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S

r e v i s t a

M I M E S I
c i ê n c i a s h u m a n a s
B a u r u • S P • 2 0 0 2 • V. 2 3 • N . 2

Reitora
Irmã Jacinta Turolo Garcia

Vice-Reitora e Pró-Reitora Comunitária


Irmã Ilda Basso

Pró-Reitora Administrativa
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Revisão de Língua Portuguesa


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Laureano Pelegrin

Diagramação
Júlio Furtado

Impressão e Acabamento

Gráfica Bandeirantes S/A

Publicação Semestral / Semestral Publication

Mimesis: Revista da Área de Ciências Humanas.


Universidade do Sagrado Coração. Bauru -
SP - Brasil, 1979-1980; 1982

1979-80, 1-2
Publicação interrompida em 1981
1982-2002, 2-23

ISSN 0102-7484
Conselho Editorial
Glória Maria Palma – USC
Hélio Requena da Conceição – USC
José Luiz Sanfelice – Unicamp
Maria Aparecida V. Bicudo – USC
Regina Célia Baptista Belluzzo – USC
Sílvio Donizetti O. Gallo – USC

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Gloria M. Comesaña-Santalices – Universidade de Zulia –
Venezuela
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Colombia
José Tengarrinha – Universidade do Porto – Portugal
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Colombia
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Alberto De Vitta – USC
Antonio Carlos Carrera de Souza – USC
Antonio Vicente Marafiotti Garnica – Unesp – Bauru
Benedito Antunes – Unesp – Assis
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Marcia Valéria Zamboni Gobbi – Unesp – Araraquara
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Maria Arminda do Nascimento Arruda – USP – São Paulo
Maria de Lourdes Tabaquim – USC
Pedrinho Guareschi – PUC
Pedro L. Goergen – Unicamp
Rosália M. R. de Aragão – Unesp
Thomas Bonnici – Universidade Estadual de Maringá
Mimesis

Mimesis é uma revista semestral, publicada pela Universida-


de do Sagrado Coração, dedicada às Ciências Humanas. Atenta à
realidade cultural pluralista e multidisciplinar de nossa época atual,
pretende apresentar-se como um meio, ao mesmo tempo pedagógi-
co e crítico, de divulgação dos saberes constituídos através das pes-
quisas e reflexões de especialistas que tenham interesse em questões
que são objeto de investigação das Ciências Humanas. Está ciente
da diversidade de posições teóricas, ideológicas e filosóficas, com
seu potencial conflituoso, assim como da pluralidade de crenças e
de valores éticos de uma sociedade em constante transformação, e a
partir dessa convicção, esforça-se por promover o reconhecimento
do direito de cada um à manifestação de suas idéias. Identificando
a relevância social do conhecimento, postula o diálogo constante
dos diversos discursos, para além das fronteiras disciplinares, assu-
mindo como principal preocupação, de um lado, a busca constante
e rigorosa da compreensão e da interpretação da realidade, respei-
tando as nuanças que o rigor assume conforme a região de indaga-
ção à qual se refere, e, de outro lado, o respeito do direito de dife-
rentes linguagens em pleitear racionalmente o conhecimento, a pes-
quisa e a reflexão.
Mimesis tem como finalidade construir um espaço comum no
seio do qual todos possam manifestar-se, formando uma pluralida-
de paradoxal de linguagens únicas, cada uma colocando à prova sua
pertinência e sua validade mediante o contato com a realidade e
pelo diálogo crítico com outros discursos. Focada na construção de
uma comunidade comunicante, rejeita qualquer sectarismo metodo-
lógico ou ideológico, investindo, ao contrário, na politização do es-
paço cultural de pensamento e de investigação como meta e tarefa,
reconhecidas pela própria Universidade, e amparadas por padrões
éticos instituídos em concerto. Mimesis aceita trabalhos, como arti-
gos, ensaios, estudos críticos, resenhas, de preferência de especia-

m 5 M
listas ou pesquisadores pós-graduados da área de Ciências Huma-
nas, sobre temas ou teorias da atualidade sem deixar de considerar
relevantes as contribuições investigativas, de caráter mais acadêmi-
co, sobre questões e autores clássicos. Os trabalhos encomendados
ou recebidos serão publicados no idioma do autor.
Ao Conselho Editorial, reserva-se o direito de os publicar ou
não, seguindo rigorosa avaliação e parecer de, no mínimo, dois dou-
tores do Conselho Científico ou outros externos, especialistas na
área à qual se insere o trabalho apresentado.

m 6 M
Editorial

Atendendo sua finalidade fundante de construir um espaço de


aparência para múltiplos discursos, a Revista Mimesis, neste núme-
ro, apresenta diversos estudos nas áreas de Filosofia, Sociologia, Fi-
losofia da Educação, Letras e Educação Ambiental. São reflexões
sobre temas relevantes, pois cada autor, em sua perspectiva, apre-
senta comentários críticos visando à definição de alternativas para
a sociedade, para as pessoas e para as instituições.
Fernando Catroga, em seu artigo Recordar e comemorar. A
raiz tanatológica dos ritos comemorativos, apresenta um estudo
minucioso sobre as relações entre memória e morte. Sendo uma ex-
periência individual e intransferível, a morte, em si mesma, é um
nada epistemológico e ontológico. O autor analisa também sua es-
camoteação na civilização ocidental, pelo horror que nos apresenta.
A exacerbação dos signos tumulares levou o Ocidente, a partir do
século XIX, à construção de cemitérios-museus a fim de torná-los
memórias construídas, gerando uma comemoração pela anulação
do distanciamento gnosiológico entre sujeito e objeto.
Em La crisis educativa según Hannah Arendt: novedad y tradi-
ción, Gloria M. Comesaña-Santalices e Katiuska J. Reyes Galué
destacam que é na educação que uma dada sociedade estabelece em
que grau assume responsabilidades com as gerações futuras. O estu-
do toma como foco de análise o texto de H. Arendt A crise na
Educação, aqui no Brasil publicado na obra Entre o Passado e o
Futuro. A educação é território do novo e do jovem. Mais, apontam a
necessidade da inclusão, nas práticas educativas, de procedimentos
que promovam a preservação da tradição cultural – mitos, memórias,
conhecimentos e crenças –, pois, é também na educação que decidi-
mos ou não se amamos nossas crianças. Assim, esta concepção nos
fornece como sentido para a educação a responsabilidade com as ge-
rações futuras, a cultura e a tradição. Com isto anotam que um dos
caminhos possíveis para enfrentar a crise atual da educação é a pro-

m 7 M
moção de atitudes positivas com relação à criança, ao jovem e à au-
toridade do professor. Pois, a base dessa visão educacional é a afir-
mação de que o velho prepara o novo e, dessa forma, o professor e a
sociedade não podem prescindir da autoridade – aqui tomada estrita-
mente no sentido arendtiano – no ato educativo.
No artigo Solidão e doença na metamorfose nietzschiana,
Márcio Danelon explora os delicados caminhos de se relacionar a o-
bra de um autor, um filósofo, com sua vida. Seu intento é demons-
trar que a saúde bastante frágil do filósofo alemão Friedrich Nie-
tzsche, assim como sua vida, a qual foi um exercício de solidão,
podem explicar algumas de suas principais posições filosóficas e
idéias que nos legou. Amparado na obra Ecce Homo, declarada au-
tobiografia intelectual de Nietzsche, bem como em dois de seus
principais biógrafos, o autor explora a vida do filósofo, que teve o
sofrimento físico como seu companheiro. Recolhe, por exemplo, no
prontuário médico do adolescente Nietzsche na escola de Pforta, os
dados de suas doenças: dores de cabeça, reumatismo, inflamações
do ouvido, crises de enxaqueca. A tese apontada por Danelon é a de
que todas essas enfermidades, que dificultaram e depois impediram
a Nietzsche o exercício da docência universitária e da vida acadêmi-
ca, acabaram por afastá-lo de um convívio social mais intenso, e
que a doença e a solidão podem explicar, em alguma medida, a
metamorfose de Niezsche, de cristão bem formado nos princípios
luteranos, em ateu convicto, arauto da “morte de Deus”. Por outro
lado, a produção de uma filosofia crítica da cultura alemã da época,
de uma “filosofia do martelo”, dedicada a derrubar os ídolos, con-
tribuiu ainda mais para afastá-lo dos círculos sociais, para que sua
filosofia não tivesse maiores repercussões, e para que não tivesse
discípulos, o que aconteceu apenas depois do agravamento de sua
doença e conseqüente parada na produção filosófica, intensifican-
do-se após sua morte.
A representação feminina em três obras pontuais da literatura
sul-africana em inglês: King Solomon´s Mine (1885), de Henry Ri-
der Haggard; Is there nowhere else where we can meet? (1885), de
Hadine Gordimer; e Disgrace (1999), de J. M. Coetze, é o objeto de
análise de Thomas Bonnici, em seu artigo Representação feminina
na literatura da África do Sul. A análise das personagens femininas
em momentos diferentes da história literária da África do Sul reve-
lou como a literatura registrou e construiu formas de representação
do feminino. A mulher-bruxa, a mulher objetivada, a mulher subje-
tivada são as principais fases desse paradigma que não desconsidera
as ambigüidades e a complexa teia de valores que enredam a cultura
das mulheres brancas e negras da África do Sul. A repressão, a

m 8 M
opressão e a submissão são os desdobramentos do colonialismo e
do apartheid, que atingiu de forma cruel a mulher negra sul africana.
As vozes silenciadas e os discursos não-autorizados aparecem no
texto literário como testemunhas da violência, da subserviência e da
culpabilidade, que somente uma descolonização da mente pode
reverter, a fim de que o terrível dilema do desmascaramento da
identidade feminina encontre um espaço de debate, através da recu-
peração e análise das vozes silenciadas.
A questão da inclusão de alunos com necessidades especiais
ocupa um lugar de destaque nas pesquisas educacionais contempo-
râneas e a Declaração de Salamanca, de 1994, tem sido o marco
indicativo da relevância e da urgência de tal problemática. Esse é o
tema do artigo de Thaís Cristina Rodrigues Tezani, A dinâmica da
inclusão na gestão da escola pública, que concentra-se em descre-
ver o sentido da inclusão, as adaptações exigidas nos currículos para
atender a educação inclusiva e a gestão escolar. A autora conclui
que o processo de inclusão deve transcender os limites da institui-
ção escolar, reconhecendo como indispensáveis, para a aprendiza-
gem, as interacões sociais.
Daisi Chapani e Ana Maria Daibem apresentam, em seu texto
A incorporação da temática ambiental por uma Escola Pública de
Bauru (SP), o resultado de uma pesquisa sobre a contribuição de
uma escola pública para a formação de atitudes dos alunos com
relação à questão da sustentabilidade. O texto coloca em destaque a
análise das opiniões dos diferentes atores sociais: os alunos, profes-
sores e funcionários sobre a inserção da temática ambiental no
processo escolar. Conclui seu trabalho afirmando que os resultados
obtidos denotam que a manifestação dos alunos sobre a preservação
ambiental tem relação com a escolaridade, o que leva supor que a
escola esteja colaborando com a formação de uma massa crítica
consciente da relevância do futuro do planeta. Sugere, entretanto,
que tais medidas sejam mais efetivas e ampliadas no âmbito escolar
uma vez que muitos alunos não conseguiram justificar a importân-
cia do estudo do meio de forma coerente e outros nem sequer se
mostraram capazes de ampliar suas considerações para além do
contexto escolar.

m 9 M
Sumário/Contents

13 M Recordar e comemorar. A raiz tanatológica dos ritos comemorativos


To remember and to celebrate. The thanatological root of celebration
rites
Fernando Catroga

49 M La crisis educativa según Hannah Arendt: novedad y tradición


The educational crisis according to Hannah Arendt: novelty and
tradition
Gloria M. Comesaña-Santalices
Katiuska J. Reyes Gaulé

67 M Solidão e doença na metamorfose nietzschiana


Solitude and sickness in the nietzschean metamorphosis
Márcio Danelon

91 M Representação feminina na literatura da África do Sul


Female representation in South African literature
Thomas Bonnici

103 M A dinâmica da inclusão na gestão da escola pública


Dynamics of inclusion in public school administration
Thaís Cristina Rodrigues Tezani

121 M A incorporação da temática ambiental por uma escola pública de


Bauru (SP)
The incorporation of environmental theme by a Bauru State school
Ana Maria Daibem
Daisi Chapani

m 11 M
Sobre os colaboradores deste número m 141

Próximo número m 143

Instruções aos autores/Rules to the author m 145

m 12 M
Recordar e comemorar
A raiz tanatológica dos ritos comemorativos

To remember and to celebrate


The thanatological root of celebration rites
m
Fernando Catroga
Resumo
Nada é tão individual quanto a morte, por ser intransferível.
Todo conhecimento a seu respeito é indireto, pois somente apreen-
dido pela morte do outro. A civilização ocidental, desde seus
primórdios, buscou escamoteá-la e os discursos tanatológicos serão
sempre dos (e sobre) os vivos. O horror sobre as conseqüências do
estar morto tem gerado ritos, principalmente da prática libertadora
da presença do cadáver, na busca de um sentido e alívio para essa
ruptura. Isso gera, ainda, a exacerbação dos signos tumulares para
tornar visível o ser em detrimento do nada, buscando dar um senti-
do de presença e recordação eterna ao ausente. Esses sentidos têm
gerado no Ocidente, principalmente a partir do século XIX,
cemitérios museus, produtos do racionalismo iluminista. A finali-
dade é torná-los memórias-construídas, cujo diálogo faz com que
essa evocação busque anular o distanciamento gnosiológico entre o
sujeito e o objeto, gerando uma comemoração.

Palavras-chave: morte; tanatologia; cemitérios-museus; ritos; co-


memoração

1 - Recordar e comemorar
Sendo um acontecimento individual e indizível – ninguém
pode morrer a morte de outrem nem narrar a sua própria morte –
esta não é somente um fenômeno biológico, mas é também, como

m 13 M
sublinhou Max Scheller,1 um saber intuitivo e apriorístico, confir- m
mado pela experiência indireta e intuitivamente apreendido através CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
da morte do outro e dos “traços” subjetivos e histórico-sociais como
A raiz tanatológica dos
é pensada e representada. Porém, em si mesma, ela é um “nada epis- ritos comemorativos.
temológico” e um “nada ontológico”. Pensá-la será sempre negá-la. Mimesis, Bauru,
Só a partir de um sujeito instalado na certeza do viver2 se poderá v. 23, n. 2, p. 13-47,
interrogar o seu enigma, entendendo-se assim que, no fundo, não 2002.
seja a morte, mas o saber da (e sobre) a morte que suscita inquie-
tação ao homem.3
Na cultura ocidental, existe uma velha tradição que aconselha
o seu escamoteamento como problema. Segundo Epicuro, “o mais
terrível dos males nada é para nós, pois, enquanto existimos, a
morte não é, e, quando ela está lá, já não existimos nós. A morte não
tem, por conseguinte, nenhuma relação nem com os vivos nem com
os mortos, uma vez que ela nada é para os primeiros e os últimos já
não existem”.4 Posições similares foram defendidas por Epiteto,
Sêneca, Montaigne, Kant, Feuerbach, Marx e, em última análise,
por todo o pensamento imbuído de otimismo iluminista.5 Dir-se-ia
que esta atitude se limita a explicitar uma das respostas do homem
à consciência e recusa da sua finitude: a interiorização do desejo de
se sentir imortal (FREUD, Trauer und Melancholie, 1916-1917),
tendência esta que a sociedade contemporânea levou às últimas 1 Cf. SCHELLER, Max. Morte e
conseqüências ao desenvolver um processo de civilização assente Sobrevivência. Lisboa: Edições 70,
1993.
cada vez mais na separação e estranheza entre a vida e a morte.
2 GADAMER, Hans-Georg. La mort
Hoje, nunca se está preparado para morrer e a morte chega demasi- comme question. In: A. A. V. V. Sens
adamente cedo, como de um assassinato se tratasse.6 Morre-se sem- et Existence. In: Hommage a Paul
Ricoeur. Paris: Seuil, 1975. p. 20.
pre “de” e esquece-se de que, afinal, a causa (das causas) da morte 3 ELIAS, Nobert. La Solitude dês
é o incessante morrer da vida. Mourants. 2 ème ed. Paris: Christian
Bourgeois Éditeur, 1998. p. 15.
Inteligir o sentido da inaceitável finitude é uma das condições
4 Segue-se a tradução de BORGES,
necessárias para se tentar entender o tempo, ou melhor, o homem Anselmo. Mort e Esperança. In:
como tensão entre um futuro que ainda não é e um passado que já Igreja e missão, Janeiro-Dezembro.
1993. p. 123.
não existe. Logo, a morte, não sendo extrínseca à vida, surge como 5 Idem, p. 122.
o problema radical que, em vez de ser recalcado, pode-nos ensinar 6 ZIEGLER, Jean. Lês Vivants et lês
a compreender a vida e saber vivê-la.7 E como dela só poderemos Morts. Paris: Seuil, 1975. p. 273.

reconhecer sua semiótica, os discursos tanatológicos serão uma fala 7 Cf. QUENTAL, Antero de. Prosas.
Coimbra: Imprensa da Universidade,
sempre dos (e sobre) os vivos. 1931. p. 179.
Se a prossecução deste objetivo tem uma via teorética privile- 8 Cf. HEIDEGGER, Martin. L’ Être et
lê Temp. Paris: Gallimar, 1972. p. 41.
giada – as filosofias da existência (HEIDEGGER,8 LÉVINAS9) –
9 Cf. LÉVINAS, Emmanuel. La Mort
não são de menor valor gnosiológico, porém, os caminhos abertos et lê Temps. Paris: L’Herne, 1991.
pela antropologia, pela etnologia e pela história das mentalidades ao Sobre o tema, veja-se BERNARDO,
Fernanda. A morte segundo
interrogarem não só as ideações, mas principalmente os comporta- Emmanuel Lévinas: Limite: Limiar
mentos, os gestos e as atitudes corporizados nos ritos que encenam do Eu inter-essado. Revista Filosófica
de Coimbra, v. 6, n. 11, março, 1997,
o morrer e a morte. p. 119-204.

m 14 M
M É nesta perspectiva que muitos estudiosos têm defendido que
CATROGA, Fernando. a linha diferenciadora da hominização se encontra no fato de o
Recordar e comemorar.
homem ser o único animal que cultua os seus mortos. Estão neste
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. caso autores como Edgar Morin, Françoise Charpentier e Louis-
Mimesis, Bauru, Vincent Thomas. No entanto, outros, como Michel Ragon, susten-
v. 23, n. 2, p. 13-47, tam que tal manifestação já se detecta em alguns primatas10 e não se
2002. encontra em todos os povos: alguns houve que denotam indiferença
em relação aos destinos dos cadáveres.11 Seja como for, parece
indiscutível que o horror perante a putrefação e o medo do regresso
do “duplo” são constantes antropológicas que têm gerado ritos vivi-
dos pelos sobreviventes numa ordem de tempo que sintomatica-
mente tende a coincidir com o período da decomposição do próprio
corpo (ROBERT HERTZ) e a ultrapassar a sua realidade biológica
através de uma específica expressão social e metafísica.
10 Cf. DEPUTTE, Bertrand L. Não há uma sociedade sem ritos, aqui entendidos como con-
Perception de la mort et de la separa-
tion chez lês primates. In: NATHAN,
dutas corporais mais ou menos estereotipadas, às vezes codificadas
Tobie. (dir.). Rituels de Deuil, Travail e institucionalizadas, que exigem um “tempo”, um “espaço cênico”
du Deuil. Paris: La Pensée Sauvage,
1995. p. 183. Defende o autor: “si le
e um certo tipo de atores: Deus (ou os Antepassados), os oficiantes
deuil est défini comme um sentiment, e os fiéis participantes do espetáculo. Como escreveu Louis-
comme la douleur ressentie à la perte
d’um proche, on peut alors difficile-
Vincent Thomas, o sentido do rito assenta justamente nas interações
ment envisager une comparaison avec entre os protagonistas do drama e o consenso que os unifica, sendo
les primats non humains. Mais si on
ne définit le deuil que comme lês
aquele inconcebível sem uma “organização de signos geradora de
réactions à cette perte, alors il devient eficácia simbólica”. Mas esta somente terá efeito dentro de um hori-
possible de décrire et d’analyser aussi
celles des singes et de les comparer à zonte de crença; só assim a representação ritual poderá ser catártica
celles dês hommes” (p. 185). Sobre a e normativa enquanto expressão libertadora de angústias e modo de
hipótese de “luto” nos animais, veja-se
POLLOCK, Georges H. Deuil et resolução de dramas e de conflitos.12 E os ritos funerários – com-
changement. In: ÉTUDES sur la portamentos complexos que espelham os afetos mais profundos e
Mort. XXIIIème Congrès. Deuil et
Accompagnement. Bulletin de la supostamente guiam o defunto no seu destino post-mortem – têm
Societé de Thanatologie. n. 107-108, como objetivo fundamental superar o trauma e o caos que toda a
XXX année, 1996, p. 40-41.
11 Cf. RAGON, Michel L. Espace de
morte provoca nos sobreviventes.13 No momento caótico, “o rito é
la Mort. Essai sur l’architecture, la forma de negociar a alteridade, a fim de inflecti-la em sentido posi-
décoraton et l’urbanisme funéraires.
Paris: Albain Michel, [19--], p. 13-14.
tivo”, e a morte representa a “alteridade por excelência, uma vez
12 Cf. THOMAS, Louis-Vicent. Rites que ela é a não-vida”.14 Como bem lembra Michel Guiomar, “c’est
de Mort. Pour la paix dês vivants. par et dans le Funéraire que s’exprime clairemente une méta-
Paris: Fayard, p. 12-14.
13 Cf. THOMAS, Louis-Vicent. La
physique de la Mort, aux différentes époques, en divers lieux, dans
Muerte. Uma lectura cultural. chaque religion, dans chaque civilisation”.15
Barcelona: Paidós, 1991. p. 115; Um dos componentes fortes do rito de última passagem é a
Idem, Rites de Mort, p. 119.
14 Cf. THOMAS, Louis-Vicent., prática libertadora da presença do cadáver. O canibalismo, a imer-
Prefácio. In: BAYARD, Jean Pierre. são, o embalsamento, passando pelas técnicas mais freqüentes (a
Sentido Oculto dos Ritos Funerários.
Morrer é morrer? São Paulo: Paulos, cremação e a inumação) são técnicas materiais (e públicas) que se
1996. p. 8. revestem de um simbolismo capaz de lhes conferir sentido e de
15 GUIOMAR , Michel. Príncipes tornar mais suportável a rejeição da ruptura. Daí os gestos liberta-
d’une Esthétique de la Mort. Paris: J.
Corti, 1967. p. 34. dores e paradigmáticos, seja o de fazer regressar o corpo a terra, à

m 15 M
água ou a gruta maternais, seja o da purificação pelo fogo, ou o da m
comunhão canibalista com o princípio vital do defunto. E todos CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
visam suprimir a imagem da decomposição, “destruindo, dissimu-
A raiz tanatológica dos
lando ou conservando” o cadáver.16 O que permite dizer que, nos ritos comemorativos.
ritos funerários, trata-se de negociar e esconder a corrupção,17 de Mimesis, Bauru,
modo a que se possa regressar à ordem. v. 23, n. 2, p. 13-47,
Como se sabe, as esperanças escatológicas semeadas pela 2002.
religião judaico-cristã encontraram na descida do corpo a terra a sua
mediação adequada. Por isso, a inumação é inseparável de um ritua-
lismo que tem nas práticas de “conservação”, de “simulação” e de
“dissimulação” as suas expressões simbólicas mais significativas,
características que podem ajudar a compreender o cariz dominante-
mente “monumental” dos cemitérios cristãos, bem como os elos
existentes entre a morte e a memória.

Necrópole e memória
O nosso ponto de partida é óbvio: todo e qualquer cemitério,
e particularmente o cemitério oitocentista, deve ser entendido como
um lugar por excelência de reprodução simbólica do universo
social18 e de expectativas m etafísicas. E este simbolismo decorre do
fato de, como sublinhou Gaston Bachelard, a morte ser “primeira-
mente uma imagem”.19 O que se compreende, pois, segundo o céle-
bre aforismo de Roche Foucauld, “nem o sol, nem a morte se podem
olhar de frente”. E esta primeira característica determina a existên-
cia de uma relação estreita entre os mortos e a memória. Com
16 URBAIN, Jean-Didier. Morte. In:
efeito, esta pode ser definida como um conjunto de recordações e ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Lisboa:
de imagens comumente associadas a representações, as quais cono- Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
v. 36, 1997. p. 381.
tam valores e normas de comportamento construídas ou “inventa-
17 THOMAS, Louis-Vincent. op. cit.,
das” a partir do presente e de acordo com a lógica do “princípio da p. 9.
realidade”, sem que isso implique, no entanto, que a memória seja 18 Cf. URBAIN, Jean-Didier. La
Société de Conservations. Étude sémi-
espelho ou transparência da realidade-passado. Como defende Paul ologique dês cimetiéres de I’Occident.
Ricoeur ao comparar a memória com a imaginação, se esta invoca Paris: Payot, 1978. p. 85.
o ausente como irreal, a memória representa-o como anterior à evo- 19 BACHELARD, Gaston. La terre et
lês Reserves du Repôs. Paris: J. Corte,
cação, sugerindo assim uma dimensão “veritativa” para a memória, 1948. p. 312.
construída por razões “normativas e pragmáticas”.20 20 COENEN-HUTHER Josette. La
De fato, se ontologicamente a morte remete para o não-ser, é Mémorie Familiale. Paris:
I’Hartmann, 1994. p. 15. Cf.
na memória dos vivos, enquanto imagens suscitadas a partir de “tra- RICOEUR, Paul. Vulnérabilité de la
ços” com referente, que os mortos poderão ter uma existência (mné- mémoire. In: LÊ GOFF, Jacques et al.
Patrimoine et Passions Identitaires.
sica). Ganha desta maneira significado que a necrópole ocidental te- Entretiens du Patrimoine. Théâtre
nha-se estruturado como uma textura de signos e símbolos “dissi- National de Chaïllot. Paris: 6, 7 e 8
Janvier, 1997; Paris: Fayard, 1988.
muladores” do sem-sentido da morte e “simuladores” da somatiza- p. 17.

m 16 M
M ção do cadáver, e que o cemitério tenha sido desenhado como uma
CATROGA, Fernando. espécie de campo simbólico que, se convida à anamnesis,21 encobre
Recordar e comemorar.
o que se pretende esquecer e recusar.22 Este processo exige também
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. uma tradução ritual, já que “le souvenir ne porte pas seulement sur
Mimesis, Bauru, le temps: il demande ausi du temps – un temps de deuil”.23 E tudo
v. 23, n. 2, p. 13-47, isto explica que a função do símbolo funerário seja a de, em última
2002. análise, ser metáfora do corpo, trabalho imaginário exigido pela
recusa da morte e pela conseqüente objetivação dos desejos com-
pensadores de sobrevivência nascidos do fato de o homem ser onto-
logicamente atravessado por um “desejo de eternidade”. Perante a
incompreensibilidade do morrer, a memória emerge como protesto
compensatório. Mas, na “morte do outro”, é a morte de cada um que
se antevê; e, na recordação do finado, é ainda a própria morte que
se pensa ou dissimula: na sua “re-presentificação” encontra-se pro-
jetada a morte futura do próprio evocador e os anseios de perpetua-
ção na memória dos vivos.24
Todo o signo funerário, explícita ou implicitamente, remete
para o túmulo (recorde-se que “signo” deriva de “sema”,25 pedra
21 Sobre o peso do esquecimento nos tumular). Pode então se concluir que, se o túmulo tem por função
processos construtivos das memórias
subjetivas (e coletivas), veja-se CAN- devorar e digerir o cadáver, por outro lado, ele é constituído por uma
DAU, Joel. Anthropologie de la sobreposição de significantes (cadáver vestido, caixão, pedra tumu-
Mémoire. Paris: PUF, 1996. p. 56.
22 ETLIN, Richard A. The Space of
lar, epitáfio, estatuária, fotografia, etc.) que induzem metaforica-
Absence. In: A. A. V. V. Uma mente a aceitar-se a incorruptibilidade do corpo,26 elevando-se a
Arquitectura para la Muerte. I
Encontro internacional sobre los
“metonímia real, num prolongamento sublimado, mas real, da sua
cemitérios contemporâneos. Actas. carne”.27 Em suma, cada envelope que enforma o cadáver acrescen-
Sevilla 4/7 Junio 1991, Sevilla, Junta
de Andalucia, 1993. p. 596-600.
ta uma máscara ao sem sentido que ele representa e trai o nosso
23 RICOEUR, Paul, op. cit., p. 23. desejo de parar a putrefação e de alimentar a ilusão de que o corpo
24 Cf. DÉCHAUX, Jean-Hugues. Le não está condenado ao desaparecimento.28 E os signos “são assim
Souvenir dês Morts. Essai sur lê lien
de filiations. Paris: PUF, 1997. p.
dados em troca do nada segundo uma lei de compensação ilusória
273-274, 281. pela qual quanto mais signos temos mais existe o ser e menos o
25 Cf. DEBRAY, Régis. Vie et Mort nada. Graças à alquimia das palavras, dos gestos, das imagens ou
de I’Image. Une histoire du regard em
Occident. Paris: Gallimard, 1992. monumentos – posto que as sepulturas seguem a mesma lógica –
p. 20. dá-se a transformação do nada em algo ou em alguém, de vazio num
26 Cf. URBAIN, Jean-Didier. op. cit.,
p. 28, 149-152.
reino”.29
27 Cf. DEBRAY, Regis. op. cit., Para isso, o túmulo deve ser lido como uma totalidade signifi-
p. 22. cante que articula dois níveis bem diferenciados: o “invisível” (situ-
28 Cf. THOMAS, Louis-Vicent. Lê ado debaixo da terra) e o “visível”, o que faz com que, como es-
cadavre. De la biologie a
I’antropologie. Paris: Complexe, creveu Bernardin de Saint-Pierre e relembrava em 1868 a nossa
1980. p. 202
Revista dos Monumentos Sepulcrais, o túmulo seja “um monumen-
29 URBAIN, Jean-Didier. A Morte.
In: ENCICLOPÉDIA Eunadi, v. 36. to colocado entre os limites de dois mundos”.30 Se a invisibilidade
p. 383. cumpre na “clandestinidade” a função higiênica da corrupção, a
30 REVISTA MONUMENTOS camada semiótica tem por papel encobrir o cadáver, transmitindo às
SEPULCHRAES, v. 1, p. 28, 1868.
Os sublinhados são nossos. gerações vindouras os signos capazes de individuarem e ajudarem a

m 17 M
“re-presentação”, ou melhor, a “re-presentificação” do finado. E é m
por causa destas características que é lícito falar, a propósito da lin- CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
guagem cemiterial, de uma “poética da ausência”.31
A raiz tanatológica dos
Todo o jogo do simbolismo cemiterial parece apostado em ritos comemorativos.
suscitar a edificação de memórias e dar uma dimensão “veritativa” Mimesis, Bauru,
ao ausente. Porém, aquilo que se pretende recordar emerge do imen- v. 23, n. 2, p. 13-47,
so e abscôndito continente do recalcado. Isto é, se toda a memo- 2002.
rização, enquanto construto mediado pelo presente (a existência de
uma “memória pura” é uma ilusão bergsoniana), tem a sua outra
face no consciente ou inconscientemente esquecido,32 também o
cemitério, como “lugar de memória”, assenta num invisível fundo
de amnésia. Em certo sentido, ele mostra algo que também se detec-
ta no campo da consciência individual: a memória e o esquecimen-
to mantêm a mesma relação que une a vida e a morte.33
No que respeita às novas necrópoles oitocentistas, a projeção
da necessidade existencial de se negar a morte e a sua tradução
romântica, expressa na recusa exasperada da “morte do outro” e na
crescente colocação da memória como instância supletiva de imor-
talização, deram origem a uma nova cenografia e a um novo cultos
dos mortos, bem como à renovação das velhas qualificações da
morte como “morte-sono”. Isto explica que a habitação do morto
se tenha arquitetonicamente materializado não só como sucessora
e sucedânea do “teto eclesiástico” (o jazigo-capela), mas também
como “casa”, e que a sepultura, tal como a “casa da família” (dos
pais, dos avós), tenha passado a ser centro privilegiado de “identi-
ficação” e de “filiação” de gerações. E todas estas necessidades
simbólicas fizeram da necrópole um analogon da cidade dos
vivos.34
Compreende-se. O cemitério burguês levou às últimas conse-
qüências um desejo de sobrevivência individualizada que, embora 31 GÓMEZ, Ana Anaiz. La sepultura,
potenciado pela concepção judaico-cristã do post-mortem e sobre- monuento que construye la memória
de la vida. In: A. A. V. V. Uma
tudo pela promessa de ressurreição final dos corpos, só ganhou Arquitectura para la Muerte. p. 288.
curso nos alvores da modernidade. O homem medieval ainda não 32 No mesmo sentido, leia-se
estava centrado sobre si mesmo, pois sentia-se comparticipante da TODOROV, Tzvetan. Les Abus de la
Mémoire. Paris: Arléa, 1995. p. 14;
comunidade santa dos crentes, isto é, sentia-se na posse da ver- RICOEUR, Paul. op. cit., p. 28-29.
dadeira vida.35 Em tal horizonte, só podia brotar uma concepção 33 Cf. AUGE, Marc. Les Formes de
dominantemente comunitária do além. Ao invés, com o crescimen- L’Oubli. Paris: Payot, 1998. p. 20.
34 Cf. CATROGA, Fernando. A
to da importância do “sujeito”, teriam de aparecer projetos em que Militância Laica e a Descristianiza-
a nova dimensão sociabilitária não poderia subsumir o direito à indi- ção da Morte em Portugal (1865-
1910). Coimbra: Faculdade de Letras,
vidualização. 1988. v. 2, p. 680. (edição policopia-
Os sinais que apontam para a emergência de atitudes “indi- da).

viduantes”, como os jacentes e os orantes, começaram no século 35 FEUERBACH, Ludwig. Pensées


sur la Mort et I’Immortalité. Paris:
XIII, conquanto ainda circunscritos aos mais dignitários da Cerf, 1991. p. 42.

m 18 M
M sociedade. Com o avanço do processo civilizacional, nomeada-
CATROGA, Fernando. mente a partir dos finais do século XVIII, esta tendência ir-se-á
Recordar e comemorar.
“democratizar” e expandir, atingindo a sua máxima expressão nos
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. novos cemitérios do século XIX. Aqui é a própria lei (ao exigir
Mimesis, Bauru, sepulturas individualizadas) e os próprios valores fundantes da nova
v. 23, n. 2, p. 13-47, sociedade em construção a acenarem com a promessa de que, nem
2002. que fosse através da reatualização mnésica, possibilitada por um
culto dos mortos cada vez mais intersubjetivo e familiar, todos
podiam finalmente aspirar à perpetuação na memória coletiva. Dir-
se-ia que as garantias de imortalização foram passando de privilé-
gio de alguns a direito natural de todos.
Neste contexto, a progressão da campa individual, do jazi-
go, do epitáfio, da estátua e, por fim, da fotografia (relembre-se
que a descoberta da fotografia é contemporânea da revolução
cemiterial romântica) que se detecta nos cemitérios modernos a
partir do século XIX deve ser lida como tradução iconográfica
adequada à rituali-zação dos novos imaginários, quer estes apon-
tem para fins escato-lógicos, quer se cinjam à memória dos vivos.
E para que o trabalho simbólico do cemitério (a localização) cor-
respondesse àquelas ex-pectativas, a materialização dos signos
que exigiu a “fixação” do cadáver (isto é, um monumento), de
modo a ser nítida e inequívoca a “evocação” (a imagem, o sím-
bolo ou o epitáfio narrativos) e a “identificação” do ausente (a
epigrafia onomástica).36
Esta maior acentuação da memória ocorreu dentro de uma
mundividência dominantemente religiosa, embora já minada por in-
fluências secularizadoras. A nova necrópole, rompendo com o cír-
culo sacral dos enterramentos nas (ou à volta das) igrejas e ficando
subordinada a uma gestão política, passava também a ter um ambí-
guo estudo profano. E as resistências dos setores mais tradicionalis-
tas, que se detecta em alguns países católicos, indiciam uma repul-
sa para com os novos espaços. Mas faltar-se-ia à verdade se não se
frisasse que, desde o século XVIII, muitos iluministas e eclesiásti-
cos já defendiam o “exílio dos mortos”, e basta atentar nas prerro-
gativas que a Igreja continuou a ter em relação às novas necrópoles
(considerando-as como campos consagrados) e ter em conta a fra-
quíssima expressão dos enterramentos civis (oficialmente possíveis
a partir de finais de 1878) para se confirmar, no caso português, a
36 Cf. URBAIN, Jean-Didier. Lês continuidade da sobredeterminação religiosa do novo culto cemite-
Bouleversements Actuls de l’Art rial dos mortos.
Funeraire. Autor du développement
de la cremation em France et de sés Todavia, esta dimensão não pode conduzir à subalternização
effets esthétiques. Coimbra: de uma outra realidade que lhe é coexistente, a saber: a seculariza-
Septembre, 1993. (edição policopiada
gentilmente cedida pelo autor). ção provocada não só pelo modo mais profano de gerir os ce-

m 19 M
mitérios (em Portugal, eles foram definidos como “espaços públi- m
cos” de gestão municipal ou paroquial por leis de 1834), mas tam- CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
bém pelas projeções, no campo tanatológico, das idéias e dos valo-
A raiz tanatológica dos
res de uma época crescentemente polarizada pelos desejos de afir- ritos comemorativos.
mação da individualidade e de expectativas terrenas.37 Daí que, nos Mimesis, Bauru,
comportamentos e nas atitudes em relação à morte, sejam igual- v. 23, n. 2, p. 13-47,
mente detectáveis as novas necessidades sociabilitárias decorrentes 2002.
do cariz “contratualista”, “associativista” e “relacional” da socieda-
de moderna, e se encontrem projetadas as estratégias de legiti-
mação dos vários poderes e as tensões resultantes da gradual auton-
omização da memória histórica em relação à imortalidade tran-
scendente. Isto é, o cemitério objetiva esteticamente o próprio
inconsciente da sociedade. E esta se dá a ler mediante uma trama
simbólica estruturada e organizada à volta de certos temas e mitos 37 Quando aqui se usa o conceito de
secularização não se pretende confun-
unificados por esta função: reforçar, depois do “caos”, o “cosmos” di-lo com o de laicização. Com efeito,
dos vivos, e imobili-zar o devir, mesmo quando se recorre ao con- e como se procurou esclarecer em ou-
tro lugar, o primeiro denota o longo
traste (ambíguo) com transcurso irreversível do tempo e da transi- processo de automatização, em todos
toriedade da vida. os níveis da vida social, da esfera pro-
fana da sagrada. Situa-se na longa du-
Isto significa que, neste processo, facilmente se detectam ração e foi-se concretizando em tem-
investimentos simbólicos não raro antagônicos entre si. Mas a sua poralidades diferenciadas, ainda que
sempre num horizonte pautado pelos
condicionalidade de cariz histórico e social não deve fazer esquecer valores cristãos. Assim sendo, importar
que essa rede de signos se eleva a partir de um impulso de raiz reter que o fenômeno da secularização
nem sempre se definiu em oposição a
metafísica, o qual impele o homem a separar-se da natureza e da igreja (e muito menos a religião), apa-
recendo muitas vezes como reivindica-
animalidade e a emergir, na escala dos seres, como um cultuador de ções tendentes a “desmitoligizar”,
mortos, logo, como um produtor de cultura e de memória. Sem a “desmagificar” ou a “desclericalizar” a
sociedade, e não tanto a “descristiani-
angústia nascida da tomada de consciência da precaridade humana zá-la”. O conceito de lai-cismo, se en-
não haveria necessidade de se construírem monumentos, pois só tronca no de secularização, remete pa-
ra o propósito militante de levar às úl-
aquele que se sabe e se recusa a ser transitório pode aspirar à perpe- timas conseqüências e, assim, torná-la
tuação.38 Pode então aceitar-se que, na linguagem própria, o monu- equivalente a “descristianização”. Por
isso, deve se referir tão só aos projetos
mento funerário tanto é exteriorização da tomada de consciência de de transformação cultural que os movi-
que o homem é um “ser-para-a-morte”39 (HEIDEGGER) como afir- mentos anticlericais e anticatólicos dos
finais do século XIX e princípios do
mação do “direito à memória”. século XX (conjuntura em que se con-
Na verdade, o signo funerário tem uma significação monu- solidou a expressão laicismo), bem co-
mo as suas expressões políticas (libera-
mental, dado que só o “monumento” assegura a imortalização na is de esquerda, republicanas, socialista
terra.40 E quando os italianos de Gênova, Bari ou Messina chamam anarquista) procuram concretizar nas
sociedades européias dominantemente
às suas necrópoles modernas Cemiterios Monumentales estão católicas. Dito isso, pode en-tão se a-
somente a ser fiéis a uma realidade primordial que os “campos san- ceitar que, se o laicismo é uma expres-
são mais radical do secularismo, nem
tos” oitocentistias, e particularmente os da ares mediterrânica, toda a secularização é sinônimo de
levaram às últimas conseqüências. laicismo. CATROGA. op. cit., p. 6-34.
A palavra latina monumentum deriva da raiz indo-européia 38 Cf. DEBRAY, Régis. op. cit., p. 25.
39 KOSELLECK, R. L’Éxperience de
men. Esta exprime uma das funções nucleares do espírito (mens), a l’Histoire. Paris: Gallimard-Seuil,
“memória”. Deste modo, tudo aquilo que pode evocar o passado, 1997. p. 137.
perpetuar a recordação – incluindo os próprios atos escritos – é um 40 No mesmo sentido, veja-se
BOTTACIN, Maurizio. La tentazione

m 20 M
M “monumento”.41 É verdade que, com a Antigüidade romana, aquele
CATROGA, Fernando. tinha dois significados: denotava uma obra comemorativa de
Recordar e comemorar.
arquitetura ou de escultura (arco do triunfo, coluna, estátua, troféu,
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. pórtico, etc.) e aplicava-se a edificações funerárias destinadas a
Mimesis, Bauru, eternizar a lembrança de alguém. Como sublinhou Ariès, já na sua
v. 23, n. 2, p. 13-47, origem “o túmulo é um memorial”.42 E, mesmo nas sociedades de
2002. dominância sacral, a sobrevivência do morto não se concretizaria
somente no plano escatológico, mas também dependeria da fama
que os túmulos (com os seus signos, as suas inscrições) e os elogios
de escritores ajudavam a reativar.
Esta função não foi negada pela gradual cristianização de
algumas das tradições pagãs do culto dos mortos, tanto mais que, no
seu cerne, o cristianismo se anunciou como a memória de Jesus
transmitida aos apóstolos e aos seus sucessores, isto é, como uma
religião comemorativa, cujo culto (a eucaristia) presume o reaviva-
mento de um fato real e histórico. Por isso, o ensino cristão é
“memória” e o seu culto é “comemoração”. O que explica que a
nova religião tenha facilmente recuperado os ritos tanatológicos de
origem pagã que obrigavam os vivos a “fazer memória”,43 afirman-
do-se como uma “religião da recordação”.
Como toda a memória é simbólica – isto é, opera por símbolos
que exprimem um estado de espírito, uma situação, uma relação,
uma pertença ou mesmo uma essência inerente ao grupo –44 entende-
se que o cemitério monumental na sua expressão arquitetônica e na
sua função de “lugar de memória”, e que as necrópoles modernas
patenteiem de um modo ainda mais extenso e claro esse significado.
O nexo entre a memória e o monumento, articulado com o jogo
“dissimulador” dos símbolos funerários, obriga, porém, a ter-se
cautela na qualificação do cemitério moderno como museu, uma das
Del nulla. Giardini della memória per expressões privilegiadas da “memória-saber”. Cenário de “memórias-
um eterno oblio. In: A. A.V. V. Utime construídas”, mas também de “memórias-vividas” (principalmente
Dimore. Veneza: Arsenale, 1987. p. 9.
41 Cf. LÊ GOFF, Jacques.
no terreno da gestão familiar do culto), as necrópoles são os “lugares
Documento/Monumento. In: de memória” por excelência do século XIX (e do seu prolongamento
ENCICLOPÉDIA EINAUDI, v. 1,
Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da
no século XX), porque as recordações que os seus símbolos sugerem
Moeda, 1984. p. 95. não privilegiam somente a ordem do saber – como é típico do
42 Cf. ÁRIES, Philippe. Essais de racionalismo iluminista e da organização museológica ou bib-
Mémoire. Paris: Seuil, 1993. p. 346.
43 Cf. LÊ GOFF, Jacques. El Ordem
liotecária – mas mais a ordem dos sentimentos e das intenções cívi-
de la Memória. El tiempo como co-educativas.45 Nas suas ex-pressões mais afetivas, o “diálogo” que a
imaginário. Barcelona: Paidós Básica,
1991. p. 150.
evocação pressupõe quase anula o distanciamento gnosiológico entre
44 Id., Documento/Monumento, p. 18. o sujeito e o objeto e faz dela uma “comemoração”. É que toda a
45 Ibid.. p. 37-38. memória se exprime, quaisquer que sejam as variações culturais, a
46 Cf. NAMER, Gerard. Mémoire et partir de uma relação dialógica em que, de uma certa maneira, a
Sociéte. Paris: Méridiens Klincksieck,
1987. p. 232. sociedade põe questões que a memória procura responder.46 Por con-

m 21 M
seguinte, a comemoração será sempre uma partilha. Nela, o recordar, m
mesmo sendo um diálogo do “sujeito” consigo mesmo, não se esgo- CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
ta num ato ensimesmado ou meramente subjetivo, mas diz-se na lin-
A raiz tanatológica dos
guagem “pública”, “coletiva” e “instituinte” da celebração ritual, ritos comemorativos.
numa teatralização que pretende gerar efeitos que ultrapassem o Mimesis, Bauru,
pragmatismo da transmissão dos saberes. v. 23, n. 2, p. 13-47,
Com efeito, se, como sustenta Pierre Nora, os “lugares de me- 2002.
mória” sugerem a paragem do tempo47 e, de certa maneira, a “imor-
talização da morte”, outro não é o valor mnésico do cemitério, pois
nele se encontra uma das características essenciais daqueles espa-
ços: a sua estruturação como um sistema de significantes que, a par
da face “veritativa” que referenciam, também visam gerar “efeitos
normativos” e, de certo modo, “afetivos”. Mas, embora os símbolos
possuam conteúdo ou história, eles revelam algo característico de
toda a simbólica encobridora da corrupção do tempo: organizam o
campo imaginário como um “templo”, cavando uma censura de
indeterminação do “espaço” e do “tempo” profanos, e escrevem um
círculo de sacralidade no interior do qual os signos só valem no teci-
do das suas relações. Assim, as liturgias desenrolam-se num “espa-
ço-tempo” específico, distinto do espaço e do tempo cotidianos, e o
cemitério é freqüentado como uma espécie de santuário. Ora “his-
toriquement, cela n’a d’ailleurs pas toujours été le cas; ce n’est
qu’au XVIII siècle et sourtout au XIX siècle, au moment où la
sépulture s’affirme comme support du souvenir et où le culte des
morts devient culte des tombeaux, que le cimetiére accéde à la sanc-
tuarisation”.48 Devido a este estatuto, as necrópoles modernas, ao
contrário dos cemitérios antigos, tinham de ser lugares de excesso,
fechados sobre si mesmo, espaços em que o próprio muro físico
funciona como proteção contra as profanações e como uma espécie
de “símbolo-fronteira”, campo semântico onde mesmo o mais secu-
lar dos significantes se aura de sacralidade.
Nesta perspectiva, e ao contrário das peças de um museu, os
objetos cemiteriais não são psicologicamente dissociáveis da estru-
tura em que se integram. Isto é, o lugar (topos) e o signo (sema)
estão de tal modo imbricados um no outro, são de tal modo com-
preendidos como co-extensivos, que nenhum dos dois é fenomeno-
logicamente separável,49 parecendo natural a relação entre o signifi-
cante, o significado e o referente (ausente). Mas esta naturalidade
47 Cf. NORA, Pierre. Les Lieux de
recobre-se de sacralidade, já que, como “lugares de consagração” e Mémoire. I La Republique. Paris:
de “comemoração”, neles se convoca o “invisível” através do “visí- Gallimard, 1984, p. XLI.
vel”, suscitando-se simultaneamente atração e medo, ao contrário 48 DÉCHAUX, Jean-Hugues, op. cit.,
p. 68.
do que acontece com o museu, território em que os objetos expos- 49 Cf. URBAIN, Jean-Didier. La
tos aparecem descontextualizados, ou melhor, surgem inseridos Société de Conservation. p. 31-32.

m 22 M
M num conjunto artificial e erudito. Sem dúvida, é a consciência do
CATROGA, Fernando. defasamento existente entre o topos e o sema que leva a deplorar-se
Recordar e comemorar.
o cariz decepcionante, por estarem separadas da sua arquitetura e do
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. seu ambiente,50 das esculturas funerárias quando isoladamente vis-
Mimesis, Bauru, tas em exposições.
v. 23, n. 2, p. 13-47, Pretende-se com tudo isto defender que o símbolo funerário é
2002. metáfora de vida e apelo, uma periódica ritualização revivificadora;
ele é para ser vivido e para ajudar a viver,51 oferecendo-se assim co-
mo um texto cuja compreensão mais afetiva (a dos “entes queri-
dos”) envolve toda a subjetividade do sobrevivente.
Com a sua linguagem de recolhimento e do silêncio, o novo
rito cemiterial irá ter na “visita” periódica (com maior incidência no
Dia dos Defuntos – 2 de novembro) a sua expressão pública mais re-
levante, atitude que ganhou um incontornável tom comemorativo e
de celebração, como exemplarmente se comprova pela análise das
romagens, sobretudo pelas que foram diretamente animadas por
intenções cívicas. É certo que lhe faltam algumas características
que Durkheim definiu para o “rito comemorativo”, mormente o
aspecto diretamente representativo, recreativo e estético da manifes-
tação. Mas a tendência para a individualização que nela se detecta
não era de pendor narcísico, solitista ou associal; recordação e
comemoração ainda não estavam dissociadas: a evocação, que o
novo culto fomenta, é um modo de reconhecimento, isto é, uma
prática de legitimação que retrospectivamente apela para a autori-
dade simbólica dos mortos, elevando-os a “antepassados norma-
tivos e paradigmáticos” de um grupo.
Defende-se assim que, mesmo à escala da “visita ao cemi-
tério”, é possível surpreender as características que, numa evidente
transferência analógica, as comemorações políticas de raiz tana-
tológica explicitavam de uma maneira ainda mais evidente. A idéia
de comemoração é herdeira não só da solenidade da cerimônia pú-
blica de elogio e de menção de um nome, como implica a sacraliza-
ção do evocado, desenrolando-se, em similitude com a sua matriz –
o ato religioso –, num rito eficaz para a memória dos mortos e para
o destino dos vivos.
50 FRANÇA, José Augusto. A partir de figuras ou acontecimentos fundadores, a comemo-
A arte em Portugal no século XIX. v. ração, ou melhor, o espetáculo da comemoração – que requer um
2. Lisboa: Bertrand, 1966.
p. 20. Num outro sentido, lugar, um teatro, um tempo e a sua ficção, uma mensagem, a recor-
veja-se: TEIXEIRA, Madalena Braz.
Do objecto ao museu.
dação e o esquecimento –, é uma prática sociabilitária apostada em
In prelo, n. 5, 1984. p. 45. unificar a diversidade e até o antagonismo de memórias coletivas
51 Cf. URBAIN, Jean-Didier, op. cit., com uma gênese mais espontânea.52 Daí que, conquanto só os indi-
p. 33.
52 Cf. NAMER, Gerard. op. cit., p.
víduos possam recordar, o rito comemorativo, tal como o rito reli-
201, 204-205. gioso propriamente dito, prolongue, modernizando-as, as práticas

m 23 M
de vocação holística, bem como a sua “função instituinte de socia- m
bilidades”. E estas características serão tanto mais evidentes quanto CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
menor for a espontaneidade e a força normativa do rito e maior for
A raiz tanatológica dos
a sua sobredeterminação cívica.53 ritos comemorativos.
A “visita ao cemitério” é um rito de repetição. E nele se veri- Mimesis, Bauru,
fica esta vertente essencial da comemoração: esta, depois do ato v. 23, n. 2, p. 13-47,
fundador, será sempre comemoração de comemoração, a qual se 2002.
transformará em “tradição” se a anamnesis deixar de ser uma neces-
sidade vital para… os vivos. Com efeito, naquele ato, repetem-se
comportamentos-tipo (a deposição de flores, o recolhimento em si-
lêncio, por exemplo) e a sua corporização é coletiva e pública (as
“visitas” individuais são exceção), incitando-se à recordação do
morto e ao reforço do cosmos (a começar pela família) dos vivos. É
que a memória reavivada pelo rito tem uma “função pragmática e
normativa”, consubstanciada no intento de, em nome de um
patrimônio (espiritual e material) comum, integrar os indivíduos em
cadeias de “filiação identitária”, distinguindo-os e diferenciando-os
em relação aos “outros”, mas exigindo-lhes igualmente, em nome
da perenidade do grupo, deveres e fidelidades. Para isso, o seu efei-
to tende a saldar-se numa “mensagem”. E esta, ao unificar recor-
dações pessoais ou outras memórias coletivas, constrói e conserva
uma unidade que domestica a fluidez do tempo num presente que
dura.54
O núcleo forte desta reconstrução é a família. E como defen-
deu Halbwachs, a este nível, o trabalho de unificação será sobretu-
do uma “norma”: recorda-se o espírito de família porque é
necessário retransmitir e reproduzi-lo. Em graus de sociabilidades
mais extensa – como, nas classes e grupos sociais – a memória será
aquela feita sob um critério unificante análogo ao do sistema de
avaliação nobilitária.55 Mas importa não esquecer que nos ritos
rememorativos (e comemorativos) se encontra sempre uma tensão
entre afeição e conhecimento e entre memória e normatividade. O
que gera esta experiência interativa: como a memória é normativa,
ela é oferecida como uma “mensagem”, e esta, ao criar uma pulsão 53 Para uma circulação das relações
e uma corrente, inunda os indivíduos participantes no rito, apela a entre retrospecção, celebração e
comemoração do passado nas atitudes
ser interiorizada e a socializa-se como um dever.56 ligadas ao fenômeno da religiosidade
É certo que a gestão memorial, quando se cinge ao núcleo cívica, leia-se ORY, Pascal. Une
Nation Jour Mémoire. 1889, 1939,
familiar, parece fugir às características das comemorações (ela é 1989 trois jubiles révolutionnaires.
Paris: Presses de la Fondation
mais singela, espontânea, restrita e silenciosa). Porém, tal como em Nationale des Sciences Politiques,
todo o ato comemorativo, também ela se concretiza como um gran- 1992. p. 8-9.
54 Cf. NAMER, Gerard. op. cit.,
de movimento simbólico através do qual um grupo assegura a sua p. 224.
identidade, voltando-se para a face do passado que, num dado pre- 55 Ibid., p. 226.
sente, considera definidora da sua unidade e continuidade. E no 56 Ibid., p. 236.

m 24 M
M caso das comemorações de finalidade cívica, a celebração enforma-
CATROGA, Fernando. se de componentes estéticos, dinâmicos (o desfile) e orais (os dis-
Recordar e comemorar.
cursos), de modo a realizar programadamente suas intenções pai-
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. déticas e o seu trabalho sociabilitário. Pode mesmo afirmar-se que,
Mimesis, Bauru, quanto maior e mais massificada for a escala sociabilitária mais
v. 23, n. 2, p. 13-47, aumenta a “estranheza” entre os indivíduos e se requer um mais
2002. constante investimento simbólico na construção e reprodução da
memória unificadora. Por conseguinte, se no rito de centração
exclusivamente familiar o culto é mais “quente” e espontâneo, as
romagens e as comemorações, movidas por uma mais marcante
intenção coletiva e pública, implicarão, regra geral, a existência de
uma coordenação (isto é, uma organização), de um desfile, de sig-
nos com significado social (bandeiras), e contarão amiúde com a
presença de oficiantes (oradores), tendo em vista sublimar o esque-
cido com o significado de palavras que relembrem e enalteçam.57
No entanto, também, nestas liturgias cívicas se encontram, por
extensão e imitação, os propósitos de “filiação”, “integração” e de
“identificação” característicos do culto familiar dos mortos.58
Outra não é a função das liturgias da recordação: criar senti-
do e perpetuar o sentimento da pertença e de continuidade. O imagi-
nário da memória sociabiliza, dado que o recordar liga os indivídu-
os não só verticalmente, isto é, a grupos ou entidades que holistica-
mente se impõem, mas também a uma vivência horizontal e longa
57 Cf. DÉCHAUX, Jean-Hugues. op. do tempo social. Por conseguinte, a memória socializa a “identifi-
cit., p. 75-76. cação” e a “filiação” e, simultaneamente, ajuda a esconjurar a an-
58 No estado sobre A Militância
Laica e a Descristianização da Morte
gústia da irreversibilidade do tempo e da morte, inserindo a finali-
em Portugal (v. 2, p. 891-999) dade da existência finita numa “filiação escatológica”. Neste hori-
explicitamos as relações estreitas
existentes entre o culto cemiterial e
zonte, os indivíduos são integrados na cadeia das gerações e em um
romântico dos mortos e as festas ideal de sobrevivência na memória dos vindouros.59 O que pres-
cívicas polarizadas à volta das
comemorações centenárias. Estas
supõe uma experiência continuísta do tempo – a memória, vinda do
análises foi posteriormente por nós passado, poderá perdurar num futuro aberto – e implica que se es-
retomadas em Ritualizações da
História. In: TORGAL, Luis Reis;
queça que, tarde ou cedo (duas ou três gerações?), os mortos aca-
MENDES, Jose Maria Amado; barão por ficar órgão de seus próprios filhos.
CATROGA, Fernando. História da
História em Portugal. Séculos XIX-
Por tudo isto, defende-se que as liturgias da recordação têm
XX. Lisboa: Círculo de Leitores, por finalidade federar atomismos e diferenças sociais e recalcar
1996. p. 547-671. Para o caso francês,
pode-se ler-se os já citados (pelo menos no tempo curto do rito) as tensões que atravessam os
estudos de Pierre Nora, de Pierre Ory grupos. Portanto, não será descabido dizer-se que, em certa medida,
e de Gerard Namer. Para
outros países (Estados Unidos, a necrópole desempenha um papel análogo ao dos velhos Libri
Inglaterra, Iraque, França, Israel, memoralis (também chamados “necrófagos” ou “obituários” a par-
Alemanha), leia-se por todos GILLIS,
John R. (ed) Commemorations. tir do século XVII). Estes continham o nome de pessoas, geral-
Princeton-New Jersey: Princeton mente já mortas, de quem se pretendia guardar memória através do
University Press, 1994.
59 Cf. DÉCHAUX, Jean-Hugues. op.
recurso a fórmulas como estas: “aqueles ou aquelas cuja memória
cit., p. 231-232. lembramos”; “aqueles de quem escrevemos os nomes para guardar-

m 25 M
mos na memória”. A escrita (a leitura) é elevada a garante memori- m
al da memória, não deixando de seu sintomático que, desde o sécu- CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
lo VIII, a excomunhão tenha passado a ser sinônimo de damnatio
A raiz tanatológica dos
memoria (Concílio de Reisbach, 798; de Elne, 1027), numa evi- ritos comemorativos.
dente cristianização de uma atitude antiga: já na velha Grécia, os Mimesis, Bauru,
que desapareciam no esquecimento do Hades tornavam-se nônum- v. 23, n. 2, p. 13-47,
noi, isto é, “anônimos”, “sem nome”.60 2002.
Recentemente, Jean-Didier Urbain caracterizou os cemitérios
como “bibliotecas” e os túmulos como livros que se abrem, é certo,
mas que se consultam como tábuas mesopotâmicas ou sumérias,
pois a sua significação não é imediata e transparente.61 Se esta
imagem é acertada na perspectiva do investigador, ela não chega para
apreender a intencionalidade simbólica da necrópole. Esta não se
esgota na escrita. Já no século XIX, o célebre Monsenhor Gaume,
em obra publicada no período da Comuna contra os enterramentos
civis – e logo traduzida para português em 1874 – definia explicita-
mente o cemitério como “o livro mais eloqüente que pode haver”,
porque “fala simultaneamente aos olhos, ao espírito e ao coração”.62
A necrópole é um livro escrito em linguagem metafórica.
Então isto quer dizer que o culto dos mortos, como todo ato consti-
tutivo de memórias, também é um diálogo imaginário do “sujeito”
consigo mesmo, feito com os olhos, o espírito e o coração, a fim de
“re-presentificar” o evocado. Logo, se, enquanto vivência ritualista,
a sua leitura, como todo o rito, denota algo da esfera das intenções,
o seu significado é, porém, irredutível à pura racionalidade. Como
não se procura construir uma “memória-saber”, evocar será “recor-
dar” e “comemorar”, pelo que o território dos mortos funciona
simultaneamente como um texto objetivador de sonhos escatológi-
cos (transcendentes e/ou memoriais) e como um “espaço público” e
de “comunhão”, cenário “miniaturizado” do mundo dos vivos e
teatro exemplar de afetividades e de produção e reprodução de
memórias, de imaginários e de sociabilidades. E só depois de um
60 Cf. VERNANT, Jean-Pierre.
adequado e extrovertido tempo de luto ganhará força o distancia- L’individu dans la cite. In: SUR
mento racional, que cura e normaliza, porque “só a razão é que pode l’individu. Paris: Seul, 1987, p. 2;
CANDAU, Joel. op. cit., p. 3.
distinguir um antes e um depois da morte, ao passo que o imagi-
61 Cf. URBAIN, Jean-didier.
nário se recusa a aceitar a ruptura e continua a ver naquele que L’Archipel de Morts. Lê sentiment de
acaba de morrer alguém que ainda não deixou a vida”.63 la mort et lês derives de la mémoire
dans lês cimetières d’Occident. Paris:
Payot, 1998, p. 10.
62 Cf. MONS. GAUME.
A reprodução da(s) memória(s) O Cemitério no Século XIX ou as
últimas palavras solidárias.
Porto: E. Chardron, 1874, p. 106.

Pelas razões aduzidas, entende-se que, no cemitério oito- 63 Cf. THOMAS, Louis-Vincent.
Préface, In: BAYARD, Jean-Pierre,
centista, a assunção da irreversibilidade do tempo surja sobrede- op. cit., p. 13.

m 26 M
M terminada por uma idealização “utópica” e “ucrônica” , cuja ex-
CATROGA, Fernando. pressão cênica devia traduzir simbólica e esteticamente o acesso
Recordar e comemorar.
de todos à sobrevivência individualizada. Isto não surpreende,
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. porque a necrópole romântica é uma criação cultural típica de
Mimesis, Bauru, uma “sociedade-memória” (PIERRE NORA), portanto, de um
v. 23, n. 2, p. 13-47, sociedade que procura no passado a legitimação (ou a crítica) do
2002. presente. O que explica que, no culto cemiterial dos mortos, a
recordação é uma “memória-vivida” seja sentida e interiorizada
por muitos como sendo natural, espontânea, eterna e vocaciona-
da para instituir e reforçar a coesão e identidade dos evocadores
e vocacionada (indivíduo, família, associação profissional ou
política, grupo de amigos, Nação, etc.). E se a sua matriz foi a
linhagem e a continuidade da família, cada vez mais nucleariza-
da, esta concepção horizontal do tempo casava-se bem com o his-
toricismo subjacente à visão romântica da história: o passado, ou
melhor, uma certa leitura idealizada dele, é elevado, numa explo-
ração do papel pragmático da memória, a lição do presente e (ou)
do futuro.
Com efeito, depois das propostas iluministas para a expulsão
dos mortos do território dos vivos, nasceu um novo afeiçoamento
caracterizado pela crescente personalização do funeral e dramatiza-
ção da perda. A sensibilidade romântica irá explicitar o sofrimento
causado pela “morte do outro”, e a sepultura – tal como outrora na
velha Roma – impôs-se como a peça central do culto.
Como tem sido assinalado (ARIÈS, VOVELLE, JEAN-
HUGUES DECHAUX), serão os espíritos mais imbuídos de ideais
iluministas e se-cularizadores a atacarem a Igreja por esta ter negli-
genciado o destino dos corpos e dos túmulos e a impulsionarem este
novo culto. Os cemitérios são pensados em termos higiênicos e
como lugares a serem visitados. E novo culto, de base dominante-
mente familiar, é animado pelo propósito de se também reforçar a
perenidade da própria polis. Esta função social, bem patente nas
homenagens aos “grandes homens”, fez com que no decurso do
século XIX a mediação religiosa e as expectativas transcendentes
viessem a coexistir com uma espécie de “religião cívica”
(ROUSSEAU), dimensão que, a partir de meados de Oitocentos, o
positivismo de Comte ajudará a sistematizar. Tal caldeamento foi
possível porque ele estava “en consonance avec les nouvelles atti-
tudes fortement teintées de romantisme face à la mort et le regain
de l’esprit commemorative qui a caracterisé le fêtes révolutio-
naires”, anunciando assim “une nouvelle ère du culte des morts”.64
64 DÉCHAUS, Jean-Hugues,
A sobrevivência memorial do “grande homem” era tão-só a
op. cit., p. 42. tradução maior desta crescente reivindicação: o direito à sobre-

m 27 M
vivência individualizada e igualitária, aspiração assente na men- m
sagem evangélica e confirmada pelos direitos naturais do homem CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
que a modernidade estava a acentuar.
A raiz tanatológica dos
No entanto, a sua concretização, tal como acontecia entre os ritos comemorativos.
vivos, saldou-se numa flagrante desigualdade. É certo que, em algu- Mimesis, Bauru,
mas propostas avançadas ainda no século XVIII no contexto do v. 23, n. 2, p. 13-47,
otimismo iluminista, os desejos de igualdade política e social inspi- 2002.
ram projetos de cemitérios monumentais e coletivistas (projetos de
Ledoux e Boullé),65 e que a Convenção chegou a impor a vala co-
mum para todos, ou quase todos, embora rapidamente tenha quebra-
do esta regra com a criação do Panteão Nacional em Sainte Gene-
viève.66 Porém, os valores em processo na nova sociedade iam em
sentido contrário: uma sociedade alicerçada na afirmação do indi-
víduos tinha de exigir túmulos diferenciados e de prometer que to-
dos podiam sonhar com uma inequívoca sobrevivência memorial. E
basta analisar o modo como os novos cemitérios, principalmente os
das grandes metrópoles dos países mediterrânicos, foram se urba-
nizando e decorando para se verificar como as hierarquias sociais
en-tre os vivos ditaram uma análoga desigualdade no acesso efeti-
vo às condições semióticas necessárias à construção e à duração da
memória.
Nos nossos cemitérios do século XIX, o mausoléu, o jazigo-
capela, a concessão perpétua passaram a constituir bens imóveis,
privados e transmissíveis por herança como quaisquer outros. Dir-
se-ia que funcionavam como uma espécie de prova última segundo
a qual a eternização da memória do proprietário (logo, de toda a lin-
hagem familiar) ficava dependente da capacidade que os seus des-
cendentes teriam para perpetuar a totalidade do patrimônio (mate-
rial e espiritual) herdado; em certo sentido, o cemitério passou a ser
uma espécie de “familistério” de mortos. O que se entende: em pri-
meira instância, o culto, na sua incidência mais profana, é sobretu-
do um rito familiar; ele não só se celebra em família, como está
investido de uma carga simbólica especificamente familiar, ao reite- 65 ETLIN, Richard A. The
Architecture of Death. The
rar e reforçar os elos de parentesco. Com isto, reaviva o sentimento Transformations of the cemetry in
de pertença. Fio invisível que a memória partilhada e ligada a uma Eighteenth-Century. Paris:
Cambridge, the Massachusetts
herança e a uma tradição enraíza.67 Deste modo, o monumento Institute of Technology, 1984. Para a
funerário dos novos cemitérios tem de ser entendido à luz das articulação entre o geometrismo
igualitário destas idealizadas
estratégias de “transmissão”, comumente carismadas por uma “fi- necrópoles e o utopismo iluminista,
leia-se BACZKO, Bronislaw.
gura-fundadora”. Lumières de l’Utopie. Paris: Payot,
Pode assim concluir-se que, se a sepultura, o mausoléu, o jazi- 1978. p. 325.
go e os respectivos signos pretendiam preservar a memória dos 66 RAGON, Michel. op. cit.,
p. 267-268.
defuntos oriundos das classes abastadas (ou de artesãos remedia- 67 DÉCHAUX, Jean-Hugues,
dos), a sua função também era a de materializar uma exemplaridade op. cit., p. 98.

m 28 M
M normativa – nesta vertente, o cemitério é igualmente um lugar de
CATROGA, Fernando. esquecimento de tudo o que possa diminuir a depurada recordação
Recordar e comemorar.
do finado – que educasse e reforçasse a crença na perenidade das
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. respectivas famílias ou grupos. E esta ilação leva a concluir que o
Mimesis, Bauru, culto não almejava salvar somente a alma do evocado, mas também
v. 23, n. 2, p. 13-47, a ratificação sacralizada das posições históricas e sociais dos evo-
2002. cadores. Afinal, a diferença entre, num extremo, o mausoléu, o jazi-
do, e no outro, a vala comum, acabava por assinalar a distância que
continuou a existir entre o direito virtual de todos à sobrevivência
individualizada e a efetiva possibilidade de acesso aos suportes sim-
bólicos necessários à sobrevivência na memória coletiva.
Em suma, as atitudes perante a morte, que a modernidade
foi gerando, acentuaram a monumentalidade funerária ao postu-
larem a memória como um “segundo além imortalizador”. Este
horizonte foi-se impondo em coexistência ou em sincretismo com
a crença na ressurreição final, afirmando-se como uma espécie de
compensação paligenésica e/ou historicista derivada do aumento
da incerteza na imortalidade transcendente. E embora a valoriza-
ção ana-mnésica não tenha substituído as escatologias transcen-
dentes, será igualmente correto atribuir-lhe um papel terapêutico:
a sua liturgia também contribuía para atenuar a angústia da morte,
oferecendo a possibilidade da manutenção de uma continuidade
virtual; e o rito, ao pôr em cena uma troca simbólica entre os
vivos e os mortos, alimentava e reatualizava essa crença,68 dando
assim um contributo decisivo, tal como o último rito de pas-
sagem, para a superação do luto e para o regresso e reprodução da
normalidade.
Entre nós, aliás, é significativa a forte presença de símbolos
da vitória da imortalidade sobre a morte na iconografia dos cemi-
té-rios oitocentistas e o aparecimento de expectativas diretas e
exclusi-vamente colocados sob os auspícios do culto da memória,
ou me-lhor, do culto “à memória de…”. E mesmo as represen-
tações escatológicas não dispensavam, conquanto de um modo
supletivo e complementar, a sobrevivência memorial, consubstan-
ciando-a, em primeiro lugar, no desejo de filiação do indivíduo
numa memória familiar, ou em grupos portadores de tradição, à luz
das quais a vida individual e coletiva pudesse adquirir um sentido
prospectivo e terreno. Como concluiu (recentemente) Jean-Hugues
Déchaux “la symbolique de l’ancrage lignager (appartenir à
quelque chose) vient consolider celle de la réssurrection des morts.
Elle est croyence en la permanence d’un groupe qui dote le sujet
68 Ibid., p. 276. d’un soutien existentiel permettant de contenir les vestiges de l’in-
69 Ibid., p. 280. dividuation”.69 Ora, se a romagem passou a constituir a manifes-

m 29 M
tação por excelência desta produção memorial, deve sublinhar-se m
que, numa repetição mais cuidada e significativa do anúncio CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
funerário, também ganhou particular relevo a publicitação, na
A raiz tanatológica dos
imprensa, da passagem dos aniversários da morte de quem se pre- ritos comemorativos.
tendia recordar.70 Mimesis, Bauru,
É verdade que existia a consciência de que a eternização v. 23, n. 2, p. 13-47,
garantida por todos estes meios seria sempre precária, pois, na evo- 2002.
cação, o que se “re-presentifica” é a imagem idealizada do evoca-
do, e o que se confirma é a vida do vivo. E neste reino de ilusão
ucrônica, o dilatamento da sobrevivência dos “traços” do morto,
mas mais de um julgamento póstumo baseado numa escala de
méritos decorrentes da construção de sua exemplaridade como
“antepassado”, ou seja, do presumível contributo que o finado terá
dado para a consolidação de uma família, para o prestígio de um
lugar, para o progresso de uma associação, de uma classe, de um
ideário, de uma Nação ou da humanidade. Todavia, como a duração
da lembrança, que a consciência ingênua acredita ser eterna, será
determinada pelo investimento mnésico dos vivos, os juízos sobre
o defunto, feitos no presente de sua morte, também não são
condição suficiente, já que a continuidade da sobrevivência
depende igualmente das necessidades futuras de comemoração (ou
de desmemorização). E como a memória é um construto seletivo,
relativo e histórico, isso conduz a que os sonhos de uma eternidade
atualizada pelos vivos estejam sempre ameaçados pela queda da
“amnésia”, permanente direito de portagem que a anamnesis tem
de pagar ao esquecimento.
A partir destes pressupostos, compreende-se que a encenação
do cemitério oitocentista tenha plasmado as atitudes típicas da “so-
ciedade de conservação”71 – a “retenção, acumulação e reprodução”
dos vestígios do morto (não serão os “traços” dos mortos os
primeiros documentos da história?) – em ordem a acreditar-se tanto
nas expectativas salvíficas como na continuidade histórica. O que se
entende, porque, se o século XIX foi o “século do culto dos mor-
tos”, foi também o “século da história”, ou melhor, do historicismo
e do apogeu das “ideologias da memória” derivadas da necessidade
que os indivíduos, as famílias, as novas associações e Estados-
Nação tiveram de reinventar as suas raízes históricas e de legitimar
os seus sonhos de futuro. Recordar os finados possibilitava a insti- 70 Cf. RINGLET, Gabriel. Ces Chers
Disparus. Essai sur lês annonces
tuição e o reconhecimento de identidades, bem como o delinea- nècrologiques dans la press
mento de esperanças escatológicas (transcendentes e terrenas), pois francophone. Paris: Albin Michel,
1992. p. 177.
a anamnesis oferece ao evocador uma história com um “passado” e
71 URBAIN, Jean-Didier. La Sociètè
um “futuro”, num encadeamento contínuo de gerações que, como de Conservation, passim.
num outro registro afirmavam as filosofias da história da moder-

m 30 M
M nidade (CONDORCET, KANT, HEGEL, MARX, COMTE), ultra-
CATROGA, Fernando. passa o tempo da existência individual.72 Deste modo, é lícito con-
Recordar e comemorar.
cluir que, apesar do rito implicar repetição, recordar e sobretudo
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. comemorar será sempre teatralizar uma prática de reescrita da(s)
Mimesis, Bauru, história(s); será, em síntese, praticar coletivamente uma memória
v. 23, n. 2, p. 13-47, que veicula mensagens num tempo fictício em que o passado-pre-
2002. sente e o futuro coabitam.73
Não foi assim por acaso que a hegemonização de uma idéia
tridimensional e irreversível do tempo, fomentada pelo
Iluminismo, consolidou, numa evidente secularização da escatolo-
gia judaico-cristã, o papel da memória no culto dos mortos. Como
bem escreveu Baudrillard, “a imortalidade é somente uma espécie
de equivalente geral ligado à abstração do tempo linear”.74 E só o
desconhecimento dos mecanismos de legitimação por enraizamen-
to75 poderá conduzir a que se confunda a invocação do passado com
uma utilidade passadista ou nostálgica. Como a memória é ativa, a
recordação nunca é resultante da oposição entre o passado, o pre-
sente e o futuro. Ao contrário, toda a retrospectiva é sempre uma
“protensão”, podendo mesmo defender-se que, em certa medida,
“l’avenir n’est pas une création ex nihilo: le passé collabore à l’éd-
ification du futur”.76 O que ajuda a compreender a dialética entre
memória e esquecimento, em certo sentido, se este é a abscôndita
presença do inconsciente ou conscientemente recalcado, ele é tam-
bém fonte que, através da recordação, possibilita a existência de
futuros para o presente e de futuros para o passado. A memória e o
esquecimento são, portanto, irmãos siameses necessários ao tran-
scurso do tempo, ensinando que, para se conhecer uma vida ou
uma sociedade, é tão importante recordar como não se esquecer do
esquecido.77
Já Santo Agostinho (CONFISSÕES, XI) tinha elevado a me-
mória a garante da continuidade irreversível do tempo subjetivo,
72 Cf. DÉCHAUX, Jean-Hugues, intuindo-a como ponto de tensão entre a recordação do passado e as
op. cit., p. 224.
saudades do futuro. E a experiência do rito comemorativo moderno
73 Cf. NAMER, Gerard. op. cit.,
p. 210-211. não contradiz esta intuição agostiniana. Nenhuma dimensão do
74 BAUDRILLARD, Jean. tempo pode ser pensada fazendo abstração das outras, e o rito exem-
A troca Simbólica e a Morte. Lisboa:
Edições 70, 1997. v. 2, p. 16. plifica a dinâmica e coletivamente a tensão, no presente, entre a
75 WEIL, Simme. L’Enracinement. memória e a expectativa, organizando a passagem de um antes a um
Paris: Gallimard, 1990. p. 61.
76 DÉCHAUX, Jean-Hugues,
depois, dos quais o presente é simultaneamente o intérprete e a
op. cit., p. 265. referência.78
77 AUGE, Marc. op. cit., Embora se deva ser cauteloso na transposição das analogias
p. 121-122.
78 Ibid., p. 75-76. entre a memória dos indivíduos e da sociedade, importa sublinhar
que nunca como no século XIX essa comparação foi tão acredi-

m 31 M
tada.79 Essa também foi a época em que se assistiu à gradual m
entificação da “idéias coletivas” (DURKHEIM), processo que CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
conduziu à objetivação do próprio conceito de “memória coleti- A raiz tanatológica dos
va” (HALBWACHS)80 e à definição de sociedade como um ritos comemorativos.
organismo evolutivo.81 Este pressuposto, de fundo holístico, Mimesis, Bauru,
explica que “l’hommage ritualisé aux defunts est, du transcen- v. 23, n. 2, p. 13-47,
2002.
dence de la colletivité qui, pardelà les individus qui la composent,
se pérpetue”,82 funcionando como uma espécie de elo visível que
visava compatibilizar a tendência ato-mizada da modernidade
com novas totalidades sociabilitárias de raiz contratual e associa-
tiva. E se o desenvolvimento contemporâneo do direito à subje-
tividade veio a pôr em causa a excessiva on-tologização do “par-
adigma dos fatos sociais” e o seu cariz holístico e coa-tivo em
relação aos indivíduos (BURDHON, SCHÜTZ, PETER BERG-
ER, LUCKMANN JOSETTE COENEN-HUTHER), o certo é
que a construção da anamnesis tem o seu húmus nos “quadros
sociais” e na historicidade do próprio evocador, situação que,
embora não seja determinante, condiciona os indivíduos a man- 79 Fazendo uma crítica às teses sobre
terem uma relação dialética, dentro de um processo socializador, a existência de uma similitude entre a
memória individual e a memória cole-
entre os valo-res da(s) sociedade(s) em que se “situam” e o seu tiva, Gerard Namer sublinhou que a
aceitação desse postulado leva a es-
próprio passado.83 quecer as diferenças entre unificação
Tal como acontecia no seio das famílias, as novas práticas co- das memórias numa sociedade e a
unificação das recordações numa me-
memorativas também pretendiam evitar que o crescimento do indi- mória. Dir-se-ia estar-se perante uma
vidualismo e do contratualismo sociais degenerasse em anomia: o correspondência mágica do microcos-
mo e do macrocosmo, segundo a qual,
culto dos mortos, tal como a festa cívica, enraíza a “filiação” e o à maneira de Leibniz, a memória indi-
vidual é um reflexo do sistema dos
“evolucionismo” históricos (dos grupos e da humanidade) e ajuda- sistemas de mónados, isto é, a unifi-
va a reforçar o novo consenso social (COMTE). E mesmo nos cação última das memórias coletivas
numa memória da sociedade global.
meios em que, por razões ideológicas ou devido às condições mate- Cf. NAMER, Gerard, op. cit., p. 225.
riais de existência e à diluição das formas tradicionais da sociabil- 80 Cf. HALBWASCHS, Maurice. Es
Cadres Sociaux de la Mémoire. Paris:
idade, a secularização foi maior, se encontra a mesma atração, Albin Michel, 1925; ______. La
socialmente mimética, pela “visita ao cemitério”. Ora, se esta car- Mémoire Collective. Paris: PUF, 1950
(edição póstuma). Para uma bibli-
acterística é uma conseqüência da sobrevalorização cívica do culto, ografia sobre a defesa da enticidade
importa salientar que ela só se radicará com força na segunda da memória coletiva, veja-se a lista
inserida em CONNERTON, Paul.
metade do século XIX (sobretudo nos países dominantemente Como as Sociedades Recordam.
Oeiras: Celta, 1993. p. 1, nota 1.
católicos), com a consolidação de liturgias da recordação fomen-
81 Sobre as cautelas a ter em relação
tadas pelas novas famílias burguesas em ascensão e posteriormente às analogias entre a memória subjeti-
va e a chamada memória coletiva,
alargadas ao imaginário de todos os grupos sociais. Como já veja-se CANDAU, Joèl. op. cit., p. 62.
salientamos em outro lugar, e Jean-Hugues Déchaux confirmou em 82 DÉCHAUX, Jean-Hugues, op. cit.,
estudo recente, “la sépulture est aussi un symbole famillial. Ce p. 45.
83 Cf. COENEN-HUTHER, Josette,
n’est pas par hasard si le culte des morts est devenu culte des op. cit., p. 34-38.
tombeaux au moment même où se diffusait dan toute la bour-

m 32 M
M geoisie le caveau de famille. Dans l’argumentaire laïque et posi-
CATROGA, Fernando. tiviste de ses promoteurs, le rite doit être à la fois famillial et
Recordar e comemorar.
A raiz tanatológica dos
civique. Bien plus, il n’acquiert une dimension civique que si
ritos comemorativos. chaque famillie a déjà le souci d’honnorer ses propres morts. La
Mimesis, Bauru, continuité de la cité, de l’humanité, commence avec la continuité
v. 23, n. 2, p. 13-47, de chaque famille et s’achève, avec le Panthéon, par le culte des
2002.
grands hommes”.84
Sabe-se que a memória das linhagens desempenhou, nas
classes superiores do Ocidente, um papel de “distinção” decisivo. A
ordem de Antigo Regime estribava-se numa forte transmissão de
posições e de privilégios, realidade que obrigava a invocações do
passado como prática legitimadora dessas situações. Por isso, não
raro, se a memória aristocrática remontava a centenários antepassa-
dos fundadores, a burguesia, ao contrário, não podia ir tão longe. No
entanto, a extensão da sua memória, ainda que curta, é maior do que
a existente nas famílias mais pobres, talvez em conseqüência de as
capacidades de retrospecção dos indivíduos (e dos grupos) depen-
derem do uso e importância da anamnesis na justificação dos res-
pectivos status, prática que é bem menos nas camadas mais desfa-
vorecidas da população.85
Se estas diferenças parecem indiscutíveis, a verdade é que o
horizonte historicista do século XIX “democratizou” um pouco
mais as recorrências de fundo genealógico, já que, ao impulsionar a
construção ou a redefinição de memórias e ao ultrapassar a escala
dos indivíduos e das famílias, alargou os seus propósitos: a partir da
evocação de “antepassados fundadores” procurou-se radicar uma
história evolutiva e contínua para as famílias, para os grupos, para
as associações, para as classes, para a Nação e até para a própria
humanidade. Pode mesmo sustentar-se que este trabalho se tornou
tanto mais necessário quanto mais baixa e massificada era a base
social que se visava identificar e consensualizar.
Tal preocupação explica que os meios mais interessados na
mediação paidética do novo culto dos mortos, logo na recriação da
memória, tenham postos os olhos no que a Revolução Francesa en-
sinou sobre educação cívica, nomeadamente no terreno das festas
cívicas e dos novos cultos (incluindo o culto panteônico), bem
como na releitura que Comte e seus discípulos fizeram dessas
novas práticas sociabilitárias. Não admira, sobretudo quando se
sabe que as necessidades simbólicas das novas famílias e dos
84 DÉCHAUX, Jean-Hugues, op. cit., novos Estados-Nação exigiam a reinvenção de memórias, ao
p. 90. mesmo tempo que o positivismo (tanto ortodoxo como hetero-
85 Sobre esta questão, leia-se doxo) se esforçará, a partir de meados de Oitocentos, para dar
COENEN-HUTHER, Josette.
op. cit., p. 50-51. cobertura teórica a essas ritualizações, apresentando-as como

m 33 M
sucessoras (e sucedâneas) dos ritos católicos. E a convicção desta m
necessidade tocou alguns liberais de esquerda e sobretudo muitos CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
republicanos, socialistas e livres-pensadores. Estes setores,
A raiz tanatológica dos
descontando raríssimas exceções, não irão contestar o valor educa- ritos comemorativos.
tivo do culto dos mortos e a estrutura formal do rito de passagem Mimesis, Bauru,
gerada pelas novas necrópoles oitocentistas. Pelo contrário, limi- v. 23, n. 2, p. 13-47,
tar-se-ão a descristianizá-la e a dar-lhe um significado de home- 2002.
nagem e de celebração comemorativa, enfatizando pragmatica-
mente a sua importância cívica.
Relembre-se que, para o positivismo, explicitando e levando
às suas últimas conseqüências as atitudes que animavam o culto
romântico dos mortos, só um segundo enterramento possibilitaria
um ritualismo propício à imortalização da individuo na memória
coletiva, garantindo a sua “eternidade subjetiva” (com os cortejos,
as sepulturas, as inscrições, os bustos, as estátuas),86 forma mitiga-
da de dar continuidade ao ritual da passagem do “morto” a “an-
tepassado”, isto é, a “figura exemplar” finalmente depurada para a
“comemoração”. Em certo sentido, também a “visita ao cemi-
tério”, em um eco degradado e secularizado de velhos ritos aqui-
etadores da ameaça do “duplo”, garantiria a transformação do
“culto dos mortos” em “culto dos antepassados”. Para isso, a
sobredeterminação luminosa, que os cultuadores cívicos faziam da
morte, necessitava “conservar” os vestígios do corpo, dissimulan-
do a inevitabilidade do seu aniquilamento, de modo a dar credibil-
idade à revivescência ritual do defunto e à sua evocação e cele-
bração paradigmáticas.
De fato, se este trabalho simbólico atravessou todas as
expressões sacrais do último rito de passagem, ele ganhou um
maior relevo nos funerais civis e nas romangens e comemorações
cívicas. É certo que estas manifestações se afirmaram como uma
espécie de ritos profanos.87 Mas, ao seculizarem o religioso, não
estariam a prolongar as características essenciais do rito (sagra-
do)? Fomentadas por indivíduos ou grupos que perfilhavam visões
agnósticas ou materialistas da vida, dir-se-ia que a sua descrença
escatológica era compensada por um forte investimento nas litur-
gias da recordação e pela elevação da memória (e do futuro
histórico) a uma espécie de versão terrena e secularizada da escat-
ologia cristã. Nesta perspectiva, é igualmente compreensível que 86 COMTE , A. Catechisme
Positiviste. Paris: Garnier Flamarion,
tenham sido eles os que mais empenhadamente sublinharam o 1965. p. 182.
valor do culto dos mortos para formação da cidadania, ideal que, 87 Sobre a estrutura formal
como palco, exigiu o reconhecimento dos cemitérios como (e sucedânea) destas manifestações,
leia-se RIVIÈRE, Claude. Lês Rites
“espaços públicos”. Profanes. Paris: PUF, 1995.

m 34 M
M
CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
2 - Esquecer a morte e a memória
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. Hoje, parece evidente que a crise dos vários historicismos
Mimesis, Bauru, (conservadores ou progressistas) coincide sintomaticamente com o
v. 23, n. 2, p. 13-47,
recalcamento e a quase desclandestinização da morte – esta ter-se-
2002.
á tornado “pornográfica” – e com o crescimento dos sinais de aban-
dono no próprio culto dos mortos. Numa certa medida, existe um
maior distanciamento em relação ao cadáver e aos seus “vestígios”,
talvez em conseqüência do enfraquecimento e subalternização das
velhas formas que permitiram tecer as solidariedades sociais. E a
razão de tudo isto parece radicar no fato de estar a desaparecer o
88 Cf. AUGE, Marc. Ce que nous mundo que lhes deu origem,88 substituído por um outro mais cen-
avons perdu, ce sont lês vivants, pás trado na individualidade89 (no homo clausus) e na sua resultante
lês morts. In: AUGE, Marc (dir.). La
Mort, Moi et Nous. Paris: Textuel, coletiva: a massificação.
1995. p. 82.
89 Cf. ELIAS, Norbert. op. cit., p. 71.
A solidão na vida conduz à morte isolada.90 Historiadores,
90 Cf. VERDIÉ, Minelle. Enjeux. In: sociólogos, antropólogos e filósofos têm assinalado alguns dos
AUGE, Marc (dir.) op. cit., p. 13. motivos que, a seu ver, explicam a passagem da velha “morte
91 Cf. THOMAS. L. V. Mort, solidária” à “morte solitária” hodierna. A desertificação do mundo
Sociétpe Thanatologie. In:
BULLETIN DE LA SOCIÉTÉ de rural, o desenvolvimento das cidades com as suas novas exigências
Thanatologie, n. 72, Novembre, 1987,
p. 21-27; BARRAU, Annick. Quelle
de espaço e de tempo, a redução e maior precariedade das famílias,
Mort Pour Demain? Paris: as novas condições de habitabilidade, as emigrações (externas e
L’Harmattan, 1992. p. 120.
internas), a crença no poder da ciência e da técnica – que leva a
92 Cf. BARRAU, Annick. Humaniser
la Mort. Est-ce ainsi que lês hommes morte a ser definida como uma doença, anormalidade que a medici-
meurent? Paris: L’Hartmann, 1993. p. 8. na acabará por vencer –, o crescimento do individualismo e do
93 Atitudes recentes parecem apontar
para a contestação desta realidade.
anonimato, bem como a simultânea crise das Igrejas e dos medi-
Com efeito, surgem movimentos que adores do culto memorial e respectiva ideologia (associações, par-
defendem o tratamento no domicílio
como alternativa hospital reintro-
tidos, sindicatos) têm sido algumas das razões apresentadas para
duzindo a morte e os cuidados palia- justificar a emergência dos sinais de degradação do culto românti-
tivos no seio da família do moribun-
do. Cf. BASCHET, Claudine;
co dos mortos e das liturgias da recordação.91
BATAILLE, Jacques (dir.). La mort à Sintoma de tudo isto é a medicalização da morte. Na França
Vivre. Mutations, n. 87, red. 1998,
p. 126-139. (1986), duas em cada três mortes já ocorriam no hospital, embora a
94 Ainda existem muitas diferenças grande maioria dos franceses (75%) declare preferir falecer em casa
entre o modelo americano e o por-
tuguês de funerais. Cf. SARAIVA,
e somente 6% em centros de saúde.92 E em Portugal, aquela porcen-
Clara. La mort maquillé. Funeral tagem situa-se atualmente entre os 50 e 60%.93 Por sua vez, assiste-
directors méricains etfossoyeurs por-
tugais. In: TERRAIN, n. 20, Mars, se à estandartização, mercantilização e profissionalização do último
1993, p. 97-108. No entanto, isso não rito de passagem. A azáfama da vida moderna faz diminuir a du-
significa que, em Portugal, não este-
jam a aparecer sinais de uma cres- ração deste processo (diminuição dos sinais exteriores de luto, re-
cente mercantilização da morte. Re-
corda-se que se trata de um setor fi-
dução de missas ao 7.º dia, 30.º dia e 1.º ano; aceleração e clandesti-
nanceiramente apetecível, pois, se- nização dos cortejos; redução da visita aos cemitérios ao Dia dos Fi-
gundo dados recentes (Fevereiro de
1998), a “economia da morte” movi- nados, etc.). Por outro lado, na Europa (e, em certa escala, em Por-
menta – somando as receitas das tugal),94 sem se chegar ainda à plena vitória da “morte-mercadoria”

m 35 M
(como nos Estados Unidos),95 as necrópoles, já definitivamente m
integradas nas malhas das grandes cidades, sofrem o choque da CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
explosão (e exploração) urbana, bem como dos custos da sua A raiz tanatológica dos
gestão, realidade que, segundo os ditames mais tecnocráticos, só ritos comemorativos.
será solucionada com um novo “exílio dos mortos”. Uns propõem a Mimesis, Bauru,
verticalização das sepulturas (já praticadas na zona mediterrânica); v. 23, n. 2, p. 13-47,
2002.
outros estudam o regresso a novos cemitérios-jardim a edificar nos
arredores das cidades; outros voltam a fazer apologia da cremação.
No entanto, como conclui Michel Vovelle, em toda a parte a con-
cessões perpétuas de sepultura regridem ou são mesmo proibidas, o
que provoca uma crescente precarização dos signos de “localiza-
ção”, de “identificação” e de “perpetuação” que os sonhos de amor-
talidade memorial tinham criado.96

O empobrecimento escatológico
agências funerárias , as marmoritas e
contemporâneo das floristas – cerca de 30 milhões de
contos. Isto talvez explique por que é
que, também neste setor, os bancos a-
Segundo alguns diagnósticos, todas estas mutações têm subja- postam na abertura de linhas de cré-
cente uma alteração das mentalidades, mormente no que toca às dito para funerais (“morrer agora e
pagar depois”) e se assiste a pene-
crenças escatológicas. Estas terão diminuído com o processo de se- tração de multinacionais interessadas
cularização que atravessa as sociedades contemporâneas. Por exem- numa política de concentração e de
aquisição das principais agências fu-
plo, na Grã-Bretanha, um inquérito recente revelou que cerca de nerárias. Com isto, anunciam novas
ofertas “rituais” copiados do marke-
50% dos interrogados não acreditava numa vida post-mortem,97 e, na ting funerário americano. Por outro
França, um outro, efetuado em 1993, indicou que, se cerca de 45% lado, esta investida está a ser acom-
panhada com propostas tendentes a
dos franceses entendem a morte como uma “passagem para outra desmunicipalizar a gestão dos pró-
coisa”, 42% consideram-na como o “fim de toda a vida” (os 13% prios cemitérios. Cf. O CORREIO
DA MANHÃ, XIX ano, n. 6865,
restantes não se pronunciaram). No entanto, a crença no além – ainda 26 – II – 1998, p. 1-3.
que muito defendida – só parcialmente coincide com a ressurreição 95 Esta situação encontra-se pioneira-
mente caricaturada no romance de
final dos corpos, porque, segundo o mesmo estudo de opinião, WAUGH, Evelyn. The Loved One
somente 8%, isto é, menos de um quarto dos que acreditam numa (1949-1950).
vida post-mortem, admite a expectativa tradicional; esta posição é 96 VOVELLE, Michel. L’Heure du
Grand Passage. Chronique de la
extensível a alguns católicos praticantes: entre estes, só 445 pensam Mort. Paris: Gallimard, 1993,
que “os homens ressuscitam em corpo e em espírito com Deus”98 e p. 110-111; ______. La crise des rit-
uls fúnebres dans lê monde contem-
têm aumentado os que aceitam que existe “qualquer coisa”, embora porain, et son impact sur lês
não saibam o quê. Ora, tais atitudes parecem revelar um claro reforço cimetières. In: A. A. V. V., Uma
Arquitectura para la Muerte, p. 586.
da imprecisão no desenho da escatologia tradicional. 97 DAVIES, Douglas, Cremation
Em Portugal, um inquérito de opinião publicado pelo Diário research project. In: A. A. V. V. Uma
Arquitectura para la Muerte, p. 588.
de Notícias em maio de 1985 forneceu indicadores interessantes:
98 Sobre este dados, veja-se o resumo
90% dos interrogados consideravam-se religiosos (98% católicos); de DÉCHAUX, Jean-Hugues, op. cit.,
porém, à pergunta “Deus existe?”, 81% responderam sim, 7% não e p. 52-53; VOVELLE, Michel. Lês
Nouveaux Rituels de la Mort.Lês pra-
11% talvez; e, quanto à crença na existência do céu, os números tiques rituelles et leurs pouvoirs: une
baixaram, pois 59% opinaram afirmativamente, 17% negativamente approchetransculturelle. Paris: ESF,
1997. p. 214.

m 36 M
M e 21% talvez, enquanto só 50% declararam acreditar na existência
CATROGA, Fernando. de uma outra vida depois da morte.99 E uma sondagem televisiva
Recordar e comemorar.
recente (abril de 1998) parece confirmar esta tendência. Com efeito,
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. se 63% dos inquiridos responderam que acreditavam que o mundo
Mimesis, Bauru, foi criado por Deus, 53% manifestaram-se a favor da existência do
v. 23, n. 2, p. 13-47, céu, 49% da existência de uma alma imortal, 44,5% na existência
2002. de uma vida depois da morte, e só 32% disse crer no inferno (Diário
das Beiras, 13-IV-1998). Devido ao peso da tradição, tudo isto não
tem invalidado, porém, que a grande maioria dos funerais continue
a ter acompanhamento religioso.
Em conclusão, parece indiscutível que se assiste a uma
desvalorização do modo tradicional de representar o post-mortem.100
E se as reações dos nossos dias contra o “desencadeamento do
mundo” provocado pela secularização estão a dar origem à irrupção
de novas formas de religião (seitas e comunidades apocalípticas
teosóficas), o certo é que a esperança na ressurreição continua a
diminuir, em detrimento de outras escatologias, como é o caso das
várias crenças na reencarnação. (Um em cada três franceses diz ter
aderido a esta idéia).101 E convém lembrar que a reencarnação, pela
sua espiritualidade, tende a desvalorizar o “corpo” e a conservação
dos “traços”.102
Num outro registro, o culto contemporâneo da ciência perfi-
lhado pelos setores mais secularizados não deixa de alimentar, à sua
maneira, sonhos de amortalidade, atitude que não só reforça a pres-
suposição do dualismo entre a vida e a morte (esta é reduzida à escala
de uma causa externa e acidental), como se traduz na denegação do
cadáver mediante promessas de ressurreição, anelo que tem no uso da
criogenização a sua técnica mais espetacular e sintomática.
De qualquer modo, tudo isto contribuiu para o empobreci-
mento das expectativas transcendentes e, conseqüentemente, para a
queda e “morte” dos anjos da memória, parecendo estar-se em vés-
99 DIÁRIO DE NOTICIAS, CXXI,
ano, n. 42423, 12-V-1985, p. 10. peras de se confirmar o que já há alguns anos Jean-Didier Urbain
100 Sobre todas estas questões, prognosticava: “hoje, à exceção dos cemitérios, extremos refúgios
leia-se THOMAS, Louis-Vincent.
Une escathologie em mulation.
de uma moribunda civilização, as representações antropomórficas
In: BULLETIN DE LA SOCIÉTÉ de do além, outrora tão úteis, estão ultrapassadas. Nada mais resta,
Thanatologie, n. 81-82, XXIV année,
1990, p. 27-42.
pois, além da esperança técnico-científica da imortalidade, renova-
101 Cf. THOMAS, Louis-Vincent. Lê do terreno de cultura de novas ilusões?”.103
renouveau de la mort.
In: CORNILLOT, P.; HANUS, M.
Parlons de la Mort et du Deuil. Paris:
Frison-Roche, 1997. p. 68-70.
102 BARRAU, Annick. Quelle mort
A cremação com um “nada semiótico”
Pour Demain? p. 114-115.
103 URBAIN, Jean Didier. A Morte. A cremação ressurge como um bom exemplo da nadificação
In: ENCICLOPÉDIA Einaudi, v. 36,
p. 385. semiótica. Mas qual é a sua distribuição geográfica? Os números

m 37 M
mostram que as regiões cremacionistas são dominantemente de in- m
fluência protestante. Na verdade, na maior parte dos países do norte CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
da Europa, assim está a acontecer, na Grã-Bretanha, a cremação,
A raiz tanatológica dos
entre 1960 e 1995, passou de 34,71% para 70,60%; na Dinamarca, ritos comemorativos.
de 30% para 69,38%; na Suécia, de 26,60% para 64,74%; na Suíça, Mimesis, Bauru,
de 24,79% para 65,26%; e na Holanda, de 4% para 48,21%. v. 23, n. 2, p. 13-47,
Nos países católicos, podia esperar-se que o levantamento do 2002.
anátema, feito pela Igreja em 1963, desaguasse num fenômeno aná-
logo. Contudo, à exceção da Bélgica – que, em 1995, tinha uma taxa
de 27,48% – as adesões continuam a ser fracas. Na França, em 1956-
60, a porcentagem de cadáveres incinerados foi somente de 0,20%,
em 1977-78, de 0,78% (1,3% seguindo outros), e, em 1988-89, de
5% aproximando-se dos 12% em 1995; mas prevê-se entre 15 e 20%
no ano 2000, pois, segundo inquérito efetuado em 1996, 37% das
francesas já declaravam preferir a incineração, contra 20% em 1979
e 32% em 1994.104 Para a Itália, Espanha e Portugal, a porcentagem
é ainda menor: em Itália, foi de 0,27% em 1975, 0,50% em 1985 e
de 2,12% em 1995 ; em Espanha, em 1995, terá sido de 4,80%.105
Em Portugal, a efetivação do ato tem estado confinada ao for-
no do cemitério do Alto do São João – só nos últimos meses entrou
em funcionamento um outro, localizado no Porto – cuja primeira fase
de funcionamento ocorreu entre 1925 e 1936, período em que somen-
te se procederam 22 cremações; na sua fase recente, atividade tem
sido maior e revela uma tendência de crescimento, talvez devido ao
alargamento da comunidade hindu, embora nos últimos anos tenha
aumentado a opção portuguesa (em 1996, 693 nacionais contra 99
estrangeiros; em 1986, a situação era inversa : 41 contra 26). Todavia,
os quantitativos, embora em progressão, são reduzidos: 1985 (18 cre-
mações); 1986 (67); 1987 (119); 1988 (124); 1989 (166); 1990 (169);
1991 (291) e 1992 (321); 1993 (510); 1994 (598); 1995 (744) e 1996
(792). Isso perfaz um total de 3919 corpos, e os dados de 1996 repre-
sentam somente 7, 9% dos enterramentos em Lisboa.106
104 Cf. DÉCHAUX, Jean-Hugues,
O apego à inundação nos países católicos tem a sua razão de op. cit., p. 315, nota 4.
ser. A tradição judaico-cristã socializou a prática inumista e ins- 105 URBAIN, Jean Didier. L’Archipel
creveu-a num quadro escatológico que tinha na ressurreição final des morts, p. 326.
106 Estes números referem-se
dos corpos o seu momento apoteótico. Por outro lado, embora na somente a corpos não ossadas.
tradição bíblica seja dada ao fogo uma função purificadora, no uni- Cf. COSTA, Felícia. Fogo e
Imortalidade. Lisboa: Câmara
verso simbólico do catolicismo ele também se revestiu de cono- Municipal de Lisboa, 1997
tações infernais. (Anexo I, Anexo V). Esta obra,
que se limita a sintetizar o que tem
De qualquer modo, o atual regresso da cremação pouco tem a sido escrito sobre a matéria, apresenta
ver com qualquer assumida reconversão religiosa na mentalidade oci- dados atualizados respeitante ao
movimento recente do forno
dental contemporânea. As novas práticas não pressupõem os funda- crematória do Alto de São João.
mentos e os objetivos que norteavam a fase militante. Propagandeada

m 38 M
M no século XIX – por higienistas e livres pensadores – a sua defesa sur-
CATROGA, Fernando. gia, na maior parte dos casos (excetuando algumas ações cheias de
Recordar e comemorar.
espectacularidade romântica), como o único desfecho coerente com
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. as concepções panteístas ou materialistas do universo. Por conse-
Mimesis, Bauru, guinte, a já então propalada superioridade higiênica da cremação
v. 23, n. 2, p. 13-47, sobre a inundação, bem como seus menores custos, devem ser perce-
2002. bidos dentro de um propósito mais extenso: o de fazer recalcar o
medo da morte e o de se minar a base em que, aos olhos dos crema-
cionistas militares, assentava a força do catolicismo: o seu monopólio
sobre os ritos de passagem e particularmente sobre o da morte.107
Mas a evolução recente é ainda correlata da desideologização
do debate e é um sintoma de alterações mentais a que a própria
Igreja não pode ficar indiferente. Por isso, a desanatematização de
1963 é uma das respostas do catolicismo aos desafios da secula-
rização, outro modo de ele se afirmar, não como “religião e morte”
(como acusavam os seus adversários do século XIX), mas como
uma “religião da vida”. E uma outra face desta modificação encon-
tra-se na sua reforma do rito (1973), à luz da qual o oficiante pas-
sou a dar um maior relevo ao sacramento dos doentes. Esta
viragem, segundo alguns autores, está a implicar “a morte da
extrema unção” como “passaporte tradicional para a eternidade”,108
ao substituir a tradicional relação “confissão – viático – extrema
unção” pela “confissão – comunhão – unção dos enfermos”.
Significa isto que, para fazer face à gradual secularização das ati-
tudes e comportamentos contemporâneos, a Igreja procurou
responder em várias frentes: “desdramatizou” os ritos funerários
tradicionais, procurou “democratizar” os enterramentos, “rela-
xou” o rigorismo canónino, e, em matéria de sepultamento ecle-
siástico, mostrou-se mais compreensível em relação aos não bati-
zados, suicidas, maçons, divorciados que voltaram a se casar, pros-
titutas, homossexuais, etc.109
Por outro lado, com a aceleração do processo secularizador e
com o conseqüente empobrecimento escatológico, tem crescido o
recurso à cremação. Dir-se-ia que esta se adequa bem à nova men-
talidade gerada pelo aumento do individualismo e de sua outra face:
a massificação. Assim sendo, tal como acontece no hodierno
esmorecimento da “visita ao cemitério”, também a adesão à prática
107 Cf. URBAIN, Jean-Didier. La cremacionista é inequivocamente um efeito de cultura urbana, ca-
Société de Conservation, p. 42.
108 Ibid., p. 41.
racterística facilmente verificável quer na França (na região
109 Cf. THOMAS, Louis-Vicent. parisiense a incineração é cinco vezes superior à média nacional
Rites de Mort. Paris: Seuil, 1977. francesa,110 apesar de estarem em funcionamento 41 fornos espalha-
p. 571.
110 ARÈS, Philippe. L’Homme devant
dos pelas principais cidades), que nos países do norte da Europa.
la Mort. Paris: Seuil, 1977. p. 571. Por exemplo, na Suécia, na década de 60, as diferenças de atitudes

m 39 M
entre as grandes cidades e os campos são significativas, já que em m
Estocolmo, Gotenburg e Malmo, a incineração atinge os 90, 5%. CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
Estes números eram idênticos aos de Copenhaga, embora no resto
A raiz tanatológica dos
da Dinamarca, excluída a capital, a taxa de cadáveres inumados ritos comemorativos.
fosse de 80% (número idêntico ao da Suécia, excluídas as cidades Mimesis, Bauru,
indicadas).111 v. 23, n. 2, p. 13-47,
Que razões poderão explicar o forte apego dos países da 2002.
Europa do Sul a imunação? Sem dúvida que o peso do catolicismo
e de um culto dos mortos metaforizador do corpo são razões não
despiciendas para se compreender esta atitude. No entanto, é um
fato que a cremação também está em crescimento nos países católi-
cos. Segundo inquéritos realizados na França (1979, 1994, 1996)
acerca das razões que ditam esta evolução, registraram-se respostas
que apontam num sentido que julgamos válido para os demais paí-
ses católicos. Assim, sobre as preferências entre incineração e cre-
mação, as respostas foram as seguintes:112

1979 1994 1996


Ser enterrado 53% 50% 50%
Ser incinerado 20% 32% 37%
Indiferente 25% 10% 5%
Sem resposta 2% 8% 8%

E as razões que estariam a ditar a escolha da cremação seriam:

1979 1994 1996


Filosófica 41% 46% 43%
Ecológica (poluição, falta de lugar nos cemitérios) 28% 21% 35%
Econômica (menos cara) 7% 11% 20%
Outras razões 14% 21% 2% 111 Cf. GORER, Geoffrey. Death,
Grief and Mourning in Contemporary
Sem resposta 13% 12% 8% Britain. New York: Dontleday, 1965.
Este estudo teve uma recente edição
Como se vê, a par da progressão da própria prática crema- em francês com o titulo Ni Pleurs ni
Couronnes, precede de Pornographie
cionista, é significativo que tenham aumentado as possibilidades de de la Mort. Préface de Michel
vovelle, Paris: E. P. E. L., 1995.
uma preferência futura, sintomaticamente justificada com argumen- 112 Estes dados foram
tos de cariz econômico e ecológico, valores-tipo da sociedade con- retirados de HANUS, Michel. Deuil
et cremation. In: ÉTUDES Sur La
temporânea. Mort. La mort et les rites.
Revue de la Société de Thanatologie,
n. 111-112, XXXIannée, 1997. As
sondagens foram feitas pelo I. F. O. P.

m 40 M
CATROGA, Fernando.
M Entre o esquecimento e a recordação
Recordar e comemorar.
A raiz tanatológica dos A associação entre revolução urbana, secularização e crema-
ritos comemorativos. ção não deve ser mecânica. A incineração pode receber uma sacrali-
Mimesis, Bauru, dade ritualista e não ser incompatível com expectativas escatoló-
v. 23, n. 2, p. 13-47, gicas. Por outro lado, o fato de a legislação de alguns países consen-
2002.
tir que as famílias fiquem depositárias das cinzas parece facilitar o
reavivamento do “culto do lar”, e levar as últimas conseqüências a
gestão familiar da veneração dos mortos, privatizando-o ainda mais.
Mas isto gera condições que provocam a depreciação da necrópole
como “espaço público”, dado que se recusa simultaneamente a ma-
terialização do lugar, o seu elo com o corpo (que gera repugnância)
e o caráter público do cemitério, admitindo-se tão só a natureza
absolutamente pessoal e privada da recordação.
Será assim pertinente perguntar se estes desejos de privaci-
dade, apesar de serem adequados a uma sociedade em que a massi-
ficação é irmã da atomização e do anonimato, não correm o risco
de extinguir as representações simbólicas necessárias à reprodução
da memória. Ora, existem indicadores que patenteiam uma cres-
cente escolha do esquecimento. Com efeito, na Grã-Bretanha, cerca
de 75% das cinzas são enterradas ou espalhadas nos terrenos dos
crematórios ou dos cemitérios (só 15%, nas cidades, são entregues
às famílias). O único registro é um Livro Comemorativo, junto do
qual, em alguns casos, costuma-se colocar flores.113 No entanto, nos
últimos anos, tem aumentado as últimas vontades que exigem a
abolição dos nomes nesse registro. E o que passa na França é ainda
mais radical: 66% das cinzas são entregues às famílias, 25% são
dispersas ou imersas, 6% são depositadas em cinerários, e só 9%
são integradas no cemitério, isto é, na ordem funerária tradicional.114
Em Portugal, o destino das cinzas pode ser o cendrário (campo
ajardinado anônimo), o columbário (depósitos individualizados de
cinzas), o jazigo ou outros, tudo locais situados dentro do cemitério.
E se, em 1985, 7 cremados foram para o cendrário, 2 para o columbá-
rio e 9 para o jazigo; em 1996, a situação tinha-se alterado, revelando
uma evidente diminuição de depósito em jazigo e o crescimento de
uma localização mais discreta: 503 foram para o cendrário, 79 para o
columbário e só 28 para jazigos; 182 tiveram outros destinos.115
Será isto o sintoma de uma mudança de atitudes? Se se tiver
113 Cf. DAVIES, Douglas. op. cit.,
presente que o tempo do luto tradicional era síncromo como o ritmo
p. 587. da própria decomposição do cadáver, tem de se reconhecer que a
114 Cf. URBAIN, Jean-Didier. cremação, ao acelerar este último processo, instala um desfasamen-
L’Archipel des Morts, p. 328.
115 Cf. COSTA, Felícia. op. cit.
to que necessariamente tem de suscitar problemas psicológicos. E o
(Anexo 11). fato da queima sugerir violência em relação ao corpo (simulado

m 41 M
como incorruptível) tem provocado, nos países católicos, sentimen- m
tos de estranheza e de repulsa. CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
Dir-se-ia que, diferentemente do “anonimato sofrido” carac-
A raiz tanatológica dos
terístico dos enterramentos coletivos nas igrejas e na vala comum, ritos comemorativos.
estão a surgir sinais de uma opção voluntária pelo anonimato, espé- Mimesis, Bauru,
cie de “solução final” em que a redução a cinzas, sendo um quase v. 23, n. 2, p. 13-47,
nada ontológico, transforma-se num quase nada semiótico, pois os 2002.
suportes necessários à produção e reprodução da memória (o depós-
ito do cadáver e as expressões monumentais) são suprimidos. Por-
tanto, será correto afirmar que nestes casos a cremação, em vez de
ser um rito mediatizador dos desejos de vencer a morte e de salvar o
morto (escatológica ou mnemonicamente), pode se converter numa
técnica expeditiva a que se recorre para se libertar os vivos das inco-
modidades provocadas pela gestão da memória dos defuntos.
A ausência de ritos públicos em lugares de memória suscita o
ensimesmamento, aumenta a culpabilização e é um fator que pode
desencadear o luto patológico. Nesta perspectiva, a cremação só
será popularizada nos países com um ainda forte apego à simbólica
inumista e às liturgias da salvação e da recordação se for revestida
por um ritualismo que mimetize, tanto quanto possível, o da inu-
mação, de modo a ela se tornar menos traumática e menos radical
em relação à mentalidade popular. É que é importante não esquecer
que as expressões e os ritmos da desvalorização do culto romântico
dos mortos não são uniformes, pois estão condicionados pelas
tradições cultuais e culturais dos povos: numa sociedade concreta, o
cultualismo dos mortos está atravessado por tempos sociais diferen-
tes e não sincrônicos. Por conseguinte, não deve surpreender que,
nos países católicos, só recentemente se detecte algum desafeiçoa-
mente das populações, sem ainda se romper, contudo, com a tradi-
ção oitocentista, como o caso francês bem atesta.
Segundo um inquérito feito em 1994, 57% dos franceses de-
clararam ir todos os anos ao cemitério no Dia de Finados. Somando
este número com os que declararam ir de dois em dois ou de três em
três anos (10%) e com os que afirmaram que só raramente o fazem,
encontra-se o significativo valor de 75%. E o mais surpreendente
decorre da comparação destes dados com os de um estudo anterior
(realizado em 1979), cujos resultados foram 61% e 77% respectiva-
mente. Assim se verifica que a baixa da visita tem sido muito lenta,
116 Cf. STOCTZEL, Jean. Lês
ilação que comprova esta outra conclusão: entre 1948 (data do français et lês morts. In: BULLETIN
primeiro estudo) e 1979, a freqüência dos que declararam ir “bas- De LA SOCIÉTÈ de Thanatologie,
n. 47, Octobre, 1980, p. 6-10.
tante regularmente” ao cemitério passou somente de 72% a 66%.116
117 Cf. DÉCHAUX, Jean-Hugues,
Estas respostas são tanto mais significativas quanto somente op. cit., p. 49.
35% afirmam que acreditam na vida post-mortem.117 Quer isto dizer

m 42 M
M que a motivação maior da visita é mais “comemorativa” do que
CATROGA, Fernando. intercessora e escatológica, ilação que parece ser comprovada pelo
Recordar e comemorar.
teor de outras respostas dadas em 1979: 55% afirmaram que vão ao
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. cemitério sobretudo para levar flores; 35% visitam-no com o
Mimesis, Bauru, propósito dominante de cuidar do túmulo; mas só 25% aí se deslo-
v. 23, n. 2, p. 13-47, cam com a intenção específica de rezar, enquanto 8% o fazem por
2002. mera fidelidade aos costumes. E, em 1994, 49% dos inquiridos
franceses declararam que se deslocam aos cemitérios para recor-
darem os seus mortos, 48% para levarem flores e somente 20% para
rezarem, dados que parecem indiciar, por um lado, a natureza do-
minantemente secular e familiar deste rito de repetição, e, por outro
lado, o peso da recordação e da homenagem (com flores).118 E tudo
isto revela, apesar do processo de erosão em curso, a força do culto
da memória, atitude que se prolonga na preservação de signos do
defunto no próprio domicílio: mais de 95% dos interrogados disse-
ram que guardam as fotografias dos finados, 38% que as seleciona-
ram e só 3% que as destruíram.
No entanto, este prolongamento das características da “so-
ciedade-memória” exige que façam algumas particularizações de
índole sociológica: a adesão ao culto cemiterial dos mortos varia
conforme a idade (38% para os de idade inferior a 35 anos; 57%
para os entre 35 e 49 anos; 72% para os de 50 a 64 anos; 84% para
os que têm mais de 65 anos), o “estatuto social” (70% para os nú-
cleos familiares com um rendimento inferior a 5000 Fr., 48% para
os de rendimento superior a 5000 Fr.), a “inserção urbana” (55% nas
cidades de província; 37% na região de Paris), o “sexo” (61% refe-
re-se a mulheres), e a “religião” (71% entre os praticantes; 46% nos
não praticantes).
Perante todas estas respostas, o antropólogo Louis-Vincent
Thomas concluiu que existem, na população francesa, três atitudes
distintas: um grupo importante (cerca de 40%) está fortemente
empenhado na relação com os mortos e deseja exprimi-la de acor-
do com a tradição; um outro, cerca de 40% e bastante representati-
vo do francês médio, nutre uma fidelidade aos defuntos que se quer
sem ostentação; um terceiro (20%) parece revelar um relativo dis-
tanciamento, enquanto somente cerca de 8% declara recusar limi-
narmente a sacralidade dos mortos.119

O ensimesmamento do luto
118 Cf. Ibid., op. cit., p. 78.
119 THOMAS, Louis-Vincent.
op. cit., p. 29-32. É indiscutível que estes indicadores denotam a existência de
uma continuidade das práticas comemorativas. Simultaneamente, a

m 43 M
proliferação de estudos e debates sobre a morte, bem como o m
impacto nuclear, a entropia cósmica e das ameaças epidêmicas re- CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
centes (como a sida), e, num outro registro, as críticas à hospitali-
A raiz tanatológica dos
zação e as campanhas a favor da eutanásia,120 parecem indicar o “re- ritos comemorativos.
gresso” dos mortos ao centro das preocupações dos vivos (Jean- Mimesis, Bauru,
Didier Urbain pergunta mesmo se o fim do século não assistirá à v. 23, n. 2, p. 13-47,
fase da “mort réapprivoisée” e um sociólogo inglês, Tony Walter, fa- 2002.
la de um “relaçamento” da morte opinião).121 Todavia, dados recen-
tes mostram que a fidelidade ao culto oitocentista dos mortos con-
tinua em regressão, realidade que, conjugada com o crescimento da
“miniaturização e simplificação” dos signos funerários, com a ace-
leração do rito e com a degradação da gestão de memória (expressa
na diminuição das concessões perpétuas e no crescimento dos aban-
donos de jazigos e de sepulturas), confirma, na área inumista da
Europa, a justeza da ilação geral a que estão a chegar os que têm
estudado o fenômeno nas últimas décadas do século XX: nas socie-
dades industrializadas, a morte tornou-se um “tabu”, que substituiu
o velho “tabu” sobre o sexo, e impôs uma nova categoria de obsceno
e de recalcado; ou, talvez melhor, o modelo de civilização atual
impõe a denegação da morte e das necessidades culturais de soli-
dariedade e de ritualizações, evitando assim situar-se perante o limi-
te e a finitude que funda a condição humana.122 E é esta atitude que
conduz a considerar-se os ritos como inúteis e o luto como assunto
exclusivamente privado.
Poder-se-á afirmar que o desapego ao cultualismo público
responde ao aumento das tecnologias de memorialização (foto-
grafia, vídeo, cinema), técnicas que levam às últimas conseqüências
(banalizando-a, domiciliando-a e privatizando-a) a “imortalidade
virtual”. Estas autênticas “mnemotecas” têm contribuído para a 120 De entre a numerosa bibliografia,
veja-se o recente dossier sobre o
aceleração da crise do culto cemiterial dos mortos, crise que no tema: Choisir as mort? De la
entanto, nos deve interrogar “comme témoignage d’une époque qui sollicitude médicale au droit
individuel. Tests prédictifs, soins
est celle de notre temps”.123 Numa sociedade massificada, em que a paliatifs, suicide assistè. In: ESPRIT.
família se restringiu, dessacralizou e precarizou, sujeita a mobili- n. 243, Juin, 1998, p. 5-38.
dades migrantes muito fortes, atraída cada vez mais por valores 121 Cf. URBAIN, Jean-Didier.
L’Archipel des Morts, p. 348.
pragmáticos e utilitaristas, não deve espantar a crescente dessociali- 122 BAUDRY, Patrick. Lê deuil entre
zação das liturgias da recordação e o concomitante aumento da inte- appareillage et socialite! In: ÉTUDES
SUR LA MORT. XXXIIIéme Congrès.
riorização do luto. E existe alguma unanimidade neste diagnóstico: Deuil et Accompagnement. Bulletin
a recordação tende a perder a sua faceta comemorativa e pública, de la Sociètè de Thanatologie,
XXXème année, 1996, p. 49.
isto é, de celebração do próprio corpo social, dando vez a um culto 123 VOVELLE, Michel. La crise des
dos mortos cada vez mais privado. A simbólica da continuidade rituels sur la mort contemporaine, et
son impact sur lês cimetièrs. In: A.
restringe-se à família e abandona a “polis”.124 Com isto, dilui-se a A. V. V. Una Arquitectura de la
consciência de que os indivíduos pertencem a totalidades holísticas, Muerte, p. 586.
124 Cf. DÉCHAUX, Jean-Hugues.
que lhes dão identidade e sentido futuramente dentro de uma com- op. cit., p. 136.

m 44 M
M participação grupal, ao mesmo tempo que cresce a assunção interio-
CATROGA, Fernando. rizada do luto.
Recordar e comemorar.
Serão estas as mudanças fruto de alterações ocorridas no
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. modo como o homem contemporâneo experiencia o tempo, vivido
Mimesis, Bauru, cada vez mais como um mero e infinito somatório de instantes sem
v. 23, n. 2, p. 13-47, a horizontalidade delineada pela simultânea presença da memória e
2002. das expectativas? O investimento comemorativo do século XIX e
boa parte de Novecentos constituía uma atitude adequada a uma
concepção acumulativa, evolutiva e constituída da história dos gru-
pos e da sociedade. Hoje, a situação modificou-se. Dir-se-ia que a
aceleração das mudanças sociais e a emergência de críticas contra a
crença na perfeitabilidade e no progresso – postulados da moderni-
dade – instalaram o sentimento do não sentido e da descontinuida-
de e pluralidade do tempo psicológico e histórico, como se o passa-
do não mais pudesse esclarecer o presente e o futuro passasse a ser
completamente imprevisível.125 Daí que, numa certa perspectiva, se
possa também sugerir que as novas atitudes em relação à morte
estão geminadas coma crise do historicismo.
Em termos concretos, os sinais desta desafetação refletem-se
tanto na simbologia inumista como na cremação, o que leva a que
se pergunte se um luto não patológico e as necessidades de repro-
dução sociabilitária podem prescindir da dimensão pública e sim-
bólica exigida pela inevitável sacralidade da morte e dos mortos e
pelo desejo de sobrevivência. Em certo sentido, as sociedades de
hoje podem fingir ter encontrado uma solução para o problema da
morte ao encararem a vida não já através de uma distanciação ritu-
alizada com os defuntos, mas mediante uma separação vigiada dos
indivíduos com a sua própria existência.126 Este comportamento
ajusta-se a uma sociedade alicerçada na entificação do “sujeito”.
Embora também seja possível surpreender reações recentes contra a
negação da morte, as novas expressões públicas da morte, do luto e
da memória já não poderão subsumir, porém, a sua componente per-
sonalizada. Do mesmo modo que a morte “ideal” é a que faz do
indivíduo o ator lúcido da sua própria morte, também a homenagem
ao defunto tende a centrar-se no “ego”. Os ritos sociais, conven-
cionais e estereotipados por natureza, estão desvalorizados, sendo
substituídos pelo verbo (falar para exprimir os sentimentos) ou por
rituais fabricados que evocam a univocidade do finado, logo, do que
125 Cf. LASCH, Ch. The Culture of
Narcisim. American Life in a age of
somente terá significado para os próximos (DÉCHAUX).
diminishins expectations. New York: Ora, se é certo que, ao contrário das sociedades mais tradi-
W. W. Norton & Company, 1979.
p. 102.
cionais, hoje não é rito que cria o social, continua no entanto a ser
126 BAUDRY, Patrick, art. cit., p. 46. válida a tese segundo a qual “le deuil n’est pas interindividuel, ni
une affaire intrapsychique. Il n’a jamais été et n’est jamais autre

m 45 M
chose que l’affaire de la vie sociale”.127 Caso contrário, a centrali- m
dade do “ego” tornar-se-á cultura narcísica e “egóide”, quebrando o CATROGA, Fernando.
Recordar e comemorar.
horizonte de alteridade (e de socialidade) que possibilita a realiza-
A raiz tanatológica dos
ção do indivíduo como pessoa. E como experiência indireta da ritos comemorativos.
“morte do outro” é raiz dessa assunção, pensam bem os que defen- Mimesis, Bauru,
dem que nunca existirá luto sem um ritual128 que saiba cruzar, de v. 23, n. 2, p. 13-47,
acordo com os diferentes contextos culturais, a dimensão privada 2002.
com a necessária expressão pública do rito. E se se aceita que novas
realidades podem gerar novos cultos,129 qualquer que seja a respos-
ta que o futuro reserve para essas recriações,130 temos como certo de
que uma sociedade sem memória será necessariamente uma
sociedade neurótica.131
Como é lógico, esta posição não pode levar ao escamotea-
mento desta outra face do problema: os efeitos patológicos tanto
podem derivar do abuso do esquecimento como do abuso da memó-
ria. No entanto, como, relendo Freud, conclui Paul Ricoeur, “si le
travail de deuil est le coût du travail du souvanier, le travail du sou-
venir, le travail du souvenir est le bénéfice du travail du deuil”.132 E
a rememoração, à escala dos indivíduos e da coletividade, só gerará
um luto bem feito, e não degenerará em melancolia (Freud), se a sua
re-presentificação não anular o distanciamento temporal e objectal 127 Ibid., p. 54; ______. Conceptions
sur la mort en Occident. In: CORNIL-
entre o presente e o passado, possibilitando assim o regresso à nor- LOT, P.; HANUS, M. (dir.) op. cit., p.
malidade.133 136.
128 Cf. BACQUÉ, Marie-Frédéric. Lê
De qualquer maneira, é incontroverso que, hoje, a degradação Deuil à Vivre, nouvelle èdition. Paris:
do culto romântico dos mortos atinge mesmo o seu mediador privi- Odile Jacob, 1995, p. 21.
legiado (a família), pelo que também não espanta que estejam em 129 Sobre a reinvenção de novos
cultos, leiam-se THOMAS,
crise as liturgias da recordação e, sobretudo, as de vocação mais cí- Louis-Vicent. La Mort em Question;
vica e política. Mas como estas pressupunham uma visão historicis- WALTER, M. The Revival of Death.
London and New York:
ta do tempo, não será lícito associar a crise das ideologias e dos ima- Routledge, 1994.
ginários sociais à clandestinação da morte e à do culto memorial 130 Sobre as necessidades de se criar
um novo ritualismo, seja na
dos mortos, como se, para os vivos, não mais houvesse futuro para imunução, seja na cremação, que
o passado e presente para o futuro? E não terá tudo isto levado a que ressacralize a morte e o último rito de
passagem, veja-se THOMAS,
modo comemorativo como as sociedades oitocentistas reliam, ritua- Louis-Vincent. Le Renouveau de la
lizavam e reinventavam o seu passado tenha lugar ao atual desejo de Mort. In: CORNILLOT, P.;
HANAUS, M. (dir.). op. cit., p. 31-76;
conservação museológica e arquivista, exemplarmente expresso na VOVELLE, Michel. Les noveaux
nova sensibilidade para com a preservação do patrimônio (arquite- rituls de la mort em Occident.
In: PÉRUCHON, Marion (dir.). Rites
tônico, natural, etc.), tendência que, na opinião de Jean-Didier de Vie, Rites de Mort. Paris: E. S. F.
Urbain, tem subjacente uma camuflada transferência do trabalho do Éditeur, 1997, p. 211-226.
131 BACQUÉ, Marie-Frédéric. Deuil
luto. Compensando a sua clandestinização social, o culto do passa- et Santé. Paris: Odile Jacob, 1997,
do mataforiza-se e, ao contrário do que acontecia no culto cemite- p. 14.
132 RICOEUR, Paul, op. cit.,
rial, desloca-se “du corps au décor, du sujet aux objects ou encore p. 22.
du cadavre à lénvironnement”, movimento que provoca um ainda 133 Ibid., p. 25.
maior resfriamento dos ritos comemorativos ao valorizar opções e

m 46 M
M lugares que remetem para uma ordem menos afetiva e mais erudita
CATROGA, Fernando. e racionalizada de se celebrar e de se fixar a fluidez do tempo.134
Recordar e comemorar.
É certo que as transformações sociais e políticas (a crise das
A raiz tanatológica dos
ritos comemorativos. memórias grupais e nacionais) condicionaram estas mutações. Mas
Mimesis, Bauru, a erosão do culto cemiterial e das comemorações cívicas tem ainda
v. 23, n. 2, p. 13-47, uma outra razão fundamental, quase metafísica, inscrita na sua pró-
2002. pria natureza. A evocação memorial pretende incentivar os vivos ao
devotamento e à abnegação, acenando-lhes como recompensa com
um ideal de imortalidade garantido pela memória dos vindouros.
Mas há que se, mesmo no calor das antigas solidariedades, esta
promessa não teve sempre algo de “frio”, nomeadamente quando as
comparamos com a crença no papel salvífico das obras e da inter-
cessão, ou mesmo com os ritos que “naturalizam” afiliação históri-
ca a partir da procriação e fixam a rememoração como uma prática
necessária ao renovamento da continuidade dos elos familiares.
Ora, a “anamnesis” ditada por razões cívicas não deixa de apontar
para uma escatologia excessivamente despersonalizada e universal,
assegurando tão-só a sobrevivência da imagem do morto na memó-
ria dos vivos.135 De onde resulta a sua indiscutível pobreza apelati-
va: a imortalização prometida não só é abstrata e virtual como es-
tará sempre suspensa das necessidades mnésicas do futuro e, por-
tanto, da contraditória degradação da eternidade.

ABSTRACT
The knowledge about death is indirect in the sense that death
is lived by the dying person alone in his individuality. The Western
civilization from its beginnings created a thanatological discourse
made by (and for) the living. The awe-inspiring death has given
birth to rites, among which the getting rid of the corpse, in order to
find solace for this rupture. Tomb inscriptions and other signs are
built to preserve the sense of being present against nothingness, and
this has given rise to museum-cemeteries, especially from the 19th
century on, consequence of the racionalistic Illustration. Such
material memories are meant to break the gnoseological distance
between subject and object, creating a celebration.

134 URBAIN, Jean-Didier. Du deuil


collectif à la culture em deuil. In: Key words: death; thanatology; museum-cemeteries; rites; celebra-
BULLETIN DE La SOCIÈTÈ de
Thanatologie, op. cit., p. 59. tion.m
135 CATROGA, F. Ritualizações da
História. In: TORGAL, L. R. et al. op
cit., p. 671.

m 47 M
La crisis educativa según Hannah
Arendt: novedad y tradición
The educational crisis according to Hannah Arendt:
novelty and tradition
m
Gloria M. Comesaña-Santalices
Katiuska J. Reyes Galué

Resumen
El presente análisis tiene como objeto explicar según la pers-
pectiva de arendtiana los factores que han desencadenado la crisis
educativa, tomando como ejemplo el caso norteamericano. La nata-
lidad como esencia de la educación, La necesidad de preservar la
tradición y el mundo, de proteger a los infantes y permitir a través
de ellos la eclosión de lo nuevo, son ideas centrales, así como la ne-
cesidad de rescatar la autoridad en el campo educativo y deslindar
éste del ámbito de la política. La autora concluye señalando que
sólo si comprendemos todo esto podremos asumir la educación co-
mo un acto de responsabilidad ante el mundo y ante las nuevas ge-
neraciones.

Palabras clave: Educación; natalidad; novedad; tradición; autori-


dad; Arendt.

A menudo escuchamos hablar de crisis en la educación como


algo tan común y frecuente que no reconocemos la importancia que
en verdad tiene. Sin embargo, ¿sabemos en realidad de qué se trata?,
¿Conocemos el origen de esta crisis?, No. Solo tratamos frecuente-
mente temas como la deserción escolar, el bajo índice académico, la
poca capacidad de los alumnos al ingresar a institutos de educación
superior, etc., y particularmente, quizás pensamos que el problema
va más allá de estos aspectos.

m 49 M
El tema es oportuno para mencionar el libro Entre el pasado m
y el futuro,1 de Hannah Arendt, el cual contiene según su autora, COMESAÑA-SANTALICES,
Gloria M.;
ocho “ejercicios sobre la reflexión política” y en el que dedica un
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
capitulo específico a la educación, titulado “Crisis en la educación”. La crisis educativa segun
Allí Arendt reflexiona sobre acontecimientos que forman parte de la Hannah Arendt: novedad
historia de la evolución humana, y que según ella, han llevado al y tradición.
mundo moderno a la crisis que estamos viviendo. Mimesis, Bauru,
Tales reflexiones no las encontramos ni siquiera en aquellos v. 23, n. 2, p. 49-66,
2002.
que hablan de la muy mencionada crisis educativa. Por ello, nos
parece pertinente destacar, una vez más, la originalidad del plantea-
miento arendtiano.
Hasta ahora, nos dice la autora, se ha centrado la educación, a
través de las nuevas teorías pedagógicas, en el alumno y no en el
docente, en el respeto de una supuesta autonomía infantil y no en el
proceso de enseñanza – aprendizaje, en el grupo y no en el indivi-
duo como ente principal de ese proceso. Nuestro objetivo en el pre-
sente análisis, es entonces explicitar y describir los elementos que,
desde la perspectiva de Arendt, hacen que la educación no mire más
allá de los métodos y que haya entrado en la crisis cuyas conse-
cuencias todavía experimentamos.
Consideramos sin embargo, que es preciso conocer algunas
reflexiones realizadas por la autora, antes de entrar en el tema que
propiamente nos ocupa. Esto nos permitirá entender mejor las
causas que precipitaron el problema y que a su vez nos ubicaron en
él. Abordemos pues de inmediato dichas reflexiones.

La esencia de la educación
Para Hannah Arendt el fenómeno la natalidad es la esencia de
la educación, es decir “el hecho de que en el mundo hayan nacido
seres humanos”.2 Esta afirmación de la autora nos obliga a definir
mejor su concepto de natalidad y a desarrollar la relación que tiene
con el tema tratado. Veamos entonces un texto que nos permitirá 1 ARENDT, Hannah. Entre el
Pasado y el futuro. Barcelona:
explicitar mejor su pensamiento. Refiriéndose a lo que nos conduce Península, 1996.
a la acción, concepto que en su filosofía política tiene repercusiones 2 Ibid., p. 186.
particulares,3 señala: 3 Al respecto véase COMESAÑA
SANTALICES, Gloria M.,
ARIAS VENEGAS, José L. La
…su impulso surge del comienzo, que se adentró en el mundo cuando Libertad de comenzar como clave
nacimos y al que respondemos comenzando algo nuevo por nuestra propia de la vida política. In: MOLERO
iniciativa. Actuar, en su sentido más general, significa tomar una iniciati- De CABEZA, Lourdes; FRANCO
M., Antonio. El discurso político
va, comenzar, (…) poner algo en movimiento. (…) Debido a que son ini-
en las ciencias humanas y
tium, recién llegados, y principiantes, por virtud del nacimiento, los hom- sociales. Caracas: Fonacit, 2002.
bres toman la iniciativa, se aprestan a la acción. (Initium) ergo ut esset, p. 15-24.

m 50 M
M creatus est homo, ante quem nullus fuit (para que hubiera un comienzo,
COMESAÑA-SANTALICES, fue creado el hombre, antes del cual no había nadie), dice San Agustín en
Gloria M.; su filosofía política. Este comienzo no es el mismo que el del mundo; no
GALUÉ, Katiuska J. Reyes. es el comienzo de algo, sino de alguien que es un principiante en sí
La crisis educativa segun mismo.4
Hannah Arendt: novedad
y tradición. Este concepto de natalidad nos permitirá comprender mejor
Mimesis, Bauru,
las ideas de la autora en esta reflexión sobre la crisis del sistema
v. 23, n. 2, p. 49-66,
2002. educativo, las cuales giran por una parte en torno al concepto de
tradición, y por la otra en torno al concepto de novedad, derivado
precisamente de su comprensión de la natalidad como el ingreso de
lo absolutamente nuevo en el mundo, pues “cada hombre es único,
de tal manera que con cada nacimiento algo singularmente nuevo
entra en el mundo”.5 Así pues, cada recién llegado al mundo, cada
niña o niño es único e irrepetible, y será fuente de acciones que
traerán lo totalmente inédito a un mundo preexistente, que puede
verse amenazado por esa absoluta novedad. Será entonces función
de la educación garantizar el correcto equilibrio entre la tradición, y
la necesaria y creativa novedad.

La crisis educativa como factor político


Para nuestra autora, una situación de crisis, es una ocasión
única de volver a pensar problemas que ya ni siquiera planteamos
correctamente, porque han quedado envueltos en prejuicios y apari-
encias. Es posible superar la crisis, nos dice, y específicamente en
este campo, sólo a través de la capacidad que tengamos los indivi-
duos de establecer juicios originarios y no prejuiciados en relación
con las situaciones a las que nos enfrentamos. Estas situaciones de
crisis, le parecen pues especialmente propicias para volver a “ver”
claramente la esencia, en este caso, la esencia de la educación, y
volvernos protagonistas de nuestros propios actos, actuar, según su
concepto de la política, y volver a formular juicios que ofrezcan
soluciones reales.
La crisis educativa es un problema del que ningún país escapa,
existen unas circunstancias específicas en las que aparece, las cua-
les, señala, podemos observarlas notablemente en Norteamérica,
que es el país al que se refieren sus análisis. Y aunque estas refle-
xiones hayan sido escritas en los años sesenta, nos parece que, en lo
4 ARENDT, Hannah. La fundamental no han envejecido, pues el problema, y la crisis a la
Condición Humana. Barcelona:
Paidós, 1993. p. 201. que se refiere Arendt, no nos parece en absoluto ni diferente ni
5 Ibid., p. 202. superado. Más aún, el rol paradigmático que en esta crisis le atri-

m 51 M
buye a los Estados Unidos, país en el que vivía, y cuyas institu- m
ciones, pese a sus críticas, admiraba tanto, no ha hecho sino acen- COMESAÑA-SANTALICES,
Gloria M.;
tuarse.
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
Allí, nos dice, la crisis ha alcanzado su máxima expresión, La crisis educativa segun
porque se ha convertido en un factor político. En efecto, señala, en Hannah Arendt: novedad
esa nación, las instituciones educativas cumplen una función distin- y tradición.
ta a la que tienen en otras partes del mundo, debido básicamente al Mimesis, Bauru,
papel que ha jugado y aún juega la inmigración en ese país,6 de v. 23, n. 2, p. 49-66,
2002.
modo que la educación es clave para formar una conciencia políti-
ca que fusione a los distintos grupos étnicos y “americanice” a los
recién llegados a través de la escolarización, incidiendo en los adul-
tos a través de sus hijos.
Los recién llegados a tierras norteamericanas, representaban
la garantía de que era posible establecer un nuevo “orden del
mundo”, Novus Ordo Seclorum, tema impreso en sus billetes, y esta
idea determinó tanto la historia como la política de ese país, enten-
diendo ese nuevo orden como una nueva fundación del mundo, un
mundo en el cual la pobreza y la opresión habrían desaparecido.

El fenómeno de los nuevos


Aunque este concepto es tan antiguo (los griegos llamaban
nuevos a los jóvenes que al pasar la etapa de la infancia entraban a
la comunidad de adultos) no se desarrolló conceptual ni política-
mente hasta el Siglo XVIII, momento en el que, particularmente
con Rousseau, la educación se comenzó a concebir como un instru-
mento de la política y ésta a su vez como forma de educación.
A partir de entonces se da una estrecha relación “instrumen-
tal” entre política y educación, relación que critica nuestra autora
como equívoca por considerarlas esferas muy diferentes y en las
que el ser humano debe proceder de forma distinta. En efecto, en el
6 Esto mismo puede, con ciertas
caso de la política, se trata de una relación entre iguales, lo cual no salvedades, decirse hoy en día de
es cierto en el caso de la educación. Si nos servimos, como se ha muchos otros países, en los
cuales, dados los crecientes
hecho muchas veces erróneamente, de la educación para imponer o movimientos migratorios actuales
transmitir ideas políticas, lo que en realidad se produce es “una debido a las diversas crisis de
todo tipo, la población está, cada
intervención dictatorial, basada en la absoluta superioridad del adul- vez más, compuesta por diferentes
to”.7 De esta manera, podemos añadir, se adoctrina a niñas y niños, grupos de inmigrantes que, de una
u otra forma, se hace preciso
mas no se les educa. En este sentido, y refiriéndose a la relación integrar. Sin embargo, siguiendo a
educación-política, en el caso de los adultos, nos dice Arendt: la autora, podemos decir que
Norteamérica se fundó como una
nación de inmigrantes.
Quien quiera educar a los adultos en realidad quiere obrar como su 7 ARENDT, H. Entre el pasado y
guardián y apartarlos de la actividad política. Ya que no se puede educar a el futuro, op. cit., p. 188.

m 52 M
M los adultos, la palabra educación tiene un sentido perverso en política; se
COMESAÑA-SANTALICES, habla de educación pero la meta verdadera es la coacción sin el uso de la
Gloria M.; fuerza.8
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
La crisis educativa segun De modo que lo propio de la política, si seguimos el plantea-
Hannah Arendt: novedad
miento arendtiano, consiste en una relación entre pares, que medi-
y tradición.
Mimesis, Bauru, ante la acción y el diálogo persuasivo, toman decisiones en común.
v. 23, n. 2, p. 49-66, Esto nada tiene que ver con el rol de la educación, que es introducir
2002. a los nuevos en un mundo que ya existía antes de ellos. Por ello, pre-
tender crear un nuevo orden político a través de la educación, solo
sería posible por medio de la conclusión platónica que consiste en
excluir a todas las personas viejas del Estado que se pretende crear.
Lo cual, no hace falta decirlo, sería un absurdo total y una expresión
de totalitarismo.
Debemos tener claro, entonces, que es inherente a la condición
humana que las nuevas generaciones se desarrollen en un mundo
viejo, por lo que pretender prepararlas para un nuevo mundo “sólo
puede significar que se quiere quitar de las manos de los recién lle-
gados su propia oportunidad ante lo nuevo”.9 Sin embargo, esta idea
de la creación de un mundo nuevo a través de la educación de los
niños siempre ha desempeñado un papel político fundamental en la
educación que se imparte en Norteamérica, en la cual, creando un
nuevo mundo se pretende al mismo tiempo proteger el viejo.
Como es evidente, se trata en realidad de una ilusión, y esta
situación, nos dice la autora, la encontramos contrariada, ya que el
mundo en el que se introducen los niños norteamericanos ha existi-
do siempre, es decir, ha sido constituido por los viejos y sólo es
nuevo para los recién llegados.

Avance y modernidad
La importancia de la idea de novedad en relación con la edu-
cación se sintió precisamente en el siglo XX con gran agudeza, con-
duciendo al total abandono de todos los métodos de enseñanza
conocidos, que fueron reemplazados, sin ningún discernimiento,
por nuevas teorías educativas, mezcla de sensatez e insensatez, naci-
das en Europa central. Lo que en Europa no pasó de ser experien-
cias que se llevaron a cabo en instituciones aisladas, fue acogido en
el sistema educativo norteamericano como una revolución pedagó-
gica radical y progresista.
8 Ibid. Con la adopción de dichas modernas teorías se perdió toda
9 Ibid., p.189. sensatez, razón por la cual se ha iniciado esta crisis en la educación,

m 53 M
que en este caso no es sino el reverso de la crisis política, algo fatal m
para un país que fundamenta su vida política en la idea de sentido COMESAÑA-SANTALICES,
Gloria M.;
común. Por eso señala la autora:
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
La crisis educativa segun
Siempre que, en la política, la razón humana fracasa o desiste del Hannah Arendt: novedad
esfuerzo de dar respuestas, nos enfrentamos con una crisis; esta clase de y tradición.
razón es en realidad ese sentido común gracias al cual nosotros y nuestros Mimesis, Bauru,
cinco sentidos nos adecuamos a un único mundo común a todos y con v. 23, n. 2, p. 49-66,
cuya ayuda nos movemos en él. En la actualidad, la desaparición del sen- 2002.
tido común, es el signo más claro de la crisis de hoy.10

En todo caso, nos dice Arendt, la inferioridad académica nor-


teamericana en relación con Europa no se debe a que las normas
educativas en este país aún no se encuentren al nivel de las del viejo
mundo, sino. Al contrario, desde este punto de vista, Norteamérica
sería el país más “avanzado” y moderno del mundo, y en un doble
sentido: “en ningún lugar los problemas educativos de una sociedad
de masas se han agudizado tanto, y en ningún otro lugar las teorías
pedagógicas más modernas se aceptaron de un modo menos crítico
y más servilmente”.11
Lo que esto realmente significa, implica comprender que en
una sociedad de masas los problemas son más frecuentes y agudos,
con el agravante de que dicha sociedad, ávida de soluciones, acepta
sin ninguna reflexión previa cualquier propuesta que se presenta
como avanzada y novedosa, y todo ello sin ser sometida a pruebas de
ningún tipo, ni exigírsele resultados probados como satisfactorios.

La noción de igualdad
Todo lo anterior se agrava por la gran importancia que tiene
para los norteamericanos la noción de igualdad, que significa a la
vez, desaparición de las clases sociales, ( al menos en el espíritu de
los fundadores de la nación,12 y como parte del “sueño americano”),
igualdad ante la ley, y sobre todo igualdad de oportunidades, con-
cepto que nos reintroduce de inmediato en el asunto educativo, pues
el derecho a la educación es una pieza clave en el sistema de la
“nación” norteamericana, que es tal, justamente, porque todos de-
ben recibir la misma educación, y todos tienen derecho a ella. Así
10 Ibid., p. 190.
pues, concluye Arendt en esta parte, la crisis de la educación en los
11 Ibid.
Estados Unidos, se agrava aún mas, debido al carácter político de 12 Ver la obra de ARENDT.
ese país, “que lucha por igualar o borrar, en la medida de lo posible, Essai sur la Révolution. Paris:
las diferencias entre jóvenes y viejos, entre personas con talento y Gallimard,, 1990. Versión
castellana: Sobre la Revolución.
sin talento, entre niños y adultos y, en particular, entre alumnos y Madrid: Alianza, 1988.

m 54 M
M profesores”. Lo malo de todo esto, añade la autora, es que este pro-
COMESAÑA-SANTALICES, ceso solo puede cumplirse de verdad “a costa de la autoridad del
Gloria M.;
profesor y a expensas de los estudiantes más dotados”.13
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
La crisis educativa segun Sin embargo, a pesar de la importancia que en la vida norteam-
Hannah Arendt: novedad ericana ha tenido este afán por igualar a todos, pasando por alto las
y tradición. diferencias individuales, se puede considerar que su incidencia en la
Mimesis, Bauru, crisis no es única, pues hay otros factores desencadenantes que para
v. 23, n. 2, p. 49-66, la autora es preciso comprender si se quiere ir al meollo de la crisis
2002.
actual. En este sentido, Arendt habla de ciertas medidas que depen-
dieron de la aceptación de tres supuestos básicos.

Los supuestos básicos


El primer supuesto tiene que ver con la idea de que existen un
mundo y una sociedad infantiles, es decir, se toma en cuenta al
grupo, y no al niño en cuanto individuo, se cree en la autonomía que
supuestamente debe tener el mundo de la infancia, implicando que
los niños deben “gobernarse” a sí mismos y los mayores deben in-
tervenir lo menos posible. Los adultos estarían así fuera de ese mun-
do, con lo cual se coloca a cada niño en la indefensa situación de ser
gobernado por la mayoría de quienes se le parecen en condiciones,
pero enfrentado a esa mayoría como una minoría individual. La
consecuencia de esto es, además de la ruptura de la normal con-
vivencia entre individuos de todas las edades, el hecho de que la
situación del niño dentro de ese mundo exclusivamente infantil es
peor que nunca. Así dice Arendt: “(…) el niño está mucho peor que
antes, porque la autoridad de un grupo, aun de un grupo infantil,
siempre es mucho más fuerte y más tiránica de lo que pueda ser la
más severa de las autoridades individuales”.14
La aceptación de este supuesto, tiene como consecuencia una
doble exclusión: del niño con respecto al mundo de los adultos y de
estos con respecto al mundo infantil. Lo más grave aquí es que el
niño queda indefenso, pues le es imposible hacerle frente a los otros
niños con algún tipo de razonamiento, y tampoco puede huir al
mundo de los adultos, que según este supuesto le está cerrado. El
problema, además, se complica debido a las conductas que los niños
adoptan como defensa o escape, y que los llevan a refugiarse en el
“conformismo” o en la “delincuencia juvenil”.
El segundo supuesto que cuestiona aquí Arendt se relaciona
13 ARENDT, Hannah. Entre el con la enseñanza. Siguiendo a la psicología moderna y los dogmas
Pasado y el Futuro. op. cit., p.
192. del pragmatismo, nos dice, la pedagogía ha venido a ser entendida
14 Ibid., p. 193. como una ciencia de la enseñanza, y esto ha adquirido tales propor-

m 55 M
ciones que se la ha considerado como más importante que las mate- m
rias específicas que deben transmitirse en las áreas académicas, COMESAÑA-SANTALICES,
Gloria M.;
hasta el punto de emanciparse de ellas; es decir, la consecuencia
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
lógica inmediata de esto equivale a dar prioridad a las estrategias y La crisis educativa segun
al método para enseñar, dejando en absoluto descuido la formación Hannah Arendt: novedad
especializada de los profesores en las diferentes asignaturas. Todo y tradición.
ello trae como corolario que “ya no existe la fuente más legítima de Mimesis, Bauru,
la autoridad del profesor: ser una persona que, se mire por donde se v. 23, n. 2, p. 49-66,
2002.
mire, sabe más y puede hacer más que sus discípulos.”15 Esto ha
originado lo que en nuestros días hemos denominado la “auto- con-
ducción” del aprendizaje, ya que si la preparación académica de los
profesores está descuidada, el alumno queda a la deriva de sus
propias posibilidades provocando problemas mayores.
Ahora bien, todo lo anterior resulta, nos dice la autora en su
pertinente análisis, de la aplicación del tercer supuesto básico en
nuestro contexto, que aunque es un criterio sostenido por la moder-
nidad desde el siglo XVII, tiene su expresión directa en el pragma-
tismo contemporáneo. Esto podemos sintetizarlo así, dice Arendt:
“sólo se puede saber y comprender lo que uno mismo haya hecho,
y su aplicación al campo educativo es tan primaria como obvia: en
la medida de lo posible, hay que sustituir el aprender por el hacer.”16
Esta idea clave del mundo moderno, implica aquí que no importa el
contenido de lo que se enseña, sino que más bien se trata de trans-
mitir habilidades, capacidad de actuar, en vez de transmitir el cono-
cimiento acumulado en una determinada disciplina.
Por otra parte, este proceso implicó también la sustitución del
trabajo por el juego, considerando que éste es la manera más apropi-
ada de comportamiento en la vida del niño, y que sólo jugando
puede realmente aprender y desarrollar habilidades, de modo que
pareciera que únicamente así se desarrolla la energía creadora de la
infancia. Así pues, tanto el aprendizaje como el trabajo han sido
desplazados para elevar el status del niño. El aprendizaje esforzado
y laborioso para adquirir los conocimientos necesarios para la vida,
ha sido sustituida por la adquisición de habilidades con el menor
esfuerzo posible.
Esto que podría parecer beneficioso en algún sentido, no lo es
en cuanto afecta la relación natural que debe existir entre mayores y
pequeños y la posibilidad de que se cumpla un verdadero proceso
de enseñanza – aprendizaje, olvidando que la infancia solo es una
etapa más en el desarrollo de la evolución humana.
Es por ello que, como respuesta a la crisis que cada vez se vis-
lumbra como más grave, se trata de regresar a los viejos métodos y 15 Ibid., p. 194.
valores: volver a impartir la enseñanza con autoridad, volver al tra- 16 Ibid.

m 56 M
M bajo con seriedad, dejando el juego para las horas de descanso, y
COMESAÑA-SANTALICES, transformar los planes de estudio de los profesores, de modo que
Gloria M.;
realmente se formen para tener algo que transmitir a sus alumnos.
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
La crisis educativa segun
Hannah Arendt: novedad
y tradición. Relación público-privado, novedad y tradición
Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 49-66,
2002. De toda esta reflexión sobre la crisis de la educación norteam-
ericana, Arendt pasa a mostrar los aspectos esenciales hacia los que
esta crisis conduce nuestro pensamiento, llevándonos a reconocer lo
que realmente debe interesarnos. En este sentido, anticipa:

Dos cosas son importantes para nuestra argumentación. Por un lado ver
qué aspectos del mundo moderno y de su crisis se reflejan en la crisis
educativa (…) En segundo término determinar qué podemos aprender de
esta crisis en cuanto a la esencia de la educación, (…) o sea, sobre la
obligación que la existencia de los niños implica para todo el grupo social.17

Con esto llegamos al núcleo mismo de la reflexión arendtiana


con respecto a este problema: la correcta relación entre lo público y
lo privado, que se refleja de manera particularmente álgida en el
caso de la educación. En efecto, nos dice la autora, cada generación
se plantea de nuevo la situación educativa como un problema, cuan-
do no como una crisis, que, por lo general, como es nuestro caso, es
el reflejo de una crisis social más amplia. Pues la comunidad
humana se vuelve siempre a interrogar acerca de la responsabilidad
que tiene con respecto a la preparación y crianza de los infantes en
relación con el mundo en el que van a ingresar.
El niño es un ser humano que está en proceso de transforma-
ción, sin embargo, ¿qué tanto sabemos de este proceso? Arendt lo
concibe bajo un doble aspecto: por una parte estamos ante un nuevo
ser humano que se va transformando para devenir realmente tal; por
la otra, nos las habemos con un recién llegado en un mundo que le
es extraño.
En el primer caso, se trata de la relación con la vida natural,
que compartimos con los demás seres vivos. Un infante, al igual que
la cría de cualquier animal, por ejemplo, está en proceso de trans-
formación para llegar al punto máximo de su desarrollo. Pero
además el infante ingresa en el mundo, “en un mundo que existía
antes que él, que continuará después de su muerte y en el cual debe
pasar su vida”. A diferencia de las otras especies, “los seres
humanos traen sus hijos a la vida a través de la generación y el
17 Ibid., p. 196. nacimiento, y al mismo tiempo los introducen en el mundo”. Así, la

m 57 M
educación es la manera de asumir la responsabilidad de la vida y el m
desarrollo de nuestros hijas e hijos, pero también la responsabilidad COMESAÑA-SANTALICES,
Gloria M.;
de “la perpetuación del mundo. Estas dos responsabilidades”, añade
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
Arendt, “no son coincidentes, y, sin duda, pueden entrar en conflic- La crisis educativa segun
to una con otra”.18 Hannah Arendt: novedad
Aquí debemos hacer una breve digresión para explicar el con- y tradición.
cepto arendtiano de mundo, de modo que se entienda mejor el plan- Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 49-66,
teamiento de nuestra autora. Para ello recurriremos a lo que señala
2002.
al respecto en La Condición Humana. Allí, en el parágrafo 18, titu-
lado “El carácter duradero del mundo”, explica:

El trabajo de nuestras manos, (…) fabrica la interminable variedad de


cosas cuya suma total constituye el artificio humano. Principalmente,
aunque no de manera exclusiva, se trata de objetos para el uso que tienen
(…) carácter durable (…) Su adecuado uso no las hace desaparecer y dan
al artificio humano la estabilidad y solidez sin las que no merecería con-
fianza para albergar a la inestable y mortal criatura que es el hombre (…)
las cosas del mundo tienen la función de estabilizar la vida humana, y su
objetividad radica en el hecho de que (…) los hombres, a pesar de su siem-
pre cambiante naturaleza, pueden recuperar su unicidad, es decir su iden-
tidad, al relacionarla con la misma silla y con la misma mesa. Dicho con
otras palabras, contra la subjetividad de los hombres, se levanta la obje-
tividad del mundo hecho por el hombre más bien que la sublime indife-
rencia de una naturaleza intocada…19

Siguiendo esta explicación, decíamos en otro trabajo,

La mundanidad, la pertenencia al mundo, es así uno de los aspectos


característicos de la humana condición. El mundo es en este sentido para
Arendt, el producto del quehacer humano que, enfrentándose o apoyán-
dose en la naturaleza, pero en todo caso siempre a partir de ella y más allá
de ella, produce todo el artificio humano cultural en cuyo seno nos desen-
volvemos.20

Teniendo claro el concepto arendtiano de mundo, podemos


abordar mejor esas difíciles y a veces conflictivas relaciones entre
18 Ibid., p. 197.
los propósitos de la educación y los requerimientos del mundo, a las 19 ARENDT, Hannah. La
cuales se ven confrontados padres y educadores. Condición Humana. op. cit., p.
157-158. Al ser humano en cuanto
Es precisamente a través de la educación como se produce el realiza el trabajo de sus manos,
desarrollo del infante y se ingresa en el mundo; en este sentido Arendt lo denomina más fre-
cuentemente, homo faber.
Arendt es sensible a la incompatibilidad que se hace patente en el
20 COMESAÑA SANTALICES,
ámbito educativo, ya que por un lado el niño necesita de protección Gloria M. El trabajo como pro-
ante el mundo, pues en cierto sentido su desarrollo es contrario a ductor del “artificio humano” en
Hannah Arendt. Anales del
éste, pero el mundo a su vez debe ser protegido ante la llegada con- Seminario de Historia de la
tinua de nuevos seres humanos. Por eso señala la autora: “el Filosofía. n. 14. Madrid: Servicio
de Publicaciones, Universidad
pequeño requiere una protección y un cuidado especiales para que Complutense, 1997. p. 101-102.

m 58 M
M el mundo no proyecte sobre él nada destructivo. Pero también el
COMESAÑA-SANTALICES, mundo necesita protección para que no resulte invadido y destruido
Gloria M.;
por la embestida de los nuevos que caen sobre él con cada nueva
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
La crisis educativa segun generación”.21
Hannah Arendt: novedad El asunto, tal como lo ve nuestra autora, consiste en determi-
y tradición. nar y respetar el campo de lo público y lo privado, diferenciando en
Mimesis, Bauru, este caso lo que corresponde a cada uno de ellos para lograr el de-
v. 23, n. 2, p. 49-66, sarrollo normal del niño, y a la vez el mantenimiento del mundo
2002.
creado por los adultos y por las generaciones anteriores. Aunque
para Arendt, como ya sabemos, la vida pública, particularmente en
el ámbito de lo político es especialmente importante,22 de modo que
es en la esfera de la acción donde los individuos se manifiestan
como realmente humanos, no deja de insistir en la importancia de
preservar el espacio privado considerado como un indispensable
para que el aspecto vital de lo humano se mantenga. Y es por ello
que nos dice, haciendo referencia a la familia como el lugar en el
que tradicionalmente se ha protegido a la infancia:

La familia vive su vida privada dentro de esas cuatro paredes y en ellas


se escuda del mundo, y, específicamente del aspecto público del mundo,
pues ellas cierran ese lugar seguro sin el cual ninguna cosa viviente puede
salir adelante, y esto es así, no sólo para la etapa de la infancia sino para
toda la vida humana en general, pues siempre que se vea expuesta al
mundo sin la protección de un espacio privado y sin seguridad, su calidad
vital se destruye. (…)
21 ARENDT, Hannah. Entre el Todo lo vivo, y no sólo la vida vegetativa, nace de la oscuridad, y por
Pasado y el Futuro. op. cit., p. muy fuerte que sea su tendencia natural hacia la luz, a pesar de todo, para
197-198.
crecer necesita de la seguridad que da la sombra.23
22 Véase COMESAÑA SAN-
TALICES, Gloria M.; ARIAS
VENEGAS, José L. La libertad Haciendo aquí otra digresión, hemos de señalar lo curioso que
de comenzar como clave de la
vida política. op. cit., p. 15-24. puede parecer a quienes conocen el pensamiento político de la auto-
23 ARENDT, Hannah. Entre el ra, esta fuerte defensa de la vida privada como espacio sin el cual
pasado y el futuro. op. cit., p. 198.
ninguna vida humana puede desarrollarse adecuadamente, e inclu-
24 ARENDT, Hannah La
Condición Humana. op. cit. Véase so volverse insoportable. Esta manera de referirse a lo privado, tan
también COMESAÑA SAN- “en positivo”, contrasta además con las referencias peyorativas a
TALICES, Gloria M.
Consideraciones críticas en torno todo lo que encubre el ámbito de lo privado, que se encuentran en
al concepto de labor en Hannah el capítulo dedicado a la labor en La Condición Humana.24 Allí todo
Arendt. Revista de Filosofía, n.
21. Centro de Estudios ese ámbito aparece calificado como carente de dignidad, fútil e
Filosóficos, LUZ, indigno. Aquí, nuestra autora, como en otros textos,25 se nos mues-
Maracaibo,1995. p. 119-142.
25 Véase: COMESAÑA SAN-
tra más equilibrada a la hora de contabilizar los méritos de las
TALICES, Gloria M. Lectura esferas pública y privada.
feminista de algunos textos de Continuando con nuestro tema, vemos cómo la autora insiste
Hannah Arendt. Anales del
Seminario de Historia de la en el grave error que ha cometido la educación moderna al hablar
Filosofía, n. 18. Madrid, Servicio de un mundo de niños. En tal sentido Arendt muestra su sorpresa,
de Publicaciones, Universidad
Complutense, 2001. p. 125-142. pues el llamado por muchos “siglo del niño,” denominado así por-

m 59 M
que reconoció a los infantes como tales, y no como simples adultos m
pequeños, se equivocó sin embargo al pretender, junto con las COMESAÑA-SANTALICES,
Gloria M.;
mujeres y los trabajadores, emancipar a los menores, sin entender
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
que dicha supuesta emancipación en este caso no ha lugar, y sola- La crisis educativa segun
mente perjudica a niñas y niños al someterlos a los peligros de la Hannah Arendt: novedad
esfera pública. Por eso señala sin ambages: y tradición.
Mimesis, Bauru,
Los últimos afectados por este proceso de emancipación fueron los v. 23, n. 2, p. 49-66,
niños y lo que había significado una verdadera liberación para los traba- 2002.
jadores y las mujeres – porque no eran sólo tales sino además personas,
que por tanto tenían derechos en el mundo público, (…) fue una entrega y
traición en el caso de los niños, insertos aún en la etapa en que el simple
hecho de la vida y de la crianza supera al factor de la personalidad. (…)
Cuanto más descarta la sociedad moderna la distinción entre lo privado y
lo público, (…), más difíciles son las cosas para los niños, que por natu-
raleza necesitan la seguridad de un espacio recoleto para madurar sin per-
turbaciones.26

Entre el mundo y la infancia, además de la familia, se inserta


la escuela, continúa señalándonos Arendt. Ella es también medi-
adora entre un ámbito y el otro, y debe cumplir a cabalidad su fun-
ción. En la etapa inicial de la infancia, niñas y niños no se relacio-
nan con el mundo directamente sino a través del escudo protector
que es la familia, pero hay que buscar la forma de que lo conozcan
e ingresen paulatinamente en él. Esto se produce particularmente
mediante la intervención de los educadores, que para el infante per-
sonifican a un mundo cuya responsabilidad asumen. En la edu-
cación, esta responsabilidad toma la forma de autoridad.

Autoridad, tradición, conservación


Al introducir este nuevo elemento, la autora subraya cómo la
pérdida de la autoridad ha generado una especie de crisis que tam-
bién afecta de manera directa a la educación. Indiquemos entonces
lo que para Arendt significa autoridad en este contexto: “La califi-
cación del profesor consiste en conocer el mundo y en ser capaz de
darlo a conocer a los demás, pero su autoridad descansa en el hecho
de que asume la responsabilidad con respecto a ese mundo”.27
Autoridad y calificación de un docente no son pues lo mismo.
En realidad, nos aclara la autora, el concepto de autoridad no parece
convenir al campo político, y de tener allí alguna función, sería una 26 ARENDT, Hannah. Entre el
Pasado y el Futuro. op. cit., p.
muy polémica, pues en la vida política nos las habemos con nues- 199-200.
tros iguales, cosa que no sucede en la vida privada ni tampoco en la 27 Ibid., p. 201.

m 60 M
M educación. En efecto, en estos campos no prevalece la igualdad sino
COMESAÑA-SANTALICES, la diferencia entre adultos e infantes, una diferencia temporal que
Gloria M.;
será superada cuando, concluido su período de formación, el indi-
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
La crisis educativa segun viduo pueda incursionar en el mundo por sus propios medios. Por
Hannah Arendt: novedad eso es un error confundir la educación con la política cuando se
y tradición. habla de autoridad:
Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 49-66, …en nuestra tradición de pensamiento político, nos acostumbramos a con-
2002. siderar que la autoridad de los padres sobre los hijos, de los profesores
sobre los alumnos, era el modelo según el cual debíamos entender la
autoridad política (…) este modelo (…) se basa en una superioridad abso-
luta que nunca puede existir entre adultos y que, desde el punto de vista de
la dignidad humana, jamás debe existir. Esta idea de autoridad se basó en
una superioridad meramente temporal, y, por consiguiente se auto con-
tradice si se aplica a relaciones que no son temporales por naturaleza,
como las que existen entre los gobernantes y los gobernados.28

En la tercera parte del texto que estamos comentando, Arendt


explica lo que ha sido en la historia la autoridad, un término que ha
tendido a confundirse con el ejercicio del poder, la violencia y la
coacción, cuando es en realidad un concepto que, aunque implica
obediencia y responsabilidad y una relación en principio desigual,
no debe significar la pérdida de la libertad. En efecto, nos dice en
el artículo consagrado a la autoridad en el libro que estamos ana-
lizando, “la autoridad implica una obediencia en la que los hombres
conservan su libertad.”29
El concepto de autoridad al que nuestra autora se adscribe,
está perfectamente expresado en la palabra latina auctoritas, deriva-
da del verbo augere, que significa “aumentar”. Y “lo que la autori-
dad o los que tienen autoridad aumentan es la fundación”,30 es decir,
el origen, la fuente de donde todo partió, en el caso de los romanos,
la fundación de la ciudad, Roma. Por eso, tener autoridad no es lo
mismo que tener el poder. Así, nos dice, “la característica más
destacada de los que están investidos de autoridad es que no tienen
poder.”31 Ella se refiere por supuesto a los ancianos, los “maiores”,
cuya opinión, que jamás se presenta como una orden, no requiere
nunca del apremio exterior o del uso de la fuerza para hacerse oír y
ser seguida.
No es éste el lugar para extendernos sobre los pertinentes y
brillantes análisis de la autora acerca del concepto de autoridad. Lo
cierto es que, como ella señala, su pérdida en la actualidad se ha
28 Ibid., p. 202.
29 Ibid., p. 116.
trasladado también al campo educativo, teniendo en cuenta además
30 Ibid., p. 133. que dicha pérdida se ha dado tanto en la vida privada como en la
31 Ibid., p. 134. pública. Esta pérdida de la autoridad en estas esferas de la vida, no

m 61 M
implica otra cosa sino que el rechazo de la mayoría de los adultos m
de asumir toda responsabilidad, tanto con respecto al mundo como COMESAÑA-SANTALICES,
Gloria M.;
con respecto a los menores. Así pues nos dice, “los adultos dese-
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
charon la autoridad y esto solo puede significar una cosa: que se La crisis educativa segun
niegan a asumir la responsabilidad del mundo al que han traído a Hannah Arendt: novedad
sus hijos.” y tradición.
La cuestión, dice Arendt, es entender que la responsabilidad Mimesis, Bauru,
que se asume ante el mundo, expresada en la autoridad, implica una v. 23, n. 2, p. 49-66,
2002.
actitud conservadora. Como esto puede resultar chocante a quienes
conocen sus planteamientos acerca de la importancia de la novedad,
nuestra autora aclara que:

(…) me parece que el conservadurismo, en el sentido de la conservación,


es la esencia de la actividad educativa, cuya tarea siempre es la de mimar
y proteger algo: al niño, ante el mundo; al mundo, ante el niño; a lo
nuevo, ante lo viejo; a lo viejo, ante lo nuevo. Incluso la amplia respon-
sabilidad del mundo que así se asume implica, por supuesto, una actitud
conservadora.32

La conservación es pues, según Arendt el fin principal de la


educación, que consiste en resguardar al infante con respecto a la
despiadada luz de lo público, para enfrentarse a la cual, precisamente,
la educación lo prepara. Pero también el mundo, como vimos al prin-
cipio, debe ser resguardado frente al ímpetu arrollador de los nuevos,
los recién llegados, y en ese sentido hay que conservarlo también. La
educación debe preservar al niño como elemento nuevo en el mundo,
y ayudarlo a ingresar en él, pero como mundo viejo, que por muchas
innovaciones que reciba siempre es el mundo antiguo que viene del
pasado. Nuevamente aquí, como en el caso de la autoridad, se apre-
sura a aclarar que esta “actitud conservadora” debe aplicarse sólo en
la actividad educativa, donde se da una relación entre infantes y per-
sonas formadas, mas no en el campo de la política, en el cual se trata
de una relación de igualdad entre adultos.
A lo anteriormente expuesto, añade Arendt que la dificultad
de la educación en la actualidad tiene además que ver con una cri-
sis en nuestra manera de enfrentarnos a la tradición, vale decir, al
pasado. Y esta crisis, se relaciona lógicamente, con la crisis de la
autoridad a la que nos referimos antes. Aquí nuevamente la autora
toma como referencia a los romanos, para los cuales el pasado, por
el mero hecho de ser tal, era ya un modelo a seguir, de modo que los
antepasados, y aún más cerca, los ancianos, marcaban la pauta a
seguir. A diferencia de los griegos, que entendían la ancianidad
como el momento de retirarse del mundo de las apariencias, para los
romanos, al envejecer alcanzamos nuestra forma más característica, 32 Ibid., p. 204.

m 62 M
M porque sólo en ese momento nos acercamos a esa forma de existen-
COMESAÑA-SANTALICES, cia en que seremos una autoridad para los demás.
Gloria M.;
Hechas las anteriores reflexiones, no podemos dejar de notar
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
La crisis educativa segun que la persistente y actual crisis, tanto a nivel de la tradición (acti-
Hannah Arendt: novedad tud hacia el pasado), como a nivel de la autoridad, repercute en el
y tradición. acto educativo. Es preciso pues reconocer, que la educación no
Mimesis, Bauru, puede y no debe rechazar ni la autoridad, ni la tradición, ya que
v. 23, n. 2, p. 49-66, ambas son necesarias para su adecuada evolución. Este acto de no
2002.
renuncia ni a la tradición ni a la autoridad, en un mundo que ya casi
no las toma en cuenta, no solo deben cumplirlo los educadores, sino
todos los que vivimos en el mundo y tenemos relaciones con
infantes o jóvenes que se encuentran en un proceso de enseñanza –
aprendizaje.
El resultado será doblemente beneficioso; por un lado, la
escuela enseñará a niñas y niños a entrar en el mundo tal y como es,
y por otro, quien ejerza la función de educar, profesor (a) o maestro
(a), (pero en todo caso esa figura que nos representa en el mundo
ante los infantes) transmitirá una tradición histórica, cultural y
académica, con el fin de que el alumnado sea capaz de establecer
las conexiones reales entre el pasado, el presente y el futuro. Por
otra parte, no debemos olvidar que lo primordial de este asunto, ya
para concluir, es la relación que debe existir entre personas ya for-
madas y menores, relación que se ha perdido tanto en nuestros días,
bien sea por falta de tiempo, exceso de trabajo o simplemente por
falta de interés en ello.

Enseñar y educar
En este sentido, la autora nos advierte de la diferencia entre
enseñar y educar, que ella tiene muy clara. Así, nos dice, “el objeti-
vo de la escuela ha de ser enseñar a los niños cómo es el mundo y no
instruirlos en el arte de vivir.”33 Para ella está claro que una cosa es
el aprendizaje de habilidades, oficios o profesiones, cuyo fin es sig-
nado por títulos y diplomas, y otra cosa es ser una persona educada,
lo cual por sus palabras, parece más bien ser la función de los adul-
tos de la familia, aunque no pueda ni deba excluirse de ello a otros
adultos ejemplares, que pueden encontrarse en la escuela o en otros
lugares de la comunidad (la iglesia, por ejemplo). Esto nos parece
indicar, cuando se refiere al hecho de que la formación que se da en
las Universidades o Tecnológicos, aunque tiene que ver con el hecho
de educar, es más bien un tipo de especialización que no busca intro-
33 Ibid., p. 207. ducir al estudiante en el mundo considerado como un todo.

m 63 M
Así, insiste en señalar, para concluir este punto, que edu- m
cación y aprendizaje deben ir a la par: “una educación sin aprendi- COMESAÑA-SANTALICES,
Gloria M.;
zaje es vacía y por tanto con gran facilidad degenera en una retóri-
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
ca moral-emotiva. Pero es muy fácil enseñar sin educar, y cualquie- La crisis educativa segun
ra puede aprender cosas hasta el fin de sus días sin que por eso se Hannah Arendt: novedad
convierta en una persona educada.” Y concluye este fragmento, con y tradición.
el que concordamos plenamente, indicando que “todos esos detalles Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 49-66,
deben quedar en manos de los expertos y de los pedagogos.”34 Aquí
2002.
puede sorprendernos, en esta afirmación, que Arendt deje este asun-
to, – el justo equilibrio, en cada caso, entre educación y aprendiza-
je – ella, que desconfiaba tanto de la moderna psicología – los
expertos de los que ella habla, suponemos –, en manos de los exper-
tos y pedagogos a los que menciona al final de la cita. Y es que,
como hemos visto, no era propiamente de la psicología ni de la pe-
dagogía de lo que ella desconfiaba, sino de su mal uso en manos de
quienes, en medio de la crisis general de la educación, – reflejo de
una crisis más amplia, – habían olvidado la esencia del hecho
educativo, aquella esencia en cuyas fuentes hay que volver siempre
a beber si queremos realmente orientarnos en este camino.

Actitud hacia la natalidad y su importancia


Pero si bien confía en los pedagogos, volviéndolos a mencio-
nar expresamente, es porque deja en manos de los pensadores, sean
o no filósofos de profesión, el determinar “nuestra actitud hacia la
natalidad, hacia el hecho de que todos hemos venido al mundo al
nacer y de que este mundo se renueva sin cesar a través de los
nacimientos.” Y añade, reiterando el justo equilibrio entre novedad
y tradición que debe funcionar a este nivel para resolver la crisis
educativa:

La educación es el punto en el que decidimos si amamos al mundo lo


bastante como para asumir una responsabilidad por él y así salvarlo de la
ruina que, de no ser por la renovación, de no ser por la llegada de los
nuevos y los jóvenes, sería inevitable. También mediante la educación
decidimos si amamos a nuestros hijos lo bastante como para no arrojarlos
de nuestro mundo y librarlos a sus propios recursos, ni quitarles de las
manos la oportunidad de emprender algo nuevo, algo que nosotros no
imaginamos, lo bastante como para prepararlos con tiempo para la tarea
de renovar un mundo común.35

Nos hemos extendido a explicitar con cierto detalle los pun- 34 Ibid., p. 208.
tos esenciales del concepto arendtiano de educación no solo porque 35 Ibid.

m 64 M
M nos parece un hermoso ejemplo de aplicación de su peculiar
COMESAÑA-SANTALICES, metodología,36 sino porque compartimos plenamente sus plantea-
Gloria M.;
mientos, y pensamos que, en estos tiempos tan duros, en que nos
GALUÉ, Katiuska J. Reyes.
La crisis educativa segun agobia una oscuridad casi tan terrible como la que a ella le toco
Hannah Arendt: novedad vivir, sus reflexiones son de absoluta actualidad, y, aunque se re-
y tradición. fieren a un país muy específico, al que por elección amaba, pero
Mimesis, Bauru, cuyos defectos no se privaba de criticar, pueden perfectamente apli-
v. 23, n. 2, p. 49-66,
carse al caso de nuestro país, que tiene justamente el defecto de
2002.
copiar en casi todo aquel nórdico modelo, reputado siempre como
superior, y porque además, en un país en el que la educación siem-
pre ha estado en crisis, no nos vendrá mal pensar en la esencia de la
educación, siguiendo los pasos de una gigante del oficio de pensar
como era Arendt.

Abstract
The objective of this analysis is to explain, according to
Arendt’s perspective, the factors that have unleashed the
educational crisis, taking as an example the North-American case.
Birth as the essence of education, the need to preserve tradition and
the world, to protect infants and allow through them the appearance
of what is new, are central ideas, as well as the need to recover
authority in the educational field and separate this are from the
political arena. The author concludes by pointing out that only if we
by understanding all of this can we assume education to be a
responsible act regarding the world and the new generations.

Key words: Education; birth; novelty; tradition; authority; Arendt.

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m 66 M
Solidão e doença na
metamorfose nietzschiana
Solitude and sickness in the nietzschean
metamorphosis
m
Márcio Danelon
Resumo
1 Conforme afirma Nietzsche, em
Ecce Homo: “Sou muito inquiri- O presente artigo tem por objetivo fazer um estudo sobre a re-
dor, muito duvidoso, muito altivo lação entre vida e obra em Nietzsche. Para isso, partiremos de dois
para me satisfazer com uma res-
posta grosseira. Deus é uma res- aspectos cruciais na vida de Nietzsche: a escolha pela vida solitária
posta grosseira, uma indelicadeza e as doenças que o acompanharam em sua existência e procurare-
para conosco, pensadores – no
fundo até mesmo uma grosseira mos estabelecer uma relação entre esses dois aspectos com sua obra
proibição para nós: não devem
pensar!… De maneira bem outra
filosófica, de tal modo que defenderemos a idéia de que a solidão e
interessa-me uma questão da qual a doença influenciaram em suas elaborações filosóficas.
depende mais a ‘salvação da hu-
manidade’ do que qualquer curio-
sidade de teólogo: a questão da Palavras-chave: solidão; doença; filosofia; espírito-livre.
alimentação. Para uso imediato,
podemos colocá-la assim: ‘como
você deve alimentar-se para alcan-
çar seu máximo de força, de virtù
no estilo da Renascença, de virtu- Introdução
de livre de moralina?’” (NIE-
TZSCHE, 2000, p. 35-36. No Za-
ratustra, lemos: “Quebrai, ó meus A filosofia de Nietzsche ficou consagrada pela história da fi-
irmãos, quebrai-me também essa
nova tábua! Os cansados do mun- losofia como um pensamento para poucos, como uma filosofia para
do a penduraram ali, e os prega- espíritos livres, para aqueles que têm ouvido propício para ouvir e
dores da morte, e também os
guarda-chaves: pois, vede, é tam- estômago1 para gerir suas palavras, pois, como ele mesmo se intitu-
bém uma pregação de servilismo:
- Porque eles aprenderam mal, e
la em Ecce Homo, não é homem, mas dinamite:
não o melhor, e tudo cedo demais
e tudo depressa demais: porque Conheço a minha sina. Um dia, meu nome será ligado à lembrança de
eles comeram mal, por isso veio-
lhes esse estômago estragado – algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais
um estômago estragado, sim, é profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra tudo o
seu espírito: é ele que aconselha a que até então foi acreditado, santificado, requerido. Eu não sou um ho-
morte! Pois em verdade, meus ir-
mãos, o espírito é o estômago! A
mem, sou dinamite. (NIETZSCHE, 2000, p. 109).
vida é uma nascente de prazer:
mas em quem fala o estômago es-
tragado, o pai da tribulação, para
A despeito disso, Nietzsche foi um doente, não no sentido em
este todas as fontes estão envene- que ele emprega o termo doente, a saber, os doentes de espírito,
nadas.” (NIETZSCHE, 2000a,
p.193-194).
mas, fisicamente doente.

m 67 M
O sofrimento físico foi, durante a história de vida de Nie- m
tzsche, seu “companheiro”. A doença constituiu-se em algo íntimo DANELON, Márcio.
Solidão e doença na
e inseparável do ser do filósofo. A história de sua vida confunde-se
metamorfose nietschiana.
com a história de seus sofrimentos físicos e psíquicos; ambos cami- Mimesis, Bauru,
nharam desde a adolescência até o seu crepúsculo: Nietzsche mor- v. 23, n. 2, p. 65-89,
reu em virtude de um colapso cerebral que foi vítima em 1889. 2002.
Por outro lado, além de sofrer de graves crises físicas, Nietzs-
che fora, também, um solitário que se refugia em si mesmo, pois
não pode encontrar em nenhum outro, para encontrar o tipo de ho-
mem superior:

Foi assim que há tempo, quando necessitei, inventei para mim os ‘es-
píritos livres’, aos quais é dedicado este livro melancólico-brioso que tem
o título de Humano, demasiado humano: não existem esses ‘espíritos li-
vres’, nunca existiram – mas naquele tempo, como disse, eu precisava de-
les como companhia, para manter a alma alegre em meio a muitos males
(doenças, solidão, exílio, acedia, inatividade): como valentes confrades
fantasmas, com os quais proseamos e rimos, quando disso temos vontade,
e que mandamos para o inferno, quando se tornam entediantes – uma com-
pensação para os amigos que faltam. (NIETZSCHE, 2000b, p. 8-9).

A solidão foi uma escolha pessoal do filósofo. Na escola pro-


vincial de Pforta, Nietzsche tinha poucos e seletos amigos, somen-
te aqueles que podia compartilhar de sua formação religiosa sólida,
apesar de ainda pueril. A péssima experiência como professor de fi-
lologia em Basiléia, pois seu primeiro texto – A origem da tragédia
– foi recebido com um silêncio sepulcral, materializou-se em gritos,
contra o sistema de ensino e a universidade alemã, conhecidos como
Considerações Extemporâneas. Nietzsche optou pela vida errante,
acreditamos, para, livremente e sem as obrigações burocráticas de
professor universitário, poder produzir sua filosofia que, segundo
ele mesmo, é para poucos:

Na terceira e na quarta Extemporâneas são contra isso levantadas,


como indicações para um mais elevado conceito de cultura, para restaura-
ção do conceito ‘cultura’, duas imagens do mais severo amor de si, culti-
vo de si, tipos extemporâneos par excellence, plenos de soberano despre-
zo por tudo o que ao seu redor se chamava ‘Reich’, ‘cultura’, ‘Bismarck’,
‘êxito’ – Schopenhauer e Wagner, ou, em uma palavra, Nietzsche…
(NIETZSCHE, 2000, p. 67).

O objetivo desse texto não é estudar as doenças e a solidão de


Nietzsche a suas diversas implicações; não temos por objetivo esti-
pular as inúmeras manifestações doentias vividas pelo filósofo du-
rante sua vida, e nem tão pouco buscar as causas desses sofrimen-
tos ou de sua opção pela vida solitária. O nosso objetivo consiste em

m 68 M
M sublinhar uma das conseqüências na vida de Nietzsche que seu es-
DANELON, Márcio. tado doentio possibilitou, a saber, a metamorfose do cristão para o
Solidão e doença na
ateu vivida pelo filósofo. O nosso propósito consiste em determinar
metamorfose nietschiana.
Mimesis, Bauru, que um dos elementos que tornou possível essa metamorfose foi
v. 23, n. 2, p. 65-89, justamente o seu estado doentio e sua solidão. O argumento que uti-
2002. lizaremos será a afirmação de Nietzsche de que foi seu estado físi-
co degenerado e um solitário, o que lhe possibilitou edificar seu edi-
fício filosófico.

1- Suas doenças
Além de sofrer com a morte de seus familiares, Nietzsche
sempre foi, desde a infância, debilitado fisicamente, sofrendo cons-
tantemente de dores estomacais, de cabeça e nos olhos. Foi assim
em Pforta, de acordo com o diário médico oficial desta escola, o
qual reproduzimos:

- 1859. Reumatismo, 15-20. III; Catarro, 2-9. XI.


- 1860. Catarro (30. XII. 1859), 5-16. 1; Reumatismo (4. XII), 12-26. VI.
- 1861. Jaqueca esfriamiento (18), 19-27. 1; Dolor reumático de cuello y
de cabeza, a partir del 30. I […] Catarro, 28-30. X; Jaquecas reumáticas,
4-16. XI.
- 1862. Congestiones de cabeza, 7-11. I; Dolor de cabeza, 4-13. III; Catar-
ro, 17-24.VI; Congestiones de cabeza, 16-25. VIII […] Reumatismo, 24-
28. XI.
- 1863. Catarro, 2-5. II; Catarro, 24-IV-5. V; Inflamación del oído, del
processus mastoidei ossis petrosi, 7-20. V; Diarrea, 12-16.XII.
- 1864. Catarro, II-13.II; Congestiones de cabeza del 3 al 5.V. (JANZ,
1987, p. 113).

Foi assim também durante seus trabalhos de professor na Uni-


versidade da Basiléia, onde constantemente tirava licenças para tra-
tar de sua saúde. A aposentadoria remunerada que ganhou dessa
Universidade (1879) foi por motivos de saúde. As suas limitações
físicas o acompanharam durante seus anos de filósofo errante
(1879-1889) e finalmente durante seu último período de vida quan-
do já estava avançada sua debilidade mental.
Parece que Nietzsche viveu, constantemente, a dor da morte,
a dor de sentir a vida se esvaecendo. Nietzsche viveu a tragicidade
da vida humana: o tênue fio que separa da morte o frágil corpo hu-
mano. Aprendeu a conviver com a pequena e insignificância que é
a vida humana. A doença sempre foi o principal empecilho viven-
ciado pelo filósofo no cultivo de uma vida menos traumática. Fo-

m 69 M
ram essas debilidades físicas que impossibilitaram-no, diversas ve- m
zes, o desenvolvimento de seus estudos, executar viagens ou visi- DANELON, Márcio.
Solidão e doença na
tar amigos. A doenças, os sofrimentos foram como que ferro fer-
metamorfose nietschiana.
vente que marcou profundamente a vida de Nietzsche; foram como Mimesis, Bauru,
que hóspedes que se instalaram em seu corpo mas que nunca o dei- v. 23, n. 2, p. 65-89,
xaram; foram como que sanguessugas, invadindo e apoderando-se 2002.
de sua saúde.
Em uma carta, de 1880, endereçada ao seu amigo Gustav
Krung, Nietzsche caracteriza a doença como algo que o subjuga to-
talmente:

Permaneceste fiel à tua arte. Tudo o que dela me contas produziu-me


íntimo contentamento, e espero chegar a uma idade mais favorável ao
meu corpo do que a atual, e na qual possamos tornar a reunirmo-nos
para, juntos, ver surgir o nosso passado das tuas notas […] Não posso di-
zer mais; a minha doença, que ainda, como sempre, tem cada dia a sua
história própria, põe sobre mim a sua mão dominadora. Quando pensa-
res em mim (como neste meu último aniversário, de que eu próprio es-
tava esquecido), crê que não me faltam paciência e coragem e que, seja
qual for o meu estado, não careço de bons e elevados propósitos. Crê,
também, que sou e serei sempre o teu cordial amigo. (NIETZSCHE,
[19--], p. 187-188).

No Ecce Homo, Nietzsche faz, literalmente, um prontuário


médico de seu estado de saúde e das enfermidades que assolam sua
existência:

Em meio ao martírio que traz consigo uma incessante dor de cabeça de


três dias, acompanhado de penosa expectoração – possuía eu uma clareza
de dialético par excellence e pensava inteiramente, com sangue-frio, coi-
sas para as quais em condições mais sãs não sou ousado, refinado e frio o
bastante […] Impossível demonstrar qualquer degeneração local; nenhum
mal do estômago de causa orgânica, embora freqüentemente, como conse-
qüência do esgotamento geral, grande debilidade do sistema gástrico.
Também o mal da vista, por vezes aproximando-se perigosamente da ce-
gueira… (NIETZSCHE, 2000, p. 24).

A debilidade física foi algo que impregnou tal ponto a vida


de Nietzsche que esta passou a fazer parte constitutiva de seu ser.
Ele foi essencialmente um ser doente e frágil. A sua história é a de
um homem que sofreu fisicamente as dores de sua debilidade. Sa-
lomé define dessa forma a história de vida do filósofo: “A histó-
ria desse ser único é do princípio ao fim uma história de sofrimen-
to e não se compara a qualquer individualismo genérico; seu con-
teúdo revela menos ‘auto-suficiência’ do que ‘auto-tolerância’”.
(SALOMÉ, 1992, p. 41).

m 70 M
M Se a filosofia de Nietzsche sempre se caracterizou como
DANELON, Márcio. um fruto da mais pura independência de espírito, do mais livre
Solidão e doença na
pensar, seu estado físico implicava em constante dependência
metamorfose nietschiana.
Mimesis, Bauru, dos amigos.
v. 23, n. 2, p. 65-89, A total independência de pensamento de Nietzsche aconteceu
2002. após a sua retirada da Basiléia. Durante seus anos de catedrático em
Filologia, desejava ardentemente se libertar dessas obrigações pro-
fissionais.2 Para poder produzir suas concepções filosóficas, preci-
sava de tempo, tempo esse que seu cargo não lhe proporcionava. Em
uma correspondência de 1874, cujo destinatário era seu amigo
Gersdorff, Nietzsche expressava esse desejo de liberdade:

Se soubesse quão desanimada e melancolicamente penso em mim co-


mo criatura criadora! Procuro somente um pouco de liberdade, de verda-
deira atmosfera vital, e defendo-me e revolto-me contra o muito, indizivel-
mente muito, que me aprisiona. Ninguém pode falar de uma produção ver-
dadeira, enquanto não for mais livre, enquanto não se tiver libertado da
aflição e do sofrimento. (NIETZSCHE, [19--], p. 133).

Foi a partir da época em que foi escrito da obra Assim Falou


Zaratustra (início da década de 80 do século XIX), que podemos
afirmar, de uma forma categórica e explícita, a independência de
pensamento de Nietzsche:

O meu Zaratustra, que te enviarei esta semana, revelar-te-á a elevação


do vôo da minha vontade. Não te deixes enganar pela forma legendária do
meu livro. Atrás das suas simples e estranhas palavras, está a minha mais
profunda seriedade e toda a minha filosofia. É uma forma de me dar a co-
2 É conhecido da literatura nie- nhecer e nada mais. Sei muito bem que não existe ninguém capaz de fa-
tzschiana, o total descontentamen-
zer qualquer coisa semelhante ao meu Zaratustra. (NIETZSCHE, [19--],
to de Nietzsche com sua cátedra
na Universidade da Basiléia, não p. 225).
somente por ter seu estado de saú-
de se degenerado, mas, também,
por se sentir constrangido na sua Em seu texto autobiográfico Ecce Homo, também encontra-
produção filosófica. É nesse cená- mos um aceno a esta peculiar liberdade frente aos outros filósofos:
rio, que Nietzsche caracteriza seu
período na Basiléia como sendo
de sombras: “No mesmo ano em Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me à humanidade com a
que sua (do pai de Nietzsche) vida mais séria exigência que jamais lhe foi colocada, parece-me indispensável
cedia, também a minha declinava:
aos trinta e seis anos atingi o pon- dizer quem sou […] Nessas circunstâncias existe um dever, contra o qual
to mais baixo de minha vitalidade no fundo rebelam-se os meus hábitos, e mais ainda o orgulho de meus ins-
– ainda vivia, sem no entanto en- tintos, que é dizer: Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo não me
xergar três passos adiante. Então –
confundam!. (NIETZSCHE, 2000, p. 17).
era o ano de 1879 – abandonei
minha cátedra na Basiléia, vivi o
verão como uma sombra em St. Se Nietzsche prima pela total independência de pensamento,
Moritz e o inverno seguinte, o
mais pobre de sol de minha vida, isto não ocorre com respeito ao seu estado físico. Diversas vezes a
sendo sobra em Naumburg.” doença impossibilitou-o de executar suas atividades estudantis em
(NIETZSCHE, 2000, p. 23).
Pforta, conforme Janz:

m 71 M
m
Los enfriamientos no cesaron en este año de 1861. El 28 de octubre tu- DANELON, Márcio.
vo que instalarse nuavamente en la enfermeria. ‘Tengo un pulso tremen- Solidão e doença na
damente rápido, el cuello hinchado y me duele la región occipital. Ade- metamorfose nietschiana.
más, tengo constantemente escalofíos. Me siento como enmohecido. To- Mimesis, Bauru,
do como el año pasado, en vispera de aquella gran jaqueca.’ Esta vez vol- v. 23, n. 2, p. 65-89,
vió, sin embargo, a encontrarse bien al cabo de pocos dias. (JANZ, 1987, 2002.
p. 114-115).

Impossibilitou-o de ministrar aulas na Universidade de Basi-


léia, conforme Halévy (1989, p. 175), e, também, dificultou a ela-
boração de textos:

Humano, demasiado humano […] foi redigido no principal em Sorren-


to; recebeu sua conclusão e sua forma definitiva em um inverno na Basi-
léia, sob condições bem mais desfavoráveis que em Sorrento. No fundo é
o Sr. Peter Gast, então na Universidade da Basiléia, e a mim muito afei-
çoado, quem tem este livro na consciência. eu ditava, a cabeça enfaixada
e dolorida, ele escrevia, e corrigia também – ele foi, no fundo, o verdadei-
ro escritor; eu fui apenas o autor. (NIETZSCHE, 2000b, p. 76).

A doença tornava por demais limitadas as ações de Nietzs-


che. Qualquer atividade que fosse executar teria antes que levar em
consideração as dificuldades que sua debilidade física lhe imputa-
va. A dimensão de sua existência estava circunscrita às possibilida-
des que seu estado de saúde lhe permitia, ou seja, sua atividade es-
tudantil e profissional, suas viagens e lugares onde permaneceu,
deveriam estar em concordância com seu estado físico. É com res-
peito a isso que ele escreveu, em 1888, uma carta ao seu amigo
Brandès:

A história das minhas primaveras, pelo menos de há uns quinze anos


para cá, é uma história espantosa, uma fatal continuidade de franqueza e
decadência. Os sítios onde passei não tiveram a mínima influência benéfi-
ca; nem eles, nem os diversos regimes, nem nenhum clima, conseguiram
modificar o caráter essencialmente depressivo desta época. mas, oh sur-
presa! Turim e as suas notícias, meu ilustre amigo, demonstraram-me que
eu ainda vivia… (NIETZSCHE, [19--], p. 279).

E, no mesmo ano, à sua irmã: “Como estou em meio do tra-


balho decisivo da minha vida, a primeira condição indispensável,
para mim, é observar uma regra perfeita durante uns anos. Inverno,
Nice; Primavera, Turim; Verão, Sils e, nos dois meses de Outono,
Turim, novamente.” (NIETZSCHE, [19--], p. 292).
Um dos problemas físicos enfrentados por Nietzsche, diz res-
peito aos constantes mal-estares relacionados ao seu estômago.

m 72 M
M Além dos problemas já citados no diário médico de Pforta, encon-
DANELON, Márcio. tramos uma carta a Rodhe (1871), em que expressa seus terríveis
Solidão e doença na
sofrimentos causados pelo estômago:
metamorfose nietschiana.
Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 65-89, Ai, quanto desejo a saúde! Faça-se qualquer coisa que dure mais do
2002. que nós próprios e, então, daremos graças por cada noite bem dormida,
por cada raio de sol, até por cada digestão normal! Mas, desgraçadamen-
te, há em mim não sei que órgãos do estômago perturbados, que me pro-
duzem insônias, nervosismo, hemorróidas, sabor de sangue, etc.
(NIETZSCHE, [19--], p. 94).

Também os olhos eram motivos de limitações para Nietzsche.


Eram constantes suas dores nos olhos, talvez em decorrência das
dores de cabeça que freqüentemente o atacavam. Além desse pro-
blema, Nietzsche possuía uma vista extremamente deficiente:
“Também o mal da vista, por vezes aproximando-se perigosamente
da cegueira, apenas decorrência, nada causal: de modo que cada au-
mento da força vital também a força da visão cresceu”. (NIE-
TZSCHE, 2000, p. 24). Salomé escreveu a impressão que lhe cau-
sou essa visão deficiente de Nietzsche: “A visão deficiente dava a
seus traços uma qualidade toda especial de encanto, pois, em vez de
refletir impressões exteriores cambiantes, reproduzia apenas o que
se passava em seu interior. Eram olhos que olhavam para o interior
…” (SALOMÉ, 1992, p. 35).
Se o estado de debilidade física que traspassou a existência de
Nietzsche implicou em severos sofrimentos, constantes privações e,
até certo ponto, dependências em relação a outras pessoas, podemos
afirmar que este mesmo estado doentio se constituiu numa condi-
ção de possibilidade para a efetivação da metamorfose nietzschiana.
Podemos efetuar essa afirmação tendo em mente a idéia de que as
diversas doenças foram, na verdade, pano de fundo que tornou pos-
sível a Nietzsche o desenvolvimento de uma visão diferente de
mundo em relação àquela herdada de sua educação familiar.
As doenças e sofrimentos que viveu durante sua existência fo-
ram um dos motivos que transformaram o espírito o filósofo, possi-
bilitando-lhe o rompimento com o cristianismo e a edificação de
toda a sua filosofia. As doenças se constituíram, nessa perspectiva,
como um elemento positivo ao desenvolvimento intelectual de
Nietzsche. As doenças e sofrimentos não eram apenas sentidos, mas
vivenciadas fisicamente e espiritualmente. Nietzsche vivia profun-
damente doença e todas as implicações que ele impunha sem se
poupar em nada.
A idéia de doença possui, na existência de Nietzsche, uma ca-
racterística extremamente singular: ela implica em sofrimentos, pri-

m 73 M
vações e dependência, mas tudo isso desemboca num pólo positi- m
vo, a saber, a transformação do espírito, surgindo, com isso, um DANELON, Márcio.
Solidão e doença na
novo e diferente conceito de vida e cultura. As doenças possibilita-
metamorfose nietschiana.
ram o amadurecimento de idéias latentes de Nietzsche e contrárias Mimesis, Bauru,
em relação à sua educação cristã familiar. A doença possui os ele- v. 23, n. 2, p. 65-89,
mentos necessários para que se efetive a transformação do seu espí- 2002.
rito, ou seja, foi um dos pontos necessários a mudança de direção
das aspirações do filósofo. Segundo Salomé, Nietzsche disse a ela,
em uma de suas inúmeras conversas filosóficas, sobre o papel de-
sempenhado pelo constante sofrimento no espírito humano:

Nietzsche descreve a influência que os humores do doente e do conva-


lescente exercem sobre o pensamento, acompanha as mais sutis transições
desses humores até as raias do intelectual. Uma doença periodicamente
reincidente como a sua interrompe continuamente uma fase qualquer da
vida, separando-a com isso uma fase precedente e fornecendo ao indiví-
duo as experiências e a consciência de duas naturezas. Faz as coisas se tor-
narem continuamente novas para o espírito – ‘saber a novo’, diz Nietzsche
certa vez com extrema justeza – e lança um olhar totalmente novo mesmo
sobre o mais comum e mais cotidiano. (SALOMÉ, 1992, p. 39).

As doenças assumem a figura, mesmo que metaforicamente,


do fogo que tudo consome com seu calor; que, com o poder impla-
cável das suas chamas, tudo transforma em algo diferente do que
era. A doença, segundo Nietzsche, possui o mesmo poder do fogo,
que através da dor causada pelo calor, transforma tudo que entra em
contato com ele.
As moléstias que viveu se constituíram numa espécie de
propulsor que lhe empurrava à busca de conhecimento, de novos
conhecimentos, conforme o prólogo de Humano, demasiado hu-
mano:

Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experimento, é


ainda longo o caminho até a enorme e transbordante certeza e saúde, que
não pode dispensar a própria doença como meio e anzol para o conheci-
mento, até a madura liberdade do espírito, que é também autodomínio e
disciplina do coração e permite o acesso a modos de pensar numerosos e
contrários – até a amplidão e refinamento interior que vem da abundân-
cia… (NIETZSCHE, 2000b, p. 10-11).

As doenças despertaram nele a necessidade de estudar, por


exemplo, a sua própria doença e o que melhor necessitava para efe-
tivar a cura. Em uma carta a sua mãe (1881), Nietzsche descreve
que, não obstante a sua falta de saúde e estado físico debilitado, sen-
tia-se saudável em virtude das longas e constantes caminhadas. Na
mesma carta, afirma:

m 74 M
M
DANELON, Márcio. Mesmo que, em Recoaro, a vida me tivesse fugido, teria morrido ali
Solidão e doença na um dos homens mais independentes e superiores, e não um desesperado.
metamorfose nietschiana. O gênero da minha dolência cerebral é muito difícil de precisar, e eu vou
Mimesis, Bauru, estando cada dia mais senhor da matéria científica necessária para defini-
v. 23, n. 2, p. 65-89, lo por mim mesmo [...] Não se enfade comigo, se pareço ferir os seus ca-
2002. rinhos e interesse, nesta ocasião. Quero ser, de aqui por adiante, o meu
próprio médico, e os homens hão de dizer que fui bom e não unicamente
para mim. (NIETZSCHE, [19--], p. 194).

Para Nietzsche, a sua debilidade física se constituiu, então,


num meio para o conhecimento. O sofrimento foi uma das causas
que conduziu o filósofo à busca de novos conceitos. Dos textos de
Nietzsche, muitos nasceram desse estado físico debilitado, como ele
mesmo afirma sobre Assim Falou Zaratustra:

O inverno seguinte vivi na calma e graciosa baía de Rapallo, não lon-


ge de Gênova, entalhada entre Chiavari e o promontório de Porto Fino. Mi-
nha saúde não era a melhor; o inverno frio e chuvoso ao extremo; um pe-
queno albergue, situado à beira mar, de modo que à noite a maré alta tor-
nava o sono impossível, oferecia em quase tudo o oposto do que seria de-
sejável. Apesar disso, e como que para demonstrar minha tese de que tudo
decisivo acontece apesar de tudo, foi nesse inverno e nesse desfavoreci-
mento das circunstâncias que meu Zaratustra nasceu. (NIETZSCHE,
2000, p. 83).

E também sobre o livro Humano, Demasiado Humano, em


que se expressou dessa forma numa carta, de 1879, a Gast:

Fiz prova da minha concepção do Universo; outros a provarão no futu-


ro. Os meus prolongados e penosos sofrimentos não conseguiram ainda
deprimir o meu espírito e, pelo contrário, julgo sentir-me agora mais sere-
no e cheio de benevolência do que nunca, na minha vida. […] Ao ler este
meu último manuscrito, seja V., meu querido amigo, se pode encontrar-lhe
vestígios de sofrimento e de depressão. Creio que não há-de encontrá-los
e esta crença é já um sinal de que, nas minhas doutrinas, se escondem for-
ças e não desfalecimento e fatiga, que é aquilo que nelas buscarão aqueles
que me são adversos. (NIETZSCHE, [19--], p. 174).

De acordo com esses indícios, podemos afirmar ser a doença


uma espécie de fonte de inspiração. Nietzsche conseguiu buscar nos
mais profundos e dolorosos sofrimentos a força necessária à elabo-
ração de sua filosofia. Tal como a mitológica Fênix, que dos escom-
bros ressurge em todo o seu poder e esplendor, Nietzsche também
pariu sua filosofia de seu mais profundo e intenso estado de debili-
dade. Se Nietzsche foi, fisicamente, um doente, o mesmo não pode-
mos afirmar com respeito ao seu espírito. Em seus textos encontra-

m 75 M
mos, sempre, uma extrema valorização do espiritualmente sadio. m
Ele foi, em suas faculdades, um ser extremamente sadio. A partir de DANELON, Márcio.
Solidão e doença na
suas doenças, sofrimentos e debilidades físicas, Nietzsche expressa-
metamorfose nietschiana.
va todo o seu exuberante e sadio espírito. “… Nietzsche flagela-se, Mimesis, Bauru,
não para se aniquilar ou morrer, mas para atingir as febres e feri- v. 23, n. 2, p. 65-89,
mentos de que precisa. Essa exigência de dor percorre toda a histó- 2002.
ria de Nietzsche e representa a verdadeira fonte de seu espírito…”
(SALOMÉ, 1992, p. 40). Numa passagem, já clássica, do Crepús-
culo dos Ídolos, e que tem o sugestivo título de Da escola de guer-
ra da vida, Nietzsche traz a idéia da força, da luta e da adversidade
como elementos constituidores de um espírito livre: “Aquilo que
não me faz morrer me torna mais forte”. (NIETZSCHE, 1995,
p. 46). Nessa perspectiva, portanto, para a emergência do tipo de
homem que carrega em seu bojo aquilo que Nietzsche chamou de
espírito livre, necessário se faz a experiência da adversidade, do
constrangimento, da luta; é da crise que se tira a força do espírito e
a saúde da alma. Os fortes o são pelo confrontamento com as adver-
sidades:

Os juízos de valor cavaleiresco-aristocráticos têm como pressuposto


uma constituição física poderosa, uma saúde florescente, rica, até mesmo
transbordante, juntamente com aquilo que serve à sua conservação: guer-
ra, aventura, caça, dança, torneios e tudo que envolve uma atividade robus-
ta, livre e contente. (NIETZSCHE, 1988, p. 29).

Ora, se a filosofia de Nietzsche é para os de espírito livre, pois


dela emerge o ideal de superação do homem moderno, extremamen-
te doente, esta filosofia é produto de um espírito livre que teve nas
adversidades da existência a experiência para a superação de si mes-
mo. Se a filosofia de Nietzsche é para espíritos livres, ela o é, pois
seu autor tirou da dor de sua existência o elemento motivador desta
filosofia, como se esta fosse um espelho que reflete o inverso de si
mesmo. Dessa forma, a filosofia de Nietzsche é o exemplo máximo
da materialização de um homem que, apesar de fisicamente doente,
é em seu espírito, forte. Nas palavras escritas por Nietzsche emer-
gem o ideal de homem sadio, pois sua filosofia é para poucos, para
os poucos que tem a força, física, também, para enfrentar o frio e o
cume dos altos:

Tem coragem, meu irmão? Tem coração? Não coragem diante de tes-
temunhas, mas coragem de solitário e daqueles, ao qual nem mesmo um
deus, se faz mais do que espectador?
Alma ria, cego, bêbado, não são para mim corajosos. Tem coração
aquele que conhece o medo, mas tem sobretudo controle sobre o medo;
que olha no abismo, mas com orgulho.

m 76 M
M Que olha no abismo, mas com olhos de águia – que com garras de
DANELON, Márcio. águia prende o abismo: isto constitui o corajoso. (NIETZSCHE, 2000a,
Solidão e doença na p. 273).
metamorfose nietschiana.
Mimesis, Bauru, Em Ecce Homo, encontramos, talvez, o depoimento mais sin-
v. 23, n. 2, p. 65-89,
gular de Nietzsche sobre sua própria filosofia. Nele, lemos a auto-
2002.
constatação de que das mãos de Nietzsche brotam a mais pura e sa-
dia filosofia, aquela que é destinada somente para os de espírito sa-
dio, pois são estes os que têm a força para provar de sua filosofia:

Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar das alturas,


um ar forte. É preciso ser feito para ele, senão há o perigo nada pequeno
de se resfriar. O gelo está próximo, a solidão é monstruosa – mas quão
tranqüilas banham-se as coisas na luz! Com que liberdade se respira!
Quantas coisas sente-se abaixo de si! – filosofia, tal como até agora a en-
tendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes – a busca de tudo o
que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até agora
baniu. (NIETZSCHE, 2000, p. 18).

Sublinho, nesta citação, um “sarcasmo” bem ao estilo nietzs-


chiano, pois, se ele foi fisicamente doente, a sua filosofia, bem ao
contrário, é para os fortes, aqueles que podem respirar o ar das al-
turas, e aqueles que forem fortes, não de espírito para suportar a sua
filosofia, mas de corpo, podem pegar um resfriado, ou seja, podem
ficar fisicamente doentes. Por outro lado, esta filosofia que brota de
um espírito ímpar e saudável, é uma filosofia que resgata aquilo que
a moral sempre baniu, isto é, o questionável, o estranho.
No texto Ditirambos de Dionísio, encontramos a mesma pers-
pectiva de uma filosofia do espiritualmente sadio, uma vez que o
Zaratustra representa e encarna o tipo de homem superior que
Nietzsche anuncia pela boca do próprio Zaratustra:

Tu (Zaratustra) alimentaste-nos com fortes manjares viris e com vigo-


rosas máximas: não permitas que à sobremesa nos ataquem de novo com
os moles espíritos mulheris!
Só tu tornas macio e claro o ar que te rodeia! Alguma vez encontrei na
Terra ar tão bom como o da tua gruta?
Muitas terras já vi, o meu nariz já aprendeu a provar e comparar ares
diversos: mas é junto a ti que as minhas narinas sentem o mais inebriante
prazer! (NIETZSCHE, 1993, p. 29).

No sentido mais profundo do termo, doença significa, na óti-


ca nietzschiana, estar sofrendo do espírito, da moral e não do corpo.
O doente é aquele que está moralmente debilitado, ou seja, é o in-
divíduo decadente, ressentido, impregnado pela ilusão da ciência e
da religião. Se Nietzsche foi um doente, isto é correto somente se

m 77 M
nos referirmos ao seu estado de saúde física. Não obstante isso, o m
seu espírito se encontrava liberto de toda essa moral decadente, DANELON, Márcio.
Solidão e doença na
como ele próprio conceituava. A doença física nada mais era que
metamorfose nietschiana.
um estímulo para a permanência de seu estado de espírito totalmen- Mimesis, Bauru,
te isento dessa moral decadente. v. 23, n. 2, p. 65-89,
2002.
Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para
isso: – qualquer fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio. Um ser tipica-
mente mórbido não pode ficar sadio, menos ainda curar-se a si mesmo;
para alguém tipicamente sadio, ao contrário, o estar enfermo pode ser até
um energético estimulante ao viver, ao mais-viver. De fato, assim me apa-
rece agora aquele longo tempo de doença: descobri a vida e a mim mes-
mo como que de novo, saboreei todas as boas e mesmo pequenas coisas,
como outros não as teriam sabido saborear – fiz da minha vontade de saú-
de, de vida, a minha filosofia. Pois atente-se para isso: foi durante os anos
de minha menor vitalidade que deixei de ser um pessimista: o instinto de
auto-restabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desâni-
mo… (NIETZSCHE, 2000, p. 25).

Para Nietzsche, o meramente livre, independente; o homem de


espírito independente, o além-homem, este é o ser que é pautado a
possibilidade de descer os olhos nos instintos de decadência, na mo-
ral dos escravos. Somente ao sadio moralmente é possível vir a co-
nhecer o moralmente debilitado. Para isso, é necessário ser temerário:

Alguém quer descer os olhos ao segredo de como se fabricam ideais


na terra? Quem tem a coragem para isso?... Muito bem! Aqui se abre a vis-
ta a essa negra oficina. Espere ainda um instante, senhor Curioso e Teme-
rário… (NIETZSCHE, 1988, p. 45).

Nietzsche é o filósofo sadio que conheceu essa moral deca-


dente e, posteriormente, os valores sadios. É em virtude disso que
foi possível a transvalorização de todos os valores. Numa carta a
Malwida, de 1880, afirmou:

A minha vida, nestes últimos anos, pode comparar-se, quanto a tortu-


ras e privações, como de qualquer asceta de qualquer época. Apesar disso,
consegui neste tempo suavizar e purificar de tal forma a minha alma que
já não necessito, para isso, nem de religião nem da arte. Com efeito, o
completo abandono levou-me a descobrir em mim próprio as fontes que
haviam de prestar-me ajuda. (NIETZSCHE, [19--], p. 179).

Foi com seu constante estado de debilidade física que Nie-


tzsche conseguiu libertar-se dessa moral decadente; foi da doença
física que pode escrever sobre a moral aristocrática, sobre o além-
homem. Nietzsche transmutou seus valores com o auxílio de suas
debilidades físicas.

m 78 M
M A doença física e seus intermináveis sofrimentos arrebataram
DANELON, Márcio. Nietzsche a buscar novos conhecimentos. Ela tornou possível o sur-
Solidão e doença na
gimento de um pólo positivo: a libertação da moral decadente rece-
metamorfose nietschiana.
Mimesis, Bauru, bida em sua infância e a erupção de uma moral livre, independente;
v. 23, n. 2, p. 65-89, possibilitou o surgimento de um novo homem – o além-homem;
2002. possibilitou-lhe a transvalorização de todos os valores. Em seu tex-
to Ecce Homo, Nietzsche deixa bem explicitada essa posição, falan-
do a respeito do livro Humano, Demasiado Humano:

Naquela época decidiu-se inflexível pelo fim daquele ceder, seguir,


confundir-se com outros. Qualquer espécie de vida, as condições mais
desfavoráveis, doença, pobreza – tudo me pareceu preferível àquela indig-
na ‘falta de si’, na qual havia caído por ignorância, por juventude, e na
qual havia permanecido por letargia, pelo chamado ‘sentimento do dever’.
– Nisso me veio ajuda, de uma maneira que não posso admirar o bastante,
e precisamente no tempo certo, aquela má herança por parte de meu pai –
no fundo uma predestinação a uma morte temporã. A doença libertou-me
lentamente: poupou-me qualquer ruptura, qualquer passo violento e cho-
cante. Não pedi então nenhuma benevolência, ganhei muitas mais. A
doença deu-me igualmente o direito a uma completa inversão de meus há-
bitos; ela permitiu, ela me ordenou esquecer; ela me presenteou com a
obrigação à quietude, ao ócio, ao esperar e ser paciente… Mas isso signi-
fica pensar! (NIETZSCHE, 2000, p. 75).

Numa outra passagem de Ecce Homo, encontramos, de forma


bastante clara, o papel desempenhado pela doença na libertação do
espírito de Nietzsche, e como que esta operou de forma a construir
os elementos necessários para emergir do espírito sadio de Nie-
tzsche, uma filosofia igualmente sadia:

Sem considerar que sou um decadente, sou também o seu contrário.


Minha prova para isso é, entre outras, que instintivamente sempre escolhi
os remédios certos contra os estados ruins: enquanto o decadente em si
sempre escolhe os meios que o prejudicam. Como summa summarum eu
era sadio, como ângulo, como especialidade era decadente. Aquela ener-
gia para o absoluto isolamento e desprendimento das relações habituais, a
imposição de não mais me deixar cuidar, servir, socorrer – isso trai a in-
condicional certeza de instinto sobre o que, então, era mais do que tudo
necessário. Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condi-
ção para isso – qualquer fisiólogo admitirá- é ser no fundo um sadio. Um
ser tipicamente mórbido não pode ficar são, menos ainda curar-se a si
mesmo; para alguém tipicamente sadio ao contrário, o estar enfermo pode
ser até um enérgico estimulante ao viver, ao mais-viver. De fato, assim me
parece agora aquele longo tempo de doença: descobri a vida e a mim mes-
mo como que de novo, saboreei todas as boas e mesmo pequenas coisas,
como outros não as teriam sabido saborear – fiz a minha vontade de saú-
de, de vida, a minha filosofia... Pois atente-se para isso: foi durante os
anos de minha menor vitalidade que deixei de ser um pessimista: o instin-

m 79 M
to de auto-restabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do de- m
sânimo. (NIETZSCHE, 2000, p. 25). DANELON, Márcio.
Solidão e doença na
metamorfose nietschiana.
Mimesis, Bauru,
2- Sua solidão v. 23, n. 2, p. 65-89,
2002.
A solidão constituiu-se, na vida de Nietzsche, em um traço
marcante de sua personalidade. O seu espírito estava circunscrito
pelo cunho do isolamento, ou seja, a sua vida intelectual foi carac-
terizada pela solidão.
Podemos afirmar que a solidão em Nietzsche manifestou-se
sob dois aspectos distintos: a solidão física que experimentou desde
Pforta e a solidão espiritual, inaugurada, basicamente, com seus es-
critos: A Origem da Tragédia. Solidão corporal e espiritual desig-
nam, então, o completo estado de isolamento que viveu durante sua
existência. O ser de Nietzsche estava marcado com o ferro da soli-
dão. Nesse sentido, é correto afirmarmos que, além da doença, a so-
lidão constituiu-se num traço essencial e fundamental do ser do fi-
lósofo. Para podermos nos aventurar pelos seus pensamentos, temos
que ter como cenário sua solidão.
Desses dois traços da solidão, o isolamento espiritual foi, sem
dúvida, o mais importante e marcante em sua vida. A solidão de
pensamento e de reflexão expressos em seus livros foram os que
mais dores e sofrimentos lhe causaram. Nietzsche sofria, e expres-
sava essa solidão escrevendo, por não encontrar no mundo acadêmi-
co, ressonância para seus pensamentos.
Não obstante essas considerações, Nietzsche também viveu
mergulhado num estado de isolamento físico. Durante boa parte de
sua existência, não se misturou, de uma forma mais íntima, com ou-
tras pessoas; não manteve qualquer relacionamento duradouro, no
que tange o aspecto físico. Todos os amigos que permaneceram ao
seu lado, até o colapso cerebral que foi vítima (1889), permanece-
ram por estarem ligados pelos laços da filosofia e das idéias. Entre
eles podemos destacar: Erwin Rodhe, Overbeck, Barão de Gers-
dorff, Peter Gast, Malwida von Meysenbug.
Se a primeira separação de sua família foi, ao pequeno filóso-
fo, extremamente dolorosa – quando foi para o Instituto Privado de
Pforta em 1859, sendo um estudante interno – as outras que se su-
cederam foram por sua própria opção – Bonn, Leipzing – sem qual-
quer sinal de sofrimento. No decorrer de sua evolução intelectual,
as visitas à família se tornaram sucessivamente mais escassas, ali-
mentadas, com certeza, pela total incompatibilidade de idéias e
crenças. Parece que a solidão física sempre foi um acontecimento

m 80 M
M que procurou perpetuar em sua existência, seja ela entre seus fami-
DANELON, Márcio. liares, seus colegas de trabalho na Universidade da Basiléia ou seus
Solidão e doença na
amigos de afinidade intelectual.
metamorfose nietschiana.
Mimesis, Bauru, A solidão física a que Nietzsche esteve submetido desde sua
v. 23, n. 2, p. 65-89, juventude somente pode concretizar-se com o fatalismo de suas
2002. doenças físicas:

Porém, o ensejo de transformar seu isolamento interior tão completa-


mente quanto possível num isolamento exterior só lhe foi dado por seu so-
frimento corporal, que o afastou dos homens e que só lhe permitiu rela-
ções com grandes interrupções, mesmo com alguns de seus amigos – sem-
pre relações raras, a dois. (SALOMÉ, 1992, p. 38).

Foi com suas constantes doenças e sua debilidade física, que


a solidão física de Nietzsche vingou. Foram as inúmeras doenças as
quais o arrebataram que impediram-no de cultivar convivências
mais íntimas.
As doenças que o corpo de Nietzsche esteve submetido ajuda-
ram a perpetuar o desejo de uma vida nômade e solitária. Foi em
função de seu constante estado de debilidade física que o conduziu
a uma vida solitária. Nietzsche auto-indicou-se como meio de curar
sua dolência, o completo isolamento, a vida solitária:

Não deixa de resultar curioso que ele mesmo chegara, a este respeito,
a idéia de um meio curativo – ao qual, segundo parece, tentou justificar-
se frente Zimmermann (médico da escola Pforta) como frente a sua mãe
no ano anterior –, a saber, a renúncia a sua amada música e o recurso, em
seu lugar, da solidão e dos passeios. Desviou da música que lhe destruía
os nervos. Temos aqui o argumento com que ele anos depois justificaria
seu desvio de Wagner. Em seus anos mais frutíferos, a solidão e gosto pe-
los passeios foram, certamente, um dos fundamentos de sua existência.
(JANZ, 1987, p. 115-116. Entre parênteses é meu).

A partir dessa citação, podemos afirmar que foram suas doen-


ças físicas as fomentadoras de sua eleição por uma vida solitária. Se
a debilidade física acompanhou-o durante sua existência, e um dos
meios curativos para tal era, pensava ele, a solidão, então esta se
constituiu em algo essencial na personalidade de Nietzsche.
A convivência ininterrupta com doenças cunhou no espírito
do filósofo a marca do solitário. Em uma carta datada de 1882 e en-
dereçada a sua amiga Malwida, expressou o valor da solidão para a
sua saúde. Nela, Nietzsche repugna todo o convívio com pessoas.
Diz ele:

Se nada disso fosse possível, sempre nos ficaria Roma, ainda que a mi-
nha desconfiança acerca do seu clima, e até das grandes cidades em geral,

m 81 M
se baseie, como V. sabe, em razões difíceis de destruir. A solidão, no meio m
da mais solitária natureza, tem sido, até agora, o meu meio curativo; as DANELON, Márcio.
modernas cidades populosas, como Roma e também Zurique, que acabo Solidão e doença na
de abandonar, convertem-se inevitavelmente num ser excitável, triste, in- metamorfose nietschiana.
seguro, doente incapaz de produzir. (NIETZSCHE, [19--], p. 256-257) Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 65-89,
As pessoas, as massas constituem, então, em algo repulsivo 2002.
que o espírito de Nietzsche não se permitia à convivência. O filó-
sofo errante é um ser solitário; traz no bojo de seu ser, o cunho da
solidão. Esta é algo essencial em seu ser e fundamental para com-
preendermos tal personalidade. Salomé pôde ter contato com tal
solidão em seus encontros com Nietzsche. Diz ela: “Dificilmente
se poderia imaginar essa figura em meio a uma multidão humana;
ela trazia o cunho do isolamento e da solidão”. (SALOMÉ, 1992,
p. 35).
Quando ingressou em Pforta – 05 de outubro de 1858 – sen-
tiu, talvez, pela primeira vez a sensação de solidão. A nostalgia mar-
cou boa parte de sua estadia nesta escola, como demonstra Janz:

En principio tuvo que luchar fuertemente contra la nostalgia, aunque


casi cada domingo podía visitar a sua madre y sua hermana en Naumburg,
o bien encontrarse con ellas a medio camino en la aldea de Altenburg, lla-
mada ‘Almrich’ por los pforteanos. En los primeros tiempos escrebía
siempre, a primeras horas de la mañana, una carta a sua madre. (JANZ,
1987, p. 64).

Foi assim principalmente durante seus anos de pessoa errante


(1879-1888) quando viveu de lugarejo em lugarejo quase todo o
tempo isolado, apenas comunicando-se com seus poucos amigos
através de cartas. Talvez o fato de Nietzsche ter optado pela solidão
se explica pela sua, como ele mesmo se auto-afirma,3 ascendente
nobreza familiar, ou seja, se Nietzsche era de uma linhagem nobre,
este dado justifica a não integração dele com as pessoas “comuns”,
com as pessoas não dotadas de um intelecto nobre. Cito: 3 Conforme afirma em Ecce
Homo: “Já minha ascendência
permite-me enxergar além das
Ó! Solidão! Pátria minha! Vivi muito tempo selvagem em selvagens perspectivas puramente locais, pu-
países estranhos para não regressar a ti sem lágrimas! […] ramente nacionais; não me exige
esforço ser um ‘bom europeu’.
Ó Zaratustra! Sei tudo! e sei que tu, entre muitos, é o mais abando- Por outro lado, sou talvez mais
nado, mais solitário do que quando estiveste comigo […] alemão do que ainda podem ser os
Ó bendita solidão! Ó puros aromas! Como este silêncio aspira o ar alemães de hoje, meros alemães
puro a plenos pulmões! Como este bendito silêncio escuta do Reich – eu, o último alemão
antipolítico. E no entanto, meus
Em troca, além tudo fala e nada se ouve. Embora uma pessoa anuncie antepassados eram nobres polone-
o seu sabor a toques de campainha, os merceeiros abafarão o som na pra- ses: deles tenho muito instintos de
ça pública com o ruído das suas moedas. raça no corpo, quem sabe até
mesmo ainda, o liberum veto.”
Entre eles tudo fala: já ninguém sabe compreender. Tudo caí a água;
(NIETZSCHE, 2000, p. 26).
nada cai me fontes profundas.
Entre eles tudo fala; já nada se consegue concluir.

m 82 M
M Tudo cacareja; mas, quem é que quer ficar ainda no ninho a chocar ovos?
DANELON, Márcio. Entre eles tudo fala, tudo se dilui[…] (NIETZSCHE, 2000a, p.171-172).
Solidão e doença na
metamorfose nietschiana.
Nos tempos de estudante em Pforta, Nietzsche não cultivou
Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 65-89, íntimas amizades com outros estudantes, mantendo o convívio em
2002. um nível de amizade simplesmente formal. Esse fato talvez se ex-
plique pelo sentimento aristocrático que cultivava; achava-se uma
pessoa diferente das outras em função de sua linhagem, ou por pos-
suir em seus ascendentes, tanto paternos como maternos, pastores e
pessoas que cultivavam as letras.

Durante mucho tiempo Nietzsche no mantuve relaciones cálidas con


sus condiscípulos. Le ocorrió aquó como en el Instituto de Naumburg. Sus
4 É bastante presente na filosofia violentas y ruidosas diversiones no le atraían. En una excursión a Schön-
de Nietzsche o desdém para com burg, por ejemplo, subió él solo a la torre, mientras sus compañeros be-
os homens da praça pública, pois
na perspectiva do filósofo alemão, bían en la bodega, y se sentió feliz. (JANZ, 1987, p. 74).
o homem da praça pública repre-
senta o tipo mais baixo, aquele
que se atrela à mais completa ig- E, num pequeno texto que escreveu na época de estudante em
norância do que representa os Pforta, encontramos um depoimento exemplar que retrata a expe-
ideais ascéticos da religião, da
ciência, da política ou das artes. riência de solidão que Nietzsche vivenciou nesta época de sua vida:
Nesse sentido, o homem da praça
representa aquilo que Nietzsche
chama de “último homem”, termo Sin otra compañia que la mía,
cunhado como oposição ao além- que ellos se entreguen en los sótanos a sus libaciones
do-homem. É curioso notar que hasta caer en el suelo.
Nietzsche vai até a praça pública
anunciar aos homens o além-ho- Yo pratico mi oficio de señor. (NIETZSCHE, apud JANZ, 1987, p. 74).
mem. Como estes não compreen-
deram o sentido da mensagem de
Zaratustra, este começou a falar A solidão foi, para Nietzsche, uma necessidade vital à sua
do último-homem, ou seja, come- existência, pois, segundo ele, é o convívio com os “mercadores da
çou a falar deles próprios, ou seja,
dos próprios freqüentadores da praça” motivo para o acirramento de seu desfalecimento. Diz ele em
praça. Além da praça ser o espaço Ecce Homo:
do último-homem, não é, também,
o lugar apropriado para,na pers-
pectiva da filosofia nietzschiana, Isso me torna o comércio com os homens uma prova de paciência nada
derrubar ídolos, sendo, portanto,
pequena; minha humanidade não consiste em sentir com o homem como
um lugar estéril para se anunciar o
além-homem, conforme encontra- ele é, mas em suportar que o sinta… Minha humanidade é uma contínua
mos nessa passagem de Zaratus- superação de mim esmo. – Mas tenho necessidade de solidão, quer dizer,
tra: “Chegando à cidade mais pró- recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre, leve, alegre…
xima, às margens do bosque, Za-
ratustra encontrou, próximo a pra-
(NIETZSCHE, 2000, p. 33).
ça, uma grande multidão, pois
anunciaram o espetáculo de um
equilibrista. E Zaratustra falou
Na filosofia de Nietzsche, encontramos uma crítica ao que ele
dessa forma às pessoas: Eu vos chama de mercadores, aos homens da praça pública,4 que são as pes-
ensino o além-homem. O homem
é qualquer coisa que deve ser su- soas que cultivam os ideais da ciência, da metafísica, da religião.
perado. Que coisa tivesse feito Nietzsche necessita da solidão dessas pessoas, não somente física,
você para supera-lo?” E, mais
adiante, constata o fracasso de fa- mas, também, da solidão espiritual, do distanciamento desses fracos
lar aos homens da praça: “Dito es- de espírito, como ele assim os denominou. O convívio com tais pes-
tas palavras, Zaratustra olhou no-
soas acentuaria ainda mais o seu sofrimento, pois tomaria contato

m 83 M
com os ressentidos, os resignados, os enfermos de espírito. Nie- m
tzsche necessita da solidão espiritual para poder cultivar em seu ser DANELON, Márcio.
Solidão e doença na
a transvalorização de todos os valores, cultivar a liberdade e inde-
metamorfose nietschiana.
pendência de pensamento: Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 65-89,
Não conheço outro modo de lidar com grandes tarefas senão o jogo: 2002.
isto é, como indício de grandeza, um pressuposto essencial. A menor cons-
trição, o ar sombrio, um tom duro na garganta são objeções a um homem,
mais ainda à sua obra!… Não é lícito ter nervos… Objeção é também so-
frer da solidão - sempre sofri somente da ‘multidão’… (NIETZSCHE,
2000, p. 51).

Solidão espiritual era pressuposto, para Nietzsche, do cultivo


do espírito livre e independente da moral cristã-ascética. Com res-
peito, em particular, ao fenômeno do cristianismo, encarava-o como vamente a multidão e calou-se.
‘Eis-me aqui’, disse ao seu cora-
uma das mais sublimes e perfeitas manifestações da moral decaden- ção, ‘riem; não me entendem, eu
te. O cristianismo é a perfeita expressão da moral do ressentimento, não sou a boca para estes ouvi-
dos”. (NIETZSCHE, 2000a,
sendo que o distanciamento dessa moral se constituía em pré-requi- p. 7-13). Sobre uma discussão
sito para o cultivo de uma moral livre e de afirmação positiva do ho- mais aprofundada sobre a figura
da praça na filosofia de Nietzs-
mem. Nesse sentido, Nietzsche cultivou a solidão espiritual com che, inclusive a relação desta com
respeito ao cristianismo, ou seja, sua postura de rechaçamento des- a filosofia socrático-platônica fei-
ta por Nietzsche, ver o texto O
sa moral obrigou-o a distanciar-se das pessoas que o tomam como louco: Nietzsche e a mania da ra-
um ideal de vida. Carta a Deussen, amigo de Nietzsche que, nos zão, de Christoph Türcke, publica-
do pela Editora Vozes.
tempos de Pforta, também se preparava para estudar teologia.

Comparando a tua última carta com toda a tua anterior literatura epis-
tolar, observa-se uma incrível diferença. Finalmente, desapareceu, agora
que falamos a mesma linguagem e não sentimos coisas diferentes ao pro-
nunciar as mesmas palavras, aquela separação que durante tanto tempo
existiu entre nós […] Agora abrigo, finalmente, também a teu respeito, as
melhores esperanças. Muitas névoas deixaram de cegar teus olhos. Certo
é que, como sucede comigo, te sentirás mais solitário do que nunca. É que,
para nós, se tornaram inacessíveis muitas posições deslumbrantes da vida.
Em compensação, também já não nos parecem dignas de esforço para al-
cançá-las. O nosso destino é a solidão espiritual e, às vezes, uma conver-
sa com os que estão de acordo conosco. (NIETSCHE, [19--], p. 81).

Nietzsche vivia solitário pois raramente encontrava alguém


com quem pudesse compartilhar do mesmo trabalho filosófico. A sua
solidão física nada mais era que a expressão de uma solidão espiritual
muito mais intensa, fruto da não aceitação de sua filosofia pelo mun-
do acadêmico. Das raras pessoas com quem pôde desfrutar da comu-
nhão de idéias, uma delas foi o músico alemão Richard Wagner:

Agora que falo das distrações de minha vida, preciso expressar, uma
palavra de gratidão pelo que mais profundo e cordialmente nela me entre-

m 84 M
M teve. Que foi sem dúvida o trato íntimo com Richard Wagner. Faço pouco
DANELON, Márcio. do resto de minhas relações; por preço algum estaria disposto a me desfa-
Solidão e doença na zer dos dias em Tribschen, dias de confiança, de jovialidade, de acasos su-
metamorfose nietschiana. blimes - de momentos profundos… (NIETZSCHE, 2000, p. 43).
Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 65-89, Com Wagner, Nietzsche pôde desfrutar das mesmas idéias
2002.
quanto ao cristianismo, o judaísmo, a filosofia grega e a música da
época, a tal ponto que o primeiro livro de Nietzsche O Nascimento
da Tragédia fora dedicado a música wagneriana, constituindo-se
numa propaganda de exaltação de Wagner.
Pois bem, essa breve ilha de muita comunhão de idéias durou
pouco, e numa carta de 1882,5 afirma Nietzsche estar submetido à
solidão desde o ano de 1876. Foi nesse ano que se deu o último en-
contro entre Nietzsche e Wagner, pois seus pensamentos já tinham-
se tornados, nessa época, conflitantes. O espírito de Nietzsche se di-
5 Carta a Hans Von Bülow, em rigia por caminhos diferentes, e ficou documentado com a publica-
que lemos como que uma despe- ção de Humano, Demasiado Humano, em que expressa o seu esta-
dida por parte de Nietzsche do
convívio de Wagner e sua arte: do de espírito nessa época:
“Graças a uma favorável causali-
dade, apercebi-me de que não
chegaria a esquecer-me, apesar da Os começos desse livro (Humano, demasiado humano) situam-se nas
solidão a que estou condenado semanas do primeiro festival de Bayreuth; uma profunda estranheza em
desde 1876, solidão que justifica, relação a tudo o que me cercava é um dos seus pressupostos. Quem tem
em relação a mim, toda a espécie
de esquecimentos e afastamentos
idéia das visões que já então me haviam cruzado o caminho pode imagi-
[...] Agora, volto a estar mais soli- nar o que eu sentia, ao acordar um dia em Bayreuth. Inteiramente como se
tário do que nunca e, por conse- sonhasse… Onde estava afinal? Não reconhecia nada, mal reconhecia
qüência, medito algo de novo. Wagner. Em vão folheava minhas lembranças. Tribschen – uma longínqua
Creio que a prenhez intelectual é
o único estado que, quando a vida ilha de bem-aventurança: nem sombra de semelhança. Os incomparáveis
nos cansa, volta sempre a reconci- dias de colocação da pedra angular, o pequeno e apropriado grupo que ce-
liar-nos com ela”. (NIETZSCHE, lebrou, ao qual não faltavam dedos para as coisas delicadas: nem sombra
[19--], p. 213.)
de semelhança. que havia acontecido? (NIETZSCHE, 2000, p. 73).
6 Nietzsche atribuiu a Sócrates a
responsabilidade pela decadência
do modelo de vida trágico dos
O espírito intelectual de Nietzsche era por demais fervilhante
gregos que, segundo o filósofo, para que alguém se aventurasse a navegar com ele por entre seus
era a perfeita forma de vida.
Nietzsche atribuía a Sócrates e a
conceitos e idéias. O caminho das suas idéias formava uma corre-
sua supervalorização da dialética deira indomável que espírito algum conseguira navegar. “Nem se-
e do conhecimento os fatores que
ocasionaram a derrocada da visão
quer um deles o terá seguido esse espírito solitário, quase insondá-
trágica do universo. vel, familiar e estranho ao mesmo tempo, e que delirava trazer em
7 Nietzsche argumentava que o si o monstruoso e que desabou num delírio monstruoso”. (SALO-
cristianismo era a encarnação, por MÉ, 1992, p. 31).
excelência, do modelo de moral
escrava e decadente. O cristianis- Tal era a situação de Nietzsche, um ser de uma capacidade in-
mo é a moral do ressentimento, telectual extremamente intensa, proscrito do meio acadêmico, sem
ou seja, dos homens incapazes de
formular sua própria moral livre. debatedores, sem discípulos, sem ressonância entre os filósofos. A
A imagem que ilustra essa reli- sua postura frente à figura de Sócrates6 e do cristianismo,7 foram,
gião é a do rebanho (homens) que
seguem passivamente seu pastor com certeza, as causas principais, entre outras, da situação de isola-
(padre). mento que estava submetido. Em 1883, escreve a Overbeck:

m 85 M
m
Considerando só as minhas boas horas e minutos – na verdade, raros! DANELON, Márcio.
– sou, e agora mais do que nunca, um dos mortais mais dignos de inveja. Solidão e doença na
Entre tais momentos, há muitos outros que tocam o desespero, e nesses é metamorfose nietschiana.
que mais necessito de estar certo da tua paciência. Mas, nas minhas boas Mimesis, Bauru,
horas, sei que não tenho feito em vão, durante largos anos, a mais solitá- v. 23, n. 2, p. 65-89,
ria das travessias. Sei que descobri o meu ‘novo mundo’, até agora igno- 2002.
rado por todos. Mas, resta-me ainda conquistá-lo palmo a palmo.
(NIETZSCHE, [19--], p. 232).

E a Seydlitz, em 1888:

Raramente chega até mim uma voz amistosa. Agora estou só, absurda-
mente só. Na minha inexorável luta subterrânea contra tudo o que os ho-
mens têm amado e venerado até agora (‘transmutação de todos os valores’
é a minha fórmula), eu mesmo me tenho ido convertendo, insensivelmen-
te, numa cova, em qualquer coisa escondida e difícil de encontrar, ainda
que saia expressamente em sua busca. (NIETZSCHE, [19--], p. 277)

Os textos de Nietzsche marcam, sempre, uma ruptura, uma


negação de antigos conceitos e o florescimento de novos modos de
conceituação. Foram nessas inúmeras rupturas que cultivou solidão
de seu espírito. Foi dessa forma que rechaçou com a tradição filo-
sófica de cultivo do ideal socrático de conhecimento, atribuindo a
Sócrates a responsabilidade pela decadência da filosofia. Foi assim
também com Humano Demasiado Humano em que encontramos a
definitiva ruptura com o ideal wagneriano. Esse texto marca tam-
bém a negação de qualquer cultivo de ideal. Nietzsche proclamou,
neste texto, uma guerra, um conflito que visa desvelar os ideais,
pois estes nada mais são que coisas “humanas, demasiadas huma-
nas”. No texto Aurora, coloca em suspensão as origens da moral e
do valor, definindo-o como algo que é fruto do instinto de negação
e de degeneração. O conceito de valor é, para Nietzsche, fruto dos
instintos de decadência que governa o mundo. Sobre o livro Assim
falou Zaratustra, afirma:

Excetuando esses trabalhos de dez dias, os anos durante e sobretudo


após o Zaratustra foram de um infortúnio sem igual. Paga-se caro por ser
imortal: morre-se várias vezes em vida. – Existe algo a que chamo a ran-
cune do que é grande: tudo grande, uma obra, um ato, uma vez comple-
tado volta-se várias vezes contra aquele que o fez. (NIETZSCHE, 2000,
p. 87-88).

No texto Para além de bem e mal, afirma Nietzsche ter feito


uma crítica à modernidade, à ciência moderna, às artes modernas e
a política moderna, e continua:

m 86 M
M
DANELON, Márcio. Nesse sentido o livro é uma escola do gentilhomme, entendido o con-
Solidão e doença na ceito de maneira mais espiritual e radical do que nunca. É preciso ter den-
metamorfose nietschiana. tro de si coragem para simplesmente suportá-lo, é preciso não haver
Mimesis, Bauru, aprendido a temer… Todas as coisas de que a época se orgulha são perce-
v. 23, n. 2, p. 65-89, bidas como contrárias a esse tipo, como más maneiras que, por exemplo
2002. a famosa ‘objetividade’, a ‘compaixão pelo sofredor’… (NIETZSCHE,
2000, p. 95-96).

Com suas idéias expressadas em seus textos, Nietzsche dis-


tancia-se da massa de pessoas, do grande rebanho formado pelos
ressentidos, malogrados, moralmente doentes, pois seus conceitos
eram demasiadamente revolucionários para tal plebe:

Quem não fugiria de mim, quando descobrisse os deveres que nascem


das minhas ideologias! Também V. fugiria, minha distinta amiga! Sim!
Também V.! Uns ficariam quebrantados, outros perdidos… Deixe-me V.,
pois, na minha solidão! Compreendo agora que procedi como um asno, ao
introduzir-me ‘entre os homens’. Devia saber o que me sucederia.
(NIETZSCHE, [19--], p. 235).

Nietzsche mergulha numa completa solidão espiritual pelo


fato de suas idéias retirarem o véu do “bom” e “bom” que encobre
os ideais cultivados até hoje pela humanidade: verdade, ciência, re-
ligião, cristianismo. Essas idéias são, para Nietzsche, produtos da
natureza ressentida dos homens.
É justamente esse distanciamento das pessoas, em função de
sua filosofia, que isolou-o do meio acadêmico. Seus textos nunca fo-
ram, com raríssimas exceções, comentados ou discutidos no círculo
intelectual. Em volta de seus escritos e de sua filosofia, fez-se sem-
pre o mais mortal dos silêncios: não eram estudados e nem indica-
dos. Seus livros pouco vendiam nas livrarias, e chegou a tal ponto de
ter de custear, com seus próprios recursos, a publicação de vários de
seus escritos. Na carta, de 1888, a Malwida, escreve Nietzsche:

Fez-se um grande vazio a minha volta. Não há ninguém que faça uma
idéia da minha situação. o pior dela é, sem dúvida alguma, o não ter ouvi-
do, desde a dez anos, uma só palavra digna de chegar até mim, e com-
preender isto, compreendê-lo como necessário. Dei à humanidade o seu li-
vro mais profundo (Assim falou Zaratustra). E porque preço tenho de pa-
gar tal feito! Depois dele, fiquei fora de toda a relação humana, submeti-
do a uma tensão e vulnerabilidade insuportáveis, e convertido num animal
continuamente atormentado […] Julga V. que não recebo honorários al-
guns pelos livros que escrevo; mas o que talvez não saiba é que tenho de
arcar com todas as despesas de impressão e distribuição (cerca de 4000
francos, nos últimos anos) e, além disso, estou prescrito da imprensa e das
livrarias. (NIETZSCHE, [19--], p. 286-287).

m 87 M
O constante rechaçamento de antigos ideais, o intenso fervi- m
lhamento de conceitos, a independência de espírito e pensamento, DANELON, Márcio.
Solidão e doença na
não possibilitaram ao filósofo o cultivo de um discípulo. Nietzsche
metamorfose nietschiana.
não teve ninguém em sua existência, alguém que o seguisse, alguém Mimesis, Bauru,
que compartilhasse de sua afinidade espiritual. Em sua vida, não v. 23, n. 2, p. 65-89,
houve ninguém que tivesse a capacidade de acompanhar a intensi- 2002.
dade das suas metamorfoses de pensamentos; acompanhar a fúria
destruidora de conceitos que sempre o caracterizou-o. Carta a Rod-
he: “Ai, meu amigo: que vida tão louca e silenciosa a minha! Tão
só! Tão ‘sem filhos’”. (NIETZSCHE, [19--], p. 237).

Abstract
The objective of this article is to study about the connection
between Nietzsche’s life and his work. For that, we will start from
two crucial aspects of Nietzsche’s life: the choice for the lonely life
and the illnesses that accompanied his existence and we will
establish a relation between these two aspects of Nietzsche’s life
with his philosophical work. We believe that loneliness and the
illness influenced Nietzsche’s philosophical works.

Key words: loneliness; illness; philosophy; free-spirit

Bibliografia
HALÉVY, Daniel. Nietzsche: uma biografia. Rio de Janeiro: Cam-
pus, 1989.
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche: infância y juventud. Madri:
Alianza Universidad, 1987.
NIETZSCHE, F. Crepuscolo degli idoli. Milão: Oscar Mondadori,
1995.
______. Così Parlò Zarathustra. Milão: Orcar Mondadori, 2000a.
______. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000b.
______. Ditirambos de Dionisos. Lisboa: Guimarães, 1993.
______. Genealogia da Moral. São Paulo: Brasiliense, 1988.
______. Ecce Homo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
______. Despojos de uma tragédia. Lisboa: Relógio D’Àgua,
[19--].

m 88 M
M ______. Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Co-
DANELON, Márcio. leção Os Pensadores).
Solidão e doença na
SALOMÉ, Lou Andréas. Nietzsche em suas obras. São Paulo: Bra-
metamorfose nietschiana.
Mimesis, Bauru, siliense, 1992.
v. 23, n. 2, p. 65-89, TÜRCKE, Christoph. Nietzsche e a mania da razão. Petrópolis: Vo-
2002. zes, 1993. m

m 89 M
Representação feminina na
literatura da África do Sul
Female representation in South African literature
m
Thomas Bonnici

Resumo
As políticas de império, colonialismo e apartheid influencia-
ram não apenas a África do Sul, mas também a representação da
mulher africana na literatura. Analisam-se alguns aspectos de repre-
sentações femininas em três amostras da literatura sul-africana em
inglês: Foulata e Gagool em King Solomon’s Mines (1885), de Hen-
ry Rider Haggard; a moça anônima no conto Is there nowhere else
where we can meet? (1985), de Nadine Gordimer; Melanie e Lucy
em Disgrace (1999), de J. M. Coetzee. No primeiro romance, a
investigação gira em torno da mulher africana vista por olhos impe-
riais; no segundo momento, a mulher é analisada quando o colo-
nialismo já parece distante, mas o país está imerso na política de
apartheid; finalmente, a mulher é vista no período apartheid no qual
aflora a ambigüidade feminina embora a maioria negra comece a
respirar a liberdade e se divulgue a reconciliação.

Palavras-chave: literatura sul-africana; representação feminina; obje-


tificação; sujeito; literaturas em inglês.

Introdução
Desde o seu descobrimento pelos europeus, a região que a-
brange o que atualmente é a África do Sul sofreu o processo de alte-
ridade caracterizado pelo colonialismo e, mais recente, pela políti-
ca repressiva racista do apartheid. Os dois encontros coloniais men-
cionados por Camões em Os lusíadas são os paradigmas do relacio-

m 91 M
namento entre o europeu “civilizado” e o hotentote “selvagem.” m
(BONNICI, 2000). Sucessivamente, a África do Sul experimentou a BONNICI, Thomas.
Representação feminina
colonização pelos bôeres (1650-1815) e pelos ingleses (1815-
na literatura da África
1910), enquanto a população nativa era subjugada por um duplo im- do Sul.
perialismo. A independência (1910) recrudesceu a hegemonia bran- Mimesis, Bauru,
ca, a qual demonstrou o apogeu racista na introdução e sustentação v. 23, n. 2, p. 91-101,
da política do apartheid (1948-1990). Fazendo uma releitura da rea- 2002.
lidade e analisando a mulher no contexto histórico e social acima
mencionado, a literatura apresenta o processo de objetificação, al-
teridade, questionamento, subjetificação e recuperação de voz. É
mister dizer que os textos escolhidos podem não ser os mais repre-
sentativos para tal empreendimento, mas, sendo de autores con-
ceituados, darão o simulacrum da mulher levado ao mundo ociden-
tal e constitui, portanto, o worlding (ASHCROFT et al., 1998) da
mulher sul-africana.

Colonialismo e feminismo
Há uma estreita relação entre os estudos pós-coloniais e o fe-
minismo. Em primeiro lugar, há uma analogia entre patriarcalis-
mo/feminismo e metrópole/colônia ou colonizador/colonizado.
“Uma mulher da colônia é uma metáfora da mulher como colônia.”
(DU PLESSIS, 1985). Em segundo lugar, se o homem foi coloniza-
do, a mulher, nas sociedades pós-coloniais, foi duplamente coloni-
zada. Os romances de Jean Rhys, Doris Lessing, Toni Morrison e
Margaret Atwood testemunham esta dialética. Portanto, o objetivo
dos discursos póscoloniais e do feminismo é a integração da mu-
lher marginalizada à sociedade. De modo semelhante ao que acon-
teceu nas reflexões do discurso pós-colonial, no primeiro período
do discurso feminista, a preocupação consistia na substituição das
estruturas de dominação. Esta posição simplista evoluiu para um
questionamento sobre as formas e modos literários e o desmascara-
mento dos fundamentos masculinos do cânone. Nestes debates, o
feminismo trouxe à luz muitas questões que o pós-colonialismo
havia deixado obscuras; outrossim, o pós-colonialismo ajudou o
feminismo a precaver-se de certos pressupostos ocidentais enraiza-
dos no discurso feminista. O nigeriano Ngugi diz que “nenhuma li-
bertação cultural [ocorre] sem a libertação feminina.” (apud
PETERSEN, 1995).

m 92 M
BONNICI, Thomas.
M Sujeito/Objeto
Representação feminina
na literatura da África A opressão, o silêncio e a repressão das sociedades pós-colo-
do Sul. niais decorrem de uma ideologia do sujeito. Sartre discursa sobre a
Mimesis, Bauru, construção da pessoa como Sujeito em relação ao Outro e, portan-
v. 23, n. 2, p. 91-101, to, enfatiza a característica da reciprocidade. (SARTRE, 1997). Esta
2002.
reciprocidade permite as relações mútuas entre a pessoa e o outro.
Ambos podem voluntariamente ter a função de objeto para o Outro.
Nas sociedades pós-coloniais, porém, o sujeito e o objeto pertencem
inexoravelmente a uma hierarquia em que o oprimido é fixado pela
superioridade moral do dominador. É a dialética do Sujeito e do
Outro, do dominador e do subalterno. A língua cortada do perso-
nagem Friday no romance Foe (1986), de J. M. Coetzee, é o símbo-
lo do colonizado mudo por ato voluntário do colonizador.
Os críticos tentam expor os processos que transformam o co-
lonizado numa pessoa muda e as estratégias que ele utiliza para sair
desta posição. Spivak discursa sobre a mudez do sujeito colonial e,
conseqüentemente, da mulher subalterna. “O sujeito subalterno não
tem nenhum espaço a partir do qual ele possa falar”, sentencia
Spivak (1995). Bhabha (1984) relata que o subalterno pode falar e
a voz do nativo pode ser recuperada através da paródia, da mímica
e de tática chamada “sly civility” (cortesia simulada) que ameaçam
a autoridade colonial.
Há três teorias sobre a transformação do colonizado-objeto em
sujeito dono de sua história e da sua capacidade de reescrever sua
história. JanMohammed (1988) afirma que o autor da literatura pós-
colonial deve dedicar-se à produção de estereótipos negativos do co-
lonizador e de imagens autênticas do colonizado. Bhabha (1983) re-
cusa a polaridade colonizador-colonizado e reconhece que a alteri-
dade é “a sombra amarrada” do sujeito porque ambos se
construíram. Este hiato entre o sujeito e o objeto, o território da in-
certeza, é aproveitado pelo autor pós-colonial para reconstruir seus
personagens pós-coloniais. O hibridismo pós-colonial com sua sub-
versão da autoridade e a implosão do centro imperial constrói o novo
sujeito pós-colonial. O guianense Wilson Harris (1973) fala do sujei-
to colonizado como alguém que possui muitas facetas. A procura
deste eu composto é a nova identidade pós-colonial. A chave de tudo
isso é a imaginação, o único e antigo refúgio de pessoas oprimidas
pela política de dominação e de subserviência (SOUZA, 1994).
A análise do romance King Solomon’s Mines, do conto Is
there nowhere else where we can meet?, e de Disgrace levará em
consideração esse princípios básicos da teoria pós-colonial e
mostrará não apenas a evolução que houve na literatura sul-africana

m 93 M
mas as ambigüidades oriundas da situação peculiar do país sub- m
metido ao colonialismo e ao racismo pelos europeus. BONNICI, Thomas.
Representação feminina
na literatura da África
do Sul.
A subjetificação de Gagool Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 91-101,
2002.
O romance King Solomon’s Mines, publicado em 1885, do
inglês Henry Rider Haggard (1856-1925), foi escrito a partir da
fascinação do autor pela vida selvagem, sociedades tribais e o pas-
sado da África do Sul. Impressionado pelas ruínas encontradas em
Zimbabwe e as minas de diamante em Kimberley, perto do estado
de Orange, em 1871, o autor se entrega a um gótico imperialista,
inscrevendo nesse romance as contradições do império. A represen-
tação feminina se dá pela moça kukuana Foulata e a bruxa Gagool.
A primeira é descrita como a mais bela entre as dançarinas que se
apresentaram diante do rei Twala e dos três viajantes europeus. De
acordo com os costumes kukuanas e também por ela se destacar em
beleza, Twala decretou que Foulata tinha de morrer. Contrariando as
ordens de Twala, o capitão Good a salva da morte e ela se torna a
serva fiel do europeu, atendendo-o na doença e acompanhando-o na
mina do tesouro. Foulata é morta quando, tentando impedir Gagool
a escapar da câmara do tesouro na montanha, é apunhalada pela
bruxa. Por outro lado, Gagool é descrita como uma anciã esqueléti-
ca. De corpo enrugado, ela é comparada a uma múmia, a cabeça
parece a de um abutre, a testa a uma cobra, os dedos às garras de
uma ave de rapina. Dominando completamente o rei Twala e toda a
tribo dos kikuanas, a bruxa, com sua voz profética, mostra cruel-
dade, ironia e traição. Após a morte de Twala e a restauração de
Ignosi como rei legítimo, ela traiçoeiramente acompanha os
europeus à montanha do tesouro. Em sua tentativa de matar os
europeus na câmara do tesouro, Gagool é atingida pela porta de
pedra (que só ela sabe acionar) e morre esmagada. Evidentemente o
narrador imperial branco de King Solomon’s Mines exalta o papel de
Foulata e execra as ações da bruxa Gagool.
Os encontros coloniais sempre acontecem através da hierar-
quização, na qual o europeu se constitui o Outro através da alteri-
dade imposta ao nativo, o qual é fabricado como outro. Spivak
(1995) diz que a alteridade se dá através da degradação do indíge-
na e do radical distanciamento entre representantes da metrópole e
os nativos. Nesse caso Foulata, abrigada pelo Captain Good contra
a ira do rei Twala, é a metonímia do nativo africano. Construído
pelo reconhecimento da superioridade do poder de suas armas e do
conhecimento astronômico do europeu, o nativo hotentote aban-

m 94 M
M dona sua postura de sujeito e se transforma em servo obediente.
BONNICI, Thomas. Como o caráter Khiva no início da aventura, Foulata abdica a sua
Representação feminina
subjetividade e se submete ao serviço (disfarçada como empregada,
na literatura da África
do Sul. enfermeira, cozinheira, companheira) dos europeus. Esta objetifi-
Mimesis, Bauru, cação é tão profunda e degradante que, como recompensa, o nativo
v. 23, n. 2, p. 91-101, um ser “anestesiado”. “Estou feliz em morrer porque sei que ele
2002. não pode onerar a sua vida com uma pessoa tal como sou; porque
o sol não pode se casar com a escuridão, nem o branco com o
preto.” (HAGGARD, 1968, p. 254).
Em muitos casos a submissão e o distanciamento produzem o
comprador (ASHCROFT, 1998), ou seja, o nativo se constitui um
intermediário nas transações comerciais entre a metrópole e a colô-
nia. É óbvio que o intermediário conquista uma posição privilegia-
da e assegura grande interesse na manutenção da ocupação colonial.
Provavelmente na reação à ocupação colonial e à figura do com-
prador que se situa a bruxa Gagool. Além da identificação de
Gagool com animais e feiura, o narrador imperial a caracteriza
como uma mulher má, sanguinária, traiçoeira, irônica, ou seja, a
personificação da maldade. A despeito do aviltamento e da degra-
dação de Gagool pelo narrador europeu, o texto logo mostra que a
bruxa percebeu a finalidade exploradora e colonial dos europeus.

O que procuram, homens brancos oriundos das estrelas? Ah! Sim!


Oriundos das estrelas! Procuram alguém perdido? Não o encontrarão nes-
se lugar. Ele não está aqui. Nenhum pé de homem branco tem pisado esta
terra por centenas e centenas de anos. A não ser uma vez. Mas deixou essa
terra para morrer. Viestes à procura de pedras brilhantes. Sei, eu sei... E tu,
tu da pele negra e porte altivo [Umbopa], quem és tu? O que procuras tu?
Com certeza, não procuras as pedras que brilham… Acho que farejo o
sangue de suas veias. (HAGGARD, 1968, p. 138).

Gagool é a metonímia da sabedoria centenária da tradição


kikuana e africana e representa a guarda das “riquezas” contra a vio-
lação pelo homem branco. O único que tenta explorar as riquezas
africanas e propagá-las ao mundo foi José da Silvestra, o aven-
tureiro português morto nas montanhas em 1590 sem conseguir ne-
nhum sucesso em levar os diamantes à Europa. Contudo, Gagool
logo percebe que os europeus da época vitoriana são mais expertos,
já que utilizam os próprios nativos para obterem seus fins. A aliança
com Umbopa (ou Ignosi), o legítimo rei ainda disfarçado, e com o
general Infadoos, é a garantia da derrubada de Twala, da mordaça
de Gagool e do caminho aberto ao tesouro de diamantes para ser
roubado e transferido à metrópole colonizadora. O diálogo entre
Umbopa e os europeus sobre o acordo é revelador.

m 95 M
‘E vós, homens brancos, ajudar-me-eis? O que tenho eu para vos ofer- m
ecer! As pedras brancas! Se eu for vencedor e as encontrareis, tereis tanto BONNICI, Thomas.
quanto podereis levar. Ficareis satisfeitos?’…Respondeu Sir Henry, ‘Diga- Representação feminina
lhe que ele tem uma idéia errada do cavalheiro inglês. Embora a riqueza na literatura da África
seja atraente, nenhum inglês se vende pela riqueza. Da minha parte posso do Sul.
dizer que sempre gostei de Umbopa e, enquanto tiver forças, ficarei a seu Mimesis, Bauru,
lado nessa difícil tarefa’ (HAGGARD, 1968, p. 143). v. 23, n. 2, p. 91-101,
2002.
A aliança entre os nativos amigos e os europeus tem por fina-
lidade a entrega do tesouro e a espoliação da riqueza africana. A
objetificação de Gagool como pessoa sanguinária e cruel pode ter
sido uma estratégia do narrador branco para colocá-la na alteridade
diante de sua resistência de se render à alteridade. Essa estratégia
pode ser provada diante da inflexibilidade dessa personagem refe-
rente aos costumes de seu povo e da aceitação incondicional de Um-
bopa e seus seguidores a costumes europeus ou a leis que favorecem
os europeus. Portanto, uma releitura de Gagool a restaura na posi-
ção de defensora das riquezas africanas. A sua traição e morte po-
dem ser relidas como sua estratégia para frustrar os europeus em
sua ganância para dominar o continente e espoliá-lo de seu tesouro.

Apartheid, culpabilidade, utopia


Embora a África do Sul tenha se tornado independente do
Reino Unido em 1910, os resquícios coloniais foram mantidos não
apenas pelo sistema do Commonwealth, mas, de modo especial,
pela estratificação hierarquizante do racismo. Na África do Sul, os
12% da população de origem européia (holandeses, ingleses,
franceses e alemães) dominavam os 80% de grupos étnicos autóc-
tones e indianos. Logo depois da independência, os brancos consoli-
daram seu poder sobre a população não-branca até a oficialização
do apartheid em 1948. A partir de Alan Paton e Nadine Gordimer,
muitos autores sul-africanos anti-apartheid insistem na ilegalidade
do racismo, do apartheid e do despotismo no país, condenam a pre-
sunção da voz branca de representar a história dos negros e clamam
pela liberdade dos não-europeus. Os romances e contos de Nadine
Gordimer foram por esse motivo proibidos pelas autoridades sul-
africanas.
O conto Is there nowhere else where we can meet?, publicado
em 1953, narra o encontro fortuito de uma moça branca e um rapaz
negro num bosque. O ambiente bucólico torna-se um terreno agôni-
co no qual os dois personagens lutam. Apavorada, ela deixa cair o
pacote e a bolsa, que foram imediatamente pegos pelo negro. A

m 96 M
M moça correu até encontrar a estrada, decidida de bater na porta da
BONNICI, Thomas. primeira casa e pedir socorro. Quando estava prestes a abrir o por-
Representação feminina
tão da casa, refletiu e foi embora, sem denunciar o ocorrido. O en-
na literatura da África
do Sul. contro entre negro e branco, inscrito pela estratificação racial, sem-
Mimesis, Bauru, pre foi de conseqüências trágicas para o primeiro. Se o conto é lido
v. 23, n. 2, p. 91-101, como um fato histórico sobre a época do apartheid, seria denomi-
2002. nado um equívoco, já que a hierarquização, a degradação e a
punição do nativo seriam certas. Se o conto é interpretado como
metaficção, ou seja, como o encontro entre o europeu colonizador
(representado pela moça) e o negro colonizado (representado pelo
rapaz), começa a fazer parte a utopia preconizada pelos escritores
sul-africanos. O tema do conto gira em torno da maneira como o
colonizador, quebrando a cadeia de violência e não denunciando o
negro, contribui para o fim da segregação racial e para a subjetifi-
cação do nativo.
A descrição “em marcha lenta” do negro representa e enfati-
za a situação subalterna em que a colonização centenária e o apar-
theid deixaram o nativo sul-africano. As roupas rasgadas, os olhos
vermelhos, a ferida no rosto, a fome, a comparação com animais e,
mais premente, a desconfiança pelo branco, testemunham a alteri-
dade. Contudo, naquele momento, diante dos olhos da descendente
dos colonizadores brancos, parece ter acontecido a recapitulação
instantânea da violência contra os negros. “A dor da culpa a parou
diante dos olhos vermelhos cansados [do negro]” (GORDIMER,
1985, p. 3). A mulher sentiu-se culpada pela objetificação do nati-
vo. Revelando a utopia da igualdade e da subjetificação, ela afas-
tou-se do paternalismo e do colonialismo e questionou a validade da
violência deste sistema mundial. Portanto, ela representa o paradig-
ma da mulher (e do europeu) que recupera sua identidade, ou seja,
preconiza a comunicação entre europeus e não-europeus não na
base da violência mas na reconciliação e na igualdade. Isentando o
negro de qualquer culpabilidade em sua subalternância e assumin-
do a culpabilidade pela violência perpetuada contra ele, a mulher
apresenta a utopia multirracial com relacionamentos interpessoais
não-violentos e cooperação política.

A mulher e a descolonização da mente


Caracteriza-se a década de 90 na África do Sul pelo desman-
telamento da política de apartheid e pela abrangência da reconcilia-
ção, compreensivelmente lenta, iniciada pela Comissão de Recon-
ciliação e Verdade. É nesse contexto que se deve analisar o romance

m 97 M
Disgrace (1999), de J. M. Coetzee, embora o texto, como toda a m
escrita ficcional do autor, mostre uma grande resistência a uma BONNICI, Thomas.
Representação feminina
interpretação realista e penda mais à leitura metaficcional.
na literatura da África
O professor branco sul-africano David Lurie, de 52 anos, do Sul.
divorciado pela segunda vez, seduz sua aluna Melanie. Embora não Mimesis, Bauru,
seja um caso de violação sexual, ela apresenta uma queixa crime v. 23, n. 2, p. 91-101,
perante o colegiado universitário. Seus colegas professores pratica- 2002.
mente o obrigam requerer uma aposentadoria precoce. Tentando
adquirir um pouco de paz, David se refugia no sítio de Lucy, sua
filha lésbica, no interior do país. Apoiados por um negro vizinho
que está prestes a recuperar sua terra, três jovens atam fogo em
David e violentam Lucy sexualmente. Os dois sobrevivem. Lucy,
porém, recusa pôr uma queixa na delegacia e integra-se à família
estendida de Petrus, que anexou o sítio de Lucy à sua propriedade.
Inconformado, David trabalha numa clínica veterinária com Bev
Shaw, tratando cães doentes e praticando eutanásia em outros.
Embora tenha um especial carinho a um cão vira-lata, no fim da
narrativa David o sacrifica numa demonstração de total entrega.
O romance Disgrace revela a luta e o conflito de grupos ou-
trora dominantes que tentam enfrentar um mundo em mutação e a
reviravolta política ocorridos na África do Sul. Rompe-se definiti-
vamente o mundo patriarcal. Em primeiro lugar, a situação colonial
é revelada através do relacionamento racista, silencioso e hierar-
quizante, entre homens e mulheres. O silêncio quase absoluto da
prostituta Soraya, da estudante Melanie, da ex-mulher Rosalind e da
filha lésbica Lucy relembram subliminarmente o colonialismo
explorador. Jamais se sabe o ponto de vista de Melanie, já que
David imediatamente substitui o discurso dela com suas reflexões.
Quando David quer mostrar ternura a Lucy logo após ela ter sofri-
do violência sexual, a única resposta da filha é o silêncio. Constante
na ficção de Coetzee, o mutismo evidencia o grande hiato entre o
colonizador branco e o colonizado, especialmente quando se trata
da mulher negra, duplamente colonizada (DU PLESSIS, 1985). A
objetificação da mulher reduz-se ao mutismo, especialmente quan-
do se trata das tentativas de escrever suas experiências. A reviravol-
ta política, porém, traz mudanças drásticas, especialmente na ati-
tude de autores. Após séculos de fingir falar em nome do subalter-
no, do indígena e da mulher, todos reduzidos ao silêncio, o escritor
branco descobre a impossibilidade de reproduzir a memória e a
história do nativo.
Portanto, se colocamos David como o termo da metonímia do
colonialismo, há no romance um abrangente contra-patriarcalismo
manifesto na exigência de uma reparação completa à acusação da

m 98 M
M sedução; na constante frustração sexual; nas reprimendas de sua ex-
BONNICI, Thomas. mulher que considera indefensável o seu comportamento; na afir-
Representação feminina
mação de não necessitar acompanhamento psicológico (COETZEE,
na literatura da África
do Sul. 1999). Portanto, parece que a narrativa quer mostrar de que inexiste
Mimesis, Bauru, uma resposta fácil para o homem se adaptar diante do desmorona-
v. 23, n. 2, p. 91-101, mento do colonialismo/apartheid e o patriarcalismo.
2002. Apesar da mudança, a ambigüidade na posição da mulher é
evidente. A idéia do “sangue fluindo na direção contrária”, fre-
qüente na tragédia grega, permeia o romance nas questões de pro-
priedade e sexo. Os eventos narrados se referem ao período pós-
apartheid em que há uma iniciação na mudança no exercício de
poder. No início, Lucy é proprietária de sítio e o negro Petrus, seu
vizinho, um empregado rural; agora Lucy perde a propriedade rural
e torna-se a segunda mulher de Petrus, o qual lhe dá proteção e um
“futuro”. A descendente de colonizadores e proprietários brancos de
terra se transforma numa subalterna, enquanto o subalterno negro
fica dono de terras. Essa inversão se manifesta também no âmbito
sexual. A prostituta negra Soraya encontra a voz e lhe diz, “Está me
incomodando em minha casa. Exijo que jamais telefone para mim.
Jamais!” (COETZEE, 1999, p. 10). A reação de Melanie é mais sutil
porque ela o destrui politicamente, embora o deslocamento de
David seja algo muito aquém do sofrimento do deslocamento exper-
imentado por milhares de negros durante a colonização e o
apartheid. É a vez do professor branco ser corroído pelo desloca-
mento, pela não-identidade e não-autenticidade (ASHCROFT et al.,
1991). A ambigüidade é mais profunda ainda. Durante o período
colonial/apartheid, os negros sofriam a injustiça e o aviltamento
para se manterem vivos; na era pós-apartheid Lucy se adapta a essa
situação para continuar a sua vida, ou seja, fabricar a amnésia sobre
o passado e lutar para sobreviver no futuro.

Conclusão
Os textos literários escolhidos ou são o produto de um autor
empenhado em representar e defender o império britânico e a espo-
liação colonial ou de um autor nativo branco não-representante do
colonialismo/apartheid, mas consciente de seu papel esdrúxulo de
interpretar a história e as aspirações dos negros na África do Sul. A
representação da mulher pelos “donos” da narrativa varia de acordo
com sua ideologia construtora de estereótipos. Portanto, o narrador
fabrica positivamente a mulher nativa que está ao lado do colo-
nizador. Mesmo posta na alteridade, ela se compraz na própria uti-

m 99 M
lização e na objetificação pelo colonizador. Pode ser a metonímia da m
escritora colonial a serviço da metrópole e empenhada a educar BONNICI, Thomas.
Representação feminina
todos os nativos na mentalidade européia. Por outro lado, o narrador
na literatura da África
pode pôr na alteridade a mulher que protesta. Mal o autor colonial do Sul.
percebe de que foi ele quem lhe deu a linguagem! Duplo é o resul- Mimesis, Bauru,
tado: através dessa linguagem ela denuncia e amaldiçoa o colo- v. 23, n. 2, p. 91-101,
nizador, enquanto ela mesma se subjetifica. 2002.
Ademais, o autor sul-africano, e criador de seus narradores,
tem uma tarefa cheia de ambigüidades. O narrador constrói as per-
sonagens femininas com as incertezas, problematizações e ques-
tionamentos referentes à sua postura no ambiente violento do
apartheid ou no período de transição pós-apartheid. Se, mesmo após
a recuperação da voz, a representação da mulher negra é ambígua,
o papel da mulher branca numa sociedade ainda hierarquizada pela
educação e pelas oportunidades de ascensão social, perde-se no ter-
rível dilema da busca de identidade. Resta-lhe ainda a ingente tare-
fa de propiciar a subjetificação da mulher negra para que a comu-
nicação sujeito-sujeito seja possível e construtora de uma nova
sociedade.

Abstract
Imperial, colonial and apartheid policies did not merely influ-
ence the population of South Africa but also the representation of
African women in literature. Aspects of female representations in
three texts of South African literature written in English will be ana-
lyzed, namely, Foulata and Gagool in King Solomon’s Mines (1885)
by Henry Rider Haggard; the nameless woman in Nadine
Gordimer’s short story Is there nowhere else where we can meet?
(1985), and Melanie and Lucy from Disgrace (1999) by J. M.
Coetzee. In the first instance the African woman seen by imperial
eyes will be studied; further, the female is analyzed when colonial-
ism is already somewhat outdated but the country is breathing the
racist policy of apartheid; thirdly, the female is perceived in the
post-apartheid period during which feminine ambiguity is
enhanced, even though the Negro population are currently appreci-
ating liberty and reconciliation in the new South Africa.

Key words: South African literature; female representation; objec-


tification; subject; literatures in English.

m 100 M
BONNICI, Thomas.
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Representação feminina
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SPIVAK, G. C. Can the subaltern speak? In: ASHCROFT, B. et al.
The Post-Colonial Studies Reader. London: Routledge, 1995. m

m 101 M
A dinâmica da inclusão na
gestão da escola pública
Dynamics of inclusion in public
school administration
m
Thaís Cristina Rodrigues Tezani
Resumo
Este estudo foi desenvolvido na Unidade Escolar mediante a
observação realizada no campo de estágio da disciplina “Estágio
Supervisionado de Administração Escolar II”, durante o segundo
semestre do ano de 2001, visando relacionar a dinâmica da política
educacional inclusiva e o papel da gestão escolar neste processo.
Questões referentes à concepção de inclusão, às adaptações curri-
culares de grande e pequeno porte adotadas pela escola pública para
facilitar o processo de inclusão do aluno com necessidade educa-
cional especial e à dinâmica administrativa, tornam-se relevantes,
pois o processo educacional enfatizará que os alunos façam parte da
vida escolar, considerando a valorização da diversidade em todas as
suas dimensões, proporcionado a efetivação da aprendizagem e pro-
movendo assim o sucesso escolar.

Palavras-chave: gestão escolar; inclusão educacional; adaptações


curriculares.

Compreendendo a inclusão
A Declaração de Salamanca sobre princípios, políticas e práti-
cas em educação especial (1994) fomentou a discussão sobre a
inclusão de alunos com necessidades especiais no ensino regular
entre a comunidade científica, espalhando-se para sociedade civil
internacional e nacional. A política de educação inclusiva consoli-

m 103 M
dou-se no Brasil, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação m
Nacional (L. D. B.), nº 9394 de 1996, no artigo 58, o qual estabelece TEZANI, Thaís Cristina R.
A dinâmica da inclusão
que a educação especial deve ser oferecida no ensino regular para
na gestão da escola
os alunos com necessidades educacionais especiais. Ainda no arti- pública.
go 59: visa à reorganização social para atendimento das pessoas Mimesis, Bauru,
com igualdade nas mais complexas e diversas diferenças, físicas ou v. 23, n. 2, p. 103-119,
cognitivas. 2002.
Entendemos como inclusão o atendimento educacional espe-
cializado na rede regular de ensino para alunos com necessidades
educacionais especiais, baseado nas devidas adaptações que se fa-
zem necessárias, conforme previsto na Lei. Nesta perspectiva, Ara-
nha (2001, p. 01) considera o processo inclusivo como um movi-
mento filosófico e político, que se consolidará mediante “projetos
de implementação da escola inclusiva”, apoiados pelo MEC, no
qual se devem buscar soluções apropriadas para as diferentes reali-
dades existentes no nosso país.
Para a realização da filosofia inclusiva, encontramos na práti-
ca pedagógica inúmeras barreiras que abrangem tanto os aspectos
físicos, como as estruturas dos prédios, quanto pessoais, que dizem
respeito à formação de valores e opiniões de cada um. Com isso,
Stainback e Stainback (1999, p. 22) acreditam que “nas salas de
aula integradas, todas as crianças enriquecem por terem a oportu-
nidade de aprender umas com as outras”. Nesta visão, temos que
aceitar a inclusão como um desafio importante e significativo para
a formação dos cidadãos do futuro, pois a época de segregação
social da pessoa com necessidade especial já passou, vivemos a era
da busca pela igualdade social, não havendo distinção por dife-
renças físicas ou intelectuais, respeitando os direitos de cidadania.
Sendo assim, nada mais justo que a escola abra suas portas para que
a inclusão ocorra, pois buscará atender com qualidade as exigências
sociais e legais.
Na sociedade atual, segundo a visão de Mantoan (1997), esta-
mos diante da diversidade a todo tempo e a todo o momento;1 não
podemos ignorá-la, pois tornou-se constante no cotidiano. O
número de pessoas com algum tipo de anomalia está aumentado a
cada ano, devido aos mais variados fatores. Assim as práticas de
segregação e exclusão estão se extinguindo.
A exclusão ao diferente durante a história da humanidade
resultou em graves conseqüências para as pessoas com necessidades
especiais, tanto do ponto de vista educacional, quanto social. A rejei-
1 Segundo o Plano Nacional de
ção, o preconceito e a discriminação se fortaleceram diante do dis- Educação (2001): “A Organização
tanciamento da sociedade e o seu descaso com relação ao que neces- Mundial de Saúde estima que em
torno de 10% da população têm
sita de maiores cuidados e foge aos padrões de normalidade exigidos necessidades especiais”.

m 104 M
M pelo grupo social. A rejeição e a exclusão ao diferente eram vistas
TEZANI, Thaís Cristina R. por muitos como a solução para não atrapalhar o curso natural da
A dinâmica da inclusão
espécie, pois só aquele ser perfeito é capaz de interagir socialmente.
na gestão da escola
pública. Esse pensamento era tão presente nos tempos remotos que eram rea-
Mimesis, Bauru, lizadas exposições para observar que “aquilo” não era pessoa e não
v. 23, n. 2, p. 103-119, tinha alma, pois estava fora dos padrões de semelhança de Deus.
2002. O modelo de educação para os alunos com necessidades espe-
ciais, antigamente, era o da segregação, pois eles eram excluídos do
convívio e das práticas sociais. A solução seria então a instituciona-
lização, pois as pessoas viveriam segregadas e aprenderiam a viver
em sociedade apenas com seus iguais. Um dos fatores que impul-
sionou a inclusão educacional, de acordo com Stainback e Stain-
back (1999), foi a sobrecarga das instituições e a falta de apoio para
que se realizasse um trabalho de qualidade, exigindo-se que essas
instituições criassem novas alternativas comunitárias de trabalho,
mas sem apoio para isso, o que tornava a sua prática cada vez mais
comprometida.
Com avanços científicos e estudos na área, percebemos que a
busca por valores passa a ser verificada. Assim, a inclusão ganhou
espaço na sociedade civil não somente devido à imposição legal,
mas com o objetivo de se diminuir a segregação e a marginalização,
na busca pela garantia dos direitos humanos.
Os princípios da inclusão aplicam-se não somente aos alunos
com deficiência ou sob risco, mas a todos os alunos. As questões
desafiadoras enfrentadas pelos alunos e pelos educadores nas esco-
las hoje não permitem que ninguém se isole e se concentre em uma
única necessidade ou em um grupo-alvo de alunos. Além disso, uma
abordagem fragmentada da reforma da escola não satisfaz inteira-
mente as necessidades dos alunos (SCHAFFNER; BUSWELL,
1999, p. 69).

O sentido da inclusão
A inclusão baseia-se numa proposta de defesa e luta dos direi-
tos humanos das minorias. Seus pressupostos filosóficos são de
igualdade, de direitos e práticas que os efetive. A educação aderiu
ao movimento de aceitação das pessoas com necessidades especiais
e muitos profissionais até hoje criticam essa nova perspectiva; ou-
tros defendem, o que é plenamente aceitável, pois existe uma certa
resistência ao novo. Os órgãos competentes e superiores garantiram
esse direito mediante um grande aparato legal, que trouxe um mal
estar, pois gerou inseguranças e incertezas no campo educacional.

m 105 M
Recebendo fortalecimento para a efetivação da inclusão no m
Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente, criado em 1997, que TEZANI, Thaís Cristina R.
A dinâmica da inclusão
visa garantir os direitos dos menores de idade em nosso país, men-
na gestão da escola
ciona no seu artigo 54 (p. 25) que a educação especial deve realizar pública.
um atendimento diferenciado, mas no ensino regular, fortalecendo Mimesis, Bauru,
o princípio da inclusão: “atendimento educacional especializado v. 23, n. 2, p. 103-119,
aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de 2002.
ensino”.
Visando à valorização cultural na diversidade social atual, não
apenas para a efetivação da inclusão, mas também em qualquer
instância educacional nacional, o Estatuto da Criança e do Adoles-
cente (1997, p.26) determina no seu artigo 58 que o processo educa-
cional deverá respeitar os valores de cada um dentro do seu contex-
to sócio-histórico, garantindo o acesso às mais variadas formas de
cultura. Nossa sociedade está cada vez mais diversificada e o ensino
inclusivo proporciona aos alunos aprender com as diferenças.
Essa mudança de paradigma, tanto social quanto educacional,
obrigou as escolas a aceitarem os alunos com necessidades especi-
ais, com direitos iguais a qualquer outro aluno, valorizando a igual-
dade, a aceitação ampla, a paz e a cooperação. Assim, o aluno espe-
cial passa a ser um membro regular na vida educacional e social. O
paradigma da igualdade de direitos favoreceu a implantação de uma
nova filosofia educativa e social que fortaleceu a implementação e
efetivação da inclusão. As escolas, nessa perspectiva, têm que se
adaptar e adequar suas estruturas físicas e pedagógicas às necessi-
dades dos alunos, tanto os especiais quanto os denominados nor-
mais. Assim, a inclusão só se efetivará realmente dentro do ambi-
ente escolar quando as ações administrativas se tornarem também
pedagógicas e não apenas burocráticas, seria o administrativo cola-
borando com o pedagógico.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram criados em 1997
pelo Ministério da Educação com a finalidade de melhorar a quali-
dade do ensino nacional e orientar os educadores (p. 97) à valoriza-
ção da diversidade pelas escolas e à importância da pluralidade cul-
tural nacional para a garantia de um ensino de qualidade, garantin-
do legalmente cada vez mais a inclusão educacional, na qual a
diversidade seja princípio comprometido com a eqüidade, ou seja,
com o direito de todos os alunos realizarem as aprendizagens fun-
damentais para seu desenvolvimento e socialização.
A convivência na diversidade nos ensina os limites das pes-
soas, resultando em uma vida mais humana e digna como conse-
qüência; a qualidade de vida começará quando soubermos respeitar
o outro como ele é. A utopia de um novo mundo, onde todas as pes-

m 106 M
M soas tenham as mesmas oportunidades de desenvolvimento das suas
TEZANI, Thaís Cristina R. potencialidades e individualidades, com respeito, apesar de suas di-
A dinâmica da inclusão
ferenças ou peculiaridades, é um dos princípios que norteiam o pa-
na gestão da escola
pública. radigma da inclusão.
Mimesis, Bauru, É um processo de construção que nunca terminará pois o ser
v. 23, n. 2, p. 103-119, humano sempre está em busca do novo dentro do seu contexto sócio-
2002. cultural, caminhando através do desconhecido e assim, a cada dia que
se passa, busca-se melhorar o que se fez anteriormente, e nunca ha-
verá um conceito acabado, mas em constante transformação.

As adaptações curriculares e suas


contribuições para a educação inclusiva
Considerar a diversidade flexibilizando e dinamizando os cur-
rículos e os espaços físicos para atender as necessidades educa-
cionais especiais, facilitando o acesso à informação e ao conheci-
mento, é o princípio que toda escola inclusiva deve ter para iniciar
o desenvolvimento de um trabalho voltado para a efetivação dessa
proposta.
Sabemos que o currículo e os espaços físicos das escolas do
nosso país basearam-se nos padrões de normalidade, deixando de
lado as pessoas com necessidades especiais. Os currículos não ofe-
recem as condições necessárias para que, dentro do seu contexto, o
ensino e a aprendizagem do aluno especial se efetivem.
Foi nesta visão que o Ministério da Educação criou um docu-
mento que norteia a educação especial nacional, os “Parâmetros
Curriculares Nacionais: adaptações curriculares, estratégias para a
educação de alunos com necessidades especiais”, em 1998, com a
finalidade de melhorar a educação para os alunos com necessidades
educacionais especiais, fornecendo subsídios e sugestões para os
educadores, bem como apresentam sugestões para a efetivação da
inclusão educacional, onde conceitua e define as adaptações curri-
culares de pequeno e grande porte.2 A adequação curricular se faz
necessária para subsidiar o trabalho pedagógico.
Com base na diversidade da nossa população e na necessidade
de se respeitá-la, oportunizou-se adequar a educação para que esta
ofereça caminhos para o pleno exercício da cidadania, sendo assim:

Tais circunstâncias apontam para a necessidade de uma escola trans-


formadora. Requerem a mudança de sua visão atual. A educação eficaz
2 Maiores informações sobre o tema
reporte-se ao documento ou ao site supõe um projeto pedagógico que enseje o acesso e permanência – com
www.mec.gov.br êxito – do aluno no ambiente escolar, que assuma a diversidade dos edu-

m 107 M
candos de modo a completar as suas necessidades e potencialidades m
(BRASIL, 1998, p. 19). TEZANI, Thaís Cristina R.
A dinâmica da inclusão
A proposta teórico-ideológica da educação inclusiva feita na gestão da escola
pública.
pelo MEC prevê a superação dos obstáculos impostos pelo sistema
Mimesis, Bauru,
regular de ensino, tanto nos aspectos operacionais quanto pragmáti- v. 23, n. 2, p. 103-119,
cos, pois estes só diminuirão mediante experiências consolidadas 2002.
com sucesso.
As diferenças, vistas como barreiras, devem ser encaradas
como enriquecimentos diante da diversidade escolar atual. As adap-
tações curriculares foram divididas em duas partes, mas que se rela-
cionam, são elas: de pequeno e grande porte. Cunha (2001, p. 01)
assim ressalta:

A escola inclusiva depende de adaptações de grande e pequeno porte,


sendo que as primeiras são de responsabilidade exclusiva dos órgãos fede-
rais, estaduais, municipais de educação e da administração da escola. As
mudanças pequenas, essas sim, cabem aos professores, que devem espe-
cializar-se para saber como transmitir os ensinamentos aos alunos especiais.

As adaptações curriculares de pequeno porte abrangem as ca-


tegorias organizativas, de objetivos e conteúdos avaliativos, de pro-
cedimentos pedagógicos; inserindo a gestão escolar como funda-
mental e necessária para a sua concretização. As adaptações curri-
culares de pequeno porte são também entendidas como as ações que
o professor efetua. Na questão organizativa; abrange a organização
dos alunos, do tempo, do espaço e da didática de acordo com a ne-
cessidade do grupo.
Os objetivos e os conteúdos podem ser alterados e priorizados
de acordo com as áreas ou unidades de conteúdos, tipos e objetivos,
seqüenciação, eliminação de conteúdos secundários e demais alter-
ações necessárias, envolvendo a elaboração da Proposta Pedagógica
da escola e os seus procedimentos administrativos.
A modificação de técnicas e instrumentos de avaliação se faz
presente nessa proposta e visa às adaptações técnicas e instrumen-
tos utilizados para avaliar os conteúdos estudados. As alterações
pedagógicas abrangem a modificação de procedimentos; a intro-
dução de atividades alternativas; a realização de atividades comple-
mentares; a modificação do nível de complexidade das atividades;
a eliminação de componentes; a alteração na seqüenciação das tare-
fas; o reajuste no plano de ação pedagógica; as adaptações materi-
ais; a modificação na seleção de materiais; a temporalidade e de-
mais aspectos, a autonomia da escola pode alterar quando neces-
sário, pois conhece as potencialidades dos seus alunos.

m 108 M
M As adaptações curriculares foram desenvolvidas para facilitar
TEZANI, Thaís Cristina R. a interação entre a pessoa com necessidade especial e o currículo
A dinâmica da inclusão
das escolas de ensino regular, especificamente o da escola pública,
na gestão da escola
pública. enfocando principalmente a integração entre sujeito e conhecimen-
Mimesis, Bauru, to, favorecendo o sucesso escolar.
v. 23, n. 2, p. 103-119, As adaptações de pequeno porte, relativas ao currículo da
2002. classe, são realizadas pelo professor e destinam-se à programação
de atividades na sala de aula, são os procedimentos didáticos e
pedagógicos. Os Parâmetros Curriculares Nacionais que norteiam a
educação dos alunos com necessidades educacionais especiais
(1998, p. 43) classificam: “as adaptações no nível da sala de aula
visam a tornar possível a real participação do aluno e a sua apren-
dizagem eficiente no ambiente da escola regular.”
Com isso, as adaptações curriculares de grande porte são as
ações realizadas pelo setor administrativo dentro de um contexto
maior. Tais medidas devem ser precedidas por uma criteriosa avali-
ação do processo de ensino e aprendizagem, fundamentadas numa
análise do contexto escolar e familiar que favoreça a identificação
dos elementos adaptativos necessários, promovendo a participação
da equipe docente e técnica da escola, com apoio de profissionais,
registrando todas as adaptações adotadas em forma de documento,
evitando que as programações individuais ocorram para o prejuízo
do processo de construção da escola inclusiva.
As adaptações curriculares podem ser consideradas também
como suporte, pois assim garantem o direito à convivência não seg-
regada e ao acesso aos recursos disponíveis em um âmbito geral.
Estes são auxílios que tanto as instituições, quanto os profissionais
precisam para realizar seu trabalho, seria então uma base participa-
tiva na qual o trabalho irá ser construído. De acordo com Aranha
(2001, p. 09):

Não haverá inclusão da pessoa com deficiência, onde todos possam


igualmente se manifestar nas diferentes instâncias do debate de idéias e de
tomada de decisões da sociedade, tendo disponível o suporte que for
necessário para viabilizar essa participação.

Os objetivos, os conteúdos, a metodologia, a organização di-


dática, a avaliação e a temporalidade, fazem parte da Proposta
Pedagógica da escola e é nesta proposta que algumas adaptações
curriculares devem estar inseridas.
No aspecto dos objetivos, torna-se necessária a eliminação de
objetivos básicos e a introdução de objetivos específicos, comple-
mentares e/ou alternativos e a eliminação de conteúdos básicos do
currículo. Na questão das metodologias e a organização didática do

m 109 M
professor, fica estabelecida a introdução de métodos e procedimen- m
tos complementares e/ou alternativos de ensino e aprendizagem; a TEZANI, Thaís Cristina R.
A dinâmica da inclusão
organização e a introdução de recursos específicos de acesso ao cur-
na gestão da escola
rículo. Na avaliação do trabalho dos alunos, há a introdução de pública.
critérios específicos de avaliação, a eliminação de critérios gerais de Mimesis, Bauru,
avaliação e a modificação dos critérios de promoção. v. 23, n. 2, p. 103-119,
Outro aspecto essencial é o de temporalidade, como o pro- 2002.
longamento de um ano ou mais de permanência do aluno na mesma
série ou no ciclo (retenção), bem como as alterações físicas e de
recursos materiais, visando flexibilizar o ensino para que a pessoa
com necessidade especial possa dar continuidade aos seus estudos.
Visando às adaptações curriculares necessárias para a efeti-
vação da inclusão na escola, não podemos deixar de mencionar
sobre a questão da gestão participativa, pois só assim podemos
decidir junto com o grupo escolar quais adaptações realizar.

A gestão escolar nesta dinâmica


Objetivando a efetivação da inclusão na escola, é necessário o
apoio organizacional, que engloba a equipe escolar como um todo.
Assim, a coordenação das pessoas que apóiam esse tipo de iniciati-
va na comunidade deve ser valorizada. Não estamos analisando ape-
nas o grupo formado pelos profissionais da educação, mas agências
comunitárias que podem auxiliar em vários serviços. A gestão esco-
lar e sua estrutura pode ou não facilitar o processo de inclusão, dela
vai depender a qualidade oferecida por sua proposta.
As mudanças no plano de sala de aula só se efetivarão quan-
do as mudanças organizacionais e administrativas ocorrerem. Para
isso, são necessários reuniões em equipe, abertura para o trabalho
compartilhado, planejamento flexível, acesso às mudanças, organi-
zação das atividades rotineiras e serviços oferecidos pela escola e
para a comunidade. Enfatizar a aprendizagem cooperativa e imple-
mentar novas propostas pedagógicas visando à adequação dos con-
teúdos de forma a facilitar sua assimilação é tarefa da equipe lider-
ada pelo administrador escolar, no papel de gestor de um ensino
inclusivo de qualidade. Nesta direção, Sage (1999, p. 138) aponta:

O diretor deve ser o principal revigorador do comportamento do pro-


fessor que demonstra pensamentos e ações cooperativas a serviço da
inclusão. É comum que os professores que tenham a inovação e assu-
mem riscos sejam encarados de forma negativa e com desconfiança pe-
los pares que estão aferrados aos modelos tradicionais. O diretor é de fun-
damental importância na superação dessas barreiras previsíveis e pode

m 110 M
M fazê-lo através de palavras e ações adequadas que reforçam o apoio aos
TEZANI, Thaís Cristina R. professores.
A dinâmica da inclusão
na gestão da escola O trabalho participativo é fundamental, pois o planejamento e
pública.
a implementação de estratégias devem ser estruturados no coletivo,
Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 103-119, no qual a troca de idéias, informações e experiências favoreçam a
2002. criação de um plano de ação que vise à inclusão.
A primeira medida da gestão escolar visando à inclusão é con-
struir uma comunidade escolar baseada nos propósitos do Projeto
Político Pedagógico: cooperativo e participativo. Onde há a partici-
pação na gestão escolar, alcança-se a qualidade mais facilmente.
Paro (1999, p. 57) ressalta a importância da gestão participativa, em
suas palavras:

A questão da participação da população usuária na gestão da escola


básica tem a ver, em grande medida, com as iniciativas necessária para a
superação da atual situação de precariedade do ensino público no País, em
particular o ensino fundamental. Diante da insuficiência da ação do
Estado no provimento de um ensino público em quantidade e qualidade,
propugna-se pela iniciativa desta no sentido de exigir os serviços a que
tem direito.

A criação de um ambiente escolar adequado para a apren-


dizagem resulta em ganhos tanto para os alunos como para os
profissionais que ali exercem sua função. A gestão escolar e suas
posturas são fundamentais na criação de um ambiente de socializa-
ção e interação, pois segundo Schaffner e Buswell (1999, p. 71),
deve-se reconhecer a “responsabilidade de definir os objetivos da
escola e de garantir a tomada de decisões”. Enfrentar os desafios e
apoiar os processos que se relacionem com a filosofia da escola é
uma das funções da gestão escolar.
Incluir alunos com necessidades educacionais especiais é
inter-relacionar a escola e comunidade a qual atende, respeitando
limites, benefícios e membros, visando contribuir para a construção
de uma sociedade melhor. O processo de inclusão significa, para a
escola pública, hoje, a renovação da sua estrutura, pois a escola que
tem uma gestão competente, reestrutura-se para ultrapassar limites,
estabelece bons relacionamentos e assim proporciona meios para
que a inclusão ocorra com sucesso.
Nesta perspectiva, cabe à gestão escolar descrever e delegar
tarefas, bem como supervisionar e proporcionar condições de tra-
balho para a sua equipe. Planejar, monitorar, aprimorar e garantir o
sucesso são tarefas, que facilitam a construção de uma comunidade
de ensino.

m 111 M
A gestão escolar deve ter a responsabilidade e o objetivo de m
defender a educação igualitária para todos os alunos da sua Unidade TEZANI, Thaís Cristina R.
A dinâmica da inclusão
Escolar, por isso promove o desenvolvimento de ações que priori-
na gestão da escola
zem a efetivação da inclusão. Com isso: pública.
Mimesis, Bauru,
As mudanças envolvem muitos níveis do sistema administrativo, v. 23, n. 2, p. 103-119,
incluindo a estrutura do setor central de educação, a organização de cada 2002.
escola e a didática da sala de aula. O papel do diretor é de importância
vital em cada nível, e diferentes níveis de pessoal administrativo estão
envolvidos (SAGE, 1999, p. 129).

Faz-se necessário extinguir rótulos e construir uma comu-


nidade de aprendizes, priorizando a estrutura unificada do currícu-
lo, baseada no diálogo, para a melhoria contínua do ensino escolar,
realizando parcerias com os serviços integrados na escola e facili-
tando o acesso às tecnologias e as novas conquistas no campo da
inclusão.
A formação das redes de apoio é tarefa administrativa neces-
sária para que a inclusão não acabe quando o sinal toca para a saída,
mas continue num atendimento que vise à reestruturação da auto-
estima dos alunos com necessidades especiais. Para isso, projetos
em parceria e atividades extracurriculares são opções para educar de
forma integral com profissionalismo, qualidade e respeito.
Cada barreira e cada desafio enfrentado é um crescimento
para a equipe escolar, assim estaremos promovendo a interação
entre as pessoas, e abrindo espaço para o planejamento de ação
cooperativa. Sabemos que o processo educacional é complexo e
dinâmico, está aí a necessidade do uso das competências individu-
ais para a tomada de decisão, pois estamos diante de um ambiente
diversificado onde:

… a competência situa-se além dos conhecimentos. Não se forma com a


assimilação de conhecimentos suplementares, gerais ou locais, mas sim
com construção de um conjunto de disposições e esquemas que permitem
mobilizar os conhecimentos na situação, no momento certo e com dis-
cernimento (PERRENOUD, 1999, p. 31).

A gestão escolar deve proporcionar a cooperação na sua práti-


ca, pois só assim poderá desenvolver com os alunos as devidas
adaptações. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997, p. 49)
propõem que a gestão escolar reflita ao elaborar o projeto coletivo
da escola, pois este sendo coletivo, deve ser estruturado e con-
cretizado com o grupo, de acordo com a proposta dos temas trans-
versais em que a ética, a cidadania, a diversidade social e cultural
estariam presentes, na escola:

m 112 M
M Ao elaborar seu projeto educativo, a escola discute e explicita de forma
TEZANI, Thaís Cristina R. clara os valores coletivos assumidos. Delimita suas prioridades, define os
A dinâmica da inclusão resultados desejados e incorpora a auto-avaliação ao trabalho do profes-
na gestão da escola sor. Assim, organiza-se o planejamento, reúne-se a equipe de trabalho,
pública. provoca-se o estudo e a reflexão contínuos, dando sentido às ações coti-
Mimesis, Bauru, dianas, reduzindo a improvisação e as condutas estereotipadas e rotinei-
v. 23, n. 2, p. 103-119, ras que, muitas vezes, são contraditórias com os objetivos educacionais
2002. compartilhados.

O planejamento estratégico do corpo administrativo e


pedagógico deve ter total autonomia e priorizar como meta a imple-
mentação de um modelo adequado e flexível para a construção da
escola inclusiva, realizando assim uma proposta comunitária.
A gestão escolar é responsável pelo clima da escola, com
disponibilidade para ouvir e dar voz aos alunos e comunidade, o
envolvimento nas aprendizagens e a relação com as políticas
vigentes. O Projeto Político Pedagógico é um processo:

…construído através de inúmeros caminhos e, neste sentido, não existe


uma definição suficientemente ampla que possa dar conta de toda a
riqueza que pode ser produzida coditianamente em nossas escolas quando
professores e alunos se envolvem de maneira profunda, prazerosa e cole-
tiva com as tarefas necessárias ao pleno cumprimento da função social da
escola (MEIRA, 1998, p. 61).

Sendo assim, a comunidade inclusiva contribui para valorizar


a identidade do currículo multicultural, a história individual e cole-
tiva das habilidades de cada um; trabalha para solucionar e prevenir
problemas; cria meios para viabilizar projetos; negocia com a
comunidade; adota um planejamento flexível; avalia-se constante-
mente, com implicação, transparência, cooperação, tenacidade, res-
ponsabilidade e qualidade são fundamentais para uma gestão eficaz.
Assim, Sage (1999, p. 140) conclui:

Tanto os administradores generalistas quanto os especialistas devem


dirigir seus esforços para encorajar a cultura inclusiva a crescer, em vez de
tentar forçar as estratégias da inclusão na estrutura tradicional e bastante
inóspita que caracteriza muitas escolas. As estratégias administrativas
requeridas para a inclusão são aquelas que promovem a própria pessoa tor-
nando-a receptiva às possibilidades de mudança, que dão o exemplo de
assumir riscos e que reforçam toda e qualquer tentativa de criar um ambi-
ente de ensino inclusivo para todos os alunos.

A gestão escolar deve ser um símbolo de cooperação e o prin-


cipal elemento para a reforma estrutural da educação, mas tudo isso
requer esforço, trabalho, diálogo, solidariedade, criatividade, espíri-
to crítico e paciência. Nesta perspectiva, nas palavras de Fullan

m 113 M
(2000, p. 79), não podemos negar que problemas e dificuldades são m
constantes na gestão escolar, mas isso deve ser enfrentado como um TEZANI, Thaís Cristina R.
A dinâmica da inclusão
desafio para a melhoria do ensino, pois “não existe uma fórmula
na gestão da escola
administrativa definida para lidar com problemas. O princípio que pública.
importa é a flexibilidade e o discernimento administrativo...” É Mimesis, Bauru,
importante autenticidade, partilha, colaboração, buscar novos v. 23, n. 2, p. 103-119,
espaços e caminhos para a melhoria do ensino. 2002.
O processo de inclusão educacional para a gestão escolar tem
como objetivo, segundo Mrech (2001, p. 02): “estender ao máximo
a capacidade da criança portadora de deficiência na escola e na
classe regular.” Neste pensamento, a inclusão é considerada “um
processo constante que precisa ser continuamente revisto.”
Há necessidade de derrubarmos as barreiras do individualis-
mo em nossas escolas, para efetivarmos as mudanças e as alterações
bem-sucedidas e duradouras, é necessária e se faz urgente na edu-
cação nacional, e é neste contexto que a construção da escola inclu-
siva se situa. Educar é uma busca para toda a vida.

O projeto político pedagógico


A questão referente ao Projeto Político Pedagógico da esco-
la é relevante, pois este documento norteia o trabalho a ser real-
izado, reflete os interesses e as aspirações da comunidade escolar,
baseado nas necessidades dos alunos; dinâmico e vinculado ao co-
tidiano.
As adaptações necessárias no nível do Projeto Político Peda-
gógico para a construção da escola inclusiva, referem-se aos ajustes
que, em geral resultam nas adaptações individuais. Só assim, alunos
especiais aprenderão a interagir com a realidade que os cerca, ga-
rantindo a inclusão social e educacional. Nos Parâmetros Curricula-
res Nacionais, especifica-se o objetivo geral da educação nacional:

Compreender a cidadania como participação social e política, assim


como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no
dia-a-dia, atitudes de solidariedade, de cooperação e repúdio às injustiças,
respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito (BRASIL, 1997,
p. 107).

Favorecer a participação dos alunos nas atividades escolares,


proporcionar um mobiliário específico e necessário, fornecer ou
atuar para a aquisição dos equipamentos e recursos materiais, adap-
tá-los para uso comum em sala de aula (SASSAKI, 1999) adotar

m 114 M
M sistemas de comunicação alternativos para alunos impedidos de
TEZANI, Thaís Cristina R. comunicação oral, são adaptações que devem ser realizadas pelo
A dinâmica da inclusão
grupo escolar diante do desafio da inclusão, desafio este assumido
na gestão da escola
pública. pela gestão escolar e especificados no seu Projeto Político Pedagó-
Mimesis, Bauru, gico.
v. 23, n. 2, p. 103-119, Escolas com currículos adaptáveis, objetivos flexíveis, escol-
2002. ha múltipla de atividade, com abordagem em equipe e envolvimen-
to de algumas habilidades funcionais são norteadoras do ambiente
ideal para que a inclusão ocorra.
Planejar ajuda às equipes a identificarem o conteúdo dos pro-
gramas de educação individualizada para alunos com necessidades
especiais, o que facilita o processo inclusivo. De acordo com
Giangreco (1999, p. 269), esse planejamento é visto como “a neces-
sidade de desenvolver um plano educacional relevante que satisfaça
às necessidades individuais do aluno e faça sentido no contexto do
ensino regular.”
As adaptações curriculares, tanto de pequeno quanto de
grande porte, se estabelecidas no Projeto Político Pedagógico da
Unidade Escolar, favorecem a construção da escola inclusiva,
podendo assim auxiliar na preparação para a cidadania dos alunos
com necessidades educacionais especiais. Nesta direção, Sassaki
(2001, p. 02) completa:

Cabe, portanto, à sociedade eliminar todas as barreiras físicas, pro-


gramáticas e atitudinais para que as pessoas com necessidades especiais
possam ter acesso aos serviços, lugares, informações e bens necessários ao
seu desenvolvimento pessoal, social, educacional e profissional.

Pensar em inclusão é pensar em um mundo melhor, em uma


sociedade mais justa e igualitária, na qual os direitos humanos são
respeitados. A aceitação ao diferente e ao novo é o primeiro passo
para a consolidação desse novo paradigma, no qual exista respeito e
liberdade.
Pensar em uma gestão participativa e democrática, que seu
Projeto Político Pedagógico objetive a efetivação da inclusão, é pen-
sar na escola do futuro, é unir e relacionar administrativo com
pedagógico para a construção de um melhor amanhã na educação.

O pensamento e a ação na escola pública


Em virtude de esse estudo ter sido desenvolvido mediante a
observação no campo de estágio, é relevante relatarmos alguns as-

m 115 M
pectos referentes à relação entre a dinâmica da inclusão e o papel da m
gestão escolar neste processo. TEZANI, Thaís Cristina R.
A dinâmica da inclusão
O campo de estágio escolhido foi uma escola de Ensino
na gestão da escola
Fundamental da rede estadual do município de Bauru, situada em pública.
um bairro nobre, que atende a uma comunidade de classe média, Mimesis, Bauru,
devido à sua localização. Possui uma classe com 13 alunos com v. 23, n. 2, p. 103-119,
deficiência visual, que ainda estão separados dos demais. 2002.
A sala de aula destes alunos fica logo na entrada da escola,
separada das outras salas, dificultando a inclusão. A gestão da esco-
la apóia a inclusão, mas não a efetiva na sua prática, como foi obser-
vado, pois o apoio dado aos alunos especiais é muito pouco, já que
estão quase sempre separados dos demais. Percebemos que estes
alunos deficientes visuais ficam em contato com os demais apenas
durante o horário da entrada, do lanche e da saída. Isso não é
inclusão, é apenas uma opção para se cumprir a legislação.
Visando uma educação inclusiva, o currículo deve ser ade-
quadamente adaptado, assim alunos com deficiência são ensinados
no mesmo contexto curricular e instrucional com os demais colegas
de sala de aula. Materiais curriculares comuns podem precisar de
adaptação, mas somente até o nível necessário para satisfazer às
necessidades de aprendizagem do grupo de alunos que se está tra-
balhando. Percebemos, neste sentido, uma preocupação dos coorde-
nadores, e não da direção propriamente dita.
Analisando os documentos da Unidade Escolar observamos
que tudo estava conforme determina a legislação vigente, mas a
prática desenvolvida pela gestão estava totalmente desvinculada da
proposta apresentada no seu Projeto Político Pedagógico.
A gestão escolar tem um papel relevante na efetivação da
inclusão e o que observamos na prática do campo de estágio é que
esta visa cumprir a legislação e a política educacional vigente, igno-
rando aspectos fundamentais para que a construção da escola inclu-
siva se efetive.
Não podemos pensar em inclusão apenas dentro dos muros da
escola, pois a diversidade está no nosso cotidiano. Assim, temos que
facilitar a inclusão do aluno na vida social da escola e fora dela, são
partes importantes na educação inclusiva, pois os relacionamentos e
a interações sociais proporcionam significativas aprendizagens.
Assim como os demais alunos, aqueles com necessidades especiais
também precisam participar da vida social da escola como, por
exemplo, conduzindo visitantes pela escola, ajudando no gerencia-
mento de equipes, trabalhando na secretaria da escola; atividades
que a gestão deveria incentivar e que no campo de estágio não foi
observado.

m 116 M
M Efetivar a inclusão de alunos com necessidades educacionais
TEZANI, Thaís Cristina R. especiais na escola pública atual não é tarefa fácil; encontraremos
A dinâmica da inclusão
pelo caminho inúmeras barreiras, mas com vontade e competência
na gestão da escola
pública. alcançaremos a tão sonhada igualdade e caminharemos para um
Mimesis, Bauru, mundo melhor. Nas palavras de Mantoan (1997, p. 141):
v. 23, n. 2, p. 103-119,
2002. Acreditamos que as comunidades com diversidades sejam mais ricas,
melhores e lugares mais produtivos para viver e aprender. Acreditamos
que comunidades inclusivas tenham a capacidade de criar o futuro.
Queremos uma vida melhor para todos. Queremos a inclusão! Inclusão é
reconstruir nossos corações e nos dar as ferramentas que permitam a
sobrevivência da humanidade como uma família global.

A integração do aluno especial depende muito mais de um


aprendizado de tolerância, que norteie a vida comum com um indi-
víduo diferente da grande maioria quanto ao seu desempenho inte-
lectual ou emocional; assim, a aceitação passa a ter um significado
terapêutico que facilitará a vida em comunidade. Inclusão é receber
alguém e fazer deste alguém parte importante em tudo aquilo que
ocorre em comunidade.

Abstract
The study was developed in a school unit under in the field of
the trainee program subject “School Administration Supervised
Trainee Program II”, which was conducted in the second semester
of 2001, searching the relation between the dynamics of the inclu-
sive educational policy and the role of the school administration.
Questions relating to the conception of inclusion, the wide and
restrict proportions of curriculum adaptation adopted by public
school to facilitate the process of educational special needs child
inclusion and the administration dynamics involved in this process,
becomes relevant in the educational process by which students are
part of community and school life, considering that the perception
of diversity in all of its dimensions, pursuing the effectiveness of
learning and promoting, promotes school success.

Key words: school administration; educational inclusion; curriculum


adaptation

m 117 M
Agradecimentos m
TEZANI, Thaís Cristina R.
A dinâmica da inclusão
Professora Marisa Aparecida Pereira Santos, docente do na gestão da escola
Departamento de Educação da Universidade do Sagrado Coração. pública.
Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 103-119,
2002.
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m 119 M
A incorporação da temática
ambiental por uma escola
pública de Bauru (SP)
The incorporation of environmental theme
m
by a Bauru State school

Daisi Chapani
Ana Maria Daiben
Resumo
Durante os anos letivos de 2000 e 2001, implementamos em
uma escola pública de Bauru (SP) uma pesquisa-ação composta de
três fases: diagnóstico, intervenção e avaliação. Na fase de diagnós-
tico foram utilizados diversos instrumentos e os dados obtidos são
aqui analisados levando-se em consideração a opinião de alunos,
professores e funcionários a respeito da inserção da temática ambi-
ental na escola. Estes resultados podem colaborar na implemen-
tação de outros projetos desta natureza, pois acreditamos que situ-
ação semelhante pode ser encontrada em outras escolas.

Palavras-chave: meio ambiente; educação ambiental; atitudes;


escola pública.

1- Introdução
Durante os anos letivos de 2000 e 2001, realizamos em uma
escola pública de nível fundamental e médio de Bauru (SP) uma
pesquisa ação com o objetivo de tentar desvendar como e se esta
escola estaria contribuindo com a formação e/ou mudanças de ati-
tudes tendo em vista a sustentabilidade. A pesquisa teve três fases:

m 121 M
diagnóstico, intervenção e avaliação. Foram utilizados instrumentos m
a fim de se realizar um diagnóstico a respeito da incorporação do CHAPANI, Daisi;
DAIBEN, Ana Maria.
tema meio ambiente no currículo daquela escola. A fase de inter-
A incorporação da
venção constituiu-se de um conjunto de reuniões realizadas com um temática ambiental por
grupo de professores tendo como objetivo elaborar propostas de uma escola pública de
ação na escola. A avaliação ocorreu concomitantemente com todo o Bauru (SP).
processo. Mimesis, Bauru,
Este artigo tem como objetivo divulgar alguns dados da fase v. 23, n. 2, p. 121-140,
2002.
de diagnóstico relativos às representações de diferentes atores soci-
ais: alunos, professores e funcionários a respeito da inserção da
temática ambiental na escola. Resguardas as características locais,
acredita-se que este breve estudo possa auxiliar outros educadores
que desejam implementar um programa de educação ambiental na
escola.

2 – Metodologia
Sendo a educação objeto complexo que envolve inúmeras
questões que se inter-relacionam no cotidiano escolar, utilizou-se de
uma abordagem qualitativa para que pudessem ser explicitadas mais
claramente tais relações. Segundo Bogdar e Bikklen (1982, apud
LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 13) a pesquisa qualitativa pode ser ca-
racterizada como aquela que “envolve obtenção de dados descriti-
vos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estu-
dada, enfatiza mais o processo que o produto e se preocupa em re-
tratar a perspectiva dos participantes.”
Os principais instrumentos de coleta de dados foram ques-
tionários contendo questões abertas aplicados a docentes, funcioná-
rios e alunos desta escola. Estes constavam de questões que tinham
por objetivo verificar a importância dada ao assunto, se e como a
escola vinha desenvolvendo atividades sobre o tema meio ambiente
e se o trabalho desenvolvido pela mesma estaria sendo visto como
potencialmente modificador de atitudes de seus alunos.
De acordo com Gil (1994), os questionários são importantes
instrumentos de coleta de dados em pesquisa social e apresentam
diversas vantagens, entre elas, possibilitar que seja atingido grande
número de pessoas e a garantia do anonimato das respostas. A téc-
nica, no entanto, requer cuidados no processo de análise dos dados
considerando a natureza qualitativa do conteúdo subjetivo das res-
postas. A fim de se comparar e complementar estes dados, fez-se
uso também de outras técnicas de coleta: a observação participante
e a análise documental.

m 122 M
M Responderam ao questionário 19 professores dos níveis fun-
CHAPANI, Daisi; damental e médio de todas as disciplinas da grade escolar (aproxi-
DAIBEN, Ana Maria.
madamente 46% do total de docentes da escola). Pelos alunos de 2º
A incorporação da
temática ambiental por ciclo do ensino fundamental e dos três anos do ensino médio, foram
uma escola pública de respondidos 276 questionários, correspondente a 54% dos matricu-
Bauru (SP). lados no período matutino no ano letivo de 2000. Do total de sete
Mimesis, Bauru, funcionárias, três delas devolveram o questionário respondido.
v. 23, n. 2, p. 121-140, Os dados obtidos com estes instrumentos foram debatidos em
2002.
diferentes ocasiões pela comunidade escolar, especialmente pelo
corpo docente em reuniões pedagógicas e por um grupo de profes-
sores que participou mais efetivamente da fase de intervenção.
Entretanto, também os alunos tiveram oportunidades de discutirem
alguns tópicos deste levantamento. Tais dados foram comparados e
complementados com os obtidos através de outras técnicas como
entrevistas, observação participante e análise documental e servi-
ram para embasar discussões e ações nesta escola.

3 – Análise dos dados

3.1 – As representações de meio ambiente


Reigota (1995) considera que diferentemente dos conceitos
científicos que já estão bem definidos dentro de determinada disci-
plina, meio ambiente se constitui em uma representação social.
Citando trabalho de Serge Moscovici, o autor define representação
social como “o senso comum que se tem sobre determinado tema,
onde se incluem também os preconceitos, ideologias e as carac-
terísticas específicas das atividades cotidianas (sociais e profission-
ais) das pessoas.” (REIGOTA, 1995, p. 12). Assim, “as represen-
tações sociais equivalem a um conjunto de princípios construídos
interativamente e compartilhados por diferentes grupos que através
delas compreendem e transformam a realidade.” (REIGOTA, 1995,
p. 70).
Os alunos trazem em si representações a respeito de meio
ambiente e a escola deve colaborar para que incluam nestas não
apenas os aspectos biológicos, físicos e químicos, mas também os
históricos, sociais e culturais que caracterizam o meio ambiente.
(CAMPOS; CHAPANI, ARRUDA, 1999).
Concordando com o que já está fartamente documentado na
literatura (BRÜNGGER, 1994; CAMPOS et al, 1999; CRESPO,
1998; PELICIONI, 1998) foi encontrada nesta escola, principal-

m 123 M
mente entre os alunos uma representação naturalística do meio m
ambiente. Notamos, assim como Crespo (1998), que quanto maior CHAPANI, Daisi;
DAIBEN, Ana Maria.
o nível de escolaridade do indivíduo, maior a amplitude da noção de
A incorporação da
meio ambiente apresentado pelo mesmo. Alunos de séries mais temática ambiental por
avançadas, assim como os docentes, apresentaram uma compreen- uma escola pública de
são mais ampla tema, incluindo elementos do ambiente construídos Bauru (SP).
e citando as relações sociais. Mimesis, Bauru,
Assim, pode-se perceber que as representações de meio ambi- v. 23, n. 2, p. 121-140,
2002.
ente desta comunidade escolar apresenta um espectro bastante am-
plo que inclui as noções de: ambiente natural: “podemos1 ajudar a
preservar a natureza e o que ela representa para nós”(7f )2. “Tudo o
que nos rodeia, relacionado com a natureza e seus afins” (professor
inglês). Ambiente natural e construído: “para que as pessoas fiquem
sabendo sobre o meio ambiente onde ele estuda, mora, etc” (2m). “É
a paisagem que nos cerca. Existe a paisagem natural (rios, árvores
animais, etc) e a paisagem cultural que foi criada pelo homem (ca-
sas, túneis, rodovias etc)” (professor geografia). Ambiente agradá-
vel, bom: “Porque sem meio ambiente não há ar limpo” (6f); “porque
o meio ambiente é um lugar bem melhor que o ambiente poluído”
(7f). Lugar exclusivo da espécie humana: “para que as pessoas
conhecerem mais o que prejudica o meio ambiente, as coisas que
acabam ‘estragando’ o lugar onde vivemos” (1m). Lugar dos hu-
manos e de outras espécies: “para que o meio ambiente não seja
mais poluído para a nossa saúde e para a saúde das outras famílias e
para os animais” (6f); “de forma geral é todo espaço capaz de sus-
tentar continuamente as mais diversas comunidades existentes no
planeta”(professor de Biologia). De dependência: “a gente depen-
demos dele para nós vivermos” (5f); “porque o meio ambiente é
muito importante para a sobrevivência do ser humano” (8f). De
posse: “pois hoje é a nossa maior riqueza” (2m), “todos deveriam se
conscientizar de que temos que colaborar com o espaço que é nosso”
(1m). De algo a ser cuidado: “para que possamos aprender a pro- 1 Todas as transcrições são
tegê-lo e a preservá-lo” (7f); “o meio ambiente é bastante impor- literais, preservando-se tanto o
estilo quanto eventuais erros de
tante, por isso ele é uma das coisas que devemos cuidar, porque não ortografia e/ou gramática.
queremos um meio ambiente sujo e em mal estado” (1m). 2 Para facilitar a leitura, os anos
Esta diversidade apresentada ao se tentar estabelecer o que de escolaridade serão assim
representados: 1º ciclo do ensino
vem a ser meio ambiente, pode vir a ser muito importante para fundamental (1f-4f); 1º ano do
implementar a dimensão ambiental no currículo escolar, desde que 2º ciclo do ensino fundamental
(5f); 2º ano do 2º ciclo do ensino
tais compreensões possam ser partilhadas e negociadas, daí a im- fundamental (6f); 3º ano do 2º
portância de aulas participativas que possam permitir estas trocas. ciclo do ensino fundamental (7f);
4º ano do 2º ciclo do ensino
Se tais interações puderem acontecer na sala de aula, poderia levar fundamental (8f), 1º ano do
a ampliação entendimento de meio ambiente por todos. Quando os ensino médio (1m); 2º ano do
ensino médio (2m); 3º ano do
professores discutiram coletivamente o assunto, a concepção do ensino médio (3m).

m 124 M
M grupo foi muito mais rica que a apresentada no questionário diag-
CHAPANI, Daisi; nóstico. Transpondo esta situação para a sala de aula, pode-se supor
DAIBEN, Ana Maria.
que se os alunos também tivessem a mesma oportunidade, haveria
A incorporação da
temática ambiental por modificações com relação as suas concepções sobre o meio ambi-
uma escola pública de ente. Além disso, há necessidade de um consenso mínimo a respeito
Bauru (SP). para que a comunicação possa se dar sem muitas distorções.
Mimesis, Bauru, Um dado que também chama atenção é a forte conotação
v. 23, n. 2, p. 121-140, antropocêntrica encontrada nas representações desta comunidade
2002.
escolar. Esta conotação é evidente no plano de gestão da escola,
especialmente com relação à apresentação de um projeto intitulado
“Água” no qual se nota que o tema está exclusivamente ligado à
vida humana. Também se percebe implicações desta natureza nas
respostas apresentadas por professores, visto que mais de 66% dos
que responderam o questionário a eles aplicado relacionaram meio
ambiente exclusivamente à espécie humana. Entre os alunos, quan-
do buscaram justificar a importância que eles atribuíam ao estudo
do meio ambiente, apresentaram muitas respostas como as que
seguem “porque a gente dependemos dele para nós vivermos” (5f);
“pois falando a respeito do meio ambiente podemos entender mui-
tas coisas sobre nós mesmos, o que comemos, bebemos, de onde
surgiu muitas coisas como funcionam etc” (6f); “porque o meio
ambiente é muito importante na vida das pessoas, porque o meio
ambiente que nos dá remédio e muitas coisas mais” (8f); “para con-
scientizar os alunos que é preciso cuidar da fauna e da flora do
Brasil para que um dia nossos filhos e netos possam desfrutar desta
beleza também” (2m); “porque o cuidado com o meio ambiente é de
extrema importância para a nossa sobrevivência no planeta” (2m).
Grün (1996, p. 27) afirma que “a ética antropocêntrica está
intimamente associada ao surgimento e à consolidação daquilo que
chamamos de paradigma mecanicista”. Tanto este como outros
autores (CAPRA, 1982; BRÜNGGER, 1994; FERRY, 1994; GON-
ÇALVES, 1998; SILVA; SCHRAMM, 1997) consideram o pensa-
mento científico moderno como responsável pela dicotomia
natureza/cultura e pela consolidação de uma visão antropocêntrica
e de dominação da natureza. De acordo com Grün (1996), “a cisão
cartesiana entre natureza e cultura é a base da educação moderna e
constituí-se em um dos principais entraves para a promoção de uma
educação ambiental realmente profícua.” (p. 55). Portanto, segundo
o autor, o antropocentrismo estaria na raiz da crise ecológica e seria
impossível desenvolver a educação ambiental nestas bases.
A crítica à visão antropocêntrica do mundo é fundamental em
educação ambiental; sabe-se que o fato de nos considerarmos supe-
riores às demais espécies tornou eticamente possível a existência de

m 125 M
um sistema utilitarista e explorador. Entretanto, esta não é uma m
questão trivial. Eduardo Gudynas, Aristides Soffiati Netto, José Au- CHAPANI, Daisi;
DAIBEN, Ana Maria.
gusto Drumond e Mauro Barbosa Almeida, entre outros (UNGER,
A incorporação da
1992) debatem a questão do biocentrismo e antropocentrismo e po- temática ambiental por
dem ser encontradas muitas posições controvertidas. Nesta obra, uma escola pública de
Eduardo Gudynas discute a existência de duas grandes categorias Bauru (SP).
dentro da ética ambiental; a ética superficial e a ética profunda. No Mimesis, Bauru,
primeiro caso “há um imperativo que é sobretudo moral: devemos v. 23, n. 2, p. 121-140,
2002.
conservar a natureza para o ser humano” (p. 40), ou seja, “a ética
profunda reconhece valores intrínsecos. Todas as coisas, humanas
ou não, tem valores em si mesmas. Isso é reconhecer valor intrín-
seco. Enquanto na ética superficial o valor é essencialmente de tro-
ca, de uso, aqui se reconhecem valores intrínsecos nas coisas vivas
e não vivas.” (GUDYNAS; UNGER,1992, p. 40).
Vê-se que, enquanto na ética antropocêntrica o valor das coi-
sas é dado devido à sua relação com a espécie humana, no biocen-
trismo as coisas têm valor em si mesmo. A respeito deste valor
intrínseco, José Augusto Drumond nota que “é muito difícil em
nossa tradição judeu-cristã (…) pensar (…) se grandes parcelas da
população virão dar um valor ético ou espiritual a animais, vegetais,
minerais e elementos da paisagem.” (p. 49). E ainda Mauro Barbosa
de Almeida, referindo-se ao biocentrismo, considera que “é muito
difícil traçar limites nesta nova ética” (p. 54), fazendo referência à
sua própria ambigüidade em relação ao direito à vida de espécies
que afetam a saúde humana, assim, aponta para “a dificuldade de
nos livrarmos do antropocentrismo.” (p. 54).
Nota-se que o próprio conceito de desenvolvimento susten-
tável traz embutida uma visão utilitarista, visto que este tem sido
definido como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do
presente sem comprometer as futuras gerações de satisfazerem as
suas próprias necessidades” (BRUNDTLAND, apud GRÜN, 1996,
p. 109), obviamente as futuras gerações citadas são gerações huma-
nas, assim a lógica continua a mesma estendendo-se apenas no tem-
po a sua ocorrência.
Justamente por ser uma questão polêmica, a escola deveria
oferecer oportunidades para a sua discussão, entretanto, neste ponto
concordamos com Grün (1996), quando afirma que muito da ques-
tão ambiental nas escolas poderia ser melhor caracterizada pelas á-
reas de silêncio do currículo (BOWERS, 1991, apud GRÜN, 1996,
p. 48). Mais clara talvez fosse a posição de certas escolas do sécu-
lo XVII, a tomar como exemplo um certo John Bulwer que em 1653
escrevia, dentro do espírito da época: “Debatemos nas escolas se
seria legítimo o homem destruir (tendo condições para tanto) qual-

m 126 M
M quer tipo de criatura divina ainda que apenas espécie de sapos e ara-
CHAPANI, Daisi; nhas, porque isso seria eliminar um dos elos da cadeia divina, uma
DAIBEN, Ana Maria.
nota de sua harmonia.” (apud THOMAS, 1988, p. 329). Com re-
A incorporação da
temática ambiental por lação ao extermínio de espécies, inclusive a nossa própria, conside-
uma escola pública de ramos que, justamente pelo fato do homem atualmente dispor de
Bauru (SP). “condições para tanto”, os currículos escolares, hoje mais do que
Mimesis, Bauru, nunca, devem proporcionar discussões sobre sua validade ética.
v. 23, n. 2, p. 121-140, Mesmo considerando as dificuldades em se abandonar o antropo-
2002.
centrismo, devemos ao menos nos colocar a caminho no sentido da
construção de uma ética biocentrada.
A crescente preocupação com as questões ambientais tem le-
vado a uma reflexão mais atenta das relações entre natureza e socie-
dade, tanto no meio acadêmico, como em outras instâncias, a esco-
la não pode esquivar-se deste debate. Entretanto, da forma como
está organizada, coopera na propagação de uma visão fragmentada
e claramente insuficiente da realidade. Surgem, então, de diversas
origens, propostas de mudanças na estrutura escolar que possi-
bilitem o trabalho coletivo e a integração das diferentes disciplinas
e que tornem a escola capaz de colaborar, através de diferentes
domínios, no desvendamento das complexas interações do mundo
em que vivemos.
Uma destas propostas é a transversalidade que surge no cená-
rio educacional brasileiro com os Parâmetros Curriculares Nacio-
nais – PCNs – (BRASIL, 1997, 1998a, 1998b). Ela se fundamenta
na necessidade da conjunção de conhecimentos vários para o enten-
dimento de dado fenômeno que não seria possível de compreender
através de uma única disciplina. O tratamento dos temas transver-
sais requer um trabalho interdisciplinar. De acordo com os PCNs, a
transversalidade é a dimensão prática da interdisciplinaridade. Ou
seja, “a interdisciplinaridade refere-se a uma abordagem episte-
mológica dos objetos do conhecimento, enquanto a transversalidade
diz respeito principalmente à dimensão didática.” (BRASIL, 1998a,
p. 30).
Os PCNs justificam a inclusão dos temas transversais no cur-
rículo escolar pelo fato da educação para a cidadania exigir a dis-
cussão de questões sociais que, pela sua complexidade e dinâmica,
requerem um tratamento didático diferenciado. Os temas transver-
sais são considerados, portanto, “questões urgentes que interrogam
sobre a vida humana, sobre a realidade que está sendo construída e
que demandam transformações macrossociais e também atitudes
pessoais, exigindo, portanto, ensino e aprendizagem de conteúdos
relativos a essas duas dimensões” (BRASIL, 1998a, p. 26). Desta
maneira eles vêm colocar na ordem do dia assuntos urgentes da

m 127 M
sociedade contemporânea, numa perspectiva de trabalho que não m
dispensa as disciplinas clássicas, ao contrário, serve-se delas para CHAPANI, Daisi;
DAIBEN, Ana Maria.
poder compreendê-los. Um destes temas é o meio ambiente, devido
A incorporação da
importância que a questão vem tomando contemporaneamente. temática ambiental por
uma escola pública de
Bauru (SP).
Mimesis, Bauru,
3.2 – A importância dada ao tema v. 23, n. 2, p. 121-140,
2002.
As questões ambientais foram consideradas de grande
importância no currículo escolar pela coordenadora pedagógica da
escola, o diretor, as funcionárias e todos os docentes consultados.
Basicamente as justificativas apresentadas relacionam-se com uma
preocupação com o futuro da espécie humana. Carvalho (1989)
também encontrou entre os professores uma grande preocupação
em se considerar temas ligados à questão da preservação e/ou con-
servação do ambiente, havendo o predomínio de uma visão utili-
tarista de meio ambiente, assim como uma preocupação de adap-
tação do indivíduo ao meio.
Quanto aos alunos, dos 276 consultados, apenas cinco ale-
garam que não consideram importante que a escola desenvolva
atividades relacionadas ao tema. É possível afirmar, portanto, que
mais do que cumprir as normas educacionais ou afinar-se com o
discurso ambientalista, esta escola deve incorporar definitivamente
a questão ambiental em seu currículo por demanda de sua própria
comunidade, visto que praticamente todos os consultados conside-
ram este tema relevante. Além das respostas apresentadas nos ques-
tionários, o interesse pela questão ambiental pôde ser notado em
outras situações, como por exemplo, no entusiasmo da maioria dos
alunos e docentes na participação deste projeto de pesquisa e inter-
venção, bem como no desenvolvimento de diversas atividades sobre
o assunto.
Cinco alunos responderam que não consideram importante
que a escola desenvolva atividades sobre o meio ambiente, dois
deles justificaram assim suas respostas: “não, nada a ver, não gosto
dessas coisas não” (6f), “não, atraso de tempo” (7f). Como se notará
mais adiante, algumas das justificativas apresentadas por estes a-
lunos se assemelham às ressalvas expressas por aqueles que res-
ponderam afirmativamente a questão, especialmente com referência
a um sentido de “não pertinência” com relação ao meio ambiente,
como se nota nas respostas: “não, porque os alunos 3 com certeza só
vão fazer esta atividade no momento, mas no outro dia, os mesmos
estarão maltratando o meio ambiente, porque eles acham que isso
não vai causar sua melhora” (6f), “não, porque quanto mais a gente 3 Os grifos serão sempre nossos.

m 128 M
M faz eles vão continuar a derrubar árvores, queimar, etc” (6f), “não,
CHAPANI, Daisi; porque as pessoas não levam muito a sério esta idéia de campa-
DAIBEN, Ana Maria.
nha” (2m).
A incorporação da
temática ambiental por Daqueles que responderam considerar importante o desen-
uma escola pública de volvimento destas atividades, justificaram-se de diferentes manei-
Bauru (SP). ras em suas respostas, no entanto elas possuiam como idéia central
Mimesis, Bauru, a preocupação com a preservação, conservação, cuidado ou a me-
v. 23, n. 2, p. 121-140, lhoria do meio ambiente. Na literatura pode ser encontrada uma di-
2002.
ferenciação entre os termos conservação e preservação. Enquanto a
palavra conservação está mais ligada à questão dos recursos natu-
rais, a preservação refere-se ao ambiente por si só. (DIEGUES,
1998). Acredita-se, no entanto, que estes termos tenham sido usados
como sinônimo nas respostas dadas. Em algumas, respostas esta
preocupação aparece de forma explícita, mas pode subentendida na
maioria delas. Por exemplo: “Isso é necessário porque os alunos
precisam saber como preservar o meio ambiente e as aulas de to-
mada de consciência desta questão” (3m), “porque cada pessoa vai
saber o que deve ser feito para conservar o meio ambiente” (5f),
“vai ajudar as pessoas a ajudar a melhorar o meio ambiente” (6f),
“porque incentiva as pessoas a cuidar mais do meio ambiente” (8f).
O sentido de preservação aparece implicitamente em justi-
ficativas que assinalam a necessidade de se promover a conscienti-
zação, a valorização, o respeito e a mudança das pessoas. Exemplos:
“assim todos teriam mais respeito e mais consciência sobre o meio
ambiente”(6f); “para a gente valorizar mais o meio ambiente” (7f);
“porque o tema meio ambiente não é só a natureza, mas também
como é a convivência entre as pessoas o respeito, o lugar se é bom,
ou ruim, enfim temos que prestar bastante atenção pra poder
mudar” (2m).
Também surgem justificativas que indicam como importância
do trabalho com o tema, justamente a aprendizagem a respeito do
meio ambiente, sem no entanto especificar o objetivo desta apren-
dizagem, exemplos: “porque todos devemos saber um pouco sobre
a natureza” (5f); “pois desenvolvendo atividades sobre o meio am-
biente o aluno fica sabendo um pouco mais sobre o assunto”(6f);
“porque é importante conhecer o meio ambiente e saber da impor-
tância que ele tem” (3m). Para muitos alunos o trabalho com o tema
meio ambiente está ligado exclusivamente a algo que seja bom para
a escola, exemplos: “porque nossa escola principalmente está pre-
cisando desta atividade” (5f); “para nós aprendermos a conservar a
escola” (8f). A partir destas respostas, é possível considerar que o
conhecimento adquirido através da escola muitas vezes tem signifi-
cado restrito à própria dimensão escolar, havendo uma certa difi-

m 129 M
culdade em se extrapolar seu sentido para outros contextos. Vascon- m
celos (1996, p. 22) considera que um dos principais problemas da CHAPANI, Daisi;
DAIBEN, Ana Maria.
educação escolar com relação aos alunos é justamente a “falta de
A incorporação da
compreensão do significado da escola e das matérias para sua vida.” temática ambiental por
Notamos grande diversidade de objetivos que os estudantes uma escola pública de
atribuem ao trabalho com o tema, é possível que tal diversidade es- Bauru (SP).
teja ligada a diferentes representações de meio ambiente. Algumas Mimesis, Bauru,
respostas indicam conformismo na condição de estudante: “porque v. 23, n. 2, p. 121-140,
2002.
isso que eles querem que a gente aprenda” (5f); outras mostram que
o tema meio ambiente está relacionado à possibilidade de ativi-
dades divertidas: “porque é muito bom que tenha para onde ir, o
horto florestal ou zoológico para desenvolver algum trabalho sobre
isso” (6f), “porque podemos fazer aula ao ar livre” (2m). Também
foram citadas justificativas que se referiam à aprendizagem de uma
forma geral: “porque eu acho que vai ser muito bom, os alunos que
não gostam de estudar, vai se interessar” (6f). Outras respostas pro-
curaram mostra uma lacuna no currículo escolar: “porque na esco-
la falta atividade de meio ambiente” (6f). E outras ainda mais gené-
ricas: “se todos trabalharem o mundo vai para frente” (8f); “porque
é importante os professores trabalharem com os alunos”(8f); “por-
que hoje em dia as pessoas estão deixando de lado este tema” (2m).
Como já foi colocado anteriormente, ocorre uma visão bas-
tante utilitarista nas respostas, algumas explicitamente, exemplos:
“pois falando a respeito do meio ambiente podemos entender
muitas coisas sobre nós mesmos, o que comemos, bebemos, de
onde surgiu muitas coisas como funcionam, etc” (6f); “porque o
meio ambiente é muito importante na vida das pessoas, porque o
meio ambiente que nos dá remédio e muitas coisas mais” (8f);
“porque o cuidado com o meio ambiente é de extrema importância
para a nossa sobrevivência no planeta” (2m).
Alguns alunos justificaram importância do estudo do meio
ambiente de maneira tautológica, sem que apresentassem uma jus-
tificativa para o mesmo. Exemplos: “porque precisa”(5f), “porque
eu acho importante (6f). Percebe-se que ou por dificuldade de ex-
pressão ou realmente por não saberem justificar a necessidade do
estudo do meio ambiente, muitos alunos acabam reproduzindo o
discurso a respeito de sua importância sem, no entanto, apresentar
uma opinião própria a respeito.
Muito embora idéia de preservação seja muito forte nas justi-
ficativas apresentadas, os instrumentos utilizados para a coleta de
dados não dão pistas para se compreender melhor como seria feita
esta preservação. Em alguns casos, pode-se perceber uma respon-
sabilização global pela preservação, em outras respostas nota-se que

m 130 M
M esta ficaria a cargo de outros. Este segundo caso parece indicar um
CHAPANI, Daisi; sentido de “não-pertinência”. Embora muitas respostas nos condu-
DAIBEN, Ana Maria.
zam a concluir que os alunos se vêem pertencentes ao espaço ambi-
A incorporação da
temática ambiental por ental, a responsabilização do outro nos sugere uma não pertinência
uma escola pública de histórica. Como exemplos do primeiro caso têm-se: “porque todos
Bauru (SP). desta escola tem que estar reunidos para a preservação do meio
Mimesis, Bauru, ambiente” (5f); “porque a gente pode consertar as coisas que o
v. 23, n. 2, p. 121-140,
homem faz e a gente pode ir e não jogar lixo” (6f); “porque ela nos
2002.
incentiva a cuidar melhor do meio ambiente e também da esco-
la”(2m). E do segundo caso: “porque assim conscientiza as pessoas
a não poluir o meio ambiente, ajuda ele a pensar bem antes de sujar
o meio ambiente” (8f); “porque incentiva o pessoal a cuidar mais do
meio ambiente” (6f); “para poder conscientizar algumas pessoas
para não fazerem queimadas, cortar árvores e respeitar o meio
ambiente” (1m).

3.3 – A realização de atividade sobre meio


ambiente nesta escola
Todos os professores consultados alegaram incorporar a ques-
tão ambiental à sua prática. Pode-se concluir, portanto, que nesta
escola esta temática é tratada em todos os níveis de escolaridade e
em todas as disciplinas.
Percebemos que a maioria dos docentes insere o tema através
de conteúdos específicos de sua disciplina (Ciências, Geografia,
História, Matemática, Biologia e professores do 1º ciclo do ensino
fundamental). Os professores de Português e Inglês alegaram tra-
balhar com leitura, interpretação, produção e tradução de textos
relacionados ao assunto. Foram citados ainda debate, discussão,
reflexão crítica e expressão artística como forma de abordar o tema.
Alguns professores (três, num universo de dezenove) afirmaram
tratar o assunto a partir da perspectiva de mudanças de valores, ati-
tudes e comportamentos, através do diálogo, de exemplos e de ati-
tudes concretas.
Questionados se estariam desenvolvendo atividades sobre
meio ambiente naquela escola, a maioria dos alunos (51%) respon-
deu negativamente. Dos que responderam afirmativamente, apenas
26 % conseguiram citar atividades desenvolvidas naquela escola.
Nota-se uma discrepância entre as afirmações dos alunos e
dos professores com relação à execução de atividades sobre o
meio ambiente na escola. Enquanto todos os professos alegaram

m 131 M
ter incorporado a temática ambiental em sua prática pedagógica, m
apenas aproximadamente a metade dos alunos disse ter desen- CHAPANI, Daisi;
DAIBEN, Ana Maria.
volvido atividades ou feito trabalhos relacionados ao tema.
A incorporação da
Devido esta discrepância, foram realizadas entrevistas informais temática ambiental por
em algumas clas-ses visando conhecer as razões da mesma. Um uma escola pública de
grupo de alunos informou que havia entendido a palavra atividade Bauru (SP).
como algo “mais agitado” que aquelas que estavam desenvolven- Mimesis, Bauru,
do (embora houvesse sido explicado quando da aplicação do ques- v. 23, n. 2, p. 121-140,
2002.
tionário que o termo atividade referia-se a qualquer tipo: textos,
vídeos, desenhos, trabalho em cartolina etc). A maioria dos
alunos, no entanto, disse que simplesmente havia esquecido das
atividades realizadas.
Ao se debater os resultados parciais dos questionários em uma
reunião pedagógica, um professor comentou que os alunos rela-
cionam o trabalho sobre meio ambiente com atividades extra classe.
É possível que este professor tenha razão, como de fato nota-se em
algumas respostas que alguns alunos relacionam atividade sobre
meio ambiente com aquelas realizadas ao ar livre, por exemplo
“sim, eu já fiz um trabalho sobre o meio ambiente nós saímos fora
da escola e pesquisamos a natureza” (5f); “sim, foi num mini curso
e nós aprendemos a separar o lixo e fomos ao Horto Florestal e con-
hecemos várias espécies de árvores que nunca vimos” (6f), ou um
aluno que sugeriu que a escola deveria proporcionar “nem que fosse
a cada 3 meses a oportunidade para todos participarem de algumas
recreações se referindo ao meio ambiente” (6f), também é sugesti-
vo que comumente os alunos se refiram as visitas e excursões como
passeios. É provável que os alunos lembrem-se mais facilmente de
atividades mais dinâmicas e não se dêem conta que durante uma
aula com procedimentos pedagógicos tradicionais também estão
aprendendo a respeito do meio ambiente, além disso o fato do aluno
se lembrar da atividade não significa necessariamente que tenha
incorporado os conteúdos a ela relacionados. Porém, deve-se ques-
tionar aulas que embora o professor julgue produtivas, não cause
impacto suficiente sequer para que sejam lembradas alguns meses
depois.
Aparentemente, uma das causas para a discrepância entre as
respostas apresentadas pelos professores e alunos reside no fato que
enquanto os alunos esperam que atividades sobre o meio ambiente
sejam eminentemente práticas, os professores parecem acreditar
que atividades mais teóricas devem ser enfatizadas, conforme
resposta de um aluno de uma classe de 2m: “não me lembro muito
bem, mas acho que foi quando eu estava na 8ª série. Foi uma ativi-
dade legal, porém pouco prestativa, baseou-se apenas em teorias e

m 132 M
M em relação à prática não houve nada, o que na minha opinião teria
CHAPANI, Daisi; um valor maior”, enquanto isso, quando perguntados de que manei-
DAIBEN, Ana Maria.
ra estariam incorporando a questão ambiental em sua prática peda-
A incorporação da
temática ambiental por gógica, os professores responderam que através de “textos, artigos
uma escola pública de de jornais e revistas sobre o tema (…)” (professor de Português);
Bauru (SP). “leitura e interpretação de textos, produção de textos, traduções a
Mimesis, Bauru, cerca do tema” (professor de Português e Inglês); “conteúdos em
v. 23, n. 2, p. 121-140, sala de aula” ( professor de Ciências). Talvez esteja justamente aí o
2002.
grande desafio da educação ambiental na escola, conseguir equili-
brar de forma eficiente atividades prazerosas e impactantes com a
reflexão necessária.
Deve-se considerar também que diferentes representações
sobre o meio ambiente pode ter levado a diferentes interpretações
da questão, por exemplo “mais ou menos, quando teve uma
palestra na escola e eu fui representando a sala. Foi este ano. A
palestra era sobre o lixo, mas falava sobre o meio ambiente” (6f),
ou seja, esta resposta leva a crer que o aluno não considera o lixo
como uma questão ambiental. Foi notado que muitos estudantes
apresentam uma concepção de meio ambiente muito ligada à
natureza, talvez por isso não reconheçam outros tipos de atividades
como sendo sobre meio ambiente. Muitas das respostas positivas a
esta questão estão de alguma maneira ligadas aos elementos natu-
rais, por exemplo: “foi na 4ª série, a professora deu sementes e a
gente plantou num vaso e esperou ela crescer” (6f); “foi em 1996,
plantei uma árvore e cuidei dela e hoje ela está com mais de 2 met-
ros de altura” (1m).
Alguns alunos expressaram-se a respeito das atividades que
participaram com palavras como interessante, legal, divertido (17
citações). Outros disseram que puderam aprender mais (4 citações),
embora, como no caso do exemplo já citado, houvesse alguém que
considerou a atividade pouco prestativa. As disciplinas citadas
pelos alunos foram: Geografia (11 citações), História (7 citações),
Biologia (2 citações), Educação Artística (2 citações),Ciências (1
citação), Português (1 citação), todas (1 citação). Vale destacar que
as disciplinas mais citadas (Geografia e História) são justamente
aquelas que estavam realizando atividades sobre meio ambiente na
época da aplicação do questionário. Os temas citados foram: lixo,
coleta seletiva ou reciclagem (18 citações), desmatamento (4
citações), erosão (3 citações), poluição (2 citações), queimadas (2
citações), dengue (1 citação).

m 133 M
3.4 – A escola como instância potencialmente m
CHAPANI, Daisi;
transformadora de atitudes DAIBEN, Ana Maria.
A incorporação da
temática ambiental por
Embora a função transformadora da escola abranja inúmeras uma escola pública de
dimensões para além das atitudes, este foi o principal foco da pes- Bauru (SP).
quisa que estávamos realizando. Desta maneira, procuramos saber a Mimesis, Bauru,
opinião que os alunos, os docentes, o diretor, a coordenadora e as v. 23, n. 2, p. 121-140,
funcionárias tinham a respeito das possíveis mudanças de atitudes 2002.
produzidas pelo processo educativo na comunidade escolar com
relação ao meio ambiente.
Segundo nos informaram o diretor e a coordenadora, eles con-
sideravam a escola instância privilegiada para provocar tais mudan-
ças, entendiam também que este papel desempenhado pela institu-
ição seria absolutamente vital para a melhoria da qualidade de vida
da população. Quanto às funcionárias, das três que responderam o
questionário, duas alegaram considerar a escola colabora neste sen-
tido pelo fato de mostrar interesse com a preservação do meio ambi-
ente e por já haverem notado mudanças nos alunos, uma delas, no
entanto, respondeu que “não, talvez por falta de insistência e orien-
tação”.
Buscamos saber também a opinião dos professores sobre a
possibilidade do trabalho desenvolvido por aquela escola estar
colaborando na mudança de atitudes relativa ao meio ambiente
naquela comunidade escolar. Entretanto, em virtude do concurso de
ingresso, muitos eram novos na escola e não puderam opinar. Dos
docentes que já trabalhavam na escola, todos responderam afirma-
tivamente a questão, embora, alguns apresentassem ressalvas.
Exemplos: “Encontramos vários alunos preocupados com o meio
ambiente e podemos notar isso através de atitudes, relatos dos mes-
mos na conservação do lugar onde vivem” (professor de Português).
“Sim, acredito que a persistência no assunto é fundamental para o
êxito do trabalho. É possível encontrarmos entre os alunos pessoas
interessadas do assunto” (professor de Português). “Acredito que
sim, pois os próprios alunos se preocupam com a escola, limpeza,
preservação. Não que seja geral, mas eu vivencio isto com alguns
alunos. Grupos se organizando com essa preocupação” (professor
de Educação Artística)
As respostas apresentadas pelos alunos à pergunta: “Você
considera que as atividades desenvolvidas pela escola colaboram na
mudança de atitudes dos alunos em relação ao meio ambiente? Por
favor, justifique a sua resposta”, foram classificadas em diversas
categorias e estão apresentados na Tabela 1.

m 134 M
M Tabela 1 – Porcentagem de respostas dadas em cada ano de
CHAPANI, Daisi; escolaridade em relação à mudança de atitudes
DAIBEN, Ana Maria.
A incorporação da 5f 6f 7f 8f 1m 2m 3m
temática ambiental por Não 0 5 11 0 0 4 0
uma escola pública de
Bauru (SP). Por causa da pessoa 4 11 11 5 12 11 0
Mimesis, Bauru, Por causa da escola 0 4 2 1 0 6 0
v. 23, n. 2, p. 121-140,
2002. Talvez/mais ou menos 0 9 4 7 0 2 0
Outras 8 4 4 11 0 6 20
Não respondeu 4 4 0 1 0 0 0
Depende da pessoa 0 4 6 22 45 32 33
Depende da atividade 0 0 0 3 1 4 0
Sim 82 56 59 46 39 32 46

Exemplos de respostas classificadas em cada uma das catego-


rias: não: “o aluno não vai se conscientizar que precisa mudar ele só
não vai sujar nada e pronto”(6f); não, por causa da pessoa: “não
muda nada a pessoa continua igual” (6f), “Não, a pessoa nasce e
morre do mesmo jeito” (7f); não, por causa da escola: “não, porque
a escola quase não realiza estas atividades sobre o meio ambiente, e
quando fazem poucas pessoas participam, e algumas acham isso
uma besteira” (6f), “não, pois as aulas que eu estou tendo sobre o
meio ambiente estão muito fracas, são aquelas aulas que o profes-
sor fala, fala e os alunos também não colaboram eu acho que tem
que mudar o jeito de explicar tem que ser uma aula mais prática”
(2m); talvez: “Talvez, porque a pessoa só muda se ela realmente
quiser e se realmente gostar do nosso planeta” (6f), “Talvez porque
muitos não concordam com as opiniões a respeito disso”(6f); ou-
tras: “se eles praticam eu não sei, mas sei que todos sabem o que irá
prejudicar o meio ambiente”(8f); depende da pessoa: “sim, mas
depende da cabeça de cada um” (8f); “depende da pessoa, pois tem
pessoas que tomam consciência sobre o problema do meio ambi-
ente, outras pessoas nem sequer pensa sobre o assunto, mas pode
ajudar os que tem interesse” (1m); depende da atividade: “sim, se o
trabalho for interessante do jeito que os alunos gostam” (8f), “sim,
se entrar em detalhes e for um trabalho bem feito, falando bastante
de tudo sobre o meio ambiente sim, mas se não explicar, os alunos
nem prestam atenção” (2m). Entre as respostas afirmativas (sim)
encontram-se aquelas que sugerem que a mudança de atitude ocorre
devido ao aprendizado: “sim por que o aluno aprende mais coisas

m 135 M
sobre o meio ambiente e daí eles ve que o meio ambiente é impor- m
tante” (5f); muitos citam o exemplo da própria escola: “sim, com o CHAPANI, Daisi;
DAIBEN, Ana Maria.
programa que a escola está fazendo a respeito do lixo reciclável, já
A incorporação da
está tendo melhora” (6f); outras dão testemunhos de mudança pró- temática ambiental por
pria: “sim, depois de eu ter ido ao Jardim Botânico e ter feito esse uma escola pública de
mini-curso, mudou bastante minha cabeça, eu estou valorizando Bauru (SP).
uma coisa que antes não valorizava. E assim, os outros também” Mimesis, Bauru,
(7f); alguns dão testemunho de mudança de outros: “sim, porque v. 23, n. 2, p. 121-140,
2002.
vários alunos pensava errado sobre o meio ambiente. Muito aluno
não queria saber sobre o meio ambiente depois que a escola passou
a falar sobre o assunto muitos alunos mudaram de atitude” (5f).
Percebe-se entre os alunos uma visão menos otimista da
capacidade do processo educativo ser provocador de mudanças que
entre os professores e demais componentes na escola. Carvalho
(1989), em levantamento realizado junto a professores do 1º ciclo do
ensino fundamental, mostra que independentemente das razões dadas
ao atual quadro de degradação ambiental, todos consideram ser o
processo educativo de fundamental importância na alteração deste
quadro, posição que pode também ser notada entre os professores
desta escola. Notou-se também que funcionárias, direção e coorde-
nação apresentam uma visão positiva com relação a esse tópico.
Percebe-se claramente que a crença na capacidade da escola
de provocar mudanças de atitudes nos alunos vai diminuindo com a
escolaridade ao mesmo tempo em que aumenta o sentimento que as
pessoas são imutáveis e também uma visão mais negativa do traba-
lho desenvolvido pela escola.
Negar a possibilidade de mudança do indivíduo é negar a pos-
sibilidade de educação. “A educação é possível para o homem, por-
que este é inacabado e sabe-se inacabado.” (FREIRE, 1981, p. 28).
Acreditar que alguém nasce e morre do mesmo jeito é negar a
incompletude humana. Esta pode se constituir em uma atitude imo-
bilizante que ao mesmo tempo em que nega a possibilidade de
mudança do indivíduo também nega a possibilidade de transfor-
mações na sociedade. Aparentemente, a própria escola que trabalha
sobre os fundamentos da mudança tem colaborado para esta visão
de imobilidade. É possível que a freqüência com que se ouve “você
não tem jeito mesmo” dentro da escola venha reforçando esta idéia.
Não se pode esperar modificações na sociedade se as pessoas não
acreditam na capacidade do indivíduo de mudar, ao mesmo tempo
em que transformações sociais certamente ocasionarão alterações
nas posturas individuais. Não se trata, portanto, de moldar o indiví-
duo a esta sociedade que aí está, mas de acreditar na capacidade de
mudanças pessoais e sociais. “Uma característica da consciência

m 136 M
M crítica é justamente reconhecer que a realidade é mutável.” (FREI-
CHAPANI, Daisi; RE, 1981, p. 41). Neste sentido, é preocupante notar o número sig-
DAIBEN, Ana Maria.
nificativo de alunos que demonstraram não acreditar na capacidade
A incorporação da
temática ambiental por de mudança do indivíduo e ainda mais que este número aumenta
uma escola pública de com a escolaridade, o que nos leva a supor que de alguma maneira
Bauru (SP). a escola tem colaborado para a esta visão de imutabilidade. Entre-
Mimesis, Bauru, tanto, de alguma forma, a escola também tem oferecido instrumen-
v. 23, n. 2, p. 121-140, tos para uma crítica de seu próprio trabalho, pois aumenta com a es-
2002.
colaridade a idéia que o trabalho desenvolvido pela escola não está
colaborando com tais mudanças.

4 - Considerações Finais
Acreditamos ser extremamente positivo a importância dada à
temática ambiental por esta comunidade escolar. A urgência que
estas questões nos impõem exige que todos se comprometam na
busca de soluções para os problemas e de organizações sociais alter-
nativas que visem à construção de uma sociedade sustentável. O in-
teresse pelo tema é o primeiro passo rumo a este objetivo. Notamos
que a manifestação da preocupação dos alunos pela preservação
ambiental aumenta com a escolaridade, o que nos leva a supor que
a escola esteja colaborando na formação de uma massa crítica pre-
ocupada com o futuro do planeta. Este interesse pode ser de grande
valia para o sucesso na implementação de projetos de educação
ambiental na escola. Sendo este um tópico para estudos nos quais
esta motivação não necessita ser estimulada porque ela já se mani-
festa, pode-se canalizar esta motivação a fim de despertar a inte-
resse para outros conteúdos de diferentes áreas do conhecimento,
visto que o meio ambiente é um tema interdisciplinar por excelên-
cia. Cremos ainda que há necessidade da escola ampliar seu traba-
lho, já que muitos alunos não conseguiram justificar a importância
do estudo do meio de maneira coerente e outros ainda não foram
capazes de extrapolar suas considerações para além do próprio
ambiente escolar. Outro aspecto que deve ser levado em conta é a
visão extremamente antropocêntrica e utilitarista de meio ambiente
que aparece na maior parte das respostas apresentadas.
Seria adequado que esta escola desenvolvesse um trabalho
mais sistemático no sentido de fazer com que seus alunos vejam-se
como sujeitos históricos, agentes capazes de modificar seu ambi-
ente. Há necessidade da escola buscar em seu trabalho resgatar a
esperança e a fé na capacidade humana de transformar-se e causar
transformações.

m 137 M
Convém, portanto, que a escola esteja sensível para estas ne- m
cessidades e que os docentes sejam capacitados para deste desafio. CHAPANI, Daisi;
DAIBEN, Ana Maria.
A este respeito, esclarecemos que a intervenção realizada nesta es-
A incorporação da
cola como parte de um projeto de pesquisa mais amplo, constituin- temática ambiental por
do-se em reuniões com professores a fim estudar o assunto e propor uma escola pública de
ações conjuntas na escola, obteve bastante êxito (para um resumo Bauru (SP).
desta fase ver CHAPANI; DAIBEM, 2000). Mimesis, Bauru,
A educação tem papel preponderante no desenvolvimento de v. 23, n. 2, p. 121-140,
2002.
sensibilidades e na discussão de alternativas que possam contribuir
para a construção de sociedades sustentáveis em nosso país. Espe-
ramos que este breve trabalho possa se constituir em mais uma con-
tribuição para aqueles que vêm realizando ou pretendem imple-
mentar programas de educação ambiental na educação formal.

Abstract
A research was carried out in a public school in the city of
Bauru (SP), Brazil, during the years 2000 and 2001. The research
comprised three phases: diagnostic, intervention and assessment.
The diagnostic phase used data collection, such data are here ana-
lyzed, taking into account the importance of environmental question
for students, teachers and school work. The results of these analyses
may add to the implementation of projects of this sort, since we
believe that similar situations may be found in other schools.

Key words: environment; environmental education; attitudes; public


school

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m 139 M
VASCONCELOS, C. S. Para onde vai o professor? Resgate do pro- m
fessor como sujeito de transformação. São Paulo: Libertad, 1996. m CHAPANI, Daisi;
DAIBEN, Ana Maria.
A incorporação da
temática ambiental por
uma escola pública de
Bauru (SP).
Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 121-140,
2002.

m 140 M
Sobre os colaboradores
deste número
m
Fernando Catroga
Professor de História da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, Portugal. Docente da Comissão científica do Grupo de
História. Destacam-se algumas obras publicadas: O Céu da Me-
mória. Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos; Sociedade
e Cultura Portuguesa II; A necrópole e memória. "Igreja e Missão"
e Caminhos do Fim da História.

Gloria M. Comesaña-Santalices
Doutora em Filosofia pela Universidade de Paris I, Panteón-
Sorbonne, 1977. Professora Titular da Universidade de Zulia,
Venezuela. Professora no Doutorado em Ciências Humanas e no
Doutorado em Arquitetura, Universidade de Zulia. Publicou
numerosos trabalhos sobre Filosofia Contemporânea e sobre Teoria
Feminista, em revistas nacionais e internacionais, entre os quais
destacam-se os livros: Alineación y Libertad: la doctrina sartreana
del otro; Análisis de las figuras femeninas en el Teatro sartreano;
Mujer, Poder y Violencia; Filosofía, Feminismo y Cambio Social;
tradução e prólogo do livro de Alain Guy: Panorama de la Filosofía
Iberoamericana. Seu livro sobre Hannah Arendt, La brecha que es
el presente, está no prelo.

Katiuska J. Reyes Gaulé


Licenciada em Filosofia na Universidade de Zulia. Professora
contratada da Universidade Católica Cecílio Acosta (UNICA), nas
Faculdades de Filosofia e Teologia, e Educação. Coordenadora da
área de antropologia da Faculdade de Educação (UNICA). Concluiu
o Mestrado em Filosofia, na Universidade de Zulia.

Márcio Danelon
Professor de Filosofia da Faculdade de Ciência Humanas da
UNIMEP e da UNICLAR. Doutorando em Filosofia da Educação –

m 141 M
Universidade de Campinas – UNICAMP. Principais trabalhos publi-
cados: Alienação: (des)humanização do homem no trabalho; Estéti-
ca: arte e vida cotidiana; Nietzsche educador: uma leitura de Scho-
penhauer como educador; O método nietzschiano de crítica ao cris-
tianismo: filologia e genealogia; A filosofia e o enigma chamado
infância; Sartre e a destituição do sujeito da educação e O conceito
sartreano de liberdade: implicações éticas.

Thomas Bonnici
Doutorado em Teoria da Literatura pela UNESP. Professor de
Literatura Inglesa do Departamento de Letras da Universidade
Federal de Maringá. Faz parte do conselho editorial da revista Acta
Scientiarum. Destacam-se algumas obras publicadas: O pós-colo-
nialismo e a literatura: estratégias de leitura; Encontros coloniais
na literatura de viagens no Brasil do século XVI; Golden Lambari;
Rosy Star.

Thaís Cristina Rodrigues Tezani


Pedagoga, com habilitação em Administração Escolar, forma-
da pela Universidade do Sagrado Coração. Especializada em Psico-
pedagogia (USC). Atualmente faz Mestrado em Educação na Uni-
versidade Federal de São Carlos (UFSCar). Professora do Ensino
Fundamental da rede municipal de Bauru.

Daisi Chapani
Professora Assistente do departamento de Ciências Biológi-
cas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB),
Campus de Jequié. Desenvolveu, ao lado da profa. Ana Maria
Daibem, o trabalho Mudanças de atitudes em Educação Ambiental,
durante o 2º Encontro “Pesquisa em Educação Ambiental: aborda-
gens epistemológicas e metodológicas.”

Ana Maria Daibem


Professora Adjunta Departamento de Educação e Coor-
denadora do Programa de Pós Graduação “Educação para a
Ciência”, UNESP – Campus de Bauru. Destacam-se os trabalhos
publicados: A implantacão da pedagogia Freinet na rede municipal
de ensino de Bauru-SP; A administracão da educacão na visão de
José Misael Ferreira do Vale; Programa jovem primeiro emprego –
Experiência da Bauru; Educação ambiental: ação-reflexo no coti-
diano de uma escola pública; Movimento pedagógico e práticas
educativas: primeiras aproximações. m

m 142 M
Próximo

m
número

Guilhermo Hoyos Vasques


La ética fenomenológica

François Dosse
De l’ histoire des idées à l’ histoire intelectuelle

Luis Fernando Acebedo Restrepo


El cinva y su entorno espacial y político

Sílvio Gallo
Globalização, conhecimento e educação: questões políticas e epis-
temológicas

Geraldo Romanelli
O processo saúde/doença em famílias de baixa renda e a ação do
Estado

Daniela Melaré Vieira de Barros


Tecnologias da inteligência: subsídios para uma didática da cons-
trução do conhecimento na formação de professores

m 143 M
Instruções aos autores/
Rules to the author
m
Finalidade
A Revista Mimesis, editada pela Universidade do Sagrado Co-
ração, tem por finalidade a apresentação de trabalhos em forma de
artigos, ensaios, documentos, participação de pesquisa, comentários,
bibliografias, resenhas críticas e colaboração de caráter informativo,
elaborados por professores ou profissionais da Universidade ou de
outras Instituições, desde que se enquadrem nas instruções que cons-
tam das normas da Revista, fornecidas aos autores.
Tal publicação é responsabilidade da Editora da Universidade
do Sagrado Coração (EDUSC), sob orientação de um Conselho Edi-
torial, constituído por pesquisadores da Instituição e um Conselho
Científico representado por especialistas de renome nacional e inter-
nacional.

Regulamento para apresentação dos trabalhos


Os trabalhos devem ser originais e exclusivos, desde que es-
critos em português, espanhol, francês, inglês ou italiano. Em casos
excepcionais de republicação de trabalhos nacionais ou estran-
geiros, deverão estes conter autorização formal do(s) autor (es) e da
publicação que possui o copyright.
O nome do autor, o nome e o endereço da Instituição onde tra-
balha devem ser transcritos na página de rosto, a fim de assegurar o
anonimato no processo de avaliação do artigo. A primeira página do
texto deve incluir o título e omitir o nome do autor e seu local de
trabalho.
Os artigos resultantes de pesquisas que envolvam a anuência
de seres humanos, quando for indispensável, precisam ser acom-

m 145 M
panhados do Termo de Aprovação do Comitê de Ética em pesquisa m
da Universidade. Instruções aos autores.
Mimesis, Bauru,
Reserva-se ao autor o direito de não concordar, parcial ou
v. 23, n. 2, p. 141-145,
integralmente com a avaliação realizada. Neste caso, deverá justi- 2002.
ficar, por escrito, os motivos da não-aceitação.
À Editora da Universidade do Sagrado Coração (EDUSC) re-
serva-se o direito de selecionar os artigos recebidos, bem como de
proceder, quando for o caso, às modificações de ordem editorial
(formal, ortográfica, gramatical) antes de serem encaminhados à
edição gráfica. De tais modificações será dado ciência ao(s) au-
tor(es).
Pelo menos 2 (dois) especialistas de áreas específicas, perten-
centes ao Conselho Científico, serão convidados pela EDUSC para,
conjuntamente, emitirem parecer acerca do trabalho encaminhado à
publicação.
A EDUSC não se obriga a devolver os originais dos trabalhos
aprovados para a publicação e não se responsabiliza pelas opiniões
contidas nos trabalhos.
Os trabalhos não aceitos serão devolvidos ao(s) autor(es) após
sua análise pela Editora da Universidade do Sagrado Coração
(EDUSC).
Na impossibilidade da devolução, os trabalhos ficarão à dis-
posição do(s) autor(es), pelo prazo máximo de um ano.
Não será reembolsado qualquer valor ao (s) autor (es) de tra-
balho aceito e publicado.
A reprodução total ou parcial das publicações dependerá da
autorização do(s) autor(es). Caso seja autorizado, deve-se obrigato-
riamente mencionar a fonte.

Estrutura do trabalho
Cabeçalho - Título do trabalho, em português e em inglês.

Resumo em português - Deve expressar o conteúdo do tra-


balho, salientando os elementos novos e indicando sua importância.
Não deverá exceder 250 palavras para artigos e 100 palavras para
notas e comunicações breves (NBR-6028 da ABNT).

Unitermos - Corresponde a palavras e expressões que identi-


fiquem o conteúdo do trabalho. Na área de ciências médicas, podem
ser utilizados Cabeçalhos de Assuntos Médicos, traduzidos no
Medical Subject Headings do Index Medicus.

m 146 M
M Texto – Sempre que possível, deve obedecer à forma conven-
Instruções aos autores. cional do artigo científico, mencionado na NBR – 6022.
Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 141-145,
2002.
Resumo em Inglês - Deverá aparecer na forma de Abstract
antecedendo os agradecimentos, no final do trabalho. Os unitermos
em inglês deverão acompanhar o Abstract, adotando o termo Key
Words.

Agradecimentos - Eventuais colaboradores, técnicos e/ou


órgãos financiadores poderão ser referidos neste item, que deverá
ser breve, claro e objetivo.

Referências Bibliográficas - Devem ser ordenadas pela


ordem alfabética do sobrenome do autor e representadas conforme
NBR 6023/2002 ABNT.

Exemplo: Artigo de Periódico

BORTOLOTTI, R. G. Método Científico e Aprendizagem.


Mimesis, Bauru, v. 22, n. 3, p. 23-36, 2001.

Exemplo: Livro

RUIZ, R. Da Alquimia à Homeopatia. Bauru: EDUSC, 2002.


100 p.

Cabe à responsabilidade do (s) autor (es) a exatidão das refe-


rências. Comunicações pessoais, trabalhos em andamento e inéditos
não devem ser incluídos na lista de referências bibliográficas, mas
citados em nota de rodapé.

Na citação de literatura no texto deve-se usar o sistema autor-


data apenas com as iniciais em maiúscula. Quando houver dois
autores, ligar os sobrenomes por meio da preposição “e”. Quando
houver mais de dois autores, mencionar o sobrenome do primeiro,
seguido da expressão et al. Para trabalhos publicados no mesmo
ano, por um autor ou pela mesma combinação de autores, usar letras
logo após o ano de publicação. Informações complementares
poderão ser obtidas na NBR 10520/ABNT.

m 147 M
Normas para apresentação dos originais m
Instruções aos autores.
Mimesis, Bauru,
v. 23, n. 2, p. 141-145,
Digitação 2002.

O autor encaminhará seu texto em três vias à Edusc


Periódicos (USC), acompanhado de um disquete 3,5” em Word 7.0.
Os trabalhos devem ser impressos em folha de papel A4
(297mm x 210mm) ou em folhas de formulários contínuo (11"x
240mm) numa única face, em espaço 1,5 e fonte 14.
Os artigos deverão conter as informações estritamente neces-
sárias à sua compreensão, não devendo ultrapassar 35 laudas, in-
cluindo-se tabelas e figuras.
Os artigos deverão conter somente nomenclaturas, abreviat-
uras e siglas oficiais ou consagradas pelo uso comum. Inovações
poderão ser empregadas, desde que devidamente explicadas.

Tabelas
Devem ser numeradas consecutivamente com algarismos
arábicos e encabeçadas por seu título.
Os dados apresentados em tabelas não devem ser, em geral,
repetidos em gráficos.
Para a montagem das tabelas, deve-se seguir a norma da
ABNT-NBR-12256 para apresentações de originais.
As notas de rodapé das tabelas devem restringir-se ao mínimo
possível e ser referidas por asteriscos.

Ilustrações
Fotografias, gráficos, desenhos, mapas, etc., serão designados
no texto como “FIGURAS” e numerados seqüencialmente com
algarismos arábicos.
Tabelas, desenhos, gráficos, figuras, fórmulas, equações, ma-
pas, diagramas etc. deverão ser apresentados em folhas separadas,
obedecendo às normas vigentes (ver item 4.2.3) e possibilitar uma
perfeita reprodução. No entanto, no texto, deverá se indicar o local
onde a ilustração será inserida.
Ilustrações radiográficas deverão ser enviadas sob a forma de
cópia fotográfica, de boa reprodução.
As ilustrações coloridas correrão por conta do(s) autor (es),
mediante prévio orçamento.

m 148 M
M Quando o número de ilustrações for considerado excessivo, a
Instruções aos autores. Editora da Universidade do Sagrado Coração (EDUSC) reserva-se
Mimesis, Bauru, o direito de solicitar a sua redução.
v. 23, n. 2, p. 141-145,
2002.

Os trabalhos devem ser enviados para:


UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO
EDUSC Periódicos
Revista Mimesis
A/C Angela Lapera
Rua Irmã Arminda 10-50 – Jardim Brasil
CEP 17011-160
Bauru – SP
revistas@usc.br
m

m 149 M

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