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Brasil em crise: o legado das jornadas de junho. Praia Editora


2015 Os autores

É livre a utilização, duplicação, reprodução e distribuição desta


edição, no todo ou em parte, por todo aquele que desejar,
bastando citar a fonte.

Diagramação Chauá Studio


Capa Annette Prüfer
Revisão Os autores
5HYLVmR¿QDOOs organizadores
Edição Gilberto Medeiros

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.(;A4B'

Brasil em crise: o legado das jornadas de junho. Praia Editora


A TÁTICA BLACK BLOC E A LIBERAÇÃO
ANÁRQUICA DO DISSENSO

3DXOR(GJDUGD5RFKD5HVHQGH

2VVHQWLGRVGDWiWLFD
A proposta de discutir a tática black bloc abre
espaço para muitas possibilidades de problema-
WL]Do}HVSHODULTXH]DGHVLJQL¿FDGRVLQFyJQLWDV
e a novidade que apresenta. Trata-se do que há
GHPDLVQRYRHIDVFLQDQWHQRVIHQ{PHQRVVyFLR
SROtWLFRVGRV~OWLPRVDQRVQR%UDVLO5HVXPLQ-
do em uma frase o que entendo por black bloc,
SRGHVHGL]HUTXHWUDWDVHGHXPDDomRSROtWLFD
de dissenso radical, ou simplesmente um ato de
revolta popular. E seguindo a inspiração do dis-
senso inicio o debate com a licença dos colegas
(VWHWH[WRpXPDYHUVmRDPSOLDGDHUHYLVDGDGHWUDQVFULomRGDSDOHVWUD
SURIHULGDSHORDXWRUQR6HPLQiULR³$(VWUDWpJLDBlack Bloc´TXHFRPS{VR
FLFOR%UDVLOHP&ULVHRUJDQL]DGRSHORVSURIHVVRUHV9LWRU&HLH'DYLG%RUJHV
UHDOL]DGRHP-XQKRGHQD8QLYHUVLGDGH)HGHUDOGR(VStULWR6DQWR3RU
HVWHPRWLYRRDUWLJRQmRUHSURGX]WRGDVDVIRUPDOLGDGHVWUDGLFLRQDLVGH
DUWLJRVDFDGrPLFRV
 'RXWRU H 0HVWUH HP &LrQFLD 3ROtWLFD SHOD 8QLYHUVLGDGH $XW{QRPD GH
%DUFHORQD8$%(VSDQKD%DFKDUHOHP5HODo}HV,QWHUQDFLRQDLVSHOD3RQ-
WLItFLD8QLYHUVLGDGH&DWyOLFDGH6mR3DXOR±38&63DWXDOPHQWHpSURIHVVRU
GR 3URJUDPDGH 0HVWUDGR HP 6RFLRORJLD 3ROtWLFD GD 8QLYHUVLGDGH9LOD 9H-
OKD±899HFRRUGHQDGRUGR*UXSRGH3HVTXLVDHP6XEMHWLYLGDGH3RGHUH
5HVLVWrQFLDV
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RUJDQL]DGRUHV GR HYHQWR GLVVHQWLQGR GR WtWXOR
da mesa, “A Estratégia black bloc”, pois há uma
importante diferenciação a ser feita entre tática
e estratégia.
Estratégia transmite a ideia de objetividade
UDFLRQDO 2 GLFLRQiULR 3ULEHUDP SRU H[HPSOR
D GH¿QH FRPR ³FRPELQDomR HQJHQKRVD SDUD
FRQVHJXLUXP¿P´1R0LFKDHOLV³DUWHGHGLULJLU
FRLVDV FRPSOH[DV´ (QTXDQWR TXH D GH¿QLomR
de tática, para o primeiro: “habilidade, jeito para
GLULJLUTXDOTXHUVLWXDomRRXQHJyFLR´H³KDELOLGD-
de ou meios empregados para sair-se bem de
TXDOTXHUQHJyFLRRXHPSUHVD´QDGH¿QLomRGR
segundo. A tática se limita, portanto, às formas
com que se faz algo, enquanto a estratégia es-
WDEHOHFH RV PHOKRUHV PHLRV SDUD REWHU XP ¿P
determinado.
É importante essa diferenciação porque
através da tática black bloc não se espera tomar
o poder do Estado, ou fazer a revolução, nem
acabar com a democracia ou com o capitalis-
mo. Ao menos da forma como vem ocorrendo
no Brasil a partir do ciclo de manifestações que
irrompeu em diversas capitais brasileiras a par-

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tir de Junho de 201341$WiWLFDWHPH[SUHVVDGR
de forma espontânea e desarticulada a revolta
juvenil. Seria ingenuidade achar que ao quebrar
algumas vidraças se estaria acabando com todo
RVLVWHPDSROtWLFRHHFRQ{PLFR3RUWDQWRQmRVH
trata de uma estratégia e sim de uma tática de
manifestação, uma forma de se portar na rua em
ações coletivas.
Outro aspecto importante na diferenciação
entre estratégia e tática diz respeito à ação ra-
cional ou emotiva. O black bloc, como tática,
H[SUHVVDHSURYRFDVHQWLPHQWRVHSHUFHSo}HV
no geral destoantes da maioria da sociedade e
SULQFLSDOPHQWH GRV H[SUHVVDGRV SXEOLFDPHQWH
Coincide, neste sentido, a uma resistência às mi-
FURSROtWLFDVGRGHVHMR *XDWWDUL 5ROQLN 
TXHLQÀXHQFLDPSHUFHSo}HVVREUHDSURSULHGD-
de privada e as autoridades e determinam con-
dutas em espaços públicos ou privados. Desejo
é mais do que cada um precisamente quer pos-
suir ou fazer, podendo abarcar um amplo espec-
 e LPSRUWDQWH SRQWXDU TXH D WiWLFD Mi IRL XWLOL]DGD DQWHULRUPHQWH HP
FDVRV SRQWXDLV QR %UDVLO FRPR SRU H[HPSOR HP VHWHPEUR GH  HP
IUHQWHj%ROVDGH9DORUHVGH6mR3DXORHPPDQLIHVWDomRGHFHUFDGH
SXQNVDQDUTXLVWDVHJUXSRVGHHVTXHUGD $XJXVWRS 7DPEpP
pLPSRUWDQWHQRWDUTXHDWiWLFDWHPVLGRXWLOL]DGDGHIRUPDGLYHUVL¿FDGDDR
UHGRUGRPXQGRHQFRQWUDQGRPDLRUJUDXGHRUJDQL]DomRHDUWLFXODomRHP
DOJXQVFDVRV 'XSXLV'pUL 
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tro de impulsos subjetivos, como a rejeição, a
indignação, a raiva e a revolta. Na ação do van-
GDOLVPRSROtWLFRKiRFRQWiJLRGDFRUDJHPHQWUH
DWLYLVWDVHPGHVD¿DUDXWRULGDGHVHDVHQVDomR
GHSRGHU1RPHLRGDPDVVDRLQGLYtGXRWHPD
sensação de se reapropriar do poder sobre si. A
cumplicidade dos atos em que diversos jovens
VH HQYROYHP H D LPSXQLGDGH FDUDFWHUtVWLFD GD
GL¿FXOGDGH GDV IRUoDV UHSUHVVLYDV HP FRLELORV
se somam ao anonimato das máscaras pretas.
Na capa da edição publicada por El Viejo
Topo do livro de John Holloway, Mudar o Mun-
do sem Tomar o Poder, está estampada a foto
da pintura O Grito, de Münch. O livro começa
H[SUHVVDQGRGHPDQHLUD¿JXUDWLYDRTXHFRQVL-
deramos que possa ser uma prática de ação di-
reta42GHUHVLVWrQFLDTXHEXVFDH[WUDYDVDUXP
sentimento. No caso, um sentimento de deses-
pero, de angústia incontrolável de alguém que
está caindo de um penhasco e não tem mais
nada a fazer senão gritar. O que vemos nos bla-
ck blocs é justamente a liberação de um grito
até então contido, de uma angústia aprisionada,
 6REUH DomR GLUHWD YHU +\SRPQHPDWD  Nu-Sol 'LVSRQtYHO HP
KWWSZZZQXVRORUJK\SRPQHPDWDEROHWLPSKS"LGK\SRP  $FHVVR
HP
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pois a democracia liberal não admite e não abre
caminhos para o dissenso radical.

(QWUHRDQDUTXLVPRLQGLYLGXDOLVWDHRFROHWL
YLVWD
A partir de nossas observações nas ruas e
em materiais produzidos por adeptos e simpati-
]DQWHVXWLOL]DUHPRVDOJXPDVFDWHJRULDVDQDOtWL-
cas para discutir a tática black blocHPVXDSUR[L-
midade a movimentos sociais e ao anarquismo.
(QWUHWDQWRDRQmRH[LVWLUQDGDSDUHFLGRFRPXP
manual de teoria anarquista ou um tratado geral
do anarquismo, há entendimentos distintos den-
WURGRSUySULRHTXHGLYHUJHPVLJQL¿FDWLYDPHQWH
em alguns pontos. No que diz respeito ao nos-
so objeto de estudo, destacaremos uma tensão
fundamental, que ocorre entre os entendimen-
WRVVREUHDDomRRUJDQL]DGDWtSLFDGHFROHWLYRV
e movimentos revolucionários e a ação espontâ-
nea, associada com práticas da vida cotidiana.
A perspectiva da auto-organização, do as-
VRFLDWLYLVPRHDSUySULDLGHLDGHUHYROXomRHQ-
contram rechaço importante por parte de ten-
dências mais individualistas, por entender que

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nessas iniciativas há maior possibilidade de su-
ERUGLQDomRDOyJLFDVUDFLRQDOLGDGHVLQWHUHVVHV
HQRUPDVH[WHUQDVjVSUySULDVGRLQGLYtGXR

  R SHULJR GD DVVRFLDomR OHYD D UHSURGX-


ção, à escala diferente, de uma sociedade, e
pHYLGHQWHTXHQHVWHFRQWH[WRRVLQGLYtGXRV
devam renunciar à boa parte de sua sobe-
UDQLD 6WLUQHU SURS}H µXQL}HV GH HJRtVWDV¶
IRUPDGDVSRULQGLYtGXRVOLYUHVTXHSRGHPVH
unir episodicamente para colaborar, mas evi-
WDQGRDHVWDELOLGDGHRXDSHUPDQrQFLD 'tH]
2006, p. 31).

Ora, quanto mais organizada for a cons-


tituição de um grupo, mais se deve adap-
WDU jV GLQkPLFDV TXH WDO RUJDQL]DomR H[LJH
como compromissos de agenda, distribuição
de tarefas, estabelecimento de locais de en-
FRQWURV ORFDomR RX RFXSDomR GH LPyYHLV
TXH H[LJHP PDQXWHQomR JHVWmR GH GHVSH-
VDV H PDLV RUJDQL]DomR +i Dt D H[LJrQFLD
GH DOJXP QtYHO GH DFHLWDomR GH DVSHFWRV
mais diversos da ordem estabelecida. Nem

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que sejam aspectos da modernidade, como
D UDFLRQDOLGDGH D REMHWLYLGDGH RX H[LJrQ-
cias da burocracia estatal, como registros,
reconhecimentos, ou do mercado, como alu-
guel, etc. Entre os participantes há também,
em grupos organizados, o quase inevitável
surgimento de hierarquias, devido às natu-
UDLV GLIHUHQoDV GH SHUVRQDOLGDGH H[SHULrQ-
FLDFRQKHFLPHQWRHFDSDFLGDGHGHRUDWyULD
A ausência de regras ou de formalização de
papéis entre os participantes, que é a pro-
posta de alguns grupos autogestionados,
QmRVyQmRHYLWDFRPRSRGHDWpPHVPRID-
YRUHFHU R VXUJLPHQWR GH LQGLYtGXRV RX JUX-
pos tomando a liderança em decisões impor-
WDQWHV )UHHPDQ 
A formação de grupos de afinidade, no
HQWDQWR FRLQFLGH FRP DV XQL}HV HJRtVWDV
propostas por Stirner, quando o objetivo é
criar espaço para a sociabilidade anarquista.
Mas neste caso, o encontro é motivado por
FDXVDSUySULDRLQWHUHVVHGRLQGLYtGXR

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 KiWDQWDFRLVDDTXHUHUVHUPLQKDFDXVD
A começar pela boa causa, depois a causa de
Deus, a causa da humanidade, da verdade,
da liberdade, do humanitarismo, da justiça;
para além disso, a causa do meu povo, do
PHX SUtQFLSH GD PLQKD SiWULD H ¿QDOPHQWH
DWpDFDXVDGRHVStULWRHPLOKDUHVGHRXWURV
A única coisa que não está prevista é que
minha causa seja a causa de mim mesmo!
6WLUQHUS 

Nos anarcoindividualistas, além da aversão


a normas, a leis e ao Estado enquanto construção
social, também há um sentimento enraizado de ceti-
cismo em relação às revoluções. “As revoluções au-
WrQWLFDVVHH[SHULPHQWDPQDVFRQVFLrQFLDVHQRVSH-
TXHQRVDWRVFRWLGLDQRV(LVVRVLJQL¿FDUiSDUDPXLWRV
individualistas, uma implacável hostilidade contra as
FRQYHQo}HVVRFLDLV´ 'tH]S 7DOKRVWLOLGD-
de visa criar distanciamento a governamentalidades,
na qual autoridades as mais diversas guiam condutas
HPFRHUrQFLDFRPDOyJLFDGDVJUDQGHVRUJDQL]Do}HV
HVmRDVVXPLGDVHQDWXUDOL]DGDVSHORVLQGLYtGXRV

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“As práticas anarquistas se chocam com um
conjunto de táticas, preceitos e instituições
TXH UHJXODP H JXLDP RV LQGLYtGXRV HP VXDV
particularidades e em seu conjunto articulado,
WUDoRPDUFDQWHGRH[HUFtFLRGRSRGHUPRGHUQR
como anotou Foucault por meio da noção de
JRYHUQDPHQWDOLGDGH $XJXVWRS ´

Quando se pensa em um grupo organizado,


visualiza-se alguma forma de coesão. Ou seja,
das práticas e condutas dentro de um grupo es-
pera-se que sejam coerentes umas com as ou-
tras, que não haja ruptura muito grande entre
SRVLFLRQDPHQWRVHSRVWXUDV2QtYHOGHFRHVmR
LQWHUQR YDULD WDQWR TXDQWR R QtYHO GH D¿QLGDGH
organização, centralização ou comando. Sem-
pre há nesses grupos mais coesos algum tipo
de disciplinamento das condutas e de objetivida-
GHHPWHUPRVGHJDQKRV$tDVHVWUDWpJLDVHRV
FiOFXORVGHULVFRVHEHQHItFLRVVHLQVHUHPFRP
maior facilidade, assim como ocorre em empre-
sas e organizações burocráticas, que atuam
com objetividade e controle de condutas.
Sem o viés anti-organizativo, mas tam-

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bém demonstrando preocupação com as vi-
vências cotidianas libertárias, Bakunin de-
fende que a ação coletiva, dos grupos, tem
maior potencial revolucionário que as ações
individuais dispersas: “Somente quando una-
mos e combinemos nossos meios e ações
SRGHUHPRV FULDU R FDSLWDO R SRGHU GH RUJD-
nização) capaz de enfrentar o capital com-
ELQDGR GH IRUoDV FRPELQDGDV  GH QRVVRV
DGYHUViULRV´ %DNXQLQS 2REMH-
tivo seria substituir o governo centralizado,
SRUpP FULDQGR QRYDV RUGHQV DXW{QRPDV
³SDUDTXHHVVDGHVFHQWUDOL]DomRVHMDSRVVt-
vel é necessário contar com uma verdadeira
RUJDQL]DomRHHVWDQmRSRGHH[LVWLUVHPFHU-
to grau de regulamentação, que é, depois de
tudo, simplesmente o produto de um acordo
ou contrato mútuo” (ibid.).
A forma de ação coletiva para a destrui-
ção do poder estatal, proposta por Bakunin,
perpassa a espontaneidade e o caos produ-
zido pelas revoltas indignadas de cada rebel-
de que ama sua liberdade:

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$LQVXUUHLomRSRSXODUSRUVXDSUySULDQDWXUH-
]DpHVSRQWkQHDFDyWLFDHGHVDSLHGDGDVX-
põe sempre a destruição de sua propriedade
e da alheia. As massas do povo estão sem-
SUHGLVSRVWDVDVHVDFUL¿FDUHRTXHDVFRQ-
verte em uma força dura e selvagem, capaz
de atos heroicos e de objetivos em aparência
LPSRVVtYHLV p TXH SRVVXHP PXLWR SRXFR H
com frequência absolutamente nada e que,
por tanto, não estão corrompidas pelo desejo
GH SURSULHGDGH 6H D YLWyULD RX D GHIHVD R
H[LJHPQmRVHGHWHUmRQHPDQWHDGHVWUXL-
omRGHVXDVSUySULDVDOGHLDVHFRQVLGHUDQGR
que, além disso, a propriedade não está em
seu poder, podem chegar a evidenciar uma
YHUGDGHLUD SDL[mR SHOD GHVWUXLomR %DNXQLQ
2013, p. 74)43.

A tática black bloc parece se evidenciar no


meio caminho entre o individualismo de Stirner
e o coletivismo de Bakunin. No que tange ao
individualismo, a espontaneidade com que in-
GLYtGXRV VH HQFRQWUDP SDUD H[SUHVVDU UHYROWD
ao sistema, sem ação coordenada, sem asso-
7UDGXomRSUySULD
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FLDomRRXPRYLPHQWRFRQVWLWXtGRSDUDRUJDQL]DU
DVDo}HVVXJHUHXPHQFRQWURGHD¿QVFRPQH-
QKXPRXFRPEDL[RQtYHOGHDUWLFXODomRSUpYLDH
permanente. Por outro lado, a ação em grupo, a
subversão súbita da ordem centralizada, que po-
deria ser o prenúncio de uma revolução violenta,
DSUR[LPDDWiWLFDDVXEOHYDo}HVUHYROXFLRQiULDV
Dependeria talvez do número de revoltados, da
coordenação das ações ou da perduração dos
DWRV SDUD TXH WHQKDP r[LWR QD GHVWUXLomR GDV
instituições do establishment.
O enfrentamento com as forças da ordem
com o uso da tática nas manifestações que te-
mos presenciado no Brasil não aparenta ser de
combate, e sim de resistência, já que manifes-
tantes atiram pedras contra policiais dotados de
capacetes, escudos, fuzis com bala de borracha,
bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo.
O potencial revolucionário de uma tática de con-
fronto que não se trata de eliminar o adversário
se assemelharia mais à desobediência civil, da
qual Gandhi foi partidário. Aparentemente, os
ativistas e as tendências hodiernas do anarquis-
mo se distanciam do objetivo de eliminação do

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adversário44VHFHQWUDQGRPDLVQDD¿UPDomRLQ-
dividual de autonomia e de resistência à ordem
LQVWLWXtGD

5HVLVWrQFLDHVXEYHUVmR
Para discutir a tática black blocQRFRQWH[WRGRV
movimentos sociais é interessante partir da distinção
das categorias de incidência, dissidência e resistên-
cia. No âmbito da incidência estariam aqueles mo-
vimentos dispostos a participar dos canais de diálo-
go do Estado, aqueles que são muito pragmáticos,
possuem estratégias bem estabelecidas, possuem
OtGHUHVHSRUWDYR]HVSDUDQHJRFLDUGLDORJDUSDUWLFL-
par de conselhos e etc. Enquanto os grupos de dis-
sidência não aceitariam se subordinar a uma ordem
HVWDWDO H D SROtWLFDV SDUWLGiULDV PDV HVWmR DEHUWRV
ao diálogo, à negociação, vislumbram reformas nas
LQVWLWXLo}HV SROtWLFDV$LQGD TXH GLVFRUGHP GH TXHP
está governando e não aceitem dialogar através de
canais institucionais já estabelecidos, reivindicam re-
JXODo}HVHSROtWLFDVS~EOLFDVHVWDWDLV
-i QD UHVLVWrQFLD HVWmR RV JUXSRV TXH H[SUHV-
 )RXFDXOW FXMDV UHÀH[}HV VmR IUHTXHQWHPHQWH XWLOL]DGDV SDUD HPEDVDU
QRYDVFRPSUHHQV}HVGHDQDUTXLVPRFKHJRXDD¿UPDUTXHSURSyVLWRVGH
HOLPLQDomRGRDGYHUViULRFRPRDVVRFLDOLVWDVHDVGRDQDUTXLVPRGR¿QDO
GR VpFXOR ;,; FRLQFLGHP FRP SUiWLFDV UDFLVWDV EDVWDQWH VHPHOKDQWHV jV
TXHGHUDPRULJHPDRIDVFLVPR )RXFDXOW 
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VDP XP GLVVHQVR UDGLFDO D RUGHP FRQVWLWXtGD 1mR
EXVFDPGLiORJRQmRUHLYLQGLFDPSROtWLFDVRXOHLVFHQ-
tralizadas e não aceitam negociações com o Estado.
A tática black bloc FRPR IRUPD GH H[SUHVVmR SROtWL-
FDDQDUTXLVWDVHDSUR[LPDGDUHVLVWrQFLDHYLWDQGRR
disciplinamento e o controle social sobre condutas,
desejos e atuações individuais. A racionalidade mo-
derna, focada em estratégias de vida baseadas prin-
FLSDOPHQWH HP WHUPRV GH JDQKRV HFRQ{PLFRV H D
concepção de construção unitária de uma sociedade
coesa é um dos pilares do confronto.
A rejeição das práticas de resistência ao discur-
so majoritário e à criação de unidade repercute na
DXVrQFLDGHSUHRFXSDomRFRPXPDTXHVWmRSROtWLFD
frequentemente enfocada por outros movimentos: a
legitimidade. Apesar das pesquisas de opinião cons-
tantemente indicarem que a maior parte da população
apoia os protestos, mas não apoia a ação dos black
blocs 'DWDIROKD VHXVDWLYLVWDVFRQWLQXDPUH-
petindo a tática nas manifestações. Ou seja, não dão
muita importância para as pesquisas de opinião, as
opiniões majoritárias publicadas e mesmo a aceitação
GDVRFLHGDGH8PDSROtWLFDGHUHVLVWrQFLDXPDDWXD-
ção que não busca legitimidade, também não busca

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DSURYDomRGDRUGHPLQVWLWXtGD6HKiEXVFDSRUDFHL-
tação e aprovação das maiorias, que têm mais voz na
VRFLHGDGHGL¿FLOPHQWHSRGHULDVHUHQTXDGUDGDFRPR
ação de resistência. No caso, seria mais claramente
uma atuação de busca de legitimidade e inclusão na-
quela ordem. Não se trataria de resistência e sim de
incidência, uma busca de se incluir.
Quando não há qualquer consideração para as
preferências da ordem, das maiorias, dos meios de
comunicação, das forças policiais, etc., então atua-
se com ações diretas de repúdio radical coletivo,
LQGHSHQGHQWH GH RSLQL}HV DOKHLDV 1mR VH EXVFD Dt
MXVWL¿FDU WDLV Do}HV 'H IDWR SHORV PDWHULDLV SURGX-
]LGRVHGLYXOJDGRVHPPHLRVGLJLWDLVD¿QVDRVDGHS-
WRVGDWiWLFDQmRVHYHUL¿FDIRUPXODo}HVH[SOLFDWLYDV
MXVWL¿FDQGRRXGHVFXOSDQGRSRUDWRVGHYDQGDOLVPR
Deleuze fala de sub-versão. Uma versão minoritária
GHXPDSUiWLFDGHXPWLSRGHH[LVWrQFLDTXHQmRVH
pretende majoritária. Não se pretende ganhar o apoio
GHWRGRVRXVHWRUQDUKHJHP{QLFD$VSUiWLFDVVXE-
versivas pretendem justamente permanecer no sub-
WHUUkQHRFRPRDo}HVQmRLQFOXtGDVQDRUGHPSUHGR-
PLQDQWHPHQWHLQVWLWXtGD
Há então, por parte da sociedade, fortes iniciati-

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YDVGHGHVTXDOL¿FDUWDLVSUiWLFDVPDUJLQDLVTXHQmR
se pretendem majoritárias. Então a tática black bloc
é amplamente criticada por amplos setores da socie-
dade. Os chamam de vândalos, de arruaceiros, de
criminosos, tentando ignorar e retirar o aspecto po-
OtWLFR GD DomR GLUHWD$R HVYD]LDU H GHVFRQVLGHUDU R
ODGRSROtWLFRGDVDo}HVGHQRPLQDQGRRVMRYHQVPDV-
carados como vândalos criminosos sem consciência
SROtWLFDOHJLWLPDVHDYLROrQFLDSROLFLDODXWRUL]DQGRD
UHSUHVVmRTXHYLVDH[WLQJXLUDVSUiWLFDV$SDUWLUGDt
busca-se enquadrar o bom manifestante, o mau ma-
nifestante; o manifestante civilizado, o manifestante
vândalo, com alguns chegando até mesmo a propor
que manifestações se realizassem somente em sam-
EyGURPRV&XULRVRQRWDUTXHRUHJLPHTXHVHSUHWHQ-
de democrático não tem sido capaz de aceitar formas
KHWHURGR[DVGHDomRSROtWLFDFROHWLYD
3RURXWURODGRQmRVXUSUHHQGHDSROtFLDUHSULPLU
com violência, ainda que se trate de um autodeno-
minado Estado Democrático de Direito. A democracia
enquanto regime centralizado se diferencia de outros
regimes principalmente pela legitimidade e consen-
timento que é conferido às autoridades e leis. De-
VD¿RVFROHWLYRVDHVVDOHJLWLPLGDGHFRPRDVDo}HV

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subversivas que enfrentam, provocam e contestam
IURQWDOPHQWH H EDVWDQWH JUD¿FDPHQWH j RUGHP VmR
SHULJRVRV SRU H[LELU UHMHLo}HV IURQWDLV DR FRQMXQWR
GDV LQVWLWXLo}HV H QRUPDV SROtWLFDV 3RU WUDWDUVH GH
XP (VWDGR FRP R PRQRSyOLR GD YLROrQFLD H FRP D
necessidade de incontestável legitimidade de suas
instituições, é de se esperar que formas de dissenso
FROHWLYRTXHOHYHPDRTXHVWLRQDPHQWRVREUHVXDSUy-
SULDH[LVWrQFLDHOHJLWLPLGDGHVHMDGXUDPHQWHFRLELGR
Neste sentido, o Estado Democrático de Direito, da
LJXDOGDGH MXUtGLFRSROtWLFD GRV GLUHLWRV KXPDQRV GD
ação comedida e racional das forças de segurança,
se apresenta como verdadeira utopia. Recupera-se
nessas ações a noção de poder soberano foucaultia-
na.

7HUURULVPRGH(VWDGRFRPRUHVSRVWD
Em seus estudos sobre o poder soberano du-
rante a idade média, Foucault demonstrou como os
grandes monarcas tinham controle sobre a vida e a
PRUWHGRVLQGLYtGXRVFRPEDVHQDOyJLFDGDD¿UPD-
omRHPDQXWHQomRGRSRGHU )RXFDXOW (UDP
necessárias demonstrações de força e de autorida-
de. O poder do soberano não podia jamais ser desa-

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¿DGRHRHVIRUoRHUDHPGHPRQVWUDUTXHDYLGDGRV
súbditos estava diretamente submetida às vontades
do soberano. Se na Idade Média o fato ocorria para
afugentar ameaças aos reinados, na modernidade o
mesmo ocorre como forma de manutenção das insti-
WXLo}HV SROtWLFDV OLEHUDLV GDV RXWRUJDGDV OLEHUGDGHV
individuais, do direito à propriedade privada e de todo
RVLVWHPDSROtWLFRHHFRQ{PLFRSUHGRPLQDQWHHSULQ-
FLSDOPHQWHGDOHJLWLPLGDGHGRSUySULR(VWDGR
A brutalidade policial em protestos e manifesta-
ções, que ocorre havendo ou não atos de vandalismo,
RVDUPDPHQWRVHYHVWLPHQWDVTXHH[LEHPQDPDLRU
SDUWHGDVYH]HVFDUHQWHGHLGHQWL¿FDomRGRR¿FLDOSD-
recem ter o efeito de inibir condutas a partir do temor
às ações violentas das forças policiais. Neste caso,
VHH[SOLFLWDQmRRGLUHLWRGHPRUWHGRVREHUDQRVREUH
seus súditos, que fazia morrer sempre que seu poder
IRVVHGHVD¿DGR$GHPRFUDFLDOLEHUDOWHPDYDQWDJHP
GH H[SUHVVDU VXD KHUDQoD DXWRULWiULD GH IRUPD VXWLO
Agora, há o direito à tortura, não à morte. Policiais
das forças especiais não podem matar manifestan-
tes no Brasil atual, mas pouco ou nada lhes ocorrerá
se provocarem graves ferimentos a manifestantes45.
&I025$(60DXUtFLRNenhum PM foi punido desde junho por inciden-
tes em protestos em SP%%&%UDVLOGH)HYHUHLURGH'LVSRQtYHO
HP KWWSZZZEEFFRXNSRUWXJXHVHQRWLFLDVBLQYHVWL-
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Esse atropelo sistemático ao Estado de Direito con-
¿JXUDRTXH%UDQFR  GHQRPLQD³Werrorismo de
Estado”, que é a:

  PDQLIHVWDomR GD YLROrQFLD GR (VWDGR


face à sua população e ao sistema legal. Na
UDL]HQRFHUQHGDUDFLRQDOLGDGHSROtWLFDHVWi
DYLROrQFLDDWHQGrQFLDDRJHQRFtGLRHjSUR-
dução da morte, fato irrefutável do presente
KLVWyULFR2(VWDGRHRFULPHGH(VWDGRVmR
PDQLIHVWDo}HVGDSUySULDUD]mRGHVHUGR(V-
WDGR %UDQFRS 

&RP R PRQRSyOLR GD YLROrQFLD R (VWDGR PDQ-


WpP D SROtWLFD GR PHGR jV IRUoDV GD RUGHP FRPR
instrumento disciplinador. Se antes o objetivo era de-
monstrar o poder do monarca, atualmente o foco é
determinar as condutas. A obediência, que segundo
Montesquieu46 deveria, na república, se pautar à con-
vicção sobre as leis e instituições, quando tal convic-
omR VH PRVWUD LQH[LVWHQWH R UHFXUVR GR (VWDGR p D
SROtWLFDGRPHGRWtSLFDGRGHVSRWLVPR1DDWXDOLGD-
de, os instrumentos de disciplinamento estão mais di-
JDFDRBSPBSURWHVWRVBPPBOJE$FHVVR
1DREUD2(VStULWRGDV/HLV
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YHUVL¿FDGRVHDWXDPVREUHDVFRQVFLrQFLDVHRVFRU-
SRV )RXFDXOW 2TXHHYLGHQWHPHQWHFRQWULEXL
a minorar a adesão popular a revoltas e insurreições.
&RUSRV GyFHLV REHGLHQWHV H FRPSURPHWLGRV FRP D
incidência, ou aperfeiçoamento do sistema, é o que
o Estado democrático precisa para sua sobrevivência
7yWRUD 
O anonimato das ações subversivas de masca-
rados incide radicalmente e de maneira transversal
contra as possibilidades e mecanismos de controle,
abrindo linhas de fuga aos disciplinamentos ostensi-
vos da atualidade. Na sociedade de controle cada in-
GLYtGXRWHPVHXQ~PHUR5*&3)PDWUtFXODHVFRODU
RXGRWUDEDOKRVHWRUQDQGRGLYLVtYHOSDUDFDGDORFDO
HIXQomRTXHH[HUFHHPFDGDPRPHQWRRTXHOHYD
Deleuze a denominar que passamos a ser divíduos
HQmRPDLVLQGLYtGXRV 'HOHX]H &kPHUDVGH
monitoramento por toda parte, assim como diversas
tecnologias de controle e vigilância, faz com que te-
nhamos perfeitamente claro que é fácil para as forças
GDRUGHPQRVLGHQWL¿FDUTXHPVRPRVDRQGHPRUD-
PRV SRU RQGH FLUFXODPRV H WRGRV QRVVRV YtQFXORV
LQVWLWXFLRQDLV 2 DQRQLPDWR LQFLGH GLUHWDPHQWH Dt e
uma forma de resistência à ordem do controle e da

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legalidade.
e LPSRUWDQWH GHVWDFDU R DVSHFWR GD H[SUHVVmR
de autonomia nos black blocs. Na ação de depreda-
ção, o ativista da ação direta não está, obviamente,
se pautando pela legalidade, não está considerando
RFyGLJRFLYLOSHQDODFRQVWLWXLomRIHGHUDORXDLQGD
SHGLQGROLFHQoDDXWRUL]DomRSDUDVHXDWRSROtWLFR2
anonimato justamente dá poder e autonomia a socie-
GDGHVJUXSRVFROHWLYRVHLQGLYtGXRVDDJLUHPDOpP
das regulações que o Estado estabelece para disci-
SOLQDUHFRQWURODUFRQGXWDV$DomRSROtWLFDDXW{QRPD
H[WUDYDVDRVOLPLWHVOHJDLVHDVUHJXODPHQWDo}HVGH
como deve se pautar.
Quando o Estado ou outras organizações sociais
estabelecem espaços determinados de liberdade,
as condutas individuais não são determinadas pele
ética pessoal. Não se possibilita com isso o amplo
desenvolvimento da potencialidade e da criatividade
LQGLYLGXDODVVXPLQGRFRPRFHUWDDKLSyWHVHKREEH-
VLDQDGHTXHRVLQGLYtGXRVQmRVDEHPVHUHODFLRQDU
e se respeitar mutuamente. Portanto carecem de um
mediador moralizante, que determinará suas pre-
ferências subjetivas e suas condutas cotidianas. As
delimitações sobre desejos e condutas individuais e

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FROHWLYDV JHUDOPHQWH VHUYHP DRV SURSyVLWRV GR TXH
)RXFDXOWLGHQWL¿FRXFRPRUD]mRJRYHUQDPHQWDOHUD-
]mR GH (VWDGR )RXFDXOW  $ JHVWmR GH LQGLYt-
duos e populações atende a uma racionalidade que
desde a revolução industrial têm sido de cunho emi-
QHQWHPHQWHHFRQ{PLFRHTXHHQFRQWUDPQRDSDUDWR
estatal a estrutura adequada para a manutenção da
ordem.
2 DQDUTXLVWD FRQVLGHUD D OLEHUGDGH DOJR LQH[R-
UDYHOPHQWHSUySULRGHVL4XDOTXHUXPTXHTXHLUDHV-
WLSXODU RV kPELWRV H H[WHQV}HV GD PHVPD GHOLPLWDU
suas formas ou conteúdos é considerado um usurpa-
GRUXPWLUDQRDVHUFRPEDWLGR &I3URXGKRQ 
A vida conduzida, escravizada, condenada a seguir
UHJUDVH[WHUQDVQmRRIHUHFHHVSDoRVjYLWDOLGDGHjV
SRWrQFLDVLQGLYLGXDLVTXHSHUPLWHPDÀRUDURTXHFDGD
um tem de melhor a oferecer ao mundo. Sem liber-
dade não há, portanto, vida. A ação direta anarquista
DJHMXVWDPHQWHDt2QGHDOLEHUGDGHHDDXWRQRPLD
sofrem ameaças de serem restringidas, representa-
das, a ação demonstra o rechaço frontal, o combate
necessário para desfazer amarras e tensões constri-
toras, que impõem subordinação a regras, a autorida-
des, a morais, tradições e convenções estabelecidas.

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'LVVHPLQDQGROLEHUDo}HV
8PDIHUUDPHQWDDQDOtWLFDEDVWDQWH~WLOSDUDFRP-
preender a ação direta empreendida na tática bla-
ck bloc p DWUDYpV GDV OLQKDV GXUDV OLQKDV ÀH[tYHLV
e linhas de fuga, propostas por Deleuze e Guattari
 $VOLQKDVGHIXJDUHSUHVHQWDPDFDSDFLGDGH
GHFULDUUXSWXUDGHVXUSUHHQGHUGHVHULPSUHYLVtYHO
WRUQDQGR UHDLV DWXDo}HV KHWHURGR[DV IRUD GDV URWL-
nas tradicionais. A tática black bloc, neste sentido,
pode ser esgotável se não se renovar, perder seu bri-
lho inovador, contestador, violentador da ordem e da
estética inercial em que ativistas se comportam em
atos públicos coletivos.
Uma problematização que pode ser feita a esse
UHVSHLWRpSHQVDUQDKLSyWHVHHVHDVLQVWLWXLo}HVSR-
OtWLFDVGHPRFUiWLFDVFRPVXDHOHYDGDFDSDFLGDGHGH
inclusão e captura do dissenso, legalizassem deter-
PLQDGRV WLSRV GH YDQGDOLVPR" &RPR ¿FDULD D WiWLFD
QHVVH FRQWH[WR" &HUWDPHQWH VH TXHEUDU YLGUDoDV
fosse permitido, a tática black bloc teria que encontrar
QRYRV DOYRV TXH GHVD¿DVVHP D RUGHP  MXUtGLFD DV
autoridades repressivas e a legitimidade das ordens
SROtWLFDHHFRQ{PLFD

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A provocação às forças policiais por parte dos
ativistas adeptos da tática é evidente. Vestidos de
preto, encapuzados e empunhando paus e pedras,
destroem vidraças de bancos e outros grandes esta-
belecimentos comerciais ou estatais a poucos metros
das barreiras policiais. Defensores da integridade da
propriedade, mais que da humana, os policiais agem
com violência contra os manifestantes, dispersan-
do as manifestações. Fato que leva muitos ativistas
da esquerda capitalista, que reivindicam reformas, a
questionar as reais intenções dos adeptos da tática
6FDO]LOOL 
2HIHLWRGHHQIUHQWDURPHGRHGHL[DUH[WUDYDVDU
a indignação pode ter repercussão viral, de motivar
novos manifestantes, desrespeitados e encurralados
SHOD SROtFLD D DJLU GD PHVPD IRUPD 2 YtUXV GD
revolta também pode se disseminar por distintos
meios e aspectos da vida cotidiana. Ele tem sua
força não na ação unitária pontual sobre seu alvo, no
caso, vidraças de bancos bilionários. A ação em nada
debilitará o lucro do banco ou mesmo a estabilidade
GR PHUFDGR ¿QDQFHLUR 3RUpP DR VH GLVVHPLQDU H
contaminar centenas, milhares de outros ativistas
igualmente indignados, acaba-se por difundir a

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UHMHLomR UDGLFDO DR VLVWHPD SROtWLFR H HFRQ{PLFR 2
YtUXV GD UHYROWD H[SOLFLWD TXH p SRVVtYHO YLYHU VHP
PHGR GH H[SUHVVDU DV DQJXVWLDV H IUXVWUDo}HV TXH
somos disciplinados a resignar-nos e a conviver. Uma
demonstração pública de revolta, de enfrentamento
a verdades estabelecidas, como a do supostamente
necessário respeito a autoridades e à propriedade
SULYDGD SRU H[HPSOR DEUH SRUWDV SDUD RXWURV
LQGLYtGXRV H[SUHVVDUHP VXD LQGLJQDomR GH IRUPD
crescente. Quebrando ou não vidraças, a ação dos
DQDUTXLVWDVKRMHHVWiSDXWDGDHPGHVD¿DUDVRUGHQV
FRQVWLWXtGDV DV PRUDLV YLJHQWHV D UHVSHLWDU VHXV
SUySULRV VHQWLPHQWRV H GHVHMRV PXLWR DOpP GRV
disciplinamentos, vigilâncias, controles e autorizações
R¿FLDLVFRPRVTXDLVFRQYLYHPRVGLDULDPHQWH
Nas sociedades atuais, os trabalhadores são
FKDPDGRVDGHL[DURVVHQWLPHQWRVDSDUWDGRVGDYLGD
coletiva. A produtividade do trabalho mecanizado,
nem sequer possui qualquer preocupação ou
interesse pelos sentimentos alheios, pelos desejos.
2LQGLYtGXRPRGHUQRpWUHLQDGRGLVFLSOLQDGRDVHJXLU
RUGHQV D VHU SURGXWLYR QR WUDEDOKR ([SUHVV}HV
emocionais são isoladas da convivência pública, são
proibidas e coibidas. Raiva, amor e ansiedade são

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temas da vida privada, individual. A raiva ao modo
de vida determinado pelo Estado, o mercado e as
igrejas é despolitizada e patologizada, submetida
ao ostracismo coletivo e a tratamentos. Se esconde
nas impessoais interações sociais que ocorrem
SULQFLSDOPHQWH QR PHLR XUEDQR &RP D H[FHomR GR
desejo de posse, que é diariamente estimulado pelas
técnicas de marketing ao consumo, o ser humano tem
VLGRGHVXPDQL]DGRSDUDTXHVXDYLYrQFLDPDTXtQLFD
produtivista obtenha melhores resultados.
A ação desenfreada, descontrolada de indignação
dos corajosos meninos e meninas que atuam nas
linhas de frente das manifestações, propõe colocar
um basta na frieza da vida burguesa, lançando
D UDLYD FRPR LQJUHGLHQWH DFHLWiYHO GH H[SUHVVmR
SROtWLFD 'LDQWH GH WDO UXSWXUD QLQJXpP SDVVD LOHVR
Os meios de comunicação não conseguem ignorar
os atos espetaculares e pirotécnicos e acabam não
conseguindo ocultar integralmente a violência policial.
2V UHSUHVHQWDQWHV SROtWLFRV WDPSRXFR FRQVHJXHP
ignorar as cenas de caos e indignação. Na verdade
mal sabem como reagir. Tais atos não constam na
JUDPiWLFD SROtWLFD GD GHPRFUDFLD OLEHUDO HPERUD D
repressão seja indissociável à gramática do Estado.

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A luta dos movimentos de resistência, entretanto,
não cessa. O caminho para ampliar liberdades,
igualdades, que resultariam em fraternidade, não é
oferecido gratuitamente por agentes da ordem, mas
UHLYLQGLFDGR SRU JUXSRV FRUDMRVRV TXH GHVD¿DP R
PHGR LQÀLJLGR GH FLPD j EDL[R H TXH RXVDP GHVD¿DU
as forças da ordem. Em cada época, os rebeldes
empregam novas táticas, novas estratégias para esticar
RODGRKXPDQRGDRUGHPH[LVWHQWHDWXDQGRjPDUJHP
da mesma, por fora de suas engrenagens envelhecidas.
Atualmente, as revoltas têm ocorrido nas ruas e têm
se mostrado contrárias às instituições públicas, nada
muda se os ataques são deferidos a tribunais de
MXVWLoD RX D {QLEXV RX DRV JUDQGHV UHSUHVHQWDQWHV
do capital privado. Basicamente, a revolta é contra a
RUGHPLQVWLWXtGDTXHQRVID]GHL[DUGHODGRVHQWLPHQWRV
GHVWUXWLYRVSDUDDWXDUUDFLRQDOPHQWHHPDTXtQLFDPHQWH
QR PHUFDGR GH WUDEDOKR H QD FRQYLYrQFLD ³SDFL¿FDGD´
em espaços públicos.
2 GHVWDTXH DR SDFL¿FDGD p SRUTXH D SD] QmR p
GDGD p FRQVWUXtGD SRU XQV VRE R SUHoR GD RSUHVVmR
de outros. Essa opressão é também aquela do silêncio,
da resignação, da subordinação cotidiana, que de tão
naturalizada passa despercebida para a maioria das

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SHVVRDV1DDomRUDFLRQDOFRPEDVHD¿QVTXHVRPRV
chamados a atuar não cabe a ação rebelde. A revolta
não pode ser analisada com base em uma ação racional,
de avaliação de seus resultados, quando nem sequer
WHPREMHWLYRVFRQFUHWRV5HYROWDLPSOLFDXPDH[SUHVVmR
urgente, radical e coletiva de indignação e dissenso.
7UDWDVH GH XPD H[SORVmR SROtWLFD H GH VHQWLPHQWRV
Reprimir violentamente tais sentimentos, como tem
RFRUULGR SRGH DPSOLiORV RX LQFXWLU DUWL¿FLDOPHQWH XP
estado de aceitação da ordem social, que transmite a
sensação de paz, quando na realidade essa paz é falsa,
não ocorre naturalmente.
A revolta nas ruas permite o encontro de revoltados.
$ D¿UPDomR SDUHFH yEYLD PDV JDQKD UHOHYkQFLD
na medida em que se abre o espaço para a livre
pronunciação coletiva da rejeição aos macro-sistemas
GRPLQDQWHV$R VHU H[SUHVVDGD SRU XQV SHUPLWH TXH
outros também atuem e demonstrem seu dissenso e
indignação. Neste sentido, pode ser entendida como
catalisadora de liberações das amarras sociais que
VH DFRPRGDP HP FDGD LQGLYtGXR H TXH FRQGX]HP j
resignação. Com a ação direta há rupturas. Ações e
SHUFHSo}HVKHWHURGR[DVUHYHODPVHQDLQWHQVLGDGHHP
que são provocadas pelo calor da revolta e da repressão.

134

Brasil em crise: o legado das jornadas de junho. Praia Editora


5HIHUrQFLDVELEOLRJUi¿FDV

Augusto, A., 2013. Política e antipolítica: anarquia contempo-

rânea, revolta e cultura libertária, 6mR3DXORVQ

%DNXQLQ 0  Tácticas Revolucionarias. %XHQRV $LUHV

7HUUDPDU(GLFLRQHV

%UDQFR*&9LROrQFLDGH(VWDGRecopolítica, Maio-A-

JRVWR9ROXPHSS

'DWDIROKD  Termômetro paulistano - Manifestações

PO813712 - 25/10/2013, 6mR3DXORVQ

'HOHX]H*Conversações. 5LRGH-DQHLUR(GLWRUD

'HOHX]H *  *XDWWDUL )  Mil Platôs: Capitalismo e

Esquizofrenia. 6mR3DXOR

'tH] ;  /D ,QVXPLVLyQ 9ROXQWiULD (O DQDUTXLVPR LQ-

GLYLGXDOLVWD HVSDxRO GXUDQWH OD 'LFWDGXUD \ OD 6HJXQGD 5HS~EOLFD

 Germinal, $EULOSS

'XSXLV'pUL)Black Blocs. 6mR3DXOR9HQHWD

)RXFDXOW 0  $XOD GH  GH 0DUoR GH  ,Q Em

Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France 1975-1976. 6mR

3DXOR0DUWLQV)RQWHVSS

)RXFDXOW 0  'LUHLWR GH 0RUWH H 3RGHU VREUH D 9LGD

,QHistória da Sexualidade, vol. 1: A vontade de saber. 6mR3DXOR

*UDDO

135

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dado no Collège de France (1977-1978). 6mR3DXOR0DUWLQV)RQWHV

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Martins Fontes.

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nia das organizações sem estrutura. [Online]

$YDLODEOH DW KWWSZZZQRGRRUJLQ-

VXUJHQWHVWH[WRVDXWRQRPLDWLUDQLDKWP

>$FHVVRHP-DQHLUR@

*XDWWDUL) 5ROQLN60LFURSROtWLFD&DUWRJUD¿DVGR

Desejo. 6HJXQGDHG3HWUySROLV9R]HV

3URXGKRQ3-Proudhon. 6mR3DXORÈWLFD

6FDO]LOOL*2%DLOHGRV0DVFDUDGRVLe Monde Diplima-

tique Brasil, 0DUoRS

6WLUQHU0O Único e a sua Propriedade. /LVERD$QWt-

gona.

7yWRUD6)RXFDXOW%LRSROtWLFDH*RYHUQDPHQWDOLGDGH

1HROLEHUDOREU,   SS

136

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