãos, enquanto as regiões distantes do Oriente se
pintavam como paraísos carregados de ouro e magia.

Além das tentações aventurescas, havia uma ambição realista em relação ao


Oriente e seu comércio, com tradição iniciada pelas Cruzadas. Preso entre o mar e a
Espanha, o único caminho ara Portugal seria a navegação. A importância dada às
Ilhas Canárias demonstra até que ponto a saída para o mar se desenhava como o
caminho a ser percorrido pelo reino.

As breves observações acima expostas sobre as navegações e o mar formam sua


síntese com a conquista de Ceuta. Esta era a chave do Império Marroquino, e por
onde através da África se chegaria ao dourado e encantado Oriente. De Ceuta
partiam os ataques piratas que assolavam as embarcações cristãs e as costas do
Algarve. Conquistar a cidade aumentaria a segurança da navegação portuguesa e
cristã, permitindo ao monarca apresentar seu feito perante o papa como forma de
validar a legitimidade da nova dinastia (Avis).
A aristocracia, não aquinhoada de novas terras, isolada do comércio,
precisava de rendosos postos, dentro do estamento. Ceuta foi a solução, a
Ceuta cobiçada pela burguesia cosmopolita, centro irradiador do comércio
africano, sob os cuidados dos detestados mouros. A decisão cabe ao rei,
que, definida a campanha, busca o apoio dos homens do dinheiro, os quais
viam na empresa o lucro fácil, pingue, nababesco. 7

A observação acima mostra vários aspectos acerca dos objetivos e métodos acerca
da expansão ultramarina. Ela é encetada pela aristocracia, era cobiçada pela
burguesia urbana, possui o viés ideológico da cruzada contra os muçulmanos e foi
financiada por “homens do dinheiro”.

A paz com Castela havia deixado a nobreza militarmente desocupada, e a


mobilização para a guerra canalizaria inimigos para o exterior do reino, e para o
exterior da fé. Esse empreendimento era necessário para sustentar os proventos dos
nobres funcionários que tomariam a região de comércio marroquino, convergindo
mais uma vez a coroa e a nobreza numa estrutura estamental.

Um cuidado maior deve ser dado aos “homens do dinheiro”. Os comerciantes


venezianos que haviam transferido suas atividades para Portugal se tornaram
financiadores das expedições. Mas existe a questão judaica. Judeus sempre foram
adeptos das atividades comerciais, e alheios da sociedade, fortaleciam uma divisão
de classe em favor da burguesia, e desempenhavam atividades associadas ao lucro,
coisa que os cristãos se negavam a fazer8. Houve uma tentativa de conversão

7
- Raymundo Faoro, Donos do Poder, Capítulo 2: A revolução Portuguesa, da Aventura
Ultramarina ao Capitalismo de Estado.
8
- Santo Tomás de Aquino, no século XIII, já havia condenado a usura, e as atividades
comerciais empreendidas pelos protestantes encontraram resistência diante dos cristãos
católicos a partir da reforma.
religiosa que deu origem aos chamados cristãos-novos que reforça o desígnio
centralizador da coroa. Historicamente, os judeus quase sempre estiveram em
nações alheias, sobrevivendo e se fechando em seus costumes e afazeres. É
natural que sobrevivessem em suas atividades e ao esforço de conversão
empreendido pelo rei e pela Igreja. Era uma força desagregadora, porém,
controlada.

O rei Afonso I (reinou de 1139 até 1185) confiou ao judeu Yahia ben Yahi III o posto
de supervisor dos coletores de impostos e o nomeou rabino chefe de Portugal, uma
posição que sempre era apontada pelos reis. Até o século XV, judeus ocupavam
posições proeminentes na vida política e econômica no reino. Isaac Abravanel, por
exemplo, era o tesoureiro do Rei Afonso V (1432-1481). A situação judaica mudava
constantemente, de acolhimentos para expulsões, de exílios para conversões
forçadas, mas suas atividades comerciais sempre foram proveitosas para a coroa
portuguesa.

Após a Reforma Protestante, o movimento contra-reformista e a instituição da


inquisição, a conversão dos judeus voltou a permitir que estes ocupassem posições
proeminentes na sociedade, não sem ocasionais protestos e violentas
manifestações antissemitas. Naturalmente, muitos destes judeus financiaram e
auxiliaram a expansão marítima, e futuramente financiariam a colonização brasileira.

De Ceuta, a expansão marítima continuou como projeto para exploração da costa


africana, com objetivo de passar o cabo Bojador. Objetivo que sintetizava ainda os
diversos interesses, da expansão da fé ao comércio. As ilhas atlânticas da Madeira e
Açores compõem este quadro da aventura portuguesa, e a partir de 1433, várias
medidas foram adotadas pela coroa para o povoamento dos arquipélagos, e
estabelecer o comércio entre estes e o reino, e nem sequer envolvia riscos militares
contra os infiéis.

1.4 – Brasil Colonial

O descobrimento do Brasil se dá nesse contexto de expansão portuguesa pelo mar.


As primeiras impressões indicavam pouca utilidade para a nova terra descoberta,
pois não existiam povos civilizados para o exercício do comércio, e os animais
exóticos eram possibilidades de curto prazo para exploração. Portugal não imaginou
povoá-lo, mesmo porque possuía uma população reduzida, e a terra de Preste João
ainda não havia sido descoberta. Quando se percebe o baixo desempenho da
empresa de feitorias e conquistas no Oriente diante do desenvolvimento das demais
nações europeias no mar, a Coroa lusitana decide por uma nova forma de utilização
econômica da terra.

A colonização ocorre por meio da agricultura, nos mesmos moldes tropicais já


aprendidos nas ilhas do Atlântico. O objetivo principal era cobrir os gastos com a
defesa dos novos territórios. As sesmarias instaladas retiravam o peso da metrópole
de cobrir as despesas militares, e ainda obtinham rendimento com a produção dos
donatários. Pela primeira vez o Estado Português experimentaria uma
descentralização, mas nos alerta Faoro:

O plano inicial, de confiar a defesa territorial aos arrendatários, não protegia


a conquista contra a cobiça internacional, inconformada em ser excluída do
testamento de Adão, lavrado pelo papa em favor da Península Ibérica. O
Estado — repetindo uma vez mais o sistema oriental — veio em socorro do
seu negócio.9

9
Raymundo Faoro, Donos do Poder, Capítulo 4: O Brasil até o Governo-Geral, A integração
da conquista no comércio europeu.
As demais nações europeias em sua própria expansão marítima, inconformadas
com a divisão do mundo feita pelo Papa Alexandre VI entre Espanha e Portugal
através do tratado de Tordesilhas, principiam as invasões da América através do
princípio de que Espanha e Portugal não teriam direito às terras que não houvessem
ocupado efetivamente.

Prevalece a política de doações de latifúndios aos homens de posse, com a


exploração da terra através da escravidão aprendida pelos portugueses no seu
empreendimento na África. Posteriormente, conforme colocou Faoro, à divisão de
Capitanias Hereditárias se integra um Governo-Geral, acentuando o
intervencionismo aos setores econômicos das atividades coloniais. No Brasil
reaparece a cristalização feudal-estatal proveniente dos povos formadores de
Portugal. Paulo Mercadante, no seu livro “A Consciência Conservadora no Brasil”
apresenta essa estrutura como uma hierarquia triangular de senhorio, onde no
vértice superior estava o rei, e na base os donatários e os colonos, entremeados
pelos senhores da terra.

A missão do primeiro Governador-Geral foi erigir uma fortaleza, e assim Salvador foi
fundada em 1549, permanecendo capital da colônia por mais de duzentos anos. E
emanava do Governador Tomé de Souza a determinação de que a base econômica
fosse a agricultura cultivada e o povoamento, fomentando a realização de feiras nas
vilas e as trocas internas entre as terras divididas.

O açúcar configurou como atividade principal no início da colônia, por ser um


produto apreciado no mercado europeu, e um produto no qual os portugueses já
tinham experiência na produção tropical nas ilhas portuguesas. No entanto, aqui se
mostra uma primeira contradição da política lusa. A nobreza era digna demais para
exercer atividades comerciais, correndo risco de perder seus privilégios, cabendo-lhe
apenas a atividade administrativa e a militar. O financiamento acabou sendo
empreendido pelos judeus ou cristãos-novos convertidos, que haviam migrado para
a Holanda ou para Castela.

Assim, o comércio e a economia brasileira sempre foram direcionados para


satisfazer o mercado europeu, e a economia nacional nunca se apresentaria com o
desenvolvimento para o mercado interno. O Brasil dançaria conforme as
necessidades e demandas europeias, caminhando no sentido inverso das nações
saídas do feudalismo, onde o comércio exterior era um elemento novo adicionado ao
modelo fechado do sistema de alianças territoriais. O senhor de escravos era o dono
do domínio concedido pela coroa, e ao mesmo tempo, um comerciante.

O movimento de penetração territorial para além do litoral apresenta diversas


realidades, e entre elas, vemos o espírito religioso e aventureiro do povo português
mais uma vez presente. Os sertões eram desbravados com grupos militares, bem
armados, e acompanhados pelos agentes básicos das comunidades, como padres e
policiais. Há também as expedições fluviais que chegaram ao Amazonas, superando
os limites de Tordesilhas, principalmente no período da União Ibérica. Houve
também o espírito bandeirante que conquistou principalmente o Sul. Sérgio Buarque
de Holanda observa o fato do gosto pela aventura como uma característica do povo
brasileiro, na sua obra “Raízes do Brasil”:
E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições
e riquezas fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra,
não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura?(…)
E entretanto, o gosto da aventura, responsável por todas essas fraquezas,
teve influência decisiva em nossa vida nacional.10

Facilitou a povoação também a ausência de exclusividade racial do povo lusitano. Já


mestiço desde seu nascimento, com a convergência entre romanos, suevos,
islâmicos, judeus e africanos, não houve novidade com a miscigenação com os
indígenas da terra, e com os negros que para cá vieram como escravos.
Diferenciando-se dos senhores de terra, que implantaram a colonização vertical,
estes aventureiros que adentravam a terra promoveram a colonização horizontal, de
certa maneira se libertando das amarras estatais.

A religião também se mostra como um dos fatores preponderantes no novo mundo.


Os jesuítas se firmaram como uma ala avançada ação missionária, com avançadas
armas para o combate cultural, e realizaram obras notáveis no Brasil colonial.
Trouxeram a gramática latina para estruturar o idioma tupi-guarani, e disseminaram
o conhecimento linguístico que em muito facilitaria a missão portuguesa. Nos
Estados Unidos, os índios foram massacrados e depois conservados como peças
etnográficas. No Brasil, a população indígena se funde à civilização ibérica deixando
marcas visíveis na população. Os dois primeiros cardeais brasileiros, Arcoverde e
Leme, eram descendentes de índias e pertenciam a famílias de origem nobre. Era
impossível a total conversão dos índios ao catolicismo tridentino, mas o
empreendimento jesuítico fundou uma nova civilização ao regularizar casamentos
cristãos entre os povos lusitano, indígena e negro.
Eu prego ao Governador e à sua gente na nova cidade (situada no sítio da
Vitória, que se passou a se chamar depois Vila Velha) e o padre Navarro à
gente da terra. Espero em Nosso Senhor fazer-se fruto, posto que a gente
da terra vive em pecado mortal, e não há nenhum que deixe de ter muitas
índias das quais estão cheios de filhos e é grande mal. Nenhum deles vem
se confessar. Ainda queira Nosso Senhor que o façam depois. 11

10
- Op. cit., capítulo 2.
11
- Carta de Manoel da Nóbrega, chefe da primeira missão jesuítica da América, publicada
O padroado era a instituição que a Santa Sé delegava aos monarcas ibéricos a
função de fundar e administrar a Igreja Católica em seus domínios conquistados.
Assim, o rei construía as igrejas, e possuía a faculdade de nomear bispos e párocos,
que posteriormente seriam confirmados pelo Papa. Foi a consequência prática da
nacionalização da ordem militar de Cristo, e acabou se tornando mais um tentáculo
estatal da coroa, onde nomear padres virou direito de Estado, assim como o direito
sobre os dízimos. Isso criou a tendência de laicização dos párocos, onde estes
acabavam se tornando funcionários públicos com o passar dos anos.

Sob a estrutura acima mencionada se constituiu a nacionalidade brasileira, que tem


como evento de nascença a expulsão dos holandeses na Insurreição
Pernambucana, onde não apenas de militares portugueses se constituíram as
tropas, mas também de negros e índios. Este episódio é a colheita dos frutos da
colonização lusa, onde a posição econômica conquistada com o cultivo do açúcar
juntamente à estruturação da sociedade mostra que Portugal foi capaz de organizar
e formar um exército aqui treinado.

O encerramento do período açucareiro se dá por conta dos holandeses, que durante


sua estadia no Brasil, aprenderam os aspectos técnicos e logísticos do
empreendimento. Esses conhecimentos são a base para o desenvolvimento da
concorrência na região do Caribe. Nesse período a atividade migra do açúcar para a
mineração, com a descoberta do ouro de Minas Gerais. Esse período acaba
culminando no momento mais crítico do período colonial, que foram as reformas
feitas pelo Marquês de Pombal

em Cartas do Brasil, Editora da Universidade de São Paulo, 1988.


1.5 – Reformas Pombalinas

O início do ciclo do ouro levou à formação de cidades, enfraquecendo o poder dos


latifúndios agrários e contribuindo com o centralismo político. Para o orientalismo, a
fundação de cidades sempre representou o meio específico para o alastramento de
órgãos de poder e a fiscalização. Tais fatos ensejariam futuramente o início da era
pombalina.

Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro marquês de Pombal, havia sido ministro
na Inglaterra, e maravilhara-se com o desenvolvimento britânico no século XVIII.
Logo procurou aprender quais os fundamentos desse progresso, concluindo que a
ciência era a explicação de tudo. Quando teve a oportunidade, não hesitou utilizar
da experiência adquirida ao compor o ministério organizado por Dom José I, coroado
em 1750.

Nesta época, alguns atores políticos em Portugal próximos à coroa partilhavam a


consciência de que o reino estava defasado em relação às outras monarquias da
Europa. Consideravam excessivo o peso das ordens religiosas, e o sentimento
antirreligioso era a voga no início do iluminismo europeu. Gostariam de mudar o
método de ensino jesuítico. A nomeação de Pombal e a ocorrência de um terremoto
que destruiu boa parte de Lisboa foram o estopim para iniciar diversas reformas que
se presumiam necessárias.

O terremoto no reino iniciou um terremoto político que traria consequências no outro


lado do Oceano. Pombal se levantou fortalecido do terremoto, seu poder pessoal
erguia-se superior aos escombros da monarquia, e suas reformas acabaram levando
ao alargamento da esfera de intervenção do Estado para a reconstrução política e
física de Lisboa. Os seis anos seguintes ao terremoto mudariam profundamente a
política portuguesa.

Uma das medidas foi abolir a educação jesuítica do território metropolitano e das
colônias, apostando na criação de uma elite científica para substituir o ensino. Aqui
se vê que não é mais necessário educar as pessoas para alcançarem o paraíso,
mas sim para se tornarem bons profissionais úteis ao Estado. Escolas técnicas
foram criadas para o ensino de hidráulica, arquitetura, engenharia civil e militar, tudo
com a importação de professores da França e da Inglaterra. O sacrifício pessoal e o
amor à pobreza foram substituídos por enérgicas medidas para erguer as atividades
econômicas.

Pombal eliminou as capitanias hereditárias ainda existentes, eliminando o último


resquício descentralizador que restava no Brasil, cimentando a sua teoria
mercantilista ao processo econômico do território. Teoria que mais tarde foi refutada
por Adam Smith, mas que ainda assim deixou marcas que permanecem até hoje na
sociedade brasileira, onde é o Estado que deve produzir a riqueza.

Abolindo as distinções entre cristãos novos e velhos, abolindo a escravidão


no reino, equiparando os canarins aos portugueses, dando por uma vez a
liberdade aos índios do Brasil – o reformador nivelava todas as classes
perante o trono absoluto, varrendo parte do sistema de categorias
individuais, legado pelas tradições da Idade Média. As reformas na condição
das pessoas foram completadas pela reforma da legislação, da qual
também se baniram as tradições anacrônicas do romanismo e do direito
canônico.12

Na afirmação acima do professor Oliveira Martins acerca das reformas pombalinas,


percebe-se a exaltação estatal, típico da época iluminista e do chamado despotismo

12
- Oliveira Martins – História de Portugal. Livro VI, cap. 5 – O terremoto e Pombal.
esclarecido. Renova-se o orientalismo observado por Wittfogel, ao subordinar e
igualar todas as forças independentes no afã de reconstruir Lisboa e modernizar o
reino. A visão pombalina de compor uma elite tecnocrática, com capacidade de
administrar o reino de um centro esclarecido, criou monopólios econômicos e
aumentou o fisco sobre os comerciantes independentes. O exercício do poder e as
atividades econômicas deveriam ser as duas faces de uma mesma moeda.

O balanço do período foi o intenso crescimento jurídico-institucional. Afirmou a


supremacia real sobre a realeza e os demais poderes, cristalizando suas medidas
em batalhas contra a Igreja Católica e as ordens religiosas que fundaram o reino
português, tentando modificar o modo de pensar do povo através de decretos. A
partir de Pombal, o rei poderia mudar a ordem das coisas, intervindo em qualquer
plano social.

A repercussão do pombalismo no Brasil dera-se de maneira desordenada


no campo das ideias e da ação. O cetro realizou-se em estatização jamais
abandonada nos séculos seguintes de política econômica. As práticas
fixaram-se no patrimonialismo, no cartorialismo, na violência reproduzida
pela espada, travestida no cutelo, nos institutos fiscais do confisco de bens,
na prisão por dívidas, bem como na tortura institucionalizada de presos.13

Os símbolos utilizados na frase acima representam bem a mentalidade que


permaneceu no Brasil após as reformas, de maneira a corresponderem à realidade
de maneira alegórica: O poder do rei é absoluto, onde o aparato estatal faz parte dos
seus domínios pessoais e familiares, utilizando o poder da espada e a punição para
fazer valer suas vontades. O cetro finalmente sobrepôs a cruz.

13
- Paulo Mercadante, A coerência das incertezas, Pg 286, 2001.
1.6 – Independência ou Morte

A mudança da corte portuguesa para o Rio de Janeiro nos trouxe grande autonomia.
Gradualmente sumia a distinção entre brasileiros e portugueses, e a metrópole
europeia passou a ser governada por uma junta subordinada às autoridades do Rio.
As revoluções liberais de 1820 que convocaram as Cortes em Lisboa nos
empurraram para a independência, trazendo novamente em campo o problema da
representatividade política.

Portugal, não suportando a presença inglesa em seu território e a subordinação ao


Rio, tenta esvaziar este das funções políticas e exige o retorno da família real. Em
Lisboa, enxergava-se o Brasil como um arquipélago em terra, formado por núcleos
distintos de povoamento, e que não sobreviveria sem Portugal como centro comum
e fonte de forças militares. Ao enxergar o espetáculo de dissolução da América
Espanhola em pequenas ditaduras locais, imaginava-se o mesmo acontecendo com
o Brasil.

Essa visão se baseou nos eventos separatistas da Conjuração Baiana e da


Inconfidência Mineira, repletos de ideias iluministas que ganharam força com a
Revolução Francesa, importadas ao Brasil através dos portugueses chamados
“estrangeirados”. Mas o cetro e a cruz já estavam consolidados na formação do povo
brasileiro, cimentando sua resistência às Cortes de Lisboa ao redor do príncipe Dom
Pedro I. Dos conflitos entre as partes extremas que queriam a independência – os
liberais republicanos radicais e os reacionários contra a ordem democrática – se
concilia o meio-termo, a amálgama que sempre esteve presente entre os elementos
conflitantes formadores do povo português, e posteriormente o brasileiro.
A vinda da família real para o Brasil o transformou em reino, e um reino ele quis
permanecer. Não arrancaram o poder de um príncipe, mas permaneceram com ele,
juntamente às ideias de liberdade trazidas da revolução que balançou a Europa. Os
partidos, tendo aprendido com o exemplo da Europa e da América Latina, temiam a
anarquia social, e todas as divergências pragmáticas desapareceram. Senhores
rurais se uniram aos inconfidentes mineiros e cautelosamente alcançaram a
independência.

Para manter a unidade nacional, era necessário um centralismo em torno do cetro,


de onde emana a autoridade que expressa justiça de maneira legítima. A coroa da
família Bragança unida à coroa da família Habsburgo era a expressão de
legitimidade que o Brasil necessitava para exprimir sua autoridade interna, e também
a autoridade diante da Europa. A denominação de Império mostra a separação de
Portugal, que era um reino. Império agrega a independência à ideia de Império do
movimento liberal que esteve associado a Napoleão Bonaparte. Mais uma vez o
Estado passa a ser o patrão que supera as contradições e oposições dialéticas.

Para alcançar a democracia idealizada pela revolução, os pensadores da


Independência se apoiaram no sistema de equilíbrios da monarquia constitucional.
Conhecedores de Aristóteles, sabiam que uma monarquia desequilibrada se
transformaria em despotismo, e uma democracia desequilibrada se transformaria em
demagogia, e decidiram limitar uma pela outra. O processo certamente não foi
inteiramente pacífico, mas a elite que consolidou o pensamento de um Brasil
independente conseguiu unificar o país na base da força e da união em prol de um
bem comum entre os radicalismos. A coroa e o cetro, unidos à cruz, transcendem a
autoridade dos grupos econômicos, ideológicos e regionais.
1.7 – O Brasil Imperial e a política

A monarquia constitucional consistia em uma forma de governo representativo,


balanceada entre uma Câmara dos Deputados renovada periodicamente e um
Senado vitalício. O governante só atua através de determinações dos órgãos em
que estava localizada a representação, e o aparecimento de partidos políticos
oficializou e hierarquizou a prioridade dos interesses diversos, para que se formem
consensos. Os partidos não representavam pessoas, mas interesses. Foi a
unificação dos radicalismos que transformou a luta armada pelos interesses na luta
pelas representações.

Confluências de situações diversas ditavam a vida partidária da política no Império.


O princípio de que o representante é uma pessoa que assume a palavra no lugar da
outra na defesa de seus interesses, e a constituição de 1824 encarnando o pacto
fundamental do povo brasileiro, dá o papel de primeiro representante do povo ao
Imperador, que não representando nenhuma província, representaria o espírito da
união. A assembleia encarnava o outro representante, e este era eleito. Aqui mora o
primeiro problema: o Brasil era despovoado e quase todo agrário, com tenebrosas
complexidades de intercomunicações. O povo era heterogêneo e os diversos
interesses regionais dificultavam o exercício democrático, resultando num verdadeiro
caos nos primeiros anos pós-independência, onde os interesses das primeiras
eleições resultavam em cada deputado votando de acordo com sua opinião pessoal.

Nos primeiros anos, conflitos bélicos separatistas ainda soavam seu eco, vindos do
processo de independência, como a Confederação do Equador que foi reprimida, e o
caso bem sucedido da Província de Cisplatina, que resolveu se incorporar às
Províncias Unidas do Rio da Prata. Com um quadro político abarrotado, não foi
tranquila a formação de representatividade no início das instituições imperiais.

Um novo elemento se juntou ao quadro poucos anos após a independência: a morte


de Dom João VI em 1826, a qual trouxe uma guerra dinástica em busca do trono
português. A regência por ele formada aclamava Dom Pedro como rei de Portugal, e
este sabia que a reunificação era impossível, dada a crescente xenofobia contra
portugueses no Brasil, e a vontade recolonizadora portuguesa. Dom Pedro acabou
adaptando ao reino português a Constituição Brasileira de 1824. Assim se tentava
formar mais uma amálgama entre os liberais e os conservadores, pois estes teriam
um rei, e aqueles uma Constituição. A tentativa, entretanto, terminou polarizando os
liberais e os miguelistas. Dom Pedro abdica do trono brasileiro em favor do filho Dom
Pedro II, em 1831, e regressa à Europa para ser a imagem real dos liberais
portugueses e continuar a batalha pelo trono.

A abdicação não veio exclusivamente por questões portuguesas. Dom Pedro I


enfrentava muitos problemas internamente. Temia-se a recolonização. A Câmara de
1828 se apresentou mais radical em direção ao liberalismo, rugindo contra a
escravidão e pregando uma república descentralizada e federativa. Após a
abdicação, estes liberais extremos se mostraram revolucionários que temiam a
revolução. Consumado o afastamento do príncipe português suspeito, os exaltados
acabaram se deixando lançar fora no dia seguinte como inimigos da sociedade, e os
mais ardentes revolucionários deram meia volta, preservando a tendência que
melhor testemunhava a vontade da sociedade, que era a preservação da ordem
existente, culminando no governo regencial e posteriormente no Ato Adicional.

Na Regência se forma uma polarização diversificada em partidos políticos, apesar


dos intensos conflitos regionais que emergiram durante o período. Fez-se nesse
período regencial a reforma constitucional que daria ao Império o sentido “federal”,
criando-se as assembleias de província que possuiriam amplas atribuições. Nesta
reforma também se determinou que o Regente fosse eleito por todo o corpo eleitoral,
como um Presidente da República, em regime presidencial. O Brasil se tornara uma
república provisória. Este é mais um dos fatos únicos da história brasileira, pois
normalmente as regências eram exercidas por membros próprios das famílias reais,
e aqui se improvisou um sistema representativo eleitoral, novamente mostrando o
espírito eclético e conciliatório de nossa nação.

Muitas vezes um partido está no poder, e, todavia há nos elementos sociais


uma tendência tão contrária às suas ideias que o seu triunfo se anula, e
apenas Ihe deixa servir aos interesses individuais e coletivos, as paixões e
as ilusões que os congregaram; até mesmo tão forte é as vezes essa
tendência que o partido, embora ocupe as posições do domínio e da
influência, tem de obedecer-lhe e de servi-la, ainda contra os seus
princípios, e de firmar as convicções que Ihe são mais repugnantes.14

O Brasil experimenta na fase regencial uma descentralização e a autossuficiência


das províncias, que gradativamente retorna à tendência centralizadora ao passar
dos anos. A morte de Dom Pedro I em 1834 remove a possibilidade dos
restauradores monárquicos caramurus, afrouxando a resistência liberal. Mas mesmo
no caso dos liberais, como o Regente Feijó, percebe-se a vontade de exercer o jugo
sobre esferas que pairam sobre a sociedade: Feijó queria abolir o celibato sacerdotal
através do Poder Legislativo do Império do Brasil.

Com a adoção de um governo de gabinete, em 1847, a vida política recai novamente


no problema de como constituir uma maioria. O problema eleitoral do país era o da
qualificação dos eleitores. Na roça votavam quase que apenas os fazendeiros,

14
- R. Magalhães Júnior, Três Panfletários do Segundo Reinado. 2009, citando José Justiniano da Rocha, um
jornalista e escritor político do II Reinado.
enquanto nas cidades votavam quase todos. Se a representação atribuída ao
Imperador era evidente, a representação da Assembleia era muito discutida.
Somente com a instituição da “Lei Saraiva”, já na última década do período imperial,
é que se obtiveram resultados satisfatórios com as eleições15.

Cada circunstância política montava sua máquina própria e fazia suas eleições. Este
era o resultado da implantação de uma monarquia liberal em um país onde o povo
ainda possuía – e talvez possua até hoje – a herança do centralismo ibérico.
Quando o Imperador provocava mudanças no cenário político, os partidos donos da
situação montavam suas máquinas. Com o eleitorado sendo apenas um corpo
arbitrário forjado no calor do momento, quem dominasse alguma posição-chave
constituiria o eleitorado.

Um evento que traria modificações permanentes à política no Império foi a Guerra do


Paraguai, um confronto militar de grandes proporções, resultante de um eco mal
consolidado do período da Independência. O resultado desta guerra na política
brasileira foi a reestruturação dos militares no quadro de organização do poder.

O Brasil adotou um modo único de organizar um front de batalha: não unificou a


política em um front interno. Não houve união política, as lutas partidárias
continuaram do mesmo modo. Não houve censura à imprensa, e nenhuma
providência era imposta para desencadear o ambiente de união nacional durante o
conflito. Zacarias era liberal e Caxias era conservador. Desavenças entre o governo
e o exército durante uma guerra conduz naturalmente ao estado de crise política.

15
- A Lei Saraiva foi instituída na última década do Império (1881), inaugurando o “título de eleitor”. Introduziu
a eleição direta, instituindo um único corpo de eleitores, fixando a renda deste em duzentos mil Réis.
O Brasil aumentou seu efetivo durante a guerra de 16 mil homens (1865) para 71 mil
(1867). Durante a guerra, muitos oficiais foram levantados de patente por sua
bravura, e à medida que os antigos generais bem nascidos morriam, a nova direção
do exército perdia influência nos assuntos nacionais. Estes militares não faziam
parte da “nobreza” reinante de nascença, sendo menosprezados na vida política,
razão pela qual paulatinamente os militares arregimentaram as fileiras extremistas e
republicanas, adeptas do positivismo Comtiano.

Com o avanço na idade do Imperador Dom Pedro II, e consequentemente sua


progressiva alienação das atividades políticas, a instituição da Coroa acabou por se
isolar e enfrentar uma oposição crescente proveniente de diversos setores: do
exército republicano, dos senhores rurais anti-abolicionistas e do clero que desejava
subordinação apenas à Santa Sé.

Efetivamente, estas são as grandes questões normalmente ensinadas aos


brasileiros quando estudam o declínio do Império e o advento da república. É
interessante refletir agora reunindo tudo o que foi exposto e perceber que neste
exato ponto se dá uma ruptura na amálgama existente, uma ruptura no equilíbrio do
poder trazido pela legitimidade da Coroa, em que a perspectiva do Terceiro Reinado
recairia na pessoa da Princesa Isabel e seu marido Conde D’Eu. Uma mulher
católica – logo, pertencente ao passado português e não ao período das “luzes” - e
seu marido estrangeiro. Com o desenrolar do século XIX, não era mais possível
conciliar os interesses de cada quadro e seus respectivos desenvolvimentos sob
uma égide centralizadora antiga. A relativa ausência da Coroa nos últimos anos do
Império, e o caminho liberal em uma sociedade fundada e estruturada em alicerces
patrimonialistas acabou deflagrando conflitos dialéticos que culminariam em um
novo regime.
No âmbito militar, as guarnições eram provinciais, sujeitas ao presidente da
província, colocando um elo “paisano” entre os militares e o supremo generalíssimo
que era o imperador. E este elo acabava sendo político-partidário, onde o civil
possuía honras militares análogas às dos antigos governadores-generais
portugueses. . Após a Guerra do Paraguai, os militares passaram a tolerar menos os
civis adentrando na organização desta forma. Com a saúde decadente de Dom
Pedro II, os militares não se viam mais obedecendo a seu generalíssimo imperador,
mas sim alguns políticos, contra os quais mantinham animosidades partidárias.

No sistema de gabinetes, o general paisano impunha sua política de cima abaixo às


suas tropas, que acabava dificultando um dos maiores problemas do Império: a
unificação e consolidação territorial que formaria a definição de nacionalidade
brasileira, não apenas como uma simples expressão geográfica, mas como
expressão cultural e civilizacional diante do mundo.

No âmbito religioso, por liberal e avançada que fosse a constituição de 1824 diante
das demais de sua época, ela acabou conservando o absolutismo onde menos se
justificava, sujeitando a Igreja ao Estado, mantendo a tradição que vinha desde a
nacionalização das ordens militares das cruzadas no território português. As
ordenações ocorriam sob a égide do Poder Executivo, colocando nessa receita
explosiva a instituição da Maçonaria, que abrigava grande parte dos políticos da
época imperial. Na Europa, a Maçonaria era uma das sociedades secretas que
tentava minar o poder da Igreja Católica diante dos Estados Nacionais, e já
começara a ser condenada pela Igreja desde o Papa Clemente XII, em 1738.
Quando o Papa Pio IX excomunga os maçons, naturalmente reaparece um conflito
entre a ideia de um Estado Absoluto e uma instituição independente que fragiliza o
poder central.

As forças sociais que jaziam inertes tomaram impulso com o processo de


industrialização e desenvolvimento econômico, unidos à ideia de um estado
tecnocrático comandado pelos positivistas. As forças locais que arregimentavam
para si polos de poder reaparecem, e a promulgação da Lei Áurea foi preponderante
para que os donos de terra abandonassem a monarquia. Oliveira Viana conclui a
missão histórica da era imperial:

Na verdade, a grande obra da monarquia em nosso povo foi uma obra de


unificação e legalidade – e na realização dessa unificação e legalidade ela
teve que lutar justamente contra as forças, sempre rebeldes, do localismo e
do provincialismo. Historicamente, havia, portanto, uma incompatibilidade
entre as duas instituições – e o princípio de uma só podia desenvolver-se
com o detrimento ou o enfraquecimento do princípio da outra. Tornando-se
federativa, como aspirava Nabuco, a monarquia renunciava a sua grande
missão histórica em nosso povo e, sem dúvida, iria desmantelar com as
próprias mãos a poderosa estrutura da sua própria obra. Não seria
temerário, aliás, dizer que, desde o momento em que o ideal federativo
começou a entrar nas aspirações das nossas elites políticas, a instituição
monárquica começou a ver desenvolver-se ao seu lado o mais prestigioso
elemento do sistema de forças, que haveriam de destruí-la.16

Após a consolidação territorial, administrativa e política alcançada pela Coroa


Brasileira, os republicanos estavam mais à vontade para agir, principalmente pela
total liberdade de imprensa concedida aos adversários da monarquia, que não
cessavam de ataca-la. Tais ataques vinham dos polos militares e dos profissionais
liberais, onde o positivismo se inspira no ideal ético da Revolução Francesa.
Republicanismo era a ideologia típica do século XIX, embora nenhuma república
europeia da época pudesse se gabar de possuir estabilidade interna, excetuando a
Suíça.

16
Oliveira Viana, O Ocaso do Império, pág 34-35. Academia Brasileira de Letras , 2006.
1.8 – Positivismo e Republicanismo

O que é este positivismo mencionado anteriormente? Como ele se encaixou dentro


de uma civilização com elementos tão heterogêneos, mas que sempre se firmaram
em um “juste milieu”? Qual o resultado dessa nova ideia, além da já mencionada
queda da monarquia brasileira?

A partir da Revolução Francesa, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade


adquiriram uma aura mística. Entretanto, essas ideias não atuam de acordo com
uma teologia sólida, como a Trindade Cristã, possuindo contradições profundas que
entraram em conflito ao longo da história da tradição revolucionária. A liberdade
deveria ser assegurada por uma república constitucional, posta em prática através
da atuação de um poder maior que o dos cidadãos comuns. A igualdade surge de
um ideal de sociedade comunal, que não possuísse hierarquias sociais. A
fraternidade emerge da emoção sentimental de uma família, que constituiria um
novo tipo de nação – todos seriam filhos da mesma pátria.

A República representa o ideal de uma ordem política racional. Esta substituiria os


antigos privilégios onde os súditos seriam os cidadãos, e a autoridade absoluta do
rei seria a lei. A humanidade se libertaria do passado autoritário em troca de regras
racionais, estabelecidas por assembleias populares, e a igualdade seria baseada
nas ideias de um forte contrato social – que de acordo com as ideias de Rousseau,
repudiaria a desigualdade entre os homens e legitimaria a autoridade através da
“vontade geral” que unificaria a comunidade em uma nova fundação.

Augusto Comte deu à humanidade a sua obra positivista exatamente neste período
conturbado do século XIX – o período das revoluções. Em sua descrição, propôs
que as sociedades passavam por três fases em sua busca pela verdade: a teológica,
a metafísica e a positiva. Por si só, essas denominações já atrelam às religiões a
ideia de atraso, onde a primeira fase teológica seria associada a uma Igreja, a
segunda fase seria o início de uma caminhada para um racionalismo lógico, e a
terceira fase é a fase da lei científica, ou positiva. A ideia central da terceira fase
pressupõe que os direitos individuais são mais importantes que uma liderança
pessoal, onde a humanidade seria capaz de se autogovernar.

Tais ideais positivistas chegaram ao Brasil primeiramente através da maçonaria, que


desde a época do Marquês de Pombal já se apresentavam em algumas cidades
portuguesas e brasileiras. Após o início das revoluções do século XVIII
(Independência Americana e Revolução Francesa) e a vinda da família real no
século XIX, tais ideias iluministas e positivistas se fizeram mais fortes nos círculos
intelectuais brasileiros, chegando ao extremo de fundar até uma “Igreja Positivista”
no bairro da Glória (Rio de Janeiro) em 1881. No Brasil, a sociedade já era
subjugada ao poder central e suas classes se dividiam apenas em ordem econômica
– e não jurídica, como nos reinos europeus – fazendo com que o positivismo
encontrasse um terreno extremamente fértil para difundir seus ideais.

O cientificismo iniciado por Pombal e já atrelado à brasilidade também funcionaria


como adubo para o positivismo. O estudo de matemática nas escolas militares
colocaram os alunos em contato com Comte, que em pouco tempo seria absorvido
em sua totalidade nos modelos de ensino. Este positivismo forneceria os elementos
requeridos para a formulação de um autoritarismo doutrinário, que sempre reaparece
em nossa história republicana. As doutrinas comteanas desenvolveram os ideários
pombalinos de crença em moral e política científicas.
Benjamin Constant idealizou o novo papel do soldado, fazendo uma síntese do
positivismo e do cientificismo, onde caberia ao exército a vanguarda da conquista do
Estado Positivo.
“O soldado deve ser, de hoje em diante, o cidadão armado, corporificação
da honra nacional e importante cooperador do progresso com garantia da
ordem e da paz públicas, apoio inteligente e bem intencionado das
instituições republicanas...”17

“Somos da América e queremos ser americanos” – este era um dos principais motes
da propaganda antimonárquica. Ignorando as vantagens de o Brasil ter se
consolidado como uma monarquia constitucional, os radicais que se aquietaram nos
períodos turbulentos reaparecem no jogo político após a estabilização alcançada no
terceiro quarto do século XIX. Desde o início do Império existia uma corrente a favor
da Federação, que sumia diante das turbulências para se acomodar na camada
milenar da heterogeneidade cultural das civilizações que formaram a brasilidade.
Embora tenha vencido na carta constitucional, na prática, continuava apenas como
um ideal diante do centralismo administrativo – o qual era fundamental para a
manutenção da unidade do território brasileiro.

Com a proclamação da República, a ideia federativa já estava completamente


emersa de suas profundezas, mas ao contrário da Federação Norte-Americana, ela
se consolida contraditoriamente por uma atitude de um poder central. As colônias
inglesas se transformaram em Estados Independentes ao romperem com o Império
Britânico, para depois se unificarem em confederação e posteriormente em
federação. No Brasil, a estrutura federativa ocorreu através de uma determinação
imposta pelo governo militar republicano: a Constituição de 1891. O sistema
federalista é fruto de uma lei superior à federação.

17
Citação encontrada no livro de Luiz Antônio Cunha: A universidade temporã: o ensino superior, da Colônia à
Era Vargas, página 153.
A Federação Brasileira não passou, portanto, da imanentização de um ideal liberal,
colocado como uma camada por cima do coração centralizador da cultura brasileira.
As províncias “independentes” que antes eram todas subjugadas à Coroa
Portuguesa e depois à Brasileira, agora estão abaixo da República Federativa.

Por tal contradição, nunca se entenderam os historiadores e os juristas: as


províncias existiam como entidades autônomas antes de se unificarem, ou a
constituição legisla a favor da desintegração de uma unidade? Nesse impasse,
adiciona-se ao caldo a confusão dos termos – República Federativa (Constituição de
1891) ou Estado Federal (Constituição de 1937)? Federativa nos impõe uma ideia
dinâmica, enquanto que Federal nos traz um pensamento estático. A conclusão de
João Camilo Torres de Oliveira acaba sendo a velha amálgama de ideias opostas,
tão presente em nossa formação:

...não surgiu o Estado Brasileiro da associação de províncias anteriormente


autônomas, nem de semelhantes formas em face de uma dissociação da
soberania nacional: as províncias surgiram dentro do corpo nacional, aí
estão e aí ficarão.18

A passagem de uma monarquia constitucional para um regime republicano


militarizado nos trouxe uma curiosa continuidade institucional na política: a soberania
real se transforma na soberania nacional. A corte do monarca se institucionaliza em
servidores do Estado, onde ainda se confundem as noções de tarefas
administrativas do Estado e os bens patrimoniais. Subsiste o selo honorífico dos
grandes cargos da nobreza, agora os altos servidores da nação.

18
João Camilo de Oliveira Torres – A Formação do Federalismo no Brasil, pag 52
Inspirado pelos ideais positivistas do período iluminista, a República de 1891
escapou de ser anticlerical para ser apenas laica, procurando acentuar o
nacionalismo aos moldes da “religião do Estado” preconizados à época da
Revolução Francesa. Por um lado, a Igreja Católica finalmente respirou ares de
liberdade ao se livrar das amarras estatais e ser subordinada somente à Santa Sé,
mas por outro, teve destruídos todos os seus pontos de apoio, por conta da grande
influência maçônica na alta cúpula política remanescente do Império.

Os ideais positivistas, a esta altura, ainda não haviam alcançado a esfera


econômica. A unificação econômica brasileira ainda continuava pendente, sendo o
país constituído de pequenas ilhas de atividades diversas desde o período colonial.
Com a federação republicana e a recente abolição da escravatura, as províncias
puderam usufruir de suas liberdades, embora todas as atividades ainda fossem
amplamente agrárias. Esse localismo incentivou o coronelismo político dos
latifundiários, fato que ainda permeia nossa política turbulenta até os dias atuais.
Esse espírito localista era moderado pela ação dos presidentes, resultando na
formação de um eixo central entre os fazendeiros de Minas Gerais e São Paulo, no
que foi chamado República do Café com Leite.

No início de nosso período republicano, o governo interveio nomeando militares para


governar, realizando o ideal positivista onde tecnocratas assegurariam a evolução da
sociedade. Entretanto, o tumulto gerado pela dissolução dos quadros políticos
anteriores para a formação de novos gerou contendas em todo o Brasil, a mais
significativa sendo a chamada Grande Revolução Federalista que fundiu-se com a
revolta da Armada. O centralismo dá lugar às oligarquias estaduais.

Tal como o balanço entre o Partido Conservador e o Partido Liberal do Império, a


política na República balança entre períodos de forte autoritarismo e períodos
descentralizadores. No novo governo republicano estavam presentes as três
correntes proclamadoras da República: os militares – alguns chamados de jacobinos
pelo seu extremismo, os liberais e os positivistas, personificados nas atuações
respectivas do Marechal Deodoro, Rui Barbosa e Benjamin Constant.

A Constituição de 1891 deu aos liberais um instrumento aglutinador,


permitindo-lhes elaborar o que Nelson Saldanha denominou de pensamento
político oficial. Assim, pelo menos ao longo das três primeiras décadas
republicanas, o liberalismo corresponde à doutrina política oficial. Mas a
prática do regime era francamente autoritária.19

O período republicano trouxe uma luta feroz pelo domínio do poder executivo
central, onde o liberalismo contrapôs com a política dos governadores. Ao longo dos
quarenta anos da República Velha, o liberalismo se esvai diante das forças políticas
centralizadoras que sempre foram presentes em nossa nação, que desta vez
reaparecem na forma do Castilhismo, onde Vargas toma as rédeas do autoritarismo
doutrinário. A oligarquia que se apossou do poder abriu portas anárquicas, que
paulatinamente obrigou o governo a fazer reformas ousadas, pautadas pelo
positivismo, no sentido em que o governo e a política deveriam depender menos de
partidos políticos e mais de competência. A defesa da liberdade não era suficiente
para barrar o avanço autoritário.

De 30 a 45 tivemos a chamada Era Vargas, e marca o crescimento da ordem sobre


as desarticulações liberais. Rui Barbosa presumia que o Supremo Tribunal Federal
seria o herdeiro do Poder Moderador, acima das facções e interesses, assumindo a
hereditariedade sem a linhagem dinástica. Mas o debate jurídico acaba se perdendo
em questões supérfluas, incapaz de mostrar eficácia ao organizar o Estado

19
Antônio Paim – O liberalismo Brasileiro – página 86
Nacional, e utiliza-se da força para guiar a nação ao futuro. É nesta ambientação
que Vargas assume o poder, apoiado por metade do exército e quase totalidade dos
oficiais das insurreições de 20 (Tenentismo).

Não caberia às massas de classe média e populares o protagonismo no progresso


nacional. Novamente surge o Estado orientador, paternalista na essência, como
eram os antigos reis portugueses. Mas no lugar de decretos reais, uma burocracia
tecnocrata e superior, que traria a felicidade da nação sem se sujeitar aos interesses
classistas. As forças militares nunca deixaram de ser a espinha dorsal dos governos,
quebrando os exclusivismos estaduais que ensaiaram sua existência. Agora se
unifica a economia, aniquilando as forças independentes, flertando com a ideologia
fascista europeia. Em 1937 ocorre uma cerimônia cívica onde são queimadas
bandeiras estaduais, e Getúlio aparece como o novo messias que liderará a pátria.

De maneira análoga, a queda do Estado Novo de Vargas cai junto com a derrota do
fascismo na Europa. O fim da Segunda Guerra e o papel da União Soviética no
conflito atrairia para as fileiras do Partido Comunista parcelas significativas da
intelectualidade brasileira.

De dom João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis séculos, uma


estrutura político-social resistiu a todas as transformações fundamentais,
aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo. O capitalismo
politicamente orientado — o capitalismo político, ou o pré-capitalismo —,
centro da aventura, da conquista e da colonização moldou a realidade
estatal, sobrevivendo, e incorporando na sobrevivência o capitalismo
moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do
indivíduo — liberdade de negociar, de contratar, de gerir a propriedade sob
a garantia das instituições.20

20
Raymundo Faoro – Donos do poder – Capítulo Final: VIAGEM REDONDA – DO PATRIMONIALISMO AO
ESTAMENTO
Entre 1930 e 1985 houve um longo período autoritário, intercalado por um período
democrático entre 1945 e 1964. Em 1986 inauguramos a chamada Nova República,
que hoje se encontra após seu segundo impeachment, e aparentemente com um
futuro incerto quanto à saúde da democracia. Do que foi exposto, é possível delinear
em breves linhas o período pós República Velha para em seguida concluirmos o
capítulo no que tange a identificação das aspirações nacionais profundamente
arraigadas na alma brasileira.

Após a Era Vargas, houve o chamado Regime Liberal-Populista, que durou de 1945
até 1964. Em 1946 foi promulgada uma nova Constituição, marcando o retorno
liberal às fileiras políticas, notadamente no governo do presidente Eurico Gaspar
Dutra. Estabeleceu medidas liberais como a plena independência na compra e
venda de cambiais, que no mesmo decreto eliminava o chamado mercado livre
especial, que disciplinava a aquisição de moedas estrangeiras.

O que marcou esse período foi o retorno de Vargas ao poder, e seu suicídio. Velhos
conflitos reapareceram, e Vargas acabou passando por um malogrado processo de
impeachment. Porém esse processo foi suficiente para que as tensões
continuassem se precipitando, culminando com a sua morte em 1954. Kubitscheck
assume em 1956 e novamente o intervencionismo aparece através do seu programa
de metas que alavancaria a industrialização brasileira. Sempre caminhando em
picos e vales de instabilidade, o período democrático acabou culminando no Regime
Militar, onde novamente caberia a um poder centralizado guiar a nação ao futuro. Os
militares, entretanto, desta vez não tentaram tomar ares de governo representativo,
como os demais presidentes centralizadores que os precederam ensaiaram em sua
demagogia. Suas intenções eram um retorno ao positivismo e ao autoritarismo
instrumental.
1.9 – As aspirações e vulnerabilidades nacionais na formação brasileira

Como foi visto anteriormente, a civilização brasileira não é uma civilização liberal,
mas sim clânica e autoritária, herdeira do patrimonialismo português que se formou
desde o período das cruzadas. O liberalismo é uma ideologia importada de uma
cultura estrangeira ao iberismo, mas que acabou se acomodando na mentalidade da
intelectualidade brasileira. O Estado Unitário que se forma nos sessenta anos após
1930 se torna o absoluto senhor da vida econômica do país.

É possível delinear do acima exposto, dos dois mil anos que envolveram a formação
portuguesa e brasileira, as aspirações nacionais que sempre fizeram parte da nossa
cultura. As aspirações nacionais são um somatório das aspirações históricas,
realizadas ou frustradas, e é preciso qualificar se as que perseguimos atualmente
são frutos de influências externas ou se realmente refletem as profundezas da alma
brasileira. Abaixo estão reflexões sobre as questões mais comuns no que tange as
aspirações nacionais clássicas do Brasil, com suas respectivas vulnerabilidades:

 1 – Soberania e Independência:

Sempre lutamos pela soberania territorial e nossa independência. Desde a formação


portuguesa ao se livrar dos mouros, passando pela independência e conquista
através das navegações, até a Independência do Brasil, enfrentamos ameaças
estrangeiras e procuramos nos impor diante do concerto internacional. Com a
tentativa de Napoleão Bonaparte de criar um Império Europeu com aliados em todos
os tronos, a família real trouxe a administração para sua colônia, de onde partiu o
desenvolvimento para a Independência Brasileira. Diante das perspectivas de ver a
integridade do território brasileiro se esfacelar, optou-se pela manutenção
administrativa a partir de um centro já existente, dando continuidade à monarquia.
A partir da segunda metade do século XX, com a emergência do mundo bipolar, os
Estados-Nação buscaram manter o equilíbrio entre relações externas fortes e sua
soberania diante dos organismos internacionais. O Brasil não é exceção. Ao longo
de sua história sempre lidou com influências externas acerca de suas riquezas
naturais, e ainda hoje é obrigado a lutar para manter sua soberania, enfrentando
políticas ambientais estrangeiras e consolidando sua soberania sobre o território
amazônico e suas riquezas naturais.

 2 – Unidade Nacional:

Este foi o grande objetivo da Independência, e até hoje o Brasil ainda enfrenta
regionalismos e algumas ideias recorrentes de emancipações estatais, como o
movimento de “São Paulo Livre” ou “O Sul é meu País”. Apesar de existir uma
unidade geográfica, ainda não existe um senso de totalidade no povo brasileiro.
Existem questões de preconceitos territoriais, fruto ainda da colonização, onde os
territórios se comunicavam com o centro além-mar. Apenas com a migração da corte
é que o Brasil começou a experimentar uma unidade administrativa.
A construção de Brasília consagrou a realização do governo republicano de um
projeto para a integração nacional que Capistrano de Abreu, Marquês de Pombal e
outros já sonhavam para a capital brasileira. José Bonifácio preparou uma minuta de
reivindicações junto às Cortes de Lisboa, onde constava a necessidade da
construção de uma capital no interior do país.

Sendo um país essencialmente de imigrantes, se fazia necessária a absorção


cultural das diversas etnias que chegavam ao Brasil para o desenvolvimento da
nação com o conhecimento que traziam. Em 1938 foi criado o Conselho de
Imigração e Colonização, se transformando em Instituto Nacional de Imigração e
Colonização em 1954. O conselho funcionava como um catalisador de aculturação e
quebra de isolamento geográfico e social, buscando evitar a formação de novos
núcleos homogêneos, para que os imigrantes se adaptassem aos planos de
desenvolvimento elaborados pelo governo.

 3 – Justiça e desenvolvimento:

O Brasil nunca possuiu castas sociais formalmente determinadas por nascimento


como ocorrera na Europa feudal. A escravidão e as condições econômicas eram as
únicas instancias em que se montava uma pirâmide social. A mestiçagem trazida
desde a Península Ibérica dissolvia classes independentes e colocava a todos sob a
égide da Coroa. Com o fim da escravidão, os imigrantes europeus reforçaram os
grupos inferiores e intermediários, e a industrialização aparece com sua massa de
operários urbanos. Apesar de nunca ter existido barreiras jurídicas para a
mobilidade social, o paternalismo e a acomodação de algumas classes em sua
condição servil acabava assegurando as vitórias das oligarquias.

Getúlio Vargas soube aproveitar o apoio das massas trabalhadoras na política,


conseguindo tomar o poder das oligarquias da política do café com leite. Este fato
representou a entrada da massa operária no jogo do poder, principalmente com o
surgimento da classe média, fruto da urbanização. Entretanto, a classe média não
surgiu com o papel estabilizador que exerce nas democracias ocidentais, mas como
um elemento de instabilidade no que chamou de recuperação moral do país. As
lideranças se utilizaram da indignação da classe média para fazer sua política, algo
semelhante ao que aconteceu com o Impeachment da Presidente Dilma Rousseff.
Hoje a inflação esmaga as classes trabalhadoras e não há perspectivas de papel
político para as classes sociais exercerem, visto que ainda se mantém na cúpula o
mesmo estamento burocrático.

A justiça social ainda avança na sociedade a passos lentos, por conta da


dependência da classe dominante para que aconteça. Os programas sociais apenas
se empenham em medidas rotineiras e remediadoras, pouco se importando com
reformas de base. A ideia de crescimento acelerado aparece com Kubitschek e seus
cinquenta anos em cinco, um vigoroso movimento nacionalista para alavancar áreas
subdesenvolvidas, continua sob os militares e depois reaparece na forma de
privatizações na Nova República. O governo petista surfou na onda
desenvolvimentista até que a economia do país se revelou extremamente instável,
parando o surto de desenvolvimento, como será explicado mais adiante.

 4 – Educação:

A colonização portuguesa nunca procurou a educação como baluarte para seu


desenvolvimento A educação nas colônias se deve apenas aos Jesuítas, para
depois ser imposta a educação cientificista do Marquês de Pombal. Essa cultura
cientificista estabeleceu na nação um amor aos títulos e diplomas que dariam
acesso às boas remunerações e posições, e não realmente ao conhecimento.

Não tem conta entre nós os pedagogos da prosperidade que, apegando-se


a certas soluções onde, na melhor hipótese, se abrigam verdades parciais,
transformam-nas em requisito obrigatório e único de todo progresso. É bem
característico, para citar um exemplo, o que ocorre com a miragem de
alfabetização do povo.21

Sérgio Buarque atrela aos desenvolvimentistas a utilização utilitarista da educação,

21
Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, pag 165. Capítulo 6 – Novos Tempos.
buscando-a apenas para o benefício do Estado, que monopolizou a educação
particularmente após o advento da República, seguindo os modelos da educação
napoleônica. Acontece que este modelo está bem distante do ideal pretendido pelos
grandes filósofos gregos e medievais, onde a educação era uma busca pela
transcendência deste mundo. A partir da Era das Revoluções, a educação formaria
técnicos úteis ao estado e à sociedade.

Nos últimos 50 anos, não houve nenhuma continuidade no plano educacional, o qual
desde o princípio não possuía metas bem traçadas. O acesso à educação acabou
sendo dado ao povo de maneira atabalhoada, criando o fenômeno do desemprego
profissional. O ciclo militar facilitou a formação universitária, mas em um sistema
pensado à margem do setor produtivo, resultando anos depois no desemprego
profissional. Além disso, tudo era polarizado em esquemas profissionalizantes, onde
o ensino básico seria pré-requisito para o secundário, e assim por diante. Tudo isso
seguia ainda a cartilha cientificista do Marquês de Pombal, com o intuito de atender
os planos de desenvolvimento. A cultura e a educação clássica (Trivium e
Quadrivium), pela qual os grandes pensadores da humanidade aprenderam e se
formaram, foram substituídas por uma educação utilitária.

 5 − Democracia:

O problema de representatividade em uma cultura centralizadora, juntamente com a


aspiração democrática-liberal a partir do século XIX, foram objetivos extensamente
discutidos pelos políticos do Império e da República. Os grupos familiares que eram
a casta de funcionários reais sempre impediu qualquer avanço no sentido
democrático durante a colônia. Após a Independência, a instabilidade acabou
tomando a direção da conciliação política entre a dicotomia liberal-conservadora,
que então passaram a disputar posições no governo de gabinetes.

Tal configuração persistiu na República, onde a elite tomava conta dos partidos
políticos. Por exemplo, em Minas Gerais, de 1889 a 1930, e Estado de Minas foi
dominado pelo Partido Republicano Mineiro (P.R.M), que sempre se manteve unido
nas reivindicações nacionais, e de onde saíram cinco presidentes da República:
Afonso Pena, Venceslau Brás, Delfim Moreira, Epitácio Pessoa e Artur Bernardes.
Até hoje, a democracia no Brasil não passou do triunfo de um personalismo sobre
outro.

José Honório Rodrigues, em seu clássico “Aspirações Nacionais” delineia algumas


das características do povo brasileiro, já mencionadas anteriormente dentro do
contexto histórico da formação da brasilidade:

 A sensibilidade nacional, que exige das ideias e conceitos estrangeiros um


abrasileiramento para fazer parte de nossa cultura. Desde a Independência,
continuando a tradição Ibérica, o povo brasileiro consegue unificar ideias
completamente contraditórias, como um funcionamento interno econômico
escravista, mas com ideias capitalistas de desenvolvimento e uma
constituição liberal.
 O brasileiro em geral não é adepto de extremismos, sempre buscando o
espírito de conciliação, mesmo diante de ideias completamente opostas.
Ajustar as ideias e experimentos estrangeiros às condições nacionais decorre
deste próprio espírito de conciliação. Bernardo Pereira de Vasconcelos já
afirmava no século XIX que a verdade não se encontrava nos extremos.
 Alguns idealismos opostos nunca encontram uma síntese, colocando divisões
e conflitos no cenário político. Particularmente, com o avanço da globalização
e das relações internacionais nos movimentos políticos, a tendência de que
movimentos radicais iniciados em outros países deixem suas imposições em
favor de uma conciliação no estrangeiro se tornam diminutas. Períodos
instáveis se fazem mais presentes ao longo da história republicana.

O ambiente brasileiro será analisado através de três dos campos afetados


com a presente crise: o social, o político e o econômico. Para compreender o
ambiente que cercou a presidente em seu segundo mandato, é necessário buscar
nesses campos as origens das mazelas, e não apenas no seu primeiro mandato, ,
mas tão no passado quanto seja necessário.
1 – O âmbito social
A ex-presidente Dilma Rousseff e o próprio Partido dos Trabalhadores
construíram muito de sua popularidade através de programas e promessas de
reformas sociais. No início da década de 90, o PT investiu em uma imagem moral
impoluta, e quando chegou ao poder, a impressão é que finalmente havíamos
alcançado uma autêntica democracia, com alguém de fora da elite alcançando a
presidência da República.
Promessas de remodelação da sociedade de alto a baixo, construção de
um país mais justo aos trabalhadores, e finalmente, o alargamento do topo da
pirâmide social brasileira e erradicação da miséria fizeram parte do programa petista.
É impossível falar do aspecto social do Brasil sem olhar a pirâmide social,
afinal se trata de um tema tão batido, que crianças na escola já reproduzem o que
seus professores contam acerca dos problemas sociais e injustiças que estão
enraizadas no país. Os problemas sociais são conhecidos de todos: Criminalidade,
violência, tráfico de drogas, segurança pública, justiça criminal. Um viés explicativo
para nossos problemas também pode ser facilmente encontrado nas palavras de
uma criança de classe média, sujeita às análises gerais dos seus professores de
história: a pobreza, fruto do desequilíbrio de rendas, que impede o acesso de todos
às mesmas oportunidades. Se os empresários fossem menos gananciosos e não
explorassem mais seus empregados, caminharíamos em direção à sociedade justa,
e os problemas que nos afligem desapareceriam.
Obviamente, esse viés simples parece uma explicação perfeita para sanar
os problemas do Brasil. A corrupção e acúmulo de riquezas dos políticos e da classe
burguesa empresarial não deixa outra opção aos oprimidos a não ser a
criminalidade. Curando a corrupção e a ganância dos que estão no topo da pirâmide
e auxiliando os mais necessitados, a criminalidade não mais seria a única opção
diante da “escravidão assalariada”. Todos chegariam ao consenso utópico de viver
em prol do paraíso terrestre.
Acontece que a questão da pobreza não é de tão simples entendimento.
Sua origem não se dá apenas por conta da ganância dos líderes da pirâmide.
Citando Tocqueville22:
Quando cruzamos os vários países da Europa, ficamos
surpresos com uma visão extraordinária e, aparentemente, inexplicável. Os
países que parecem ser os mais pobres são aqueles que, na realidade, têm
menos indigentes, enquanto que, entre os povos mais admirados por sua
opulência, parte da população é obrigada a contar com doações de outros
para poder viver23. (Tocqueville, 1835)

Se analisarmos a afirmativa acima do autor francês, encontramos um


contrassenso com o anteriormente exposto. Os países com menos indigentes, na
realidade, são os mais pobres. O nosso senso intuitivo nos diria que os países com
maiores riquezas, opulentos e desenvolvidos seriam os que menos teriam pessoas
necessitando de caridade. De certa forma, a afirmativa de Tocqueville reflete o
Brasil: Estado com território enorme, incrustado de riquezas naturais, cidades
turísticas mundialmente conhecidas, porém com boa parte da população
desempregada, necessitando de programas sociais para que suas necessidades
básicas sejam atendidas.
O autor estava se referindo à Inglaterra do período romântico da
revolução industrial, século XIX. Nem sempre é possível traçar um paralelo perfeito
com os dias atuais, com datas e territórios tão distintos, e talvez nem realmente
utilizar o termo indigentes. Mas podemos verificar também a afirmativa com dados
hodiernos:

22
TOCQUEVILLE, Alexis de. Memoir sur le pauperisme. Paris: Imprimerie Nationale, 1911
23
Ao viajar pela Inglaterra no século XIX, o sociólgo francês maravilhara-se com o desenvolvimento
urbano, rural e com o padrão de vida do povo inglês. Mesmo assim, ao analisar os registros
paroquiais, descobriu que um sexto da população do reino exuberante vivia à custa da caridade
pública, em contraste com lugares mais pobres, nos quais era insignificante o número de indigentes.
Figura 1: Porcentagem do PIB gasta com programas sociais: México e Suécia

Fonte: https://www.oecd.org/social/expenditure.htm

Os dados apresentados apoiam a tese de Tocqueville. A Suécia dispõe


muito mais do seu PIB em programas sociais do que o México.
Os mais afoitos rapidamente confirmariam que se não fosse a corrupção e
a ganância, todos poderiam viver muito bem, afinal a América Latina possui muita
riqueza, e a pobreza aqui só faz sentido se alguém toma para si todos os recursos.
Porém, analisando as condições de vida da população brasileira nos
últimos anos, percebemos algo que vai de encontro ao lugar-comum supracitado:
Houve aumento no número de habitantes que melhoraram suas condições de vida e
conforto, proporcionalmente ao número de pessoas que necessitam de caridade
social. Olhando para as favelas, vemos que os casebres vêm sendo substituídos por
construções de alvenaria, e as casas nos morros agora dispõem de serviços básicos
como energia elétrica e água. À medida que novos bens são introduzidos no mundo,
novas “necessidades básicas” surgem, e se melhores qualidade e conforto de vida
ficam à disposição, também aumenta a quantidade de pessoas que devem ser
alcançadas por este novo padrão.
Se na Idade Média não havia conforto, pelo menos havia o alimento que
os servos poderiam produzir em seus pedaços de terra. Hoje, se não existisse a
caridade pública, muitas necessidades básicas da modernidade não alcançariam
boa parte da população necessitada. Um vídeo que se tornou famoso na internet
mostra um exemplo disso: Uma senhora reclama que o valor do programa bolsa
família não dá nem pra comprar uma calça de trezentos reais para sua filha.
As necessidades se expandem e se diversificam, e em qualquer país
desenvolvido, a falta de alguma destas novas necessidades pode ser considerada
como uma situação miserável. Conforme a sociedade sai do campo para as cidades,
está cada vez mais sujeita às vicissitudes do destino, e cada vez mais busca suprir
suas necessidades, no passado secundárias, e hoje básicas.
Esta breve reflexão não procura explicar a pobreza, problema complexo
demais para ser resolvido nestas breves linhas, mas busca expandir o conceito de
pobreza e demonstrar que o mesmo é relativo. Também serve para construir o
quadro o qual o PT se serviu para alcançar popularidade durante o governo Lula:
Houve crescimento econômico, melhora de vida da população, mas se ainda existia
pobreza e miséria, a culpa já não era mais do governo, pois agora era o PT que
estava no poder.
Entretanto, os programas sociais nos últimos anos do PT no governo
vinham sofrendo intenso desgaste, e eram achincalhados por parte da população
insatisfeita, justamente por conta de episódios insólitos como o da senhora que não
conseguia comprar a calça para a filha, e por conta da credibilidade, erguendo
dúvidas sobre a forma com que os beneficiários eram selecionados, e sobre a real
destinação do dinheiro empregado.
Ainda compondo o quadro social, além da progressiva rejeição aos
programas governamentais, há a questão de segurança pública. O Mapa da
Violência mostra que apenas em 2014 a quantidade de homicídios chegou perto de
sessenta mil, mais que a quantidade de mortos durante os oito anos da Guerra do
Iraque. Além disso, existem os casos de crimes cometidos por menores de idade. O
famoso caso do sequestro, estupro ininterrupto e assassinato brutal de Liana
Friedenbach e assassinato de seu namorado Felipe Caffé em 2003 pelos criminosos
“Champinha e Pernambuco” foi um exemplo que chocou o país. O criminoso
Champinha era menor de idade, portanto, foi submetido ao ECA. Esse
acontecimento emblemático reacendeu as discussões acerca da maioridade penal
no país. Em 2007, uma reportagem mostrando a boa vida do criminoso só fez
aumentar a pressão e a insatisfação popular com a situação da justiça penal
brasileira.
As questões do crime estão relacionados às políticas humanitárias, e a
população aparenta perceber que a justiça progressivamente trata os criminosos
mais como vítimas do que como responsáveis. Se os crimes são cometidos contra a
“elite opressora”, há uma percepção de benevolência sobre como os criminosos são
tratados. O clima é de crescente pressão para que se abandone a demagogia ao
tratar com os criminosos.
Desde a década de 60, as produções do Cinema Novo, com críticas às
autoridades constituídas em pleno regime militar, voluntariamente ou
involuntariamente, acabaram atuando como apologistas da delinquência e do nobre
bandido, e ainda é possível ver apologias à nobreza do crime no cinema moderno.
Obviamente, a criminalidade atual alcançou níveis tão elevados que se torna cada
vez mais difícil sustentar esse discurso.
Houve ainda o referendo de 2005 sobre o estatuto do desarmamento,
tendo como objetivo a proibição da comercialização de armas de fogo no Brasil, com
massiva campanha midiática e governamental para que a maioria votasse a favor da
proibição, com promessas de diminuição de criminalidade e violência urbana.
Acontece que o “não à proibição” venceu com 63,94% dos votos, mostrando mais
uma vez que a vontade popular diferia das políticas adotadas com relação à
segurança pública e as massivas campanhas de desarmamento. Com o resultado do
referendo, o comércio de armas continuou existindo, porém o estatuto consolidou
uma legislação rígida de controle.

Tabela 1: Número de homícidios de 2004 a 2014

Fonte:http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160405_nt_17_atla
s_da_violencia_2016_finalizado.pdf

Analisando a tabela acima, vemos que após o Estatuto do


Desarmamento, ocorreu justamente o contrário do prometido: o número de
homicídios no país aumentou quase 22%. Ou seja, além do estatuto ser contra a
vontade da maioria, teve um efeito adverso, contribuindo mais para o desgaste do
governo petista. A discussão popular corrente é a de que o governo acabou
desarmando o cidadão de bem, facilitando a prática criminosa, que não se sujeita às
campanhas de desarmamento
A própria questão social da criminalidade se desdobra em inúmeros
eventos além da violência urbana traduzida em homicídios. Temos o tráfico, a
questão racial, a questão econômica e até mesmo a questão das políticas públicas.
O que é importante salientar com as breves reflexões feitas é que a população, com
o aumento da mídia livre na internet e a disseminação de informações, já não aceita
o status quo do esquerdismo e o discurso esquerdista brasileiro. Um grande
movimento editorial tido como de “direita e conservador” emergiu das convulsões
populares e da crescente insatisfação do povo. Reflexões críticas sobre o socialismo
e com viés econômico mais liberal vêm se difundindo cada vez mais entre a
população.
Em 2013 começaram a rebentar manifestações ao longo do país, com
estimativas de 1,5 milhão de pessoas nas ruas proclamando insatisfação. As
manifestações não ocorreram por predisposições teorizantes, mas por insatisfações
práticas que foram crescendo e começaram a irromper, prenunciando a instabilidade
do governo e a insatisfação com medidas políticas que dura até os dias atuais, em
2017.
Praticamente todos os campos da sociedade estão sujeitos à críticas nos
últimos dias de Dilma Rousseff como presidente, e resultam em polaridades diversas
que se manifestam nos meios de comunicação livres: Educação infantil, cotas
raciais, cotas econômicas, a situação das mulheres e o feminismo, a questão do
aborto, as questões sexuais, formas de manifestação artística, manifestações
religiosas, etc.
Em 2015 e 2016, manifestações populares atingiram um novo ápice.
Assim como os idos de março, data que marcou o assassinato do imperador Júlio
Cesar em 44 a.C, em 15 de março de 2015 estima-se que 3 milhões de pessoas
tenham ido às ruas para protestar contra o governo Dilma-PT24, cifra que foi
superada em março de 2016, onde se estima 6,9 milhões de pessoas nas ruas

24
-Fonte: «Mapa das manifestações no Brasil neste domingo, 15». G1. 15 de março de 2015.
Consultado em 15 de março de 2015.
protestando25. Algumas fontes, como a pesquisa da CNT/MDA chegaram a apontar
uma popularidade para a presidente Dilma de apenas 7,7%, demonstrando
insustentável a situação do governo diante do povo.

2 – O âmbito político
O estágio da situação política nos últimos dias de Dilma pode ser
intitulado de naufrágio. As conquistas da primeira década do milênio passaram, e
não fincaram raízes para sustentar as circunstâncias instáveis que se desenrolavam
no início da segunda década. As fendas da gestão petista começaram a romper, e
os fragmentos dos erros políticos passaram a tomar proporções cada vez maiores,
culminando no impeachment. Para compreender o ambiente, é necessário passear
ao longo dos treze anos do PT no poder e construir o quadro que acabou resultando
na queda da presidente.
Dilma chega ao poder em 2010, com a firme intenção de manter as
políticas do ex-presidente Lula: reduzir a pobreza e fazer respirar a economia
brasileira emergente. Aproveitando-se do prestígio do antigo presidente, e oriunda
da casa palaciana, onde exercia o cargo de Ministra da Casa Civil, a administração
adquiria um viés cada vez mais centralizador.
Entretanto, a gestão da sucessora de Lula não apresentou nenhuma
melhora nos indicadores sociais. A inflação subiu, o crescimento proveniente das
ondas econômicas parou e as contas públicas sofriam corrosão gradativamente. No
fim do seu mandato, a situação era tão grave que as críticas não mais se dirigiam
apenas à presidente em exercício, mas à gestão do PT como um todo.
Por conta do sucesso econômico durante o governo Lula, no qual o
mesmo surfou em uma boa situação mundial, os escândalos políticos do seu

25
-Fonte:http://especiais.g1.globo.com/politica/mapa-manifestacoes-no-brasil/13-03-2016/contra/
governo ficaram de certa maneira esquecidos. O escândalo do mensalão marcou
uma nova fase em modelos de corrupção, e começou a ser novamente trazido à
tona quando as estruturas institucionais brasileiras começaram a se abalar no fim do
primeiro mandato de Dilma. O poder da máquina pública e os recursos do PT,
entretanto, acabaram por fazer Dilma se reeleger, mas com uma margem muito
reduzida em relação ao seu oponente Aécio Neves.
Salientando rapidamente a política externa como ingrediente do caldeirão
em que Dilma estava, vemos que o Brasil perdeu muito de seu ímpeto dos anos
anteriores. Enquanto nos governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula, o Brasil
mantivera uma certa liderança regional na América do Sul, no Governo Dilma a
política externa pareceu ter perdido o senso de propósito. O Brasil é um dos poucos
países da região com capacidade de liderança para articular uma visão comum de
crescimento latino-americano, no entanto, quase não houve novidade e acordos
internacionais satisfatórios, e consistia em apenas ser um eco do que se decidia no
panorama internacional, tanto no foco econômico, quanto intelectual e cultural26.
Desde a época da independência, o Brasil reuniu grandes nomes e
grande tradição nas relações internacionais, do próprio Imperador Dom Pedro II até
personalidades importantes como o Barão do Rio Branco. Houve decadência,
materializada quando o ministro de Israel, Yigal Palmor, chamou o Brasil de anão
diplomático e parceiro irrelevante, que mais cria problemas do que contribui para
soluções27.
Em 2012, a Odebrecht venceu um contrato para modernizar o Porto de
Mariel, em Cuba, em torno do valor de 1 bilhão de dólares, financiado em dois terços

26
- Nenhuma candidatura apresentou propostas relevantes para as relações políticas e comerciais
com outras nações nos debates presidenciais para as eleições de 2014, a não ser afirmações
genéricas e óbvias sobre manutenção da paz e fortalecimento com países vizinhos.
27
- Em 2014, o Brasil convocou para consultas o seu embaixador em Tel Aviv por considerar
desproporcional o uso da força por Israel na Faixa de Gaza.
pelo BNDES. Naturalmente que os opositores do regime Castrista emergiram em
avalanches de críticas, posto que nos portos brasileiros o investimento foi de apenas
394 milhões28 de reais em 2013.
A Venezuela adentrou o Mercosul, mesmo vivendo uma crise de
proporções apocalípticas. Outro motivo para os críticos alertarem que se trata mais
de solidariedade entre governos de esquerda que acordos reais de comércio. O
infortúnio de uma América latina desintegrada foi evidenciada pela formação da
Aliança do Pacífico, interligando o livre comércio entre Chile, Peru, Colômbia e
México, rivalizando com o Mercosul. Estes dois eventos fazem com que o desgaste
fique cada vez mais evidente, visto que a própria situação econômica do país não
estava confortável.
Retornando à política interna, o que o Lula e posteriormente a Dilma
fizeram, durante seus mandatos, foi dificultar o diálogo com os outros partidos
políticos – majoritariamente o PSDB – e cooptaram partidos menores para compor
sua base congressual majoritária. Uma parte disso resvalou em ilegalidades e no
escândalo do mensalão, com a compra de parlamentares para o apoio ao governo.
Unindo isso ao escândalo da Petrobrás, que estourou em março de 2014, com a
Polícia Federal investigando um esquema bilionário de desvio e lavagem de
dinheiro, a situação política da presidente Dilma e do Partido dos Trabalhadores
estava dividida em estilhaços, tanto diante do povo quanto diante dos outros partidos
políticos.
Paralelamente, houve o aumento na popularidade de personalidades
políticas reacionárias, tendo o deputado Jair Bolsonaro como símbolo. Não só a
popularidade de candidatos, mas a proliferação de movimentos organizados que
possuem um viés liberal. Um exemplo disso é o “Partido Novo”, que teve o seu

28
- Fonte: http://veja.abril.com.br/economia/investimento-em-portos-e-o-pior-dos-ultimos-4-anos/
registro deferido pelo TSE em 2015 e tem como 30 o número eleitoral 29.
Outro exemplo é o Movimento Brasil Livre30, movimento que também
defende o neoliberalismo, e ganhou muita popularidade na época das grandes
manifestações em 2014 e 2015, principalmente através da internet. Organizou uma
marcha chamada marcha pela liberdade, saindo de São Paulo até Brasília, marcha
que durou algumas semanas e pleiteava o impeachment de Dilma Rousseff.
No ano de 2014 Dilma foi reeleita em um contexto social e econômico
completamente diferente: o crescimento do país sucumbira e a inflação corroía o
poder de compra da classe média. O país oficialmente entra em recessão com
queda no PIB, registrando baixa em dois anos consecutivos, a primeira vez desde
1930.
Está composto o quadro político: escândalos de corrupção, críticas ao
governo do PT como um todo, tendências a apoiar regimes ditatoriais (Cuba e
Venezuela), proliferação de movimentos em busca de mudança no viés político-
administrativo, tudo sustentado pela crise econômica cuja tempestade se formava no
horizonte. O barco já se mostrava incapacitado de navegar.

3 – O âmbito Econômico

Abaixo segue uma figura que mostra as imagens da revista The


Economist, uma em 2009 e a outra em 2013.

29
- Agremiação fundada por 181 pessoas em 2011, em sua maioria pessoas sem carreira política.
Suas ideias são profundamente alinhadas com o liberalismo econômico, como redução da carga
tributária e mercado menos burocratizado.
30
- Site do movimento: http://mbl.org.br/
Figura 2: Imagens das revistas The Economist, 2009 e 2013, respectivamente.

Fonte: www.economist.com

Os títulos dos artigos são respectivamente “Brazil takes off e Has Brazil
Blown it ?”.Traduzindo livremente quer dizer “O Brasil decola” e “Será que o Brasil
estragou tudo?”.
Essencialmente, o que o artigo de 2009 diz é que o crescimento brasileiro
na economia era anualmente de 5%, e que deveria acelerar mais ainda nos
próximos anos com a onda do pré-sal e o apetite voraz dos países asiáticos pelas
importações de comida e minerais oriundas da imensa riqueza natural brasileira.
Alguns especialistas chegaram até a afirmar que em 2014 o Brasil seria a quinta
economia mundial, superando a Grã-Bretanha e a França.
Cita também a política industrial de Lula com incentivos à produção
nacional, principalmente a indústria naval e offshore. Realmente, a indústria naval
sofreu um crescimento vertiginoso na década passada. Rapidamente cresceu
também a demanda por profissionais qualificados na área naval. Cursos de
Engenharia Naval, antes exclusivos da UFRJ e da USP, abriram no Pará,
Pernambuco, Amazonas, e em Santa Catarina. Não apenas cursos superiores, mas
cursos também de tecnólogos, técnicos e profissionalizantes abriram as portas no
território nacional para suprir o mercado com essa imensa demanda de profissionais.
O pleno emprego para engenheiros e sonhos com bons salários fertilizavam a mente
dos estudantes.
Estaleiros pipocavam com obras para atender a gigantesca demanda do
pré-sal e empresas prestadoras de serviço no setor se multiplicavam. Em 2009 o
estaleiro brasileiro Atlântico Sul bateu a quilha do primeiro navio petroleiro do tipo
Suezmax produzido no Brasil para o programa de modernização e expansão de frota
da Transpetro. Curiosamente, o navio foi batizado de João Candido, o líder da
Revolta da Chibata, e foi entregue com diversos defeitos não possuindo boas
condições de navegação, camuflando soldas defeituosas e sistemas de tubulações
deficientes. Talvez o resultado da construção fosse uma premonição do que
aconteceria no mercado nacional após o frisson da explosão industrial.
Evidentemente, os analistas da The economist não podem ser tão
inocentes a ponto de errar tão indignamente. No artigo de 2009, explicam que o
sucesso econômico do presidente Lula se deve por alguns fatores: uma dose de
sorte, pois colhia as recompensas de uma alta nos preços das commodities a partir
de 200231, e também por conta de uma plataforma sólida para o crescimento,
construída por Fernando Henrique Cardoso, com o Plano Real e controle do valor da
moeda. O artigo termina dizendo que o sucessor de Lula, para manter a
performance em um mundo em recessão, teria que enfrentar alguns problemas que
até então o presidente foi capaz de deixar de lado ou de contornar.
O artigo de 2013 começa mostrando alguns dados, como o crescimento

31
- Principalmente soja, minério de ferro e petróleo, por conta das condições macroeconômicas
mundiais e as economias emergentes, particularmente a China. O artigo “O papel do ciclo das
commodities no desempenho recente das exportações brasileiras” dos professores doutores Daniela
Prates e Emerson Fernandes Marçal, da UNICAMP, esclarece a situação econômica mundial no
período.
de 7,5% em 2010, e dizendo que o país quase não sofreu com o colapso dos
bancos Lehman Brothers, em 2008. Mas que desde então o voo iniciado se tratou de
um voo de galinha. Em 2012 o crescimento foi de apenas 0,9%. As razões para a
desaceleração evidenciadas passam tanto pela desaceleração mundial das
economias emergentes, quanto o pouco que o Brasil fez para reformar o governo
nos anos de crescimento.
Indica que o setor público impõe uma pesada carga tributária ao setor
privado. Pouco investe na infraestrutura de transportes – apenas 1,5% do PIB, em
comparação com a média mundial de 3,8%, mesmo possuindo tamanho continental
– proporcionando enormes gastos desnecessários aos produtores rurais e ao
comércio. Indica também que Dilma foi hostil com investidores ao determinar
publicamente ao Banco Central para cortar taxas de juros. Como resultado a dívida
pública cresceu e os mercados passaram a não confiar na Sra. Rousseff.
De fato, a crise apontada alcançou o setor naval também. Notícias
abundaram sobre a submersão do setor naval. Estaleiros que pouco tempo atrás
empregavam centenas ou milhares de funcionários repentinamente fechavam as
portas e colocavam trabalhadores nas ruas. Só o estaleiro EISA demitiu três mil
funcionários. Eike Batista, que tinha a pretensão de ser o homem mais rico do
mundo, fechou as portas de suas empresas em 2013, caindo junto com o clima de
euforia econômica no Brasil. A decepção dos brasileiros foi visível pela internet, e
juntamente a indignação, pois o empresário era solidamente apoiado pelo BNDES
com bilhões de reais. Suas empresas planavam em gigantescas avaliações no
mercado de ações quando mal haviam começado a trabalhar nos seus projetos
babilônicos.
Muito há para se falar da economia brasileira, mas o acima exposto já
começa uma composição dos matizes do ambiente econômico dos últimos dias da
presidente Rousseff. O povo havia se acostumado com o crescimento, e uma
recessão de certa maneira súbita, assim como a queda do império das empresas X,
de Eike Batista, certamente deixou os eleitores insatisfeitos. Uma mudança tão
súbita nos rumos econômicos que levou a revista a reutilizar e repensar a imagem
que tinha projetado para o Brasil em 2009.

Figura 3: Comportamento anual do PIB ao longo da


década
Gastos públicos aumentaram ao mesmo tempo em que taxas no
combustível e a desvalorização do real perante o dólar. Burocracia excessiva, uma
infraestrutura pobre e uma moeda forte tornaram grande parte da indústria pouco
competitiva. Salários reais ajustados para a inflação vêm caindo desde 2015 e o
desemprego nas principais áreas metropolitanas aumentaram, assim como
aumentaram as contas e taxas de eletricidade e água. O maior recesso do século e
o maior escândalo de corrupção da história. Essa é a situação econômica do Brasil
ao longo de 2016, e as aflições econômicas vivenciadas pela presidente Dilma e o
PT são tão incapacitantes quanto suas medidas políticas.
Os preços das commodities despencaram no mundo inteiro, mas o efeito
no Brasil foi particularmente devastador, pois não ajustou suas fraquezas estruturais
enquanto surfava em boas ondas. Pelo contrário, as medidas adotadas no primeiro
mandato alimentaram a inflação, incharam orçamentos e explodiram a confiança de
investidores.
Seria injusto atribuir apenas ao PT a atual conjuntura econômica do país,
que acabou contribuindo para o derradeiro impeachment da presidente.

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A questão do Poder Moderador - 1871

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