A Alma de Todo Apostolado

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D. Jean-Baptiste Chautard O.C.

R
Abade de Sept-Fons

A alma de todo o apostolado


Autógrafo de S. S. Bento XV
Ao Nosso caríssimo filho, Dom Jean-Baptiste Chautard, Abade da Trapa de
Nossa Senhora de Sept-Fons, enviamos as nossas mais calorosas felicitações, por ter
posto em evidência de maneira admirável, no seu livro intitulado “A alma de todo o
apostolado”, a necessidade da vida interior nos homens de obras, para a verdadeira
fecundidade do seu ministério.
Desejando que esta obra, onde se encontram reunidos os ensinamentos
doutrinais e os conselhos práticos acomodados às necessidades do nosso tempo,
continue a difundir-se e a fazer bem, concedemos de todo o coração ao seu piedoso
autor uma afectuosa Bênção Apostólica.
Vaticano, 18 de Março de 1915.
Benedictus PP, XV.
Palavras do Cardeal Vico que acompanharam o envio da carta do Sumo Pontífice:
Apresso-me em fazer chegar às suas mãos o pergaminho apenso que S. S. o
Papa Bento XV houve por bem encarregar-me de remeter-lhe.
Certamente, lerá no augusto autógrafo os belos elogios que Sua Santidade faz ao
seu precioso livro “A alma de todo o apostolado”. O Santo Padre leu esse livro com
vivíssima satisfação.
Já o Papa Pio X, de santa memória, me tinha encarregado de transmitir as suas
vivas felicitações ao piedoso prelado espanhol, que traduziu a sua obra para a língua
castelhana.
Palavras de São Pio X, durante a visita ad limina dos bispos do Canadá, em 1914:
“Se quereis que Deus abençoe e torne fecundo o vosso apostolado, empreendido
para a sua glória, impregnai-vos bem do espírito de Jesus Cristo, procurando adquirir
uma intensa vida interior. Para este fim, não vos posso indicar melhor guia do que “A
alma de todo o apostolado” de Dom Chautard, abade cisterciense. Recomendo-vos,
calorosamente, esta obra, que estimo particularmente, e da qual fiz o meu próprio livro
de cabeceira”.
“Ex quo omnia, per quem omnia, in quo omnia”. 1
Ó Deus magnífico e bondosíssimo, como são admiráveis e deslumbrantes as
verdades que a Fé nos manifesta acerca da vossa inefável vida íntima!
Pai Santo, contemplais no Verbo Eterno a vossa perfeita imagem, e o Verbo
contempla enlevado a vossa adorável beleza. Do vosso êxtase comum ateia-se um
grande incêndio de amor: o Espírito Santo.
Só Vós, ó Trindade adorável, sois a vida interior perfeita, superabundante,
infinita!
Bondade sem limites, desejais difundir a vossa própria vida. Dizeis uma palavra:
e as obras irrompem do nada para manifestar as vossas perfeições e cantar a vossa
glória.
Existe um abismo entre Vós e as criaturas; o vosso Espírito de amor quer
preenchê-lo: satisfará, assim, a sua imensa necessidade de amar e de se dar. Decidis,
pois, por insondáveis desígnios, realizar a obra da nossa divinização: este pobre barro,
modelado pelas vossas mãos, poderá ser deificado e participar na felicidade eterna. O
vosso Verbo fez-se carne, para realizar esta obra.2
Contudo, ó Verbo Eterno, nunca abandonastes o seio do vosso Pai. Nele subsiste
a vossa vida essencial, e é dessa fonte divina que jorram as maravilhas do vosso
apostolado.
Ó Jesus, Emanuel, confiastes aos vossos apóstolos o Evangelho, a Cruz e a
Eucaristia, dando-lhes a missão de irem por toda a parte gerar, para o vosso Pai, filhos
de adopção.
Depois, voltastes para o Pai.
É a Vós, Espírito divino, que compete agora santificar e governar o Corpo
Místico do Homem-Deus.
A fim de fazer descer a vida divina da cabeça para os membros, quisestes
escolher colaboradores para a vossa obra. Abrasados pelo fogo do Pentecostes, partiram
eles para todo o mundo, a fim de semear nas inteligências o verbo que ilumina, e nos
corações a graça que inflama, comunicando aos homens essa vida divina, da qual sois a
plenitude.
***
Ó Fogo divino, excitai em todos aqueles que participam no vosso apostolado os
ardores que transformaram os felizes Apóstolos reunidos no Cenáculo! Eles deixarão de
ser simples pregadores do dogma e da moral, para se tornarem transfusores vivos do
sangue divino nas almas.
Espírito de luz, gravai esta verdade no espírito dos vossos apóstolos: o seu
apostolado só será eficaz na medida em que possuam essa vida sobrenatural interior, de
que Vós sois o princípio supremo, e Jesus Cristo a fonte.
Ó Caridade infinita!, incendiai as suas vontades num desejo ardente de vida
interior. Infundi nos seus corações o suave e intenso perfume da vossa graça e fazei-lhes
sentir que, neste mundo, a verdadeira felicidade só se encontra nessa vida interior, que é
uma participação na própria vida do Coração de Jesus, no seio do Pai de todas as
misericórdias e de todo o amor.
***
Ó Maria Imaculada, Rainha dos Apóstolos, dignai-vos abençoar estas modestas
páginas. Fazei compreender àqueles que as lerem, que, se Deus quiser servir-se deles
para difundir nas almas os seus bens celestes, só obterão resultados se a sua actividade,
de algum modo, participar na natureza do Acto divino. Acto que Vós contemplastes no
próprio Deus, quando no vosso seio virginal encarnou Aquele a quem devemos o
incomparável dom de poder chamar-vos nossa Mãe.
Parte I
Deus quer as obras e a vida interior
1. O que é o apostolado?
Deus é a bondade infinita. A bondade anseia difundir-se e comunicar
generosamente os bens que possui.
A vida terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo foi uma contínua manifestação
dessa inesgotável liberalidade. O Evangelho mostra-nos o Redentor a semear pelos
caminhos da terra os tesouros de amor de um Coração desejoso de atrair os homens para
a verdade e para a vida.
Jesus comunicou à sua Esposa mística esta chama de apostolado. Animada por
esse fogo, a Igreja —que é dádiva do seu amor, difusão da sua vida, manifestação da
sua verdade, fulgor da sua santidade— continua, no decurso dos séculos, a obra de
apostolado do seu divino Modelo.
Desígnio admirável, lei universal estabelecida pela Providência! “É por meio do
homem que o homem deve conhecer o caminho da salvação”.3 Somente Jesus Cristo
derramou o sangue que resgata o mundo. Ele teria podido, se quisesse, aplicar a virtude
desse sangue e agir imediatamente sobre as almas, como faz na Eucaristia. Quis, porém,
servir-se de colaboradores para distribuir os seus benefícios. Porquê? Porque a
majestade divina assim o exige. Mas não só: move-o também o seu infinito amor por
nós. Se os grandes monarcas governam por intermédio dos seus ministros, que
condescendência a de Deus, em querer associar pobres criaturas às suas lutas e à sua
glória!
Nascida sobre o patíbulo da cruz, saída do lado trespassado do divino Salvador,
a Igreja perpetua, por meio do ministério apostólico, a acção amorosa e redentora do
Homem-Deus.
Desejado por Jesus Cristo, torna-se este ministério o factor essencial da
propagação dessa Igreja pelas nações e o mais habitual instrumento das suas conquistas.
Na primeira linha o clero, que constitui a hierarquia do exército de Cristo. Clero
ilustrado por tantos bispos e sacerdotes santos, e tão gloriosamente honrado pela
elevação do santo Cura de Ars às honras dos altares.
Ao lado deste clero oficial, surgiram, desde as origens do cristianismo,
numerosas companhias de voluntários, verdadeiras milícias de escol, que são um dos
fenómenos mais evidentes da vitalidade da Igreja.
Logo nos primeiros séculos, aparecem as Ordens contemplativas, que tanto
contribuíram, com orações fervorosas e duras penitências, para a conversão dos gentios.
Na Idade Média, surgem as Ordens dos pregadores, as Ordens mendicantes, as Ordens
militares, as Ordens votadas à heróica missão de resgatar os cativos em poder dos
infiéis. Enfim, os tempos modernos vêem nascer uma enorme quantidade de
congregações e institutos dedicados às missões, às obras de caridade e ao ensino, cuja
missão é espalhar o bem espiritual e corporal sob as mais diversas formas.
Por outro lado, em todas as épocas da sua história, a Igreja recebeu a preciosa
colaboração dos simples fiéis, que, unindo-se em grupos de trabalho, sacrificam com
entusiasmo o seu tempo, capacidades, fortuna, liberdade e, quantas vezes, o próprio
sangue, para servir a nossa Mãe comum. Como é admirável e consolador o
florescimento providencial de todas essas obras, que nascem no momento preciso e se
adaptam maravilhosamente às circunstâncias! Nas necessidades novas, ou nos perigos, a
Igreja viu aparecer sempre a instituição certa para a finalidade certa.
Para responder aos grandes males que afligem a nossa época, vemos surgir uma
multidão de obras, que, ontem, ainda mal se conheciam: o catecismo de preparação para
a primeira comunhão, o catecismo de perseverança, o catecismo para as crianças
abandonadas, congregações, confrarias, reuniões e retiros para adultos e jovens,
apostolados da oração, da imprensa e da caridade, as ligas para a santificação dominical,
os patronatos, os círculos católicos, as obras militares, as escolas, etc., enfim, todas as
formas de apostolado, suscitadas por esse espírito que inflamava a alma de S. Paulo,
ansiosa por difundir, em toda a parte, os benefícios do sangue de Cristo: “Quanto a
mim, de muito boa vontade, darei o que é meu e dar-me-ei a mim mesmo pelas vossas
almas” (2 Cor 12, 15).
Possam estas humildes páginas ajudar os heróicos combatentes que se expõem,
pelo próprio exercício da sua nobre missão, ao perigo de perderem a sua vida interior, e
que, por isso mesmo, podem ser tentados —perante os consequentes fracassos,
aparentemente inexplicáveis, ou perante graves crises espirituais— a abandonarem a
luta!
Os pensamentos contidos neste livro têm ajudado o autor destas linhas a
preservar a sua vida interior no meio das obras. Queira Deus que eles possam ajudar
esses apóstolos, poupando-lhes grandes desgostos, e orientando o seu zelo, de modo a
compreenderem que o Deus das obras não deve ser abandonado pelas obras de Deus; e
que o brado de São Paulo, “Ai de mim se não evangelizar!” (1 Cor 9, 16), não nos
concede o direito de esquecer a inquietante pergunta de Jesus: “Que aproveita ao
homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma?” (Mt 16, 26).
Os pais e mães de família, para quem a “Introdução à vida devota” de São
Francisco de Sales não é um livro antiquado; os esposos cristãos, que se consideram
obrigados —entre si e com os filhos— a um apostolado que cultive o amor e a imitação
do Salvador, podem, igualmente, aplicar os ensinamentos destas modestas páginas.
Poderão, assim, compreender que uma autêntica vida de piedade tornará mais eficazes
os seus esforços e perfumará o seu lar com o espírito de Jesus Cristo, e com essa paz
inalterável que, apesar das provações, há-de ser sempre o apanágio das famílias
profundamente cristãs.
2. Deus quer que Jesus seja a vida das obras
A ciência proclama, e com razão, os seus imensos triunfos. Mas há uma coisa
que nunca conseguirá: criar a vida, formar um grão de trigo ou uma larva no laboratório
de um químico. Deus reserva para Si o poder de criar a vida.
Na ordem vegetal e animal, o Criador quis a contribuição dos seres vivos, que
colaboram, e podem interferir, no crescimento e multiplicação das espécies, embora a
sua fecundidade se realize, sempre, dentro das condições estabelecidas por Deus.
Porém, quanto à criação da alma racional, Ele reserva-a, unicamente, para Si.
Ora, existe um domínio no qual o Criador é ainda mais cioso: o domínio da vida
sobrenatural. A Encarnação e a Redenção constituíram Jesus como fonte —e fonte
única— dessa vida divina, na qual todos os homens são chamados a participar. A acção
essencial da Igreja consiste em difundir essa vida por meio dos sacramentos, da oração,
da pregação e de todas as suas obras.
Deus tudo faz por meio do seu Filho. “Todas as coisas foram feitas por Ele; e
nada do que foi feito, foi feito sem Ele” (Jo 1, 3). Se isto é assim na ordem natural,
quanto mais na ordem sobrenatural, pela qual Ele comunica aos homens a sua própria
natureza, e os torna Filhos de Deus.
“Eu vim para que tenham Vida, e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). “N’Ele
estava a Vida, e a Vida era a luz dos homens” (Jo 1, 4). “Eu sou a Vida” (Jo 14, 6). Que
precisão nestas palavras! Que luz na parábola da videira e dos sarmentos, onde o Mestre
desenvolve esta verdade! Com que insistência procura Ele gravar no espírito dos seus
Apóstolos este princípio fundamental: só Jesus é a vida; e esta consequência: para
participar nessa Vida e comunicá-la aos outros, devemos ser enxertados no Homem-
Deus!
Os homens chamados para transmitir às almas a vida divina devem, portanto,
considerar-se como simples canais, por onde há-de circular essa vida, que eles só
poderão receber da única fonte, que é Jesus.
Grosseiro erro teológico deixaria transparecer o apóstolo que ignorasse estes
princípios, e julgasse poder produzir o mais pequeno vestígio de vida sobrenatural, sem
a haurir, unicamente, em Jesus.
Desordem menor, mas também grave aos olhos de Deus, é a daquele, que,
embora reconheça o Redentor como fonte da vida divina, esquece, na prática, esta
verdade e só conta com as suas próprias forças.
Falamos aqui, somente, da desordem intelectual, que implica a negação de um
princípio, ao qual devemos aderir em espírito e conformar a nossa conduta; e não da
desordem moral do homem de obras, que reconhece o Salvador como fonte única da
graça e espera d’Ele o êxito, mas tem o coração em desacordo com o d’Ele, devido ao
pecado ou à tibieza voluntária.
O Cardeal Mermillod qualificou como heresia das obras a atitude do apóstolo
que, por esquecer o seu papel secundário e subordinado, espera o êxito do seu
apostolado, unicamente da sua actividade pessoal e dos seus talentos.
“Heresia das obras”! A acção de Deus substituída pela actividade humana,
orgulhosa e febril; a vida sobrenatural, o poder da oração, a economia da Redenção
desprezadas ou esquecidas! Neste século de naturalismo é frequente encontrarmos
pessoas de obras que procedem como se o êxito dependesse, principalmente, das suas
engenhosas organizações. Na sua insensatez, parecem dizer: “Meu Deus, não levanteis
obstáculos à minha empresa, não prejudiqueis o seu funcionamento, que eu encarrego-
me de a levar a bom termo.”
Deus confunde esses falsos apóstolos —que julgam poder comunicar a fé, a vida
sobrenatural, a virtude, ou fazer cessar o pecado, sem atribuir esses efeitos, unicamente,
ao sangue preciosíssimo de Cristo— e as suas obras de orgulho acabam por fracassar ou
apenas provocam miragens efémeras.
Ressalvando tudo o que se opera nas almas ex opere operato, Deus nega ao
apóstolo arrogante as suas melhores bênçãos, para reservá-las ao ramo que,
humildemente, reconhece só poder haurir a sua seiva no tronco divino.
3. O que é a vida interior?
Quando empregamos as palavras vida de oração, contemplação, vida
contemplativa —termos que se encontram nos Padres da Igreja e nos escolásticos— a
nossa intenção é sempre designar a vida interior normal, acessível a todos, e não os
estados pouco comuns de oração que a teologia mística estuda, e a fortiori êxtases,
visões, arroubamentos, etc.
Sairíamos do nosso plano, se nos demorássemos num estudo de ascetismo.
Limitamo-nos a recordar, em poucas palavras, o que todos os católicos devem aceitar
como absolutamente certo, no que diz respeito ao governo da sua alma.
1ª verdade. A vida sobrenatural é a vida do próprio Jesus Cristo em mim, pela
fé, pela esperança e pela caridade.
A presença de Nosso Senhor, por meio desta vida sobrenatural, não é a presença
real, própria da sagrada comunhão, mas uma presença de acção vital, como pode ser, no
corpo humano, a acção da cabeça ou do coração sobre os membros; acção íntima, que
Deus, quase sempre, me oculta, tornando-a insensível às minhas faculdades naturais,
para aumentar o mérito da minha fé; acção divina que deixa subsistir o meu livre
arbítrio e utiliza as causas segundas —acontecimentos, pessoas e coisas— para me fazer
conhecer a vontade de Deus e aumentar a minha participação na vida divina.
Esta vida, iniciada no Baptismo, pelo estado de graça; aperfeiçoada pela
Confirmação; conservada e enriquecida pela Eucaristia, é a minha vida cristã.
2ª verdade. Jesus Cristo comunica-me o seu Espírito por meio desta vida, e
torna-se, assim, o princípio superior que me leva —caso não Lhe ponha obstáculos— a
pensar, julgar, amar, querer, sofrer e trabalhar com Ele, por Ele e n’Ele. As minhas
acções exteriores tornam-se manifestações desta vida de Jesus em mim, e começo a
realizar o ideal de vida interior formulado por S. Paulo: “Já não sou eu que vivo, é
Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20).
A vida cristã, a piedade, a vida interior, a santidade não diferem essencialmente
entre si; são os diversos graus de um só e mesmo amor; são a aurora, a luz e o esplendor
do mesmo sol.
A minha vida interior há-de ser, pois, a minha vida cristã aperfeiçoada. O
essencial da vida cristã limita-se aos esforços necessários para conservar a graça
santificante. A vida interior vai mais além. Visa o desenvolvimento desta graça, procura
atrair graças actuais abundantes e corresponder a elas. Posso, assim, defini-la como o
estado de actividade da alma que regula as suas inclinações naturais, e se esforça por
adquirir o hábito de julgar e de se dirigir em tudo pela luz do Evangelho e os exemplos
de Nosso Senhor.
Portanto, dois movimentos. Em virtude do primeiro, a alma subtrai-se a tudo
quanto as criaturas possam ter de contrário à vida sobrenatural, e procura estar
incessantemente presente a si mesma: Aversio a creaturis. Em virtude do segundo, a
alma tende para Deus e com Ele se une: Conversio ad Deum.
Assim é que a alma quer ser fiel à graça que Nosso Senhor lhe oferece a cada
momento. Em suma, vive unida a Jesus e realiza a sua vontade: “O que permanece em
Mim, e Eu nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5).
3ª verdade. Privar-me-ia de um dos mais poderosos meios de adquirir esta vida
interior, se me não esforçasse por ter fé precisa e sólida nesta presença activa de Jesus
em mim, e, sobretudo, por alcançar que essa presença se torne em mim uma realidade
viva, vivíssima até, que vá penetrando, cada vez mais, a atmosfera das minhas
faculdades. Jesus tornar-se-á, assim, a minha luz, o meu ideal, o meu conselho, o meu
apoio, o meu recurso, a minha força, o meu médico, a minha consolação, a minha
alegria, o meu amor, numa palavra a minha vida. Adquirirei, deste modo, todas as
virtudes. Somente então poderei dizer, com toda a sinceridade, a admirável oração de S.
Boaventura, que a Igreja aconselha como acção de graças depois da missa: “Feri,
dulcíssimo Jesus, o mais íntimo e profundo do meu ser com o dardo suavíssimo e
salutar do vosso amor...”
4ª verdade. A minha vida sobrenatural pode crescer, a cada instante, em
proporção com a intensidade do meu amor a Deus, por meio de nova infusão da graça
da presença activa de Jesus em mim. Tal infusão é produzida através dos actos
meritórios (virtude, trabalho, sofrimentos, oração, Missa, etc.) e pelos sacramentos,
sobretudo a Eucaristia.
É pois certo —e esta consequência esmaga-me com a sua grandeza, mas também
me enche de júbilo— que por meio de cada pessoa ou acontecimento, Jesus manifesta-
se a mim, ocultando, sob essas aparências, a sua sabedoria e amor.
É sempre Jesus que se apresenta à minha alma, por meio da graça do momento
presente —Missa, oração, leitura, actos de caridade, de renúncia, de luta, de
confiança— solicitando sempre a minha cooperação para aumentar em mim a sua vida.
Ousarei esconder-me?
5ª verdade. A tríplice concupiscência, causada pelo pecado original, e
aumentada por cada pecado actual, gera em mim elementos de morte opostos à vida de
Jesus. Ora, essas inclinações e tentações diminuem esta vida e podem chegar a suprimi-
la. Mas, se a minha vontade resistir, elas não lhe causarão qualquer prejuízo. Pelo
contrário, contribuirão, como qualquer elemento de combate espiritual, para aumentá-la,
conforme a medida do meu esforço.
6ª verdade. Sem o emprego fiel de certos meios, a inteligência obscurece-se e a
vontade torna-se fraca para cooperar com Jesus no aumento e conservação da sua vida
em mim. A diminuição dessa vida produz a tibieza da vontade. 4 A dissipação, a
cobardia, a ilusão, fazem-me cair nos pecados veniais. E estes põem em risco a minha
salvação, porque dispõe a minha alma para o pecado mortal.
Se tiver a infelicidade de cair nesta tibieza (e a fortiori se ainda cair mais baixo),
devo tentar tudo para dela sair, reavivando o meu temor de Deus, pondo-me em
presença do meu fim, da morte, dos juízos de Deus, do inferno, da eternidade, do
pecado, etc., e reacendendo o meu amor a Jesus, pela consideração das suas chagas, da
sua paixão e morte na cruz. Irei em espírito ao Calvário, onde me prostrarei aos pés
sacratíssimos do Redentor, a fim de que o seu sangue vivo, correndo pela minha cabeça
e pelo meu coração, dissipe a cegueira e o gelo da minha alma e galvanize a minha
vontade.
7ª verdade. Se a minha sede de viver de Jesus deixar de aumentar, é porque não
possuo o grau de vida interior que Ele exige de mim. Tal sede há-de dar-me o desejo
de Lhe agradar em tudo e o temor de Lhe desagradar. Também é indispensável o
mínimo de recolhimento, que me permita, no decurso das ocupações, conservar o
coração numa pureza e generosidade suficientemente grandes para não ser abafada a
voz de Jesus. Ora, essa sede diminuirá, certamente, se não puser em prática certos
meios: oração da manhã, vida litúrgica, sacramentos, comunhões espirituais, exame de
consciência, leitura espiritual, etc., ou se, por culpa minha, esses meios já nada me
dizem.
Sem vida interior e recolhimento, os pecados veniais hão-de multiplicar-se na
minha vida, e chegarei a não fazer caso deles. Para os ocultar e enganar-me a mim
mesmo, servirão as aparências de piedade, o zelo pelas obras, etc..
8ª verdade. A minha vida interior será o que for a minha guarda do coração:
“Aplica-te com todo o cuidado possível à guarda do teu coração, porque dele é que
procede a vida” (Prov 4, 23).
Esta guarda do coração é a solicitude em preservar todos os meus actos, de tudo
o que pode viciar a sua causa motriz ou a sua prática. Solicitude tranquila, natural, mas
também enérgica, pois baseia-se no recurso filial a Deus.
É trabalho mais do coração e da vontade que do espírito, o qual deve ficar livre
para a prática dos seus deveres. Longe de embaraçar a acção, a guarda do coração
aperfeiçoa-a, regulando-a pelo espírito de Deus e acomodando-a aos deveres de estado.
Este exercício pratica-se a todo o momento. É uma observação, por meio do
coração, das acções presentes e das diversas partes de cada acção, à medida em que elas
se realizam. É a observância exacta do age quod agis. Como sentinela vigilante, a alma
observa, atentamente, os movimentos do seu coração, e vigia as suas inclinações, as
paixões, as palavras e as acções.
A guarda do coração exige certo recolhimento; uma alma dissipada não
consegue realizá-la. Mas com a sua prática frequente, adquire-se o hábito.
Para onde vou? Que faria Jesus em meu lugar? O que me aconselharia? Que
exige Ele de mim neste momento? Tais são as interrogações que, espontaneamente, se
apresentam à alma sedenta de vida interior.
Para a alma que vai a Jesus, por meio de Maria, a guarda do coração reveste-se
de um carácter ainda mais afectivo, e o recurso a esta boa Mãe torna-se verdadeira
necessidade para o seu coração.
9ª verdade. Quando uma alma procura imitar Jesus, em tudo e com todo o
afecto, Ele reina nela. Nesta imitação há dois graus: 1º A alma esforça-se por se tornar
indiferente às criaturas, consideradas em si mesmas, quer sejam conformes quer
contrárias aos seus gostos. A exemplo de Jesus, apenas procura a vontade de Deus: “Eu
desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a d’Aquele que Me enviou” (Jo 6,
38). 2º “Jesus Cristo não procurou o que lhe era agradável” (Rom 15, 3). A alma
inclina-se de melhor vontade para o que a contraria e repugna à natureza. Realiza então
o agere contra (agir contra) de que fala Santo Inácio na sua célebre meditação do Reino
de Cristo. É a acção contra a natureza, a fim de se preferir o que imita a pobreza do
Salvador e o seu amor pelos sofrimentos e pelas humilhações. Segundo a expressão de
S. Paulo, é, então, que a alma conhece, verdadeiramente, a Cristo (Ef 4, 20).
10ª verdade. Seja qual for o meu estado, Jesus oferece-me, caso queira rezar e
corresponder à sua graça, todos os meios de regressar à vida interior. Então, a minha
alma não cessará de possuir a alegria, mesmo até no seio das provações, e nela se
realizarão as palavras de Isaías: “Então a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas feridas
não tardarão a cicatrizar-se; a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do Senhor atrás de
ti. Então invocarás o Senhor e Ele te atenderá; clamarás e Ele dirá: Eis-me aqui! (…) O
Senhor te guiará constantemente, saciará a tua alma no árido deserto, dará vigor aos teus
ossos e serás como um jardim bem regado, como uma fonte de águas inesgotáveis” (Is
58, 8-9-11).
11ª verdade. Deus quer que eu me santifique e me dedique às obras de apostolado.
Devo, pois, gravar na minha alma esta convicção: Jesus quer ser a vida dessas obras. Os
meus esforços, por si sós, nada são: “Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Somente
serão úteis e abençoados por Deus, quando, por meio da verdadeira vida interior,
estiverem unidos à acção vivificadora de Jesus. Tornar-se-ão, assim, omnipotentes:
“Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fil 4, 13). Se proviessem da confiança
orgulhosa nos meus talentos, seriam rejeitados por Deus. Porventura não seria sacrílega
loucura da minha parte querer arrebatar a Deus, para com ela me adornar, uma porção
da sua glória?
Longe de gerar em mim a pusilanimidade, tal convicção será a minha força.
Sentirei a necessidade da oração para obter a humildade, que é um tesouro para a minha
alma, a certeza do auxílio de Deus e o penhor do êxito para as minhas obras!
Compenetrado da importância deste princípio, farei, durante os meus retiros, um
sério exame de consciência para saber: se estou convicto da nulidade da minha acção, e
da sua força, quando unida à acção de Jesus; se excluo, implacavelmente, qualquer
vaidade, qualquer auto-contemplação, na minha vida de apóstolo; se me mantenho
numa desconfiança absoluta de mim mesmo; e se peço a Deus que dê vida às minhas
obras e me preserve do orgulho, primeiro e principal obstáculo para receber o seu
auxílio.
Este credo da vida interior, tornado a base da existência para a alma, assegura-
lhe, já neste mundo, uma participação da felicidade celeste.
Vida interior, vida dos predestinados.
Corresponde ao fim que Deus se propôs ao criar-nos. 5
Corresponde ao fim da Encarnação: “Deus enviou o seu Filho unigénito ao
mundo, para que nós vivamos por Ele” (1 Jo 4, 9).
“O fim da criatura humana —diz S. Tomás— é unir-se a Deus: toda a sua
felicidade consiste nisso”. Ao contrário das alegrias do mundo, se nessa vida há
espinhos exteriores, dentro há rosas. “Devemos lamentar os pobres mundanos —dizia o
santo cura d’Ars— pesa-lhes sobre os ombros um manto forrado de espinhos; não
podem fazer um movimento sem se picarem; ao passo que os verdadeiros cristãos têm
um manto forrado de arminho”. “Vêem a cruz, mas não vêem a unção”, dizia São
Bernardo.
Estado celeste! A alma torna-se um céu vivo. 6
Como Santa Margarida Maria, ela canta:
“Possuo constantemente,
Acompanhando os passos meus,
O Deus do meu coração
E o coração do meu Deus”.
É o começo da bem-aventurança7. A graça é o céu na terra.
4. Esta vida interior é muito pouco conhecida
São Gregório Magno, tão hábil administrador e ardoroso apóstolo como grande
contemplativo, falando de São Bento —que, em Subiaco, lançava os fundamentos da
sua Regra, tornada uma das mais poderosas alavancas de apostolado de que Deus se tem
servido na terra— caracteriza, em três palavras, o estado de alma do patriarca dos
monges do Ocidente: “vivia consigo mesmo”.
Da maioria dos nossos contemporâneos, podemos dizer, precisamente, o
contrário.
Viver consigo mesmo; não se deixar governar pelas coisas exteriores; reduzir a
imaginação, a sensibilidade, a inteligência e a memória ao papel de servas da vontade.
Conformar, constantemente, esta vontade com a vontade de Deus, é um programa que
se vai aceitando cada vez menos, neste século de agitação, que viu nascer um ideal
novo: o amor da acção pela acção.
Para frustrar a disciplina das faculdades, serve qualquer pretexto: negócios,
família, saúde, fama, amor da pátria, prestígio da corporação, pretensa glória de Deus;
tudo nos fascina e nos impede de viver em nós mesmos.
Surpreende, pois, que a vida interior seja desconhecida?
Desconhecida, é ainda dizer pouco; essa vida é amiúde desprezada e
ridicularizada, até por aqueles mesmos que mais deveriam apreciá-la. Veja-se a
memorável carta dirigida por Leão XIII ao Cardeal Gibbons, arcebispo de Baltimore,
em que adverte os partidários do americanismo para o perigo da admiração excessiva
pelas obras.
Para furtar-se aos trabalhos da vida interior, certos homens da Igreja chegam a
menosprezar a vida eucarística. Relegam para segundo plano o essencial. Para eles, a
igreja não é ainda um templo protestante; o sacrário não está ainda vazio. Mas a vida
eucarística, na sua opinião, quase não pode adaptar-se, nem sobretudo bastar, às
exigências da civilização moderna; e a vida interior que, necessariamente, promana da
vida eucarística, já passou da moda.
Para as numerosas pessoas imbuídas dessas teorias, a comunhão perdeu o
sentido que teve para os primeiros cristãos. Acreditam na Eucaristia, mas não a
consideram o centro da sua vida e das suas obras. Consideram a vida interior uma
prática medieval ultrapassada.
Realmente, ao ouvi-los falar das suas obras, seríamos levados a pensar que o
Omnipotente —que criou os mundos sem esforço algum e perante quem o universo
inteiro se reduz a poeira e nada— não pode prescindir da sua colaboração! Ao prestarem
tanto culto à acção, chegam a fazer dela uma espécie de dogma, que os leva a
entregarem-se, desenfreadamente, a uma vida fora de si mesmos. A Igreja, a diocese, a
paróquia, a congregação, a obra, carecem dos meus serviços... Gostariam até de dizer:
Deus precisa de mim! E, se não ousam dizê-lo, a sua presunção e falta de fé, leva-os a
pensar assim.
Os médicos prescrevem, por vezes, aos depressivos que se abstenham de todos
os trabalhos, por algum tempo. Remédio duro, porque essa doença provoca
precisamente uma excitação febril, que impele a pessoa a gastar forças e procurar
comoções, que só lhe agravam o mal.
Assim sucede, precisamente, a certos homens de obras em relação à vida
interior. Sentem repugnância por ela, embora ela seja o remédio dos seus males.
Preferem atordoar-se, cada vez mais, numa avalanche de trabalhos, e afastam, desse
modo, as possibilidades de cura.
O navio avança a todo o vapor, enquanto o piloto admira a velocidade da
marcha. Para Deus, no entanto, esse navio, por falta de um comandante prudente, corre
à deriva e corre o perigo de naufragar. Adoradores em espírito e verdade, eis o que
Nosso Senhor exige, antes de mais. Iludem-se os que pensam que contribuem para a
maior glória de Deus, tendo em vista, principalmente, os resultados exteriores.
Este estado de espírito explica o facto de, hoje, ainda serem aceites as escolas, os
dispensários, as missões, os hospitais, e, pelo contrário, se compreender cada vez menos
os mosteiros contemplativos. Muitos não se contentam apenas em chamar covardes e
iluminados os que se consagram à oração e penitência na solidão dos claustros, mas até
ridiculizam aqueles que roubam alguns instantes às suas ocupações, para purificar e
inflamar o seu zelo junto do sacrário, e obter do Hóspede divino maiores e melhores
resultados para os seus trabalhos.
5. Resposta a uma primeira objecção: É ociosa a vida interior?
Este livro dirige-se, apenas, aos apóstolos que trabalham pela salvação das
almas, mas que correm o risco de negligenciar a vida interior e prejudicar, assim, os
frutos das suas obras.
Estimular os apóstolos que prestam culto ao repouso; ou os que confundem
ociosidade com meio de favorecer a piedade; sacudir a indiferença dos indolentes e
egoístas, que só aceitam as obras se estas não lhes perturbarem a tranquilidade: tal não
é o nosso fito. Essa tarefa exigiria uma obra especial. Deixamos a outros o cuidado de
chamarem à responsabilidade as almas apáticas, que Deus queria activas, mas que o
demónio e a natureza tornam infecundas, por falta de zelo e de actividade.
Voltemos, pois, àqueles para quem, especialmente, escrevemos.
Nenhuma comparação pode exprimir bem a intensidade infinita de actividade
que existe no seio de Deus. A vida interior do Pai é tal, que ela gera uma Pessoa divina.
Da vida interior do Pai e do Filho procede o Espírito Santo.
A vida interior comunicada aos Apóstolos no Cenáculo inflamou o seu zelo.
A vida de oração é sempre, em si mesma, uma incomparável fonte de actividade.
Nada mais falso do que ver nela uma espécie de oásis, a servir de refúgio para os
preguiçosos. Basta ser o caminho que, mais directamente, conduz ao reino dos céus,
para que o texto: “O reino dos céus sofre violência, e os que fazem violência são os que
o arrebatam” (Mt 9, 12), lhe deva ser especialmente aplicado.
D. Sebastião Wyart —que conheceu bem os trabalhos do asceta e as canseiras da
vida militar, o estudo esgotante e as duras responsabilidades de superior— costumava
dizer que há três espécies de trabalhos:
1º O trabalho, quase exclusivamente físico, daqueles que exercem uma profissão
manual: lavrador, operário, artista, soldado, etc. Este trabalho, afirmava ele, é o menos
rude dos três;
2º O trabalho do intelectual e do sábio, procurando, por vezes tão arduamente, a
verdade; o trabalho do escritor e do professor, que envidam todos os esforços para fazer
penetrar noutras inteligências essa mesma verdade; o trabalho do diplomata, do
negociante, do engenheiro, etc.; o esforço intelectual do general, para prever os
combates, dirigir e decidir. Estes trabalhos, diz ele, são muito mais penosos que o
primeiro
3º Enfim, o trabalho da vida interior. É, sem dúvida, o mais duro dos três,
quando tomado a sério. 8 Mas é, também, o que nos oferece maior número de
consolações neste mundo. É, igualmente, o mais importante. Constitui não já a profissão
do homem, mas o próprio homem. Quantos se afanam, nos dois primeiros géneros de
trabalhos, para alcançarem a fortuna e o êxito, mas não passam de uns preguiçosos e
covardes, quando se trata do trabalho para a virtude!
Quem quiser obter a vida interior deve esforçar-se por adquirir domínio
completo sobre si próprio, para que todas as suas acções redundem em glória de Deus.
Procurará conservar-se sempre unido a Jesus Cristo, com os olhos fitos na meta a atingir
e pesando tudo à luz do Evangelho. “Para onde e a quem irei?”, repete, com Santo
Inácio. Tudo nele — inteligência, vontade, memória, sensibilidade, imaginação e
sentidos— dependerá de um princípio. Mas quanto trabalho custa chegar a este
resultado! Quer se mortifique ou se entregue a um recreio lícito, quer reflicta ou actue,
quer trabalhe ou descanse, quer ame o bem ou rejeite o mal, deseje ou tema, esteja
alegre ou triste, com esperança ou temor, indignado ou tranquilo, mantém sempre o
leme na direcção da plena vontade divina. Na oração, sobretudo junto da Eucaristia,
isola-se dos objectos visíveis, a fim de chegar a falar com Deus invisível como se O
estivesse a ver. 9 No decurso dos seus trabalhos apostólicos, procura realizar este ideal,
que São Paulo admirava em Moisés.
Adversidades da vida, tormentas suscitadas pelas paixões, nada logra desviá-lo
da linha de conduta que se impôs. Se, porventura, fraqueja um momento, depressa
recobra ânimo e continua, com mais vigor, o seu caminho ascensional.
Não é difícil compreender que Deus recompense, já neste mundo, com alegrias
especiais, quem não recua perante este esforço.
Às vezes, preferimos passar longas horas numa ocupação fatigante do que meia
hora a fazer uma oração bem feita, a assistir à Missa, ou a rezar o ofício. 10 O Padre
Faber verifica, com tristeza, que, para alguns, “o quarto de hora que se segue à
Comunhão é o quarto de hora mais enfadonho do dia”. Tratando-se de um breve retiro
de três dias, quanta relutância para outros! Separar-se por três dias da vida fácil, embora
ocupadíssima, para viver uma vida plenamente sobrenatural; contemplar tudo, durante
esse período, somente à luz da fé; esquecer tudo, para somente aspirar a Jesus e à sua
vida; analisar, implacavelmente, a nossa alma, para descobrir todas as suas fraquezas e
doenças: eis uma perspectiva que faz recuar grande número de pessoas, prontas,
todavia, para grandes fadigas em trabalhos puramente naturais.
E se três dias, assim ocupados, já parecem tão penosos, que pensar de uma vida
inteira gradualmente submetida ao regime da vida interior? E ainda há quem tenha a
coragem de dizer que os religiosos de vida contemplativa são ociosos!
É bem certo que, neste trabalho de desprendimento, a graça torna o jugo suave e
o fardo leve. Mas quantos esforços são necessários para a alma! É sempre penoso o
regresso ao caminho recto e a volta ao ideal de São Paulo: “A nossa conversação está no
céu” (Fil 3, 20). São Tomás explica isto perfeitamente: “O homem —diz ele— está
colocado entre as coisas deste mundo e os bens espirituais, nos quais reside a felicidade
eterna. Quanto mais adere a uns, tanto mais se afasta dos outros, e vice versa”.11 Numa
balança, se um dos pratos desce, o outro eleva-se na mesma medida. O pecado original,
tendo transtornado a economia do nosso ser, tornou penoso este duplo movimento de
adesão e afastamento. Desde então, para restabelecer e conservar a ordem neste
“pequeno mundo” que é o homem, é indispensável a vida interior, obtida com trabalho e
sacrifício. É como um edifício desmoronado que se trata de reconstruir e, em seguida,
preservar de nova ruína.
Arrancar aos pensamentos da terra, pela vigilância, renúncia e mortificação, este
“coração endurecido” (Sl 4, 3) com todo o peso da natureza corrompida; tornar o nosso
carácter semelhante ao de Nosso Senhor, pelo combate à dissipação, ao arrebatamento,
à auto-complacência, às manifestações de orgulho, ao naturalismo, ao egoísmo, à falta
de bondade, etc.; renunciar aos prazeres sensíveis com a esperança da felicidade
espiritual, que somente se desfrutará após longa expectativa; desapegar-se de tudo
quanto é susceptível de lhe fazer amar o mundo e fazer de tudo isso um holocausto sem
reserva…, que tarefa!
E isto é só a parte negativa da vida interior. Depois deste combate sem tréguas
contra um inimigo sempre prestes a renascer —combate que fazia gemer São Paulo12 e
que o Padre De Ravignan exprimia assim: “Procurais o que fiz durante o meu
noviciado? Éramos dois, atirei um pela janela fora e fiquei eu sozinho”— é necessário
proteger, contra as mínimas quedas, um coração já purificado pela penitência, que
deseja agora, ardentemente, reparar os ultrajes feitos a Deus, imitar as virtudes de Jesus
Cristo, e adquirir confiança absoluta na Providência; é este o lado positivo da vida
interior. Quem não advinha o campo ilimitado de trabalho que aqui se patenteia! 13
Trabalho íntimo, assíduo, constante. E, no entanto, precisamente por meio deste
trabalho, a alma adquire maravilhosa facilidade e surpreendente rapidez de execução
nos trabalhos apostólicos. Só a vida interior possui este segredo.
As obras imensas levadas a cabo por Santo Agostinho, São João Crisóstomo,
São Bernardo, São Tomás de Aquino, São Vicente de Paulo, e tantos outros santos,
causam-nos assombro. Este assombro cresce quando vemos esses homens, apesar dos
trabalhos incessantes, das preocupações, ou da falta de saúde, manterem-se na mais
constante união com Deus. Apagando a sua sêde na Fonte da Vida, pela contemplação,
esses santos hauriam nela a sua inesgotável capacidade de trabalho.
Um dos nossos grandes bispos, sobrecarregado de afazeres, aconselhou certa vez
um estadista, também ele muito atarefado, que lhe perguntara o segredo da sua
serenidade e dos resultados admiráveis das suas obras: “A todas as suas ocupações, meu
caro amigo, acrescente meia hora de meditação todas as manhãs. Conseguirá despachar
todos os assuntos e encontrará tempo para realizar ainda mais.”
Enfim, o santo rei Luís IX encontrava, nas oito ou nove horas que habitualmente
consagrava aos exercícios da vida interior, o segredo e a força para se dedicar aos
negócios de Estado e ao bem dos seus súbditos, com tanta solicitude que —conforme
chegou a confessar um orador socialista— nunca em França se fez tanto a favor das
classes operárias como sob o reinado daquele príncipe.
6. Resposta a uma segunda objecção: É egoísta a vida interior?
É falsa a piedade daqueles que fazem consistir a vida interior numa ociosidade
agradável e preguiçosa, e que procuram as consolações de Deus, mais do que o Deus
das consolações. Contudo, está, igualmente, errado quem considera egoísta a vida
interior.
Já dissemos que esta vida é a fonte pura das mais generosas obras de caridade,
que visa o alívio dos sofrimentos deste mundo e o bem das almas. Examinemos a
utilidade desta vida sob outro ponto de vista.
Seria verdadeira blasfémia chamar egoísta e estéril a vida interior de Nossa
Senhora e de São José! Contudo, nenhuma obra exterior lhes é atribuída. A irradiação
sobre o mundo da sua intensíssima vida interior, os frutos das suas orações e sacrifícios
bastaram para constituir Maria, Rainha dos Apóstolos, e José, Padroeiro da Igreja
Católica.
“A minha irmã deixa-me sozinha a servir” (Lc 10, 40), diz, servindo-se das
palavras de Marta, o apóstolo vaidoso com o resultado das suas obras exteriores. A sua
fatuidade não chega ao extremo de julgar que Deus precisa, absolutamente, dele.
Todavia, incapaz de apreciar a excelência da contemplação de Madalena, repete ainda
com Marta: “Diz-lhe, pois, que me venha ajudar!” (Lc 10, 40) e chega até a exclamar:
“Para que foi este desperdício?” (Mt 26, 8), considerando, como tal, o tempo que outros
apóstolos reservam à vida interior na presença de Deus.
“Eu santifico-me por eles, a fim de que eles sejam também santificados na
verdade” (Jo 17, 19), responde a alma que compreendeu todo o alcance deste “a fim
de”, do Mestre: e, conhecendo o valor da oração e do sacrifício, une às lágrimas e ao
sangue do Redentor as lágrimas dos seus olhos e o sangue de um coração que cada dia
se vai purificando mais.
Com Jesus, a alma interior ouve o alarido dos crimes do mundo subir até ao céu
e atrair sobre os seus autores o castigo, mas suspende esse castigo, pela omnipotência da
sua súplica, capaz de deter a própria mão de Deus.
Aqueles que rezam, dizia, depois da sua conversão, o eminente estadista Donoso
Cortés, fazem mais pelo mundo do que aqueles que combatem, e, se o mundo está cada
vez pior, é porque há mais batalhas que orações.
“As mãos erguidas —diz Bossuet— desbaratam mais batalhões do que as mãos
que ferem.” E, no meio dos seus desertos, os solitários da Tebaida tinham, muitas vezes,
no coração o mesmo fogo que animava São Francisco Xavier. Pareciam, diz Santo
Agostinho, ter abandonado o mundo mais do que seria razoável. Contudo, as suas
orações, tornadas mais puras por esse grande afastamento do mundo, eram de uma
eficácia incomparável para esse mesmo mundo que eles tinham abandonado.
Normalmente, uma oração curta, mas fervorosa, contribui mais para apressar
uma conversão, do que longas discussões e excelentes discursos. Quem reza, trata com a
Causa primeira; opera, directamente, sobre Ela; tem, assim, na mão as causas segundas,
cuja eficácia depende desse princípio superior. Por isso, o efeito desejado é, então,
obtido com maior segurança e rapidez.
Dez mil protestantes —no dizer de uma revelação respeitável— foram
convertidos por uma só oração inflamada da seráfica Santa Teresa. Ardendo em amor de
Cristo, ela não podia compreender uma vida contemplativa, uma vida interior que não
participasse no desejo ardente do Salvador pela redenção das almas. “Aceitaria o
purgatório —diz ela— até ao juízo final, para livrar uma só dessas almas. E que me
importaria a duração dos meus sofrimentos, se assim pudesse livrar uma só alma, e
sobretudo muitas, para a maior glória de Deus!” E dirigindo-se às suas religiosas:
“Encaminhai, para este fim inteiramente apostólico, minhas filhas, as vossas orações, as
vossas disciplinas, os vossos jejuns, os vossos desejos”.
Tal é, com efeito, a obra das carmelitas, das trapistas, das visitandinas e das
clarissas. Vêde-as acompanhar com fervorosas orações e penitências a caminhada dos
apóstolos. O seu amor oculto, mas activo, abre por toda a parte, no mundo dos
pecadores, os caminhos da misericórdia.
Ninguém conhece neste mundo o porquê dessas conversões longínquas de
pagãos, da paciência heróica dos cristãos perseguidos, da alegria celeste dos
missionários martirizados. Tudo isso pode estar, invisivelmente, ligado à oração de uma
despretensiosa freira.14 Com os dedos sobre o teclado dos perdões divinos e das luzes
eternas, a sua alma silenciosa e solitária preside à salvação das almas e às conquistas da
Igreja em toda a extensão da Terra.
“Quero trapistas neste vicariato apostólico —dizia Mons. Favier, bispo de
Pequim— desejo até que eles se abstenham de qualquer ministério exterior, a fim de
que nada os distraia do trabalho, da oração, da penitência e dos santos estudos. Porque
sei que será grande o auxílio prestado aos missionários pela existência de um fervoroso
mosteiro de contemplativos no meio dos nossos pobres chineses.” E mais tarde:
“Conseguimos, por fim, penetrar numa região até hoje inacessível. Atribuo este facto
aos nossos queridos trapistas.”
“Dez carmelitas a rezar, dizia um bispo da Cochinchina ao governador de
Saigão, auxiliar-me-ão muito mais do que vinte missionários a pregar.”
Os padres diocesanos, os religiosos e religiosas votados à vida activa, mas sem
perder a vida interior, participam do mesmo poder sobre o coração de Deus que têm as
almas do claustro. São João Bosco é, disso, um frisante exemplo. A bem-aventurada
Ana Maria Taigi, nas suas funções de porteira e dona de casa, e tantos outros leigos
humildes, mas abrasados no mesmo ardor, foram eficacíssimos nas suas obras, porque
possuíam uma intensa vida interior. E o general de Sonis, entre duas batalhas,
encontrava na união com Deus o segredo do seu apostolado.
Egoísta e estéril a vida de um Santo Cura d’Ars? Tal pergunta nem merece
resposta. Todas as pessoas rectas que o conheceram atribuem, precisamente, o seu
extraordinário zelo apostólico e os seus enormes êxitos à sua grande intimidade com
Deus. Tão contemplativo como um monge cartuxo, embora com poucos dotes
intelectuais, sentia uma sêde de almas, que a vida interior tornara inextinguível, e
recebeu de Nosso Senhor o poder de operar grandes conversões.
Infecunda, a sua vida interior? Suponhamos um São João Baptista Vianney em
cada uma das nossas dioceses, e, em menos de dez anos, a França estaria regenerada,
mais profundamente do que por multidões de obras —com grandes recursos humanos,
talentos e dinheiro— mas insuficientemente edificadas sobre a vida interior.
Não tenhamos dúvidas, a reconstrução da França, após a Revolução, deve-se
atribuir a uma plêiade de sacerdotes amadurecidos na vida interior, pela perseguição.
Por meio deles, uma corrente de vida divina veio reanimar uma geração que a apostasia
e a indiferença pareciam ter votado a uma morte que nenhum esforço humano lograria
conjurar. Talvez em nenhuma outra época tenha havido tantas almas tão ardentemente
desejosas de viver unidas ao Coração de Jesus e de dilatar o seu reinado, fazendo
germinar à sua volta a vida interior. Dir-se-á: essas almas de escol são ínfima minoria.
Talvez. Mas que importa o número, se houver intensidade? Após cinquenta anos de
liberdade de ensino em França, após esse meio século, que viu a eclosão de obras
inumeráveis e durante o qual nos passou pelas mãos toda a juventude francesa e
lográmos o apoio quase completo dos governantes, qual a razão por que, a despeito de
resultados aparentemente gloriosos, não pudemos formar uma maioria profundamente
cristã, capaz de restaurar a verdadeira França?
A decadência da vida litúrgica e o esmorecimento da sua irradiação sobre os
fiéis contribuíram, certamente, para esta impotência. A nossa espiritualidade tornou-se
acanhada, árida, exterior e sentimental, e já não possui a vitalidade cristã e o entusiasmo
que a liturgia produz.
Mas não existirá outra causa no facto de nós, padres e educadores, por falta de
intensa vida interior, termos formado almas de piedade superficial, sem grandes ideais,
nem convicções profundas? Professores, não termos procurado mais o êxito das
carreiras e o prestígio das obras, do que dar às almas sólida instrução religiosa? Não
termos descurado a formação das vontades, para gravar nelas, em caracteres de rija
têmpera, a imagem de Jesus Cristo? E essa mediocridade não resultará da banalidade da
nossa vida interior?
A sacerdote santo —houve quem dissesse— corresponde um povo fervoroso; a
sacerdote fervoroso, um povo piedoso; a sacerdote piedoso, um povo honesto; a
sacerdote honesto, um povo ímpio. Sempre um grau de vida a menos, naqueles que são
gerados. Seria talvez exagero admitir esta proposição. Julgamos, contudo, que as
seguintes palavras de Santo Afonso Maria de Ligório explicam bem a actual situação:
“Os bons costumes e a salvação dos povos dependem dos bons pastores. Se, à
frente de uma paróquia, estiver um bom pároco, depressa nela se verá florescer a
devoção, os sacramentos serão frequentados, a oração mental praticada. Daí o
provérbio: ‘Tal padre, tal paróquia’, segundo esta palavra do Eclesiástico (10, 2): ‘Qual
o governador da cidade, tais os seus habitantes’”.
7. Objecção decorrente da importância da salvação das almas
Mas, dirá a alma exterior à procura de pretextos contra a vida interior: Como
posso limitar as minhas obras apostólicas? Tratando-se da salvação das almas, todos os
esforços são poucos. Quem trabalha, reza. O sacrifício avantaja-se à oração. E São
Gregório não chama ao zelo das almas o mais agradável sacrifício que se pode oferecer
a Deus? “Nenhum sacrifício é mais agradável a Deus do que o cuidado das almas”.15
Analisemos primeiramente o sentido desta frase de São Gregório, servindo-nos
das palavras do doutor angélico. “Oferecer espiritualmente um sacrifício a Deus —diz
ele— é oferecer-lhe alguma coisa que o glorifique. Ora, de todos os bens, o mais
agradável que o homem pode oferecer ao Senhor é, indubitavelmente, a salvação de
uma alma. Mas antes de tudo, deve oferecer-Lhe a sua própria alma, segundo o que diz
a Escritura: ‘Quereis agradar a Deus, tende piedade da vossa alma’. Feito este primeiro
sacrifício, ser-nos-á então permitido ajudar os outros a alcançar uma felicidade
semelhante. Quanto mais estreitamente o homem unir a Deus a sua alma, primeiro, e
depois a de outrem, tanto mais favoravelmente será acolhido o seu sacrifício. Mas esta
união íntima, generosa e humilde, apenas se alcança pela oração. Dedicar-se,
cuidadosamente, ou fazer que os outros se dediquem, à vida de oração, agrada muito
mais a Deus do que consagrar-se à acção. Por conseguinte —conclui São Tomás—
quando São Gregório afirma que o sacrifício mais agradável a Deus é a salvação das
almas, não quer dizer que a vida activa é preferível à contemplação; mas, apenas, que
oferecer a Deus uma só alma, Lhe dá infinitamente mais glória, e, a nós, mais méritos,
do que apresentar-Lhe o que de mais precioso exista na terra”.16
A necessidade da vida interior não deve desviar das obras apostólicas as almas
generosas, fazendo-as desertar do campo de batalha, com o pretexto de chegar a uma
união mais perfeita com Deus. Seria uma ilusão e, em certos casos, a origem de
verdadeiros perigos. “Ai de mim —diz São Paulo— se não evangelizar!” (1 Cor 9, 16).
Feita esta ressalva, apressamo-nos a afirmar que consagrar-se alguém à
conversão das almas, esquecendo-se de si mesmo, origina uma ilusão mais grave. Deus
quer que amemos o próximo como a nós mesmos, mas nunca mais que a nós
mesmos, isto é, nunca a ponto de prejudicar a nossa alma, o que, na prática, equivale a
exigir mais cuidados com ela do que com a alma alheia. O adágio Prima sibi charitas
17 permanece perfeitamente teológico.
“Eu amo Jesus Cristo —dizia Santo Afonso de Ligório— e, por isso mesmo,
ardo em desejos de lhe dar almas; antes de mais, a minha, depois, um número
incalculável de outras.” É o cumprimento do “sê para ti mesmo, em toda a parte”,18 de
S. Bernardo, ou ainda: “não é sábio quem o não é consigo mesmo”.
O santo abade de Claraval, verdadeiro fenómeno de zelo apostólico, seguia esta
ordem. Godofredo, seu secretário, descreve-o assim: “Todo para si mesmo, primeiro, e,
assim, todo para os outros”.19
“Não vos digo —escreve esse mesmo santo ao papa Eugénio III— que coloqueis
de parte as ocupações temporais. Exorto-vos, apenas, a que não vos dediqueis,
inteiramente, a elas. Se sois o homem de todos, sede-o, também, de vós mesmo. De
contrário, de que vos serviria ganhar os outros todos, se viésseis a perder a vossa alma?
Reservai, por conseguinte, alguma coisa para vós próprio, e, se todos vêm beber à vossa
fonte, vós mesmo não vos priveis de beber nela. Pois, só vós haveis de ficar com sêde?
Começai sempre por vos considerar a vós mesmo. Debalde vos consagraríeis a outros
cuidados, se chegásseis a tratar a vós mesmo com negligência. Todas as vossas
reflexões devem, portanto, começar por vós e terminar da mesma forma. Sede para vós
o primeiro e o último, e lembrai-vos que, no negócio da vossa salvação, ninguém tem
maior parentesco convosco do que o filho único da vossa mãe”. 20
Bastante sugestiva a seguinte nota de retiro de Mons. Dupanloup: “Tenho uma
actividade terrível, que me arruina a saúde, me perturba a piedade e de nada serve à
minha ciência. Isto deve ser regulado. Concedeu-me Deus a graça de reconhecer que a
actividade natural e o incitamento das ocupações são os principais obstáculos que vejo
em mim para a conservação de uma vida interior, tranquila e frutuosa. Reconheci
também que esta falta de vida interior é a origem de todas as minhas faltas, das minhas
perturbações, das minhas securas, das minhas repugnâncias, da minha falta de saúde.
Resolvi, por conseguinte, dirigir todos os meus esforços para a aquisição dessa vida
interior que me falta e, com esse fim, propus, mercê de Deus, os pontos seguintes:
“1º Reservarei sempre algum tempo, além do necessário, para fazer qualquer
coisa: este é o meio de nunca ter pressa, nem agitação.
“2º Como tenho, sempre, mais coisas a realizar do que tempo para as fazer, e
como esta perspectiva me preocupa e me perturba, não hei-de pensar nas coisas que
tenho para fazer, e sim no tempo que devo consagrar-lhes. Hei-de empregar esse tempo
sem perder um minuto, começando pelas coisas mais importantes, e, se algumas não
puder fazer, nem por isso me hei-de inquietar, etc., etc...”
A muitas safiras, prefere o joalheiro o mínimo fragmento de diamante. Da
mesma forma, consoante a ordem estabelecida por Deus, a nossa intimidade com Ele
glorifica-O muito mais do que o bem feito por nós a grande número de almas, mas com
prejuízo do nosso progresso. O nosso Pai celeste, que mais se aplica ao governo de um
coração onde reina, do que ao governo natural de todo o universo e ao governo civil de
todos os impérios, 21 exige no nosso zelo essa harmonia. E, se vê que uma obra impede
o aumento da caridade na alma que dela se ocupa, prefere às vezes deixar desaparecer
essa obra.
Pelo contrário, Satanás não hesita em favorecer êxitos superficiais, caso possa,
mediante esse resultado, dificultar o progresso do apóstolo na vida interior, pois o seu
ódio advinha onde estão os verdadeiros tesouros aos olhos de Jesus Cristo. Para
suprimir um diamante, não se importa de entregar algumas safiras.
Parte II
União da vida activa e da vida interior
1. Prioridade da vida interior sobre a vida activa
Em Deus está a vida, toda a vida, Ele é a própria vida. Ora, não é nas obras
exteriores, como a Criação, que o Ser infinito manifesta essa vida do modo mais
intenso, mas sim no que a teologia chama operações ad intra: essa actividade inefável
cujo termo é a geração perpétua do Filho e a incessante processão do Espírito Santo.
Essa é, por excelência, a sua obra essencial, eterna.
A vida terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo foi a realização perfeita do plano
divino. Trinta anos de recolhimento, seguidos de quarenta dias de retiro e penitência,
prepararam a sua curta carreira evangélica; e, durante as suas jornadas apostólicas,
quantas vezes ainda, O vemos retirar-se para as montanhas ou para os desertos, a fim de
orar: “Ele retirava-Se para lugares solitários e entregava-Se aí à oração” (Lc 5, 16). Ou
passar a noite a rezar: “Naqueles dias, Jesus foi para o monte a fim de fazer oração, e
passou a noite a orar a Deus” (Lc 6, 12). Rasgo ainda mais significativo: Marta deseja
que o Senhor, condenando a suposta ociosidade da sua irmã, proclame a superioridade
da vida activa; a resposta de Jesus: “Maria escolheu a melhor parte” (Lc 10, 42),
consagra a importância da vida interior. Jesus quis, pois, fazer-nos ver, claramente, a
preponderância da vida de oração sobre a vida activa.
Os Apóstolos, fiéis aos exemplos do Mestre, reservaram para si o ofício da
oração e o ministério da palavra, deixando as ocupações mais exteriores aos diáconos:
“Quanto a nós, entregar-nos-emos, assiduamente, à oração e ao exercício da palavra”
(Act 6, 4).
Os Papas, os santos doutores e os teólogos afirmam, por sua vez, que a vida
interior é superior à vida activa.
Há alguns anos, uma mulher, de grande virtude e carácter —superiora geral de
uma das mais importantes congregações docentes do Aveyron— foi convidada pelos
superiores eclesiásticos a favorecer a secularização das suas religiosas.
Deveria sacrificar as obras à vida religiosa, ou abandonar esta para conservar
aquelas? Perplexa, querendo conhecer a vontade de Deus, partiu, secretamente, para
Roma, obteve uma audiência de Leão XIII, expôs-lhe as suas dúvidas e a pressão que
sofrera a favor das obras.
Após alguns instantes de recolhimento, o Pontífice deu-lhe esta resposta
peremptória: “A conservação na vida religiosa das suas filhas, que tiverem o espírito do
seu santo estado e o amor à vida de oração, é preferível a qualquer obra. Se não
conseguir conservá-las nesse espírito e nessa vida, Deus suscitará em França outras
vocações. A sua vida interior, orações e sacrifícios, serão mais úteis à França se
continuarem como verdadeiras religiosas, do que se forem privadas dos tesouros da sua
consagração a Deus”.
Numa carta dirigida a um importante instituto exclusivamente dedicado ao
ensino, São Pio X manifestou o seu pensamento com as palavras seguintes:
“Chegou ao Nosso conhecimento que começa a difundir-se uma opinião,
segundo a qual vós deveríeis considerar como prioritária a educação das crianças e,
apenas em segundo lugar, a vossa profissão religiosa: que assim o exigiriam o espírito e
as necessidades dos tempos. De forma alguma queremos que tal opinião encontre o
mínimo crédito, seja da vossa parte, seja da parte dos demais institutos religiosos
dedicados à educação, como o vosso. Fique, portanto, bem assente, pelo que vos toca,
que a vida religiosa é muitíssimo superior à vida comum e que, se estais gravemente
obrigados ao dever de ensinar o próximo, muito mais graves são as obrigações que vos
vinculam a Deus”.
Não é, porventura, a aquisição da vida interior o fim principal da vida religiosa?
“A vida contemplativa —diz o Doutor Angélico— é melhor que a vida activa, e
preferível a ela”.
S. Boaventura acumula os superlativos, para mostrar a excelência desta vida
interior: “Vida mais sublime, mais segura, mais rica, mais suave, mais estável”.
“Vida mais sublime”. A vida activa ocupa-se dos homens, a vida contemplativa
faz-nos entrar no domínio das mais altas verdades, sem desviar os olhos do próprio
princípio da vida. Principium quod Deus est quaeritur. Os seus horizontes são sublimes
e o seu campo de acção incomparavelmente amplo: “Marta, num só lugar, entregava-se
a vários trabalhos físicos. Maria, pela caridade, trabalha em muitos lugares e em
numerosas obras. Contemplando e amando a Deus, tudo vê, tudo compreende e abarca.
Pode, pois, dizer-se que, em comparação com Maria, Marta tem poucas
inquietações”. 22
“Vida mais segura”. Há menos perigos nesta vida. Na vida activa, a alma agita-
se, torna-se febril, dispersa as suas energias e debilita-se. “Marta, Marta, andas inquieta
—disse o Senhor— e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária” (Lc 10,
41-42). Há, pois, aqui um tríplice defeito: “andas inquieta”: são as inquietações do
pensamento; “perturbada”: são as perturbações provenientes das afeições; enfim, “com
muitas coisas”: são as múltiplas ocupações, que originam a divisão de esforços. Ao
invés, uma só causa se impõe para constituir a vida interior: a união com Deus. O resto
só pode ser secundário, e só se justifica se fortalecer tal união.
“Vida mais rica”. Com a contemplação, alcançam-se todos os bens: “Com ela
me vieram todos os bens” (Sab 7, 2). É a parte excelente: “Ela escolheu a melhor parte,
que lhe não será tirada” (Lc 10, 42). Recolhe mais méritos. Porquê? Porque fortifica a
vontade e aumenta a graça santificante, levando a alma a operar por um princípio de
caridade.
“Vida mais suave”. A alma verdadeiramente interior abandona-se à vontade de
Deus, aceita, com inalterável paciência, tanto as coisas agradáveis como as penosas, e
chega a mostrar-se alegre no meio das aflições, feliz por carregar a sua cruz.
“Vida mais estável”. Por mais intensa que seja, a vida activa tem o seu termo
neste mundo: pregações, ensinamentos, trabalhos, tudo isso cessa no limiar da
eternidade. Mas a vida interior não conhece ocaso. Por meio dela, a passagem por este
mundo é uma contínua ascensão para a luz, ascensão que, após a morte, se torna,
incomparavelmente, mais rutilante e mais rápida.
Para resumir as excelências da vida interior, podem-se-lhe aplicar estas palavras
de S. Bernardo: “Nela, o homem vive com mais pureza, cai mais raramente, levanta-se
mais depressa, anda com mais cautela, é consolado pelo Céu com mais frequência,
descansa com mais segurança, morre com mais confiança, é purificado mais depressa, e
é premiado com mais abundância”.23
2. As obras devem transbordar da vida interior

“Sede, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celeste” (Mt 5,


48). Guardadas as devidas proporções, o modo como Deus opera deve ser a regra da
nossa vida interior e exterior.
Ora, já sabemos, por experiência, que o Criador é, naturalmente, generoso, e
que, neste mundo, espalha, com profusão, os seus benefícios sobre todos os seres,
especialmente sobre a criatura humana. O universo inteiro é, desde o princípio, objecto
desta inesgotável prodigalidade. Com tudo isso, Deus não fica mais pobre; essa
munificência inexaurível de forma alguma pode diminuir, seja no que for, os seus
infinitos recursos.
Além de conceder aos homens incontáveis bens exteriores, Deus quis enviar-lhes
o seu próprio Verbo. Mas ainda aqui, nesta dádiva suprema, que é o dom de Si mesmo,
Deus nada abandona —nada pode abandonar— da integridade da sua natureza. Dando-
nos o seu Filho, conserva-O sempre consigo. “Tomai, para exemplo, o ilustre Soberano
de todas as coisas, enviando a um tempo o seu Verbo e retendo-O com Ele”.24
Por meio dos sacramentos, e especialmente da Eucaristia, Jesus Cristo vem
enriquecer-nos com graças superabundantes, porque Ele é como um oceano a derramar-
se continuamente sobre nós: “Todos nós participamos da sua plenitude” (Jo 1, 16).
Assim devemos ser, de algum modo, todos os que assumimos a nobre tarefa da
santificação alheia: “O vosso verbo é a vossa consideração: parta ele de vós sem de vós
sair”;25 o nosso verbo é o espírito interior que a graça infundiu na alma. Esse espírito
deve dar vida a todas as manifestações do nosso zelo apostólico; mas, como o
despendemos em favor do próximo, devemos renová-lo, continuamente, pelos meios
que Jesus nos oferece. Seja, pois, a nossa vida interior como um tronco robusto, no qual
as obras estão sempre a florescer.
A alma do apóstolo deve ser a primeira a inundar-se de luz e de amor, para que
possa esclarecer e abrasar as outras almas. “O que ouvimos, o que vimos com os nossos
olhos, o que contemplámos e as nossas mãos apalparam (...) isso vos anunciamos” (1 Jo
1, 1). “A boca do apóstolo infundirá nos corações a abundância das doçuras celestes”,
diz S. Gregório.
Podemos agora deduzir o seguinte princípio: a vida activa deve proceder da vida
contemplativa, traduzi-la, e continuá-la exteriormente, desligando-se dela o menos
possível.
Os santos padres e os doutores proclamam à porfia esta doutrina.
“Antes de permitir à sua língua que fale —diz Santo Agostinho— o apóstolo
deve elevar a Deus a sua alma sequiosa, a fim de exalar o que tiver bebido e disseminar
aquilo de que estiver repleto.26
Para poder dar —diz o pseudo-Dionísio—27 é necessário receber. Os anjos
superiores apenas transmitem aos inferiores as luzes, cuja plenitude receberam. Nas
coisas divinas, o Criador estabeleceu esta ordem: aquele que tem a missão de distribuir
as graças, deve primeiro encher-se com abundância das graças que Deus quer dispensar
às almas. Então, e só então, poderá comunicá-las aos outros.
“Se sois sábios, sede reservatórios, e não canais”.28 Quem desconhece este
conselho de São Bernardo a quem se dedica ao apostolado? O canal deixa correr a água
recebida, sem guardar uma só gota. Pelo contrário, o reservatório enche-se,
primeiramente, e, depois, sem se esvaziar, derrama torrentes, incessantemente
renovadas, sobre os campos que fertiliza. Dos que se devotam às obras, quantos há que
são, apenas, canais, ficando sempre secos, mesmo quando procuram fecundar os
corações! “Há hoje, na Igreja, muitos canais, mas poucos reservatórios”,29
acrescentava, com tristeza, o santo abade de Claraval.
A causa é, sempre, superior aos seus efeitos; logo, para aperfeiçoar os outros,
requer-se uma perfeição maior do que para aperfeiçoar-se a si mesmo 30. Como a mãe
não pode amamentar o filho, se ela própria se não alimentar, assim também, os
confessores, os directores de almas, os pregadores, os catequistas, os professores
devem, primeiramente, assimilar o alimento que há-de nutrir, em seguida, os filhos da
Igreja.31 A verdade e o amor divino são o alimento da vida interior, que a torna capaz
de engendrar a vida.
3. A base, o fim e os meios de uma obra devem estar impregnados de vida interior
Falamos das obras que merecem tal nome. Porque algumas, nos nossos dias,
mais parecem empresas organizadas, sob o rótulo da piedade, para granjear os aplausos
do público. Outras há que têm fins e meios irrepreensíveis, mas, apesar de grandes
esforços, os resultados são nulos, ou pouco menos, porque os seus responsáveis têm
pouca fé no poder da vida sobrenatural sobre as almas.
Para definir o que deve ser uma obra, cedo a palavra a um homem, que ilustrou
uma região inteira com o seu apostolado, e relembro a lição que dele recebi, logo no
início do meu ministério sacerdotal. Procurava, então, fundar um patronato para
rapazes. Depois de ter visitado os círculos católicos de Paris e de outras cidades
francesas, as obras de Val-des-Bois, etc., fui estudar, em Marselha, as obras para a
juventude fundadas pelo santo padre Lallemant e pelo venerável cónego Timon-David.
Apraz-me recordar a intensa comoção do meu coração de jovem sacerdote, ao escutar as
palavras deste último:
– “Banda de música, teatro, projecções, ginástica, jogos, etc., nada disso
censuro. A princípio, eu também julgava indispensáveis esses meios; mas, afinal, não
passam de muletas, utilizadas à falta de melhor. Quanto mais avanço, tanto mais os
meus fins e meios se sobrenaturalizam, porque vejo, claramente, que as obras fundadas
sobre coisas humanas estão destinadas a perecer e que a Providência só abençoa as
obras que, pela prática da vida interior, aproximam, verdadeiramente, os homens de
Deus.
– “Os instrumentos musicais, há muito, estão para aí arrumados, o teatro tornou-
se inútil; entretanto, a obra prospera como nunca. Porquê? Porque, mercê de Deus,
compreendemos melhor as coisas do que a princípio, e porque temos mais fé na acção
da graça.
– “Procure, sem medo, os objectivos mais altos. Acredite nisto, e ficará
surpreendido com os resultados. Explico-me: Não pretenda, apenas, proporcionar aos
rapazes algumas distracções honestas, que os desviem de prazeres ilícitos e relações
perigosas; não se contente em dar-lhes algumas aparências de cristianismo, por meio da
assistência rotineira à missa ou da recepção espaçada dos sacramentos.
– Duc in altum, “Faz-te ao alto” (Luc 5, 4). Dos melhores, faça, antes de mais,
cristãos fervorosos, isto é, conduza-os à prática da meditação e da Missa diária, às
leituras espirituais, e à Comunhão frequente. Consagre-se, com todo o empenho, a
infundir neste rebanho escolhido o amor a Jesus Cristo, o espírito de oração e de
penitência, a vigilância, numa palavra, sólidas virtudes. Desenvolva nas suas almas a
sêde da Eucaristia. Anime esses jovens a fazerem apostolado com os seus
companheiros. Faça deles apóstolos francos, dedicados, ardentes, varonis, com bom
senso, sem devoções acanhadas e sem cair, sob pretextos de zelo, na triste extravagância
de espiar os seus colegas. Em menos de dois anos, já não precisará de instrumentos ou
de peças teatrais para ter êxito.
– “Percebo, respondi eu; esse grupo dos melhores deve ser o fermento. Mas,
como devo proceder com aqueles que não consigam elevar-se até essas alturas, esses
jovens de todas as idades, esses homens casados que virão a pertencer ao círculo
projectado?
– “Deverá infundir-lhes uma fé robusta, por meio de conferências preparadas
com todo o cuidado e que preencham muitos dos seus serões de Inverno. Os seus
cristãos sairão delas esclarecidos, não só para argumentar com os companheiros de
trabalho, como para resistir à acção perniciosa dos maus jornais e livros. Se conseguir
que eles tenham firmes convicções, e que as saibam expor sem respeito humano, já será
bom; mas convém levá-los ainda mais longe, até à piedade: uma piedade verdadeira,
ardente e esclarecida.
– “Devo, logo no princípio, franquear a porta a qualquer um?
– “O número só é desejável, quando os elementos recrutados forem bem
escolhidos. O desenvolvimento do círculo deve resultar da acção do núcleo dos
apóstolos, cujo centro deve ser Jesus, Maria, e V. Rev.ª, como seu instrumento.
– “A sede é modesta; devo preocupar-me em arranjar outra melhor?
– “A princípio, as salas espaçosas e cómodas podem atrair atenções sobre uma
obra incipiente. Mas, volto a dizer, se a base da sua associação for uma vida cristã
íntegra, ardente e apostólica, a sede estritamente necessária bastará para que nela
caibam as coisas que exige o funcionamento normal de um círculo. Poderá, então,
comprovar que o barulho pouco bem faz e que o bem faz pouco barulho! E que o
Evangelho, bem compreendido, faz diminuir as despesas sem prejudicar os resultados.
Mas terá de se dedicar, não tanto a preparar representações teatrais, sessões de ginástica
ou outras, como a acumular em si a vida de oração; porque, persuada-se bem disto, na
medida em que for o primeiro a viver no amor de Nosso Senhor, nessa proporção será
também capaz de inflamar nesse amor os corações alheios.
– “Em suma, baseia tudo na vida interior?
– “Sim, mil vezes sim, porque com ela, em vez de uma liga, obtém-se ouro puro.
E o que digo sobre as obras da juventude pode-se aplicar a qualquer outra obra:
paróquias, seminários, catecismo, escolas, círculos militares, etc.; acredite na minha
velha experiência. Quanto bem não produz, numa grande cidade, uma associação cristã
a viver, verdadeiramente, a vida sobrenatural! Opera como poderoso fermento e só os
anjos podem dizer como ela é fecunda em frutos de salvação.
“Ah! se os sacerdotes, os religiosos, e as pessoas de obras, conhecessem a força
da alavanca que têm nas mãos e tomassem como ponto de apoio o Coração de Jesus e a
vida em união com esse Coração divino, seriam capazes de levantar a nossa França! E,
com certeza, a levantariam, não obstante os esforços de Satanás e dos seus
partidários”.32
4. A vida interior e a vida activa reclamam-se mutuamente
Como o amor de Deus se revela pelos actos da vida interior, assim o amor do
próximo se manifesta pelas operações da vida exterior. Consequentemente, não podendo
o amor de Deus separar-se do amor de próximo, daí resulta que essas duas formas de
vida não podem, também, de maneira alguma, subsistir uma sem a outra.33
De igual sorte, diz Suárez, “não pode existir estado correcta e normalmente
ordenado para chegar à perfeição, sem que participe em certa medida da acção e da
contemplação”.34
O ilustre jesuíta limita-se a comentar o ensinamento de São Tomás. Aqueles que
são chamados às obras da vida activa, diz o Doutor Angélico, erram se julgam que este
dever os dispensa da vida contemplativa. Tal dever é um acréscimo desta vida e não lhe
diminui a intensidade. Desta forma, as duas vidas, longe de se excluírem, reclamam-se,
supõem-se, misturam-se, completam-se mutuamente; e, se, de alguma delas, se deve
fazer um quinhão mais considerável, é, sem dúvida, da vida contemplativa, por ser a
mais perfeita e a mais necessária.35
A acção, para ser fecunda, carece da contemplação. Quando esta atinge um certo
grau de intensidade, difunde o seu excedente sobre a acção. Por meio da contemplação,
a alma vai haurir, directamente, no Coração de Deus as graças que a acção se encarrega
de distribuir.
Fundindo-se numa harmonia perfeita, a acção e a contemplação dão à vida dos
santos uma maravilhosa unidade. São Bernardo, por exemplo, foi o homem mais
contemplativo, e ao mesmo tempo mais activo, do seu século. Um dos seus
contemporâneos descreveu-o assim: “A contemplação e a acção harmonizavam-se nele
a tal ponto, que parecia inteiramente dedicado às obras exteriores e, ao mesmo tempo,
inteiramente absorvido na presença e no amor do seu Deus”.36
Comentando este texto da sagrada Escritura: “Põe-me como um selo sobre o teu
coração, como um selo sobre o teu braço” (Cant, 8, 6), o Padre Saint-Jure descreve,
admiravelmente, as mútuas relações entre as duas vidas. Vamos resumir as suas
reflexões.
O coração significa a vida interior, contemplativa. O braço, a vida exterior,
activa.
O texto sagrado fala do coração e do braço para mostrar que as duas vidas se
podem aliar e harmonizar, perfeitamente, na mesma pessoa.
O coração é indicado em primeiro lugar, porque é um órgão mais nobre e
necessário que o braço. Da mesma forma, a contemplação é mais excelente e perfeita, e
merece muito mais estima que a acção.
Dia e noite, o coração palpita. Um só instante que este órgão essencial pare, e,
logo, sobrevem a morte. O braço somente se move por intervalos. Do mesmo modo,
devemos, por vezes, dar tréguas aos nossos trabalhos exteriores; mas, nunca, afrouxar
na aplicação às coisas espirituais.
O coração dá vida e força ao braço, por meio do sangue que lhe envia, e, sem
este, o braço morre. Assim, a vida contemplativa, vida de união com Deus, graças às
luzes e à assistência que a alma recebe desta sacra intimidade, vivifica as ocupações
exteriores; só ela é capaz de lhes comunicar, simultaneamente, carácter sobrenatural e
real utilidade. Sem ela, tudo é estéril e imperfeito.
Infelizmente, o homem separa o que Deus uniu; por isso, é tão rara essa união.
Para ser realizada, são necessárias certas precauções: nada empreender que exceda as
nossas forças; habituar-se a ver, em tudo, a vontade de Deus; só trabalhar nas obras que
Deus deseja de nós, e só por amor d’Ele; oferecer a Deus o nosso trabalho, renovando
amiúde a resolução de não trabalhar senão por Ele e para Ele. Em suma, seja qual for a
atenção requerida pelo trabalho, procurar conservar a paz, e o perfeito domínio de nós
mesmos. Quanto ao êxito, deixá-lo, somente, nas mãos de Deus, fugindo das
inquietações humanas para só procurar a Cristo. Tais são os conselhos dos mestres da
vida espiritual para chegarmos a essa união.
Por vezes, as ocupações são tantas, que exigem todas as nossas energias.
Poderemos, assim, ficar privados, por algum tempo, do gozo da união com Deus. Mas
essa união só sofrerá algum dano se nos habituarmos a esse estado. Somos fracos e
inconstantes. Se descuidarmos a nossa vida espiritual, depressa perdemos o gosto por
ela. Absorvidos pelas ocupações materiais, acabamos por comprazer-nos nelas. Pelo
contrário, se a vida interior tem vitalidade, ela suspira e geme no meio das actividades
transbordantes, e o mérito da contemplação sacrificada contribui para cimentar a união
da vida interior com a vida activa. Oprimida por essa sede de vida interior que não logra
saciar, a alma volta com ardor, logo que pode, à vida de oração. Nosso Senhor sempre
lhe há-de reservar alguns instantes de entretenimento com Ele. Exige, porém, que a
alma os não despreze e há-de compensar-lhe com o fervor a brevidade desses felizes
momentos.
Os caminhos de Deus assinalam-se pela sabedoria e pela bondade. Que
maravilhosa direcção dá Ele às almas, por meio da vida interior! Essa pena profunda de
termos de consagrar tanto tempo às obras de Deus, e tão pouco ao Deus das obras, tem a
sua recompensa. Graças a ela, vencemos a dissipação, o amor próprio e os apegos. Essa
disposição da alma, longe de prejudicar a liberdade do espírito e a actividade, confere-
lhes equilíbrio. É a melhor forma de praticar o exercício da presença de Deus, porque a
alma, na graça do momento presente, encontra o próprio Jesus, oferecendo-se-lhe oculto
sob a obra a realizar. Jesus trabalha junto dela e ampara-a. Essa pena salutar bem
compreendida, esse desejo, sempre sacrificado e sempre vivo, de ter mais momentos
livres para estar junto do sacrário, essas comunhões espirituais quase incessantes, são a
verdadeira causa da fecundidade da acção das pessoas que desempenham cargos, e, ao
mesmo tempo, a salvaguarda das suas almas e a causa dos seus progressos na virtude.
5. Excelência desta união
A união da vida contemplativa com a vida activa, constitui o verdadeiro
apostolado, “a obra principal do cristianismo”, como diz São Tomás.37
O apostolado supõe almas capazes de abraçar, com entusiasmo, uma ideia e de
se consagrar ao triunfo de um princípio. Sobrenaturalize-se a realização desse ideal pelo
espírito interior; animem-se com o espírito de Jesus o fim, os motivos do zelo e a
escolha dos meios, e teremos a vida mais perfeita, a vida por excelência. Vida que os
teólogos preferem mesmo à simples contemplação.
O apostolado do homem de oração é, diz São Boaventura, a palavra
conquistadora com “o mandato de Deus, o zelo das almas, a frutificação das
conversões”. Ou, como diz Santo Ambrósio, o “vapor da fé de emanações salutares”.
O apostolado do santo é a sementeira do mundo. O apóstolo lança às almas o
grão de Deus.38 É o amor em fogo que devora a terra, o incêndio do Pentecostes,
irresistivelmente propagado através dos povos: “Eu vim trazer fogo à terra” (Lc, 12, 49).
A sublimidade deste ministério consiste em zelar pela salvação de alguém, sem
prejuízo para o apóstolo; sublimatur ad hoc ut aliis provideat. Transmitir as verdades
divinas às inteligências humanas! Não é este, porventura, um ministério digno dos
anjos?
Bom é contemplar a verdade; mas, melhor ainda, comunicá-la aos outros.
Reflectir a luz é algo mais que recebê-la. Iluminar vale mais que luzir debaixo do
alqueire. Pela contemplação, a alma alimenta-se; pelo apostolado, dá-se.39
É esta união do apostolado cheio de zelo, e da contemplação mais sublime que
produziu santos, como São Dionísio, São Martinho, São Bernardo, São Domingos, São
Francisco de Assis, São Francisco Xavier, São Filipe de Néri, Santo Afonso Maria de
Ligório, São João Bosco; todos eles ardentes contemplativos e, ao mesmo tempo,
apóstolos poderosos.
Vida interior e vida activa! Santidade nas obras! União poderosa, união fecunda!
Que prodigiosas as conversões que ela opera! Meu Deus! concedei à vossa Igreja
muitos apóstolos, mas reacendei nos seus corações, devorados pelo desejo de se dar,
uma sede ardente da vida de oração. Dai aos vossos operários uma acção contemplativa
e uma contemplação activa: Então, a vossa obra realizar-se-á, plenamente, e os vossos
apóstolos alcançarão as vitórias que lhes anunciastes antes da vossa Ascensão gloriosa.

Parte III

A vida activa, unida à vida interior, assegura o progresso na virtude


1. As obras: meio de santificação, ou perigo para a salvação?
a) Meio de santificação – Nosso Senhor exige aos seus apóstolos, não só que se
conservem na virtude, mas que nela progridam. Podemos comprová-lo em cada página
das Epístolas de São Paulo a Tito e a Timóteo, e nas apóstrofes do Apocalipse aos
bispos da Ásia.
Por outro lado, já o demonstrámos, as obras são desejadas por Deus. Assim,
pois, ver nelas um obstáculo à nossa santificação, seria uma injúria à Sabedoria divina.
Dilema inevitável: ou o apostolado é um meio de santificação —caso se exerça
nas condições requeridas por Deus— ou, então, ele justificaria a negligência do apóstolo
em se santificar.
Ora, pela economia do plano divino, Deus deve a Si mesmo o conceder ao apóstolo
as graças necessárias para a sua salvação e santificação, no meio das absorventes
ocupações apostólicas.
Os socorros que dispensou a São Bernardo ou a São Francisco Xavier, deve-os
Deus ao mais modesto dos apóstolos, ao mais humilde dos religiosos professores, à
mais ignorada das irmãs enfermeiras. Não duvidemos: é essa uma verdadeira dívida do
Coração de Deus para com os instrumentos que escolheu. E o apóstolo, caso cumpra as
condições exigidas, pode ter a certeza de que receberá as graças requeridas por um
género de trabalhos que lhe hipotecam o tesouro infinito dos auxílios divinos.
Aquele que se consagra às obras de caridade —diz Alvarez de Paz— não deve
pensar que elas impedem a contemplação. Pelo contrário, dispõe-no, admiravelmente,
para ela. Estas verdades são-nos ensinadas, não só pela razão e pela autoridade dos
Padres da Igreja, como pela experiência quotidiana, porque vemos certas almas que se
dedicam às obras de caridade, confissões, pregações, catecismo, visita aos doentes, etc.,
elevadas por Deus a um tão alto grau de contemplação que, com toda a razão, se podem
comparar aos antigos eremitas do deserto.40
Por esta frase “grau de contemplação”, o eminente jesuíta, como todos os
mestres da vida espiritual, designa o dom do espírito de oração, caracterizado pela
exuberância de caridade na alma.
Os sacrifícios exigidos pela glória de Deus e pela santificação das almas têm tal
valor sobrenatural, que o apóstolo dedicado à vida activa pode elevar-se a um alto grau
de caridade e de união com Deus; numa palavra, à santidade.
Certamente, quando haja perigo grave de pecado, especialmente contra a fé e a
pureza, Deus quer que nos afastemos das obras. Feita, porém, esta reserva, Deus
preserva do pecado e faz progredir na virtude os apóstolos que tenham vida interior.
Distingamos, todavia, com cuidado em que consiste este progresso. Uma frase
surpreendente da tão arguta Santa Teresa de Ávila permite-nos precisar o nosso
pensamento: “Desde que sou prioresa, sobrecarregada de trabalhos e obrigada a
frequentes viagens, cometo maior número de faltas. No entanto, como combato
generosamente e só trabalho para Deus, sinto que, cada vez mais, me aproximo d’Ele.”
A santa confessa, sem se perturbar, que a sua fragilidade se manifesta mais
intensamente do que no repouso e no silêncio do claustro. A generosidade, inteiramente
sobrenatural, da sua dedicação e do seu combate espiritual, dão-lhe a recompensa de
vitórias que contrabalançam a sua fragilidade. A nossa união com Deus —diz S. João da
Cruz— reside na união da nossa vontade com a sua e mede-se unicamente por ela. Para
Santa Teresa, a união com Deus não existe, somente, na tranquilidade e na solidão. Pelo
contrário, a actividade desejada por Deus e exercida nas condições por Ele requeridas,
alimentando o espírito de sacrifício, a humildade, a abnegação e a dedicação pelo Reino
de Deus, aumenta a união da alma com Nosso Senhor, que nela vive, animando os seus
trabalhos e encaminhando-a para a santidade.
A santidade reside, antes de tudo, na caridade. Uma obra de apostolado digna
deste nome é a caridade em acto: Probatio amoris, diz São Gregório, exhibitio est
operis. O amor prova-se pelas obras de abnegação, e Deus exige dos seus apóstolos essa
prova de dedicação.
“Apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21, 15-16), tal
é a forma de caridade que Nosso Senhor exige do apóstolo, como prova da sinceridade
do seu amor.
São Francisco de Assis julgava não poder dizer-se verdadeiro amigo de Jesus
Cristo, enquanto não se consagrasse à salvação das almas que Ele redimiu.41
E, se Nosso Senhor considera como feitas a Si mesmo as obras de

misericórdia, mesmo corporais, é porque, em cada uma delas, descobre uma

irradiação da mesma caridade que anima o missionário, ou sustenta o eremita do

deserto, nas suas privações e combates.42


A vida activa entrega-se às obras de apostolado; caminha pelos atalhos do
sacrifício, em seguimento do Bom Pastor, como missionário, taumaturgo, consolador e
médico universal, para todos os necessitados deste mundo.
A vida activa lembra-se e vive destas palavras de Jesus: “Eu estou no meio de vós
como um servo” (Lc 22, 27). “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para
servir” (Mt 20, 28).
A vida activa vai pelos caminhos da miséria humana, a dizer a palavra que
ilumina, a semear graças, e a distribuir benefícios. Pela clarividência da sua fé, pelas
intuições do seu amor, descobre no pior dos desgraçados, no mais desditoso dos
abandonados, o Deus nu, lastimoso, desprezado por todos, o grande leproso, o
misterioso condenado, que a Justiça eterna persegue e acabrunha com os seus golpes, o
homem das dores, que Isaías viu erguer-se no luxo horroroso das suas chagas, na
púrpura trágica do seu sangue, de tal modo desfigurado e retalhado pelos cravos e pelos
instrumentos de flagelação, que mais parecia um verme do que um homem.
“Também nós o vimos e não o reconhecemos”, exclama o Profeta.43
A vida activa, reconhece-O perfeitamente, e —de joelhos em terra, de olhos
banhados em lágrimas— serve-O nos pobres. A vida activa eleva a humanidade;
fecunda o mundo, com generosidade, trabalho e amor, semeando méritos para o céu.
Vida santa, que Deus recompensa, abundantemente, porque dá o Paraíso ao
apóstolo que deu o copo de água ao pobre, que despendeu o seu saber, o seu suor e o
seu sangue para salvar as almas perdidas. No dia derradeiro, perante o céu e a terra
reunidos, Deus canonizará todas as obras de caridade.44
b) Perigo para a salvação – Quantas vezes, nos retiros que orientei, pude verificar que
as obras —que deveriam ser, sempre, meios de santificação— se tornavam instrumentos
de ruína da vida espiritual.
Um homem de obras, convidado logo no início do retiro, a examinar a sua
consciência e a procurar a causa dominante do seu estado deplorável, fazia um juízo
exacto de si mesmo, dando-nos esta resposta, à primeira vista, incompreensível: “Foi a
dedicação que me perdeu! Sentia grande alegria quando prestava algum serviço.
Auxiliado pelo êxito aparente dos meus trabalhos, Satanás envidou todos os esforços,
durante anos, para me criar ilusões, excitar-me pelo delírio da acção, tornar enfadonha a
vida interior e, finalmente, atrair-me para o precipício.”
Este estado de alma anormal explica-se em poucas palavras. O operário de Deus,
inteiramente absorvido pela satisfação proporcionada pelas suas actividades naturais,
deixara apagar-se a vida divina, essa vida que tornava o seu apostolado fecundo e
protegia a sua alma. Trabalhara muito, mas longe do sol vivificante.
“Ostentação de forças, carreira rapidíssima, mas fora de caminho”.45 Por tal
motivo, as obras, embora santas, tinham-se voltado contra o apóstolo, como uma arma
de dois gumes, que fere aquele que não sabe servir-se dela.
Foi contra um perigo semelhante que São Bernardo quis acautelar o Papa
Eugénio III, quando lhe escreveu: “Temo que no meio das vossas ocupações
inumeráveis, desesperando de lhes ver o fim, deixeis endurecer a vossa alma. Andareis
com mais prudência subtraindo-vos a essas ocupações, por alguns instantes que seja, do
que permitindo que elas vos dominem e que, pouco a pouco, mas infalivelmente, vos
arrastem para onde não quereis ir. Então para onde? Direis talvez. Para o endurecimento
do coração.
“Eis até onde vos podem levar essas malditas ocupações, se ainda continuais,
como já a princípio fizestes, a consagrar-vos inteiramente a elas, nada reservando para
vós mesmo”.46
Que há de mais augusto, de mais santo, que o governo da Igreja? Haverá alguma
coisa mais útil para a glória de Deus e para o bem das almas? E contudo, “malditas
ocupações”, exclama São Bernardo, se elas hão-de servir para impedir a vida interior
daquele que a elas se dedica.
“Ocupações malditas”, que expressão! Vale por um livro inteiro, tanto ela choca
e obriga a reflectir. E estaria a exigir um protesto, se não saísse da pena tão precisa de
um doutor da Igreja, do grande São Bernardo.
2. Do apóstolo sem vida interior
Uma palavra o caracteriza. Talvez ainda não seja, mas há-de, fatalmente, tornar-
se tíbio. Ora, ser tíbio, não por sentimento ou fragilidade, mas por vontade, é pactuar
com a dissipação e a negligência, habitualmente consentidas, pactuar com o
pecado venial deliberado e, por isso mesmo, é tirar à alma a segurança da salvação
eterna, conduzindo-a ao pecado mortal.47 Tal é, sobre a tibieza, a doutrina de Santo
Afonso, tão bem exposta e comentada pelo Padre Desurmont, seu discípulo.48
Por que razão o apóstolo sem vida interior cai, necessariamente, na tibieza?
Respondo com as palavras dirigidas por um bispo missionário aos seus sacerdotes,
palavras tanto mais perturbadoras quanto provêm de um coração frontalmente oposto ao
quietismo: “É necessário —diz o cardeal Lavigerie— que nos persuadamos bem disto:
para um apóstolo não há meio termo entre a santidade completa (ao menos desejada e
procurada com fidelidade e coragem) e a perversão absoluta.”
Recordemos, em primeiro lugar, as más tendências da nossa natureza, a guerra
sem tréguas que nos fazem os nossos inimigos interiores e exteriores, os perigos que por
todos os lados nos ameaçam.
Dito isto, procuremos traçar o quadro do que sucede a uma alma que se consagra
ao apostolado, sem estar suficientemente precavida e armada contra os seus perigos.
Um jovem apóstolo sente despertar o desejo de se dedicar às obras, mas carece
de experiência. O seu gosto pelo apostolado revela ardor, vivacidade de carácter, amor
pela acção e até pela luta. É correcto, piedoso, mas a sua piedade é sentimental, é uma
rotina piedosa. A sua oração, se é que a pratica, é um devaneio, e as suas leituras
espirituais, são mera curiosidade, sem influência na sua conduta. Talvez até Satanás,
iludindo-o com um senso artístico que ele toma por vida interior, o leve a gostar de
leituras que tratem das vias elevadas e extraordinárias da união com Deus, e a admirá-
las com entusiasmo. Tudo somado, pouca ou nenhuma vida interior, nessa alma que
ainda conserva hábitos bons, qualidades naturais e o desejo sincero, mas vago, de
permanecer fiel a Deus.
Vai, pois, o nosso apóstolo consagrar-se com zelo a esse ministério tão novo
para ele. A breve trecho —precisamente, em virtude das circunstâncias que essas novas
ocupações originam— deparam-se-lhe mil circunstâncias para o fazer viver fora de si,
mil engodos para a sua curiosidade ingénua, mil ocasiões de quedas, contra as quais, até
então, o tinham em parte protegido a atmosfera tranquila da família, do seminário, da
comunidade, do noviciado, ou a tutela de um prudente director.
Não só a dissipação crescente ou a curiosidade perigosa, a impaciência ou a
susceptibilidade, a vaidade ou o ciúme, a presunção ou o abatimento, a parcialidade ou a
difamação, como também a fragilidade do coração e as formas mais ou menos subtis da
sensualidade, vão obrigar a um combate ininterrupto essa alma mal preparada para tão
contínuos assaltos. Consequentemente, frequentes são as feridas.
Pensará acaso em resistir, estando ela tão absorvida em actividades que considera
excelentes? De seu lado, Satanás, bem longe de contrariar essa satisfação da vida activa,
excita-a o mais possível.
Certo dia, ela entrevê o perigo: o anjo da guarda fala, a consciência interpela-a.
É preciso ter mão em si; examinar-se no sossego de um retiro; tomar a resolução
enérgica de seguir à risca um regulamento, embora com prejuízo dessas ocupações tão
afagadas. Mas já é tarde! A alma já saboreou o prazer de ver os seus esforços coroados
de êxito: amanhã, amanhã, exclama ela! Hoje é impossível; falta-me tempo, porque
devo continuar esta série de homilias, escrever este artigo, organizar este sindicato, esta
associação de caridade, preparar esta récita, fazer esta viagem, pôr em dia a minha
correspondência, etc... Como a tranquilizam todos estes pretextos! Porque o simples
pensamento de encarar a sério a sua consciência já se lhe tornou insuportável. Chega o
momento em que Satanás pode trabalhar à vontade para acabar de arruinar um coração
que se tornou seu cúmplice. O terreno está preparado. A sua vítima apaixonara-se pela
acção; pois bem: Satanás instila-lhe a febre da acção. A sua vítima não consegue
esquecer o tumulto dos negócios, nem suportar o recolhimento; o demónio incute-lhe
horror a tudo isso e lembra-lhe novos projectos, aos quais, habilmente, dá as aparências
de zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas.
E esse homem, que, ainda há pouco, tinha hábitos virtuosos, deslizará de
fraqueza em fraqueza, sem conseguir deter a sua queda. Tendo uma vaga consciência de
que essa agitação não é conforme ao coração de Deus, atira-se, mais do que nunca, para
o turbilhão dos trabalhos, a fim de sufocar os seus remorsos. As faltas vão-se
acumulando. O que outrora perturbava a sua consciência recta, agora é, apenas, um vão
escrúpulo que despreza. Proclama ser homem do seu tempo, que luta com armas iguais
às dos inimigos e defende as virtudes activas, desprezando o que chama piedade doutras
eras. Por outro lado, as suas obras vão de vento em popa; o público aplaude-as. Cada dia
vê novos êxitos. “Deus abençoa a nossa obra”, exclama essa alma iludida, sobre a qual,
amanhã talvez, devido às suas faltas graves, chorem os anjos do céu.
Como caiu esta alma num estado tão lamentável? Inexperiência, vaidade,
imprevidência e relaxamento. Não calculando os seus fracos recursos espirituais,
lançou-se à aventura. Esgotadas as provisões de vida espiritual, vê-se na situação do
nadador temerário que, já sem forças para lutar contra a corrente, se deixa arrastar para
o fundo. Detenhamo-nos um instante, para medir o caminho percorrido e a profundidade
do precipício. Procedamos ordenadamente e contemos as etapas.
Primeira etapa. A alma foi, progressivamente, perdendo, se é que as teve
alguma vez, as convicções sobre a vida sobrenatural e a economia do plano de Nosso
Senhor, quanto à relação da vida interior com as obras. Vê as obras através de um
prisma enganador. A vaidade serve de pedestal subtil às pretensas boas intenções: “Que
querem, Deus concedeu-me o dom da palavra”, respondia aos aduladores um pregador
inteiramente exteriorizado. A alma, mais que a Deus, procura-se a si mesma. A
reputação, a glória, os interesses pessoais estão no primeiro plano. A afirmação de São
Paulo: “Se procurasse agradar aos homens, não seria servo de Cristo” (Gal 1, 10), torna-
se para ela uma frase sem sentido.
Sem falar da ignorância dos princípios, a ausência da base sobrenatural, que
caracteriza esta etapa, tem, ora como causa, ora como consequência imediata, a
dissipação, o esquecimento da presença de Deus, o abandono das orações jaculatórias, a
perda da guarda do coração, a falta de delicadeza de consciência e de regularidade de
vida. A tibieza aproxima-se, se é que não começou já.
Segunda etapa. O homem sobrenatural é escravo do dever. Por isso, sabe
distribuir, ordenadamente, o tempo, e segue um regulamento de vida, fugindo de
comodismos e caprichos.
O apóstolo sem vida sobrenatural, por falta de espírito de fé no emprego do
tempo, põe de parte as leituras espirituais, e, se ainda as lê, já não as estuda. Preparar,
durante a semana inteira, a homilia do domingo, era bom para os Padres da Igreja. A
não ser que a vaidade esteja em jogo, prefere improvisar, e sai-se sempre tão bem…
pelo menos assim pensa. Aos livros, prefere as revistas.49 Abandona o método de vida;
desperdiça as horas livres, só procura distracções para se furtar à lei do trabalho, essa
grande lei de preservação, moralização e penitência.
Considera teórico e enfadonho tudo o que estorva a sua liberdade de
movimentos. Não lhe chega o tempo para tantas obras e deveres sociais e até para o que
julga necessário à saúde e à distracção. Realmente —diz-lhe Satanás— consagras tempo
demais à meditação, ao ofício, à Missa e ao teu ministério. É necessário cortar o
supérfluo. E começa, invariavelmente, por abreviar a meditação, por fazê-la
irregularmente e acaba por deixá-la, de todo. Como está habituado a deitar-se tarde, vai
abandonando a condição indispensável para permanecer fiel à oração: levantar-se a uma
hora certa. Ora, na vida activa, abandonar a meditação, ou reduzi-la a dez ou quinze
minutos, equivale a render-se ao inimigo. Algumas pessoas atribuem a Santa Teresa a
seguinte afirmação: “Dai-me alguém que faça, cada dia, um quarto de hora de oração, e
eu lhe darei o céu.” Ignoramos até que ponto é autêntico esta afirmação, mas a nossa
experiência das almas sacerdotais ou religiosas consagradas às obras leva-nos a crer que
um apóstolo que não se obrigue a meia hora, pelo menos, de meditação metódica,
concluída com uma resolução leal —baseada na desconfiança de si mesmo e na
confiança na oração— de praticar nesse dia determinadas renúncias relativas a um vício
a combater ou uma virtude a adquirir, cai, fatalmente, na tibieza da vontade.
Os pecados veniais multiplicam-se. A falta da guarda do coração impede a alma
de ver essas faltas. Como poderá combater o que já não considera defeituoso? Esta é a
consequência da segunda etapa, caracterizada pelo abandono da meditação e da regra de
vida.
Terceira etapa. O seu principal sintoma é a negligência na recitação do
breviário. A oração da Igreja, que devia dar alegria e força ao soldado de Cristo, torna-
se encargo difícil de suportar. A vida litúrgica, fonte de luz, alegria, força, méritos e
graças, para si e para os fiéis, torna-se um dever desagradável que de má vontade se
cumpre. A virtude da religião está profundamente abalada. Contribui para a estiolar a
febre das obras. O culto de Deus já só lhe aparece ligado a manifestações exteriores. O
sacrifício pessoal e obscuro, mas afectuoso, de louvor, de súplica, de acção de graças,
de reparação, já nada lhe diz.
Não há muito, durante a recitação das suas orações vocais, ele ainda repetia, com
legítima altivez: “hei-de cantar-vos na presença dos anjos” (Sl 132, 2). O santuário
dessa alma, outrora perfumado pela vida litúrgica, tornou-se uma praça pública, cheia
de ruído e desordem. A dedicação exagerada às obras e a dissipação encarregam-se de
multiplicar as distracções, cada vez menos combatidas. “Deus não está no meio da
agitação” (1 Rs, 19, 11). A oração é rezada precipitadamente, com interrupções,
negligências, sonolências, atrasos, adiamentos para a última hora, com perigo de ser
vencido pelo sono…, e às vezes é mesmo omitida. O remédio transforma-se em veneno
e o sacrifício de louvor, em ladainha de pecados!
Quarta etapa. O abismo arrasta consigo outro abismo. Os sacramentos são
recebidos ou administrados como coisa respeitável, por certo, mas já não se sente
palpitar a vida que eles encerram. A presença de Jesus no sacrário ou no confessionário
já não faz vibrar, até à medula da alma, todas as energias da Fé. A própria Missa, o
santo Sacrifício do Calvário, é um jardim fechado. A alma não sente já o calor do
sangue divino. As suas consagrações são frias e as suas comunhões tíbias, distraídas,
superficiais. A intimidade irreverente, a rotina e o tédio andam à espreita dessa alma.
O apóstolo, assim desfigurado, vive longe de Jesus, e já não é favorecido com
aquelas palavras íntimas que Jesus diz, apenas, aos seus verdadeiros amigos.
De vez em quando, o Amigo celeste faz chegar um remorso, uma luz, um apelo.
Espera, bate, pede, insistentemente, para entrar: Vem a mim, pobre alma ferida, vem,
vem depressa, que Eu te curarei: “Vinde a Mim, todos os que estais cansados e
oprimidos, e aliviar-vos-ei” (Mt 11, 28); porque “o Filho do Homem veio procurar e
salvar o que estava perdido” (Lc 19, 10). Esta voz tão doce, tão terna, tão discreta, tão
insistente, procura momentos de comoção para obter o arrependimento. Mas como a
porta do coração está fechada, Jesus não pode entrar, e esses bons movimentos da alma
ficam frustrados. A graça passa debalde. Na sua misericórdia, para não acumular razões
de justiça, Jesus talvez até deixe de lhe falar: Time Jesum transeuntem et non
revertentem, “temei a Jesus que passa e que não volta mais”...
Vamos agora mais longe, penetremos no interior dessa alma cuja fisionomia
acabámos de esboçar.
Na vida sobrenatural, como na vida moral e intelectual, o papel dos pensamentos
tem grande preponderância. Que pensamentos preocupam essa alma? Terrenos,
superficiais e egoístas, esses pensamentos convergem, cada vez mais, para o eu, ou para
as criaturas, e amiúde sob as aparências de dedicação e sacrifício.
A esta desordem na inteligência corresponde o desregramento na imaginação.
Nenhuma potência carece de mais vigilância do que esta. Vendo-se de rédea solta, parte
em galope desbocado. Corre para todas as loucuras. A falta da mortificação da vista
permite que a imaginação se torne desenfreada.
Da inteligência e da imaginação, a desordem desce até aos afectos. O coração já
só se alimenta de quimeras. Que sucederá a esse coração dissipado, que já não dá
importância à presença de Deus em si e que se tornou insensível à voz da graça, à poesia
sublime dos mistérios, às belezas severas da liturgia, aos apelos e doçuras do Deus da
Eucaristia, numa palavra, às influências do mundo sobrenatural? Irá parar para analisar
com severidade a sua consciência? Não, ele só quer emoções! Não encontrando a
felicidade em Deus, volta-se para as criaturas. Na primeira ocasião, lança-se para elas,
desatinadamente, esquecido dos compromissos mais sagrados, do interesse supremo da
Igreja, e da própria reputação. Ainda o perturba a perspectiva da apostasia; mas o
escândalo das almas já não lhe causa tanto temor.
Quem não vê que o tédio de Deus e a aceitação do prazer proibido pode levar o
coração até às piores desventuras? “O homem animal —diz São Paulo— não percebe
aquelas coisas que são do espírito de Deus, porque, para ele, são loucura, e não as pode
entender, pois elas devem ser julgadas espiritualmente” (I Cor 2, 14). Quem se deixou
cair até aí, está a um passo daquilo que Jeremias lamentava: “Os que comiam delicados
manjares, perecem pelos caminhos. E os que foram educados no fausto, abraçaram o
esterco” (Lam 4, 5). A ilusão obstinada, a cegueira do espírito, o endurecimento do
coração vão progredindo. Tudo se pode esperar.
Para cúmulo, a vontade encontra-se reduzida a um estado de enorme indolência e
fraqueza. Se lhe pedirem um pequeno esforço, obterão um desanimador: “Não posso.”
Ora a falta de vontade leva a todos os desastres.
Um famoso ímpio disse, certa vez, não acreditar na fidelidade aos votos e obrigações
dos religiosos, inseridos como estavam, pelas suas obras de apostolado, na vida do
século. “Caminham —acrescentava ele— por uma corda bamba. Hão-de forçosamente
cair.” A esta injúria a Deus, respondemos, sem hesitação, que tais quedas, com toda a
certeza, se evitam se nos soubermos servir da vida interior, mas que o abandono deste
meio conduz, infalivelmente, ao precipício.
O admirável jesuíta, Padre Lallemant, confirma, precisamente, isto, quando diz:
“Muitos homens apostólicos nada fazem puramente por Deus. Misturam o seu próprio
interesse com a glória de Deus, mesmo nos melhores empreendimentos. Misturam a
natureza e a graça. Chega, por fim, a morte e, só então, vêem a sua ilusão, e tremem ao
avizinhar-se do terrível tribunal de Deus”.50
Longe da nossa intenção querer incluir no número dos apóstolos que se pregam a
si mesmos, esse dedicado missionário que foi o célebre Padre Combalot. Mas parece-
nos oportuna a citação das suas palavras, pronunciadas poucos momentos antes de
morrer.
– “Tenha confiança, meu amigo —dizia-lhe um sacerdote após ter administrado
os últimos sacramentos— porque foi fiel à sua ordenação sacerdotal, e os seus milhares
de sermões hão-de atenuar, diante de Deus, a insuficiência de vida interior de que me
fala”.
– “Os meus sermões! Oh! como os vejo agora por um prisma diferente! Os meus
sermões! Se Nosso Senhor não for o primeiro a falar-me deles, não serei eu a começar.”
Perante os clarões da eternidade, esse venerável sacerdote, nas suas melhores
obras de zelo, via imperfeições que inquietavam a sua consciência, e que atribuía à falta
de vida interior.
O Cardeal du Perron, à hora da morte, mostrava-se arrependido porque, durante
a vida, dedicara-se mais ao aperfeiçoamento da sua inteligência, pelas ciências, que ao
da vontade, pelos exercícios da vida interior.51
Ó Jesus, Apóstolo por excelência!, houve, porventura, alguém que se dedicasse
ao bem dos homens com mais ardor do que Vós? Hoje ainda, continuais a entregar-Vos,
no mundo inteiro, por meio da Eucaristia, sem que por isso deixeis o seio do vosso Pai!
Fazei que nunca esqueçamos que só desejais as obras que forem animadas por espírito
verdadeiramente sobrenatural e que mergulhem as suas raízes no vosso Coração
adorável.
3. A vida interior, base da santidade do apóstolo
A santidade é a vida interior levada até à união da nossa vontade com a vontade
de Deus. Salvo um milagre da graça, a alma só atinge essa perfeição depois de ter
percorrido, através de múltiplos esforços, todas as etapas da vida purgativa e
iluminativa. É lei da vida espiritual que, no decurso da santificação, a acção de Deus e a
da alma seguem caminhos inversos: as operações de Deus intensificam-se cada vez
mais, enquanto a alma vai operando cada vez menos.
A acção de Deus é diferente nos santos e naqueles que começam a caminhar
para a santidade. Nestes, é menos aparente: pede-lhes vigilância e oração para
alcançarem as graças necessárias. Nos santos, Deus opera de forma mais completa e às
vezes só pede um simples consentimento para unir a alma à sua acção suprema.
O principiante, o tíbio ou o pecador, que o Senhor quer aproximar de Si,
começam por se sentir inclinados a procurar a Deus; depois, a querer agradar-Lhe;
finalmente, a procurar todas as ocasiões de combater o amor próprio, para que Jesus
reine nas suas almas. A acção divina limita-se, aqui, a incitamentos e auxílios.
No santo, essa acção é muito mais poderosa e completa. No meio das fadigas,
sofrimentos, humilhações e doenças, ele abandona-se à acção divina, sem a qual não
seria capaz de suportar as dores que, por desígnio de Deus, devem completar o seu
amadurecimento. Realiza-se nele, plenamente, o texto seguinte: “Deus sujeitou a Ele
todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos” (1 Cor 15, 28). Vive numa tal união
com Jesus, que parece não viver por si mesmo, como o Apóstolo: “Vivo, mas já não sou
eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20). É o espírito de Jesus que pensa,
decide, e opera nele. Certamente, a divinização está longe da intensidade que há-de
alcançar no Céu, mas este estado já reflecte os caracteres da união beatífica.
Assim não sucede com o principiante ou o tíbio, e até mesmo com o simples
fervoroso. Esses estados têm os seus próprios meios. O principiante, como qualquer
aprendiz, avançará com lentidão e dificuldades. O fervoroso, já mais adestrado,
consegue maiores proveitos.
Mas, para qualquer categoria de apóstolos, Deus quer que as obras sejam sempre
um meio de santificação. Mas se, para a alma do santo, o apostolado não é um perigo
sério, não lhe esgota as forças e até lhe fornece ocasiões de crescer na virtude, esse
apostolado pode causar a anemia espiritual e o recuo no caminho da perfeição às
pessoas fracamente unidas a Deus, com pouco gosto pela oração, sem espírito de
sacrifício e, sobretudo, sem a guarda habitual do coração.
Mas Deus concede a guarda do coração a quem reza com perseverança e que,
com provas reiteradas de fidelidade, vai transformando as suas faculdades, tornando-se
dócil às inspirações divinas e capaz de aceitar, alegremente, contrariedades e decepções.
Vejamos agora seis características da vida interior, pelas quais a alma é dotada
de verdadeira virtude.
a) Acautela a alma contra os perigos do ministério exterior

“É mais difícil viver bem quando se tem encargo de almas —diz São Tomás—
por causa dos perigos exteriores”.52 Falámos deste perigo no capítulo precedente.
Enquanto o apóstolo desprovido de espírito interior ignora os perigos a que as
obras dão origem e se assemelha a um viajante que atravessa desarmado uma floresta
infestada de bandidos, o verdadeiro apóstolo acautela-se desses perigos todos os dias,
mediante o exame de consciência, que lhe faz descobrir os seus pontos fracos.
Se outra vantagem não tivesse a vida interior, já esta contribuiria para nos
preservar das surpresas da jornada, pois que o perigo previsto está meio afastado. Mas a
sua utilidade é muito superior. A vida interior torna-se para o homem de obras, uma
armadura completa: “Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às
ciladas do demónio”;53 armadura divina que lhe permite: “resistir no dia mau e ficar de
pé depois de ter vencido em tudo”, santificando todos os seus actos.
A vida interior “cinge os rins” do apóstolo com a pureza de intenções. Os seus
pensamentos, desejos e afectos estão postos em Deus, e os prazeres e distracções não o
afastam desse caminho.
Reveste-o da “couraça da justiça” que torna varonil o seu coração e o defende
das seduções das criaturas, do espírito do século e dos assaltos do demónio.
“Calça-o” com a discrição e o recato, fazendo-o aliar a simplicidade da pomba à
prudência da serpente.
Satanás e o mundo procurarão incutir-lhe os sofismas da falsa doutrina, e relaxar
os seus costumes. Ele, porém, defende-se com o “escudo da fé”, que faz brilhar aos
olhos da alma o esplendor do ideal divino.
Conhecimento do seu nada, solicitude pela própria salvação, convicção de que
não conseguirá progredir sem o socorro da graça e, por conseguinte, oração constante e
fervorosa, tanto mais eficaz quanto mais confiante, eis o “elmo da salvação” que
defende a alma dos ataques do orgulho.
Assim armado, dos pés à cabeça, poderá o apóstolo entregar-se sem temor às
obras, e o seu zelo, inflamado pela meditação do Evangelho e fortificado pelo pão
eucarístico, tornar-se-á uma “espada” que lhe servirá para combater os inimigos da sua
alma e conquistar incontáveis almas para Cristo.
b) Repara as forças do apóstolo
No meio de trabalhos e preocupações, e apesar do contacto habitual com o
mundo, o santo preserva o seu espírito interior e dirige os seus pensamentos e intenções,
unicamente, para Deus. A actividade exterior está nele tão sobrenaturalizada e tão
abrasada pelo amor que, longe de diminuir as suas forças, o faz crescer sempre em
graça.
Nas outras pessoas, mesmo fervorosas, ao cabo de certo tempo consagrado às
ocupações exteriores, a vida sobrenatural começa a sofrer algum prejuízo. Absorvidas
com o bem a fazer ao próximo, movidas por uma compaixão pouco sobrenatural pelas
misérias a aliviar, o seu coração imperfeito dirige a Deus chamas menos puras,
escurecidas pelo fumo de numerosas imperfeições.
Deus não pune essa fraqueza com a diminuição da sua graça, e não trata com
rigor esses desfalecimentos, se a alma fizer esforços sérios de vigilância e oração
durante o trabalho e se, após este, voltar para junto d’Ele, a fim de reparar as forças. A
contínua renovação de propósitos do apóstolo, mesmo nas quedas, alegra o coração
paternal de Deus.
Naqueles que lutam, essas imperfeições vão-se tornando cada dia menos
frequentes, à medida que a alma aprende a recorrer a Jesus, que lhe diz: “Vem a Mim,
pobre cervo ofegante, sequioso pelo cumprimento da jornada. Vem encontrar nas águas
vivas novas forças para outras carreiras. Aparta-te um instante da multidão, que não te
dará o alimento de que carecem as tuas forças esgotadas”.
“Vem aqui, à parte, a um lugar deserto e repousa um pouco” (Mc 6, 31). “No
sossego e na paz que encontras junto de Mim, recuperarás o teu primeiro vigor, e
aprenderás a fazer mais com menor dispêndio de forças. Elias, fatigado, desanimado,
viu as suas energias reanimadas por um pão misterioso. Procederei do mesmo modo
contigo, não só com a minha palavra, que é vida, mas com a minha graça, isto é, com o
meu sangue, orientarei, de novo, o teu espírito para os horizontes eternos e renovarei,
entre o meu coração e o teu, um pacto de intimidade. Vem, que Eu te consolarei das
tristezas e das decepções da viagem, e no fogo do meu amor, retemperarás o aço das
tuas decisões”.
“Vinde a Mim todos os que estais fatigados e oprimidos, e Eu vos aliviarei” (Mt
11, 28).
c) Multiplica as suas energias e méritos
“Tu, pois, filho, fortifica-te na graça que está em Jesus Cristo” (2 Tim 2, 1). A
graça é a participação na vida do Homem-Deus. Jesus é a força por essência. N’Ele
reside, em toda a plenitude, a força do Pai, a omnipotência da acção divina, e o seu
Espírito é chamado Espírito de Força.
“Ó Jesus —exclama São Gregório de Nazianzo— somente em Vós reside toda a
minha força”. “Fora de Cristo —diz por sua vez São Jerónimo— eu sou de todo
impotente”.
O Doutor seráfico, no 4º livro do seu Compêndio de Teologia, enumera os cinco
caracteres principais que em nós reveste a força de Jesus:
O primeiro é empreender coisas difíceis e enfrentar, resolutamente, os
obstáculos: “Animai-vos e sede fortes de coração” (Sl 30, 25).
O segundo é o desprezo das coisas da terra: “Por seu amor quis perder tudo,
avaliando-o como esterco, a fim de ganhar Cristo” (Fil 3, 8).
O terceiro, a paciência nas tribulações: “O amor é forte como a morte” (Cant 8,
6).
O quarto, a resistência às tentações: “O diabo anda em redor de vós como um
leão furioso... resisti-lhe fortes na fé” (1 Ped 5, 8-9).
O quinto é o martírio interior, o testemunho, não do sangue, mas da própria
vida, que se consome no desejo de pertencer a Jesus. Consiste em combater a
concupiscência, dominar os vícios e trabalhar, com energia, na aquisição das virtudes:
“Combati o bom combate” (2 Tim 4, 7).
Enquanto o homem exterior confia nas suas forças naturais, o homem interior
apenas vê nelas auxiliares úteis, embora insuficientes. O conhecimento da sua fraqueza
e a fé na omnipotência de Deus dão-lhe, como a São Paulo, a medida exacta das suas
forças. À vista dos obstáculos que se erguem diante dele, exclama com humilde altivez:
“Quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Cor 12, 10).
Sem vida interior —diz São Pio X— faltarão as forças para aguentar com
perseverança os aborrecimentos que qualquer apostolado acarreta: a frieza e falta de
apoio das próprias pessoas de bem, as calúnias dos adversários, e, às vezes, até os
ciúmes dos amigos, dos companheiros de armas... Só a virtude paciente, fortalecida no
bem e, ao mesmo tempo, suave e delicada, é capaz de remover ou diminuir tais
dificuldades.54
Mediante a vida de oração, como seiva que corre da cepa para os ramos, a força
divina desce à alma do apóstolo para lhe fortalecer a inteligência, comunicando-lhe uma
fé mais viva. Então ele progride, porque essa virtude alumia o seu caminho, e avança
confiante, porque sabe para onde vai e como vai. A esta iluminação, junta-se o
fortalecimento sobrenatural da vontade, que torna os fracos capazes de actos heróicos.
Assim se realiza o “Permanecei em Mim” (Jo 15, 4). Esta união com Aquele que
é o Leão de Judá, o Pão dos fortes, o Imutável, explica a maravilhosa constância e a
firmeza tão perfeita que, nesse admirável apóstolo que foi São Francisco de Sales, se
aliavam a uma incomparável doçura e humildade. O espírito e a vontade fortificam-se
com a vida interior, porque o amor se fortifica. Jesus vai, progressivamente,
purificando, dirigindo e aumentando esse amor. Torna-o participante nos sentimentos de
compaixão e abnegação do seu Coração adorável. Se esse amor se torna paixão, leva-o a
por em acção todas as forças naturais e sobrenaturais.
A multiplicação das energias, pela vida de oração, aumenta, também, os méritos;
basta lembrar que o mérito consiste menos na dificuldade de praticar um acto, do que no
grau de caridade com que tal acto se pratica.
d) Dá-lhe alegrias e consolações
Só o amor ardente e constante pode alegrar a existência, porque fortalece o
coração, até no meio das maiores aflições e trabalhos.
A vida do apóstolo é uma cadeia de sofrimentos e fadigas. Se ele não tem a
firme convicção de que Jesus o ama, terá muitíssimas horas tristes e sombrias, ainda que
possua um carácter alegre. O demónio tentará deslumbrá-lo com a miragem de
consolações humanas e êxitos aparentes, a fim de o atrair. Só o Homem-Deus pode
fazer uma alma exclamar como o Apóstolo: “Estou inundado de alegria, no meio de
todas as nossas tribulações” (2 Cor 7, 4). A parte superior do seu ser, como a de Jesus
em Getsemani, goza de uma felicidade que, embora não seja perceptível pelos sentidos,
é superior a todas as alegrias humanas.
No meio das provações, contradições, humilhações, perda de seres queridos ou
de bens, a alma aceitará estas cruzes com sentimentos inteiramente diversos dos que
tinha logo após a sua primeira conversão.
Cresce, dia a dia, na caridade. Pouco importa que o seu amor não seja sensível;
que o divino Mestre a trate como alma forte, levando-a pelas vias de um aniquilamento
cada vez mais profundo, ou pela senda austera da expiação, por si e pelo mundo.
Favorecida pelo recolhimento, alimentada na Eucaristia, o seu amor cresce
continuamente. Prova-o a generosidade paciente, compassiva e ardorosa com que se
sacrifica à procura de almas; generosidade que só se explica pela presença de Jesus na
sua alma: “É Cristo quem vive em mim”.
O sacramento do amor deve ser o da alegria. Não tem vida interior a alma que
não é eucarística e que não experimenta a doçura inefável do dom de Deus.
A vida do apóstolo é uma vida de oração. “Vida de oração —diz o Santo Cura
d’Ars— eis a grande felicidade deste mundo. Oh vida admirável! Oh admirável união
da alma com Nosso Senhor! A eternidade é curta para se compreender essa felicidade
(…). A vida interior é um banho de amor em que a alma se submerge (…), e se afoga no
amor (…). Deus ampara a alma interior como a mãe que pega no filho para o cobrir de
beijos e carícias.”
Contribuir para que o objecto do seu amor seja servido e honrado é também
causa de alegria. O apóstolo conhece todas essas felicidades.
Servindo-se das obras para aumentar o seu amor, sente, ao mesmo tempo,
enorme consolação. É um “caçador de almas”, que tem a felicidade de contribuir para a
salvação daquelas que estão em perigo de condenar-se eternamente, e a alegria de
consolar o seu Deus, sabendo que se santifica e que garante a sua glória eterna.
e) Acrisola a sua pureza de intenções
O homem de fé vê nas obras, não tanto as aparências, como o papel que elas
desempenham nos planos divinos e sabe avaliar os seus resultados sobrenaturais.
Considerando-se como simples instrumento, afasta da alma qualquer auto-complacência
em relação às suas próprias qualidades, das quais desconfia sempre, confiando,
unicamente, no auxílio de Deus.
Que diferença entre esta atitude e a do apóstolo que não vive em Jesus! As
dificuldades e aflições só fortalecem a sua alma.
Por outro lado, o referido abandono não diminui o seu entusiasmo por qualquer
empreendimento. Trabalha —como gostava de dizer Santo Inácio— como se o êxito
dependesse unicamente da sua actividade, mas, na verdade, só o espera de Deus. Nada
lhe custa subordinar todos os seus projectos e esperanças aos desígnios
incompreensíveis desse Deus que, para o bem das almas, se serve mais vezes dos
fracassos que dos triunfos.
Daí resulta, para essa alma, um estado de santa indiferença pelos êxitos ou
fracassos das suas empresas. “Vós, ó meu Deus —está ela sempre pronta a dizer— não
quereis que se interrompa a obra começada. Desejais que me limite a trabalhar com
generosidade e em paz, deixando-vos decidir se o êxito vos dará mais glória do que o
acto de virtude que um revés me dará ocasião de praticar. Mil vezes bendita seja a vossa
santa e adorável vontade, tanto se os meus projectos tiverem êxito, sem que com eles
me envaideça, como se fracassarem, servindo-me, então, para humilhar-me.”
É certo que o coração do apóstolo sangra, quando contempla as tribulações da
Igreja; mas a maneira como ele sofre é completamente diferente da que experimenta o
homem que não possui espírito sobrenatural. Este entra numa actividade febril, na
impaciência e no desespero, quando sobrevêm as dificuldades. O verdadeiro apóstolo
utiliza tanto os triunfos como os revezes para aumentar a sua confiança na Providência.
Qualquer acontecimento lhe serve de motivo para fazer actos de fé. Qualquer momento
do seu trabalho perseverante lhe fornece o ensejo de praticar actos de caridade, porque,
pelo exercício da guarda do coração, procede em tudo com uma pureza de intenções
cada dia mais perfeita, e, pela renúncia desinteressada, torna o seu ministério cada vez
mais impessoal.
Deste modo, todas as acções do verdadeiro apóstolo se tornam cada dia mais
santas e o seu amor pelas almas purifica-se, amando-as unicamente por Jesus:
“Filhinhos meus, por quem eu sinto de novo as dores do parto, até que Jesus se forme
em vós” (Gal 4, 19).
f) É escudo contra o desânimo
O apóstolo que não tenha vida interior achará incompreensível esta frase de
Bossuet: “Quando Deus quer que uma obra seja toda da sua mão, tudo reduz à
impotência e ao nada e, só depois, opera”.
Nada ofende tanto a Deus como o orgulho. Ora, por falta de pureza de intenções
na busca do êxito, podemos acabar por nos erigir a nós próprios em princípio e fim das
nossas obras. Deus tem horror a essa espécie de idolatria. Por isso, quando vê que a
actividade do apóstolo é interesseira, deixa, às vezes, o campo livre às causas segundas,
e o edifício não tarda em desmoronar-se.
Activo, inteligente, dedicado, votou-se o operário ao trabalho com todo o
entusiasmo. Conheceu êxitos brilhantes, alegrou-se com eles, viu-os com complacência.
É a sua obra. A sua! Tem vontade de dizer, como Júlio César, veni, vidi, vici. “Cheguei,
vi e venci”. Pouco depois, um acontecimento permitido por Deus, uma acção directa do
demónio ou do mundo atingem a obra ou a pessoa do apóstolo e é a ruína total. A
tristeza e o desânimo, desse esforçado de ontem, provocam uma enorme devastação
interior. À alegria exuberante, sucede um abatimento profundo!
Só Nosso Senhor poderia reparar essas ruínas. Mas o infeliz já não escuta a voz
de Jesus. Tão exteriorizado anda, que, para O ouvir, seria preciso um milagre da graça;
mas ele, na sua pouca fé, já não acredita em milagres. Só uma vaga convicção na
omnipotente misericórdia de Deus é que ainda paira sobre a sua desolação, mas sem
dissipar a profunda tristeza que o inunda.
Que diferente é a alma do apóstolo que procura identificar-se com Nosso
Senhor! Para ele, os dois grandes meios de acção —sobre o Coração de Deus e sobre o
coração dos homens— são a oração e a santidade. Trabalha com generosidade e
dedicação, mas julga a miragem do êxito uma perspectiva indigna para o verdadeiro
apóstolo. Se vierem as borrascas e as ruínas, não se deixa abalar; como trabalhou,
apenas, por Nosso Senhor, esse apóstolo ouve ressoar no fundo do seu coração aquele
“Não tenhais medo!”, que outrora, durante a tempestade, restituiu a paz e a segurança
aos discípulos aterrorizados.
Um novo surto de amor pela Eucaristia, um aumento da devoção a Nossa
Senhora, eis o primeiro fruto que lhe traz a provação.
Em vez de se deixar esmagar, a alma desse apóstolo sai rejuvenescida da
provação: “A tua juventude renovada tem o vigor da águia” (Sl 102, 5). O segredo da
atitude desse humilde triunfador, perante a derrota, encontra-se na sua união confiante
com Jesus, que faziam dizer a Santo Inácio: “Se a Companhia chegasse a ser suprimida,
sem qualquer culpa da minha parte, para recuperar o sossego e a paz, bastar-me-ia um
quarto de hora de recolhimento na presença de Deus”. “Como um rochedo no meio do
mar —dizia o Santo Cura d’Ars— assim é o coração das almas interiores no meio das
humilhações e dos sofrimentos”.55
É bem certo que o apóstolo sofre. Aquilo que arruinou os seus esforços e a sua
obra, também causa a perda das suas ovelhas. Tristeza amarga para esse bom pastor;
mas tristeza incapaz de arrefecer o ardor com que vai recomeçar a sua obra. Ele sabe
que a redenção de uma alma é sempre uma obra sublime, que se realiza, sobretudo, pelo
sofrimento. Sabe, também, que as provações, generosamente suportadas, aumentam a
virtude e dão glória a Deus. Isto basta para lhe dar ânimo.
Sabe, igualmente, que poderão ser outros a recolher os frutos do seu apostolado,
e até a vangloriar-se com tais frutos. Deus, porém, conhece as autênticas causas do
êxito, que por vezes estão no trabalho ingrato, e aparentemente estéril, de um apóstolo
desconhecido. “Eu enviei-vos a ceifar o que vós não trabalhastes; outros trabalharam e
vós recolheis o fruto dos seus trabalhos” (Jo 4, 38).
No decurso da sua vida pública, Nosso Senhor —verdadeiro autor dos êxitos dos
seus Apóstolos— lançou a semente da doutrina e do exemplo, mas predisse que eles
haveriam de fazer obras maiores que as suas: “Em verdade, em verdade vos digo, aquele
que crê em Mim fará também as obras que Eu faço. Fará outras ainda maiores, porque
Eu vou para o Pai” (Jo, 14, 12).
O verdadeiro apóstolo não se deixa desanimar, nem influenciar pelas resoluções
dos pusilânimes. Não desiste, após os fracassos, porque a sua vida interior e a sua fé em
Jesus Cristo não lho permitem. Ele é como abelha infatigável que reconstrói com alegria
novos favos na colmeia devastada.

Parte IV

A vida interior é condição da

fecundidade das obras


Nas páginas seguintes, abstrairemos da razão de fecundidade das obras que os
teólogos denominam ex opere operato (da obra em si). Consideraremos apenas as que
resultam ex opere operantis (da obra de quem opera).
Para assegurar a fecundidade das obras desejadas por Deus, o apóstolo deve seguir o
conselho de Jesus: “Aquele que permanece em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto” (Jo
15, 5). Perante a autoridade e a clareza deste texto, limitar-me-ei a confirmá-lo com
factos.
Durante mais de trinta anos, pudemos seguir o andamento de dois orfanatos de
meninas, dirigidos por duas congregações diferentes. Ambos atravessaram —porque
não dizê-lo?— um período de manifesta decadência. De dezasseis órfãs recolhidas em
condições idênticas e que, chegadas à maioridade, saíram desses asilos, cinco caíram,
logo a seguir, na pior degradação moral. Das outras onze, só uma se conservou
profundamente cristã; todas, entretanto, tinham sido colocadas, por ocasião da sua saída,
em casas de famílias honestas.
Um desses orfanatos, há cerca de onze anos, mudou de superiora. Seis meses
depois, já se verificava uma enorme transformação. A mesma transformação se
verificou no outro orfanato, que apenas mudou de capelão.
Ora, desde então, todas as meninas que saíram dos orfanatos, por terem atingido
a maioridade, se conservaram boas cristãs.
A razão destes resultados é simples. Faltava uma direcção com profunda vida
interior, e isso bastava para paralisar ou atenuar a acção da graça. A antiga superiora e o
antigo capelão, ambos sinceramente piedosos, não conseguiam exercer uma acção
profunda e duradoura. Piedade sentimental e rotineira, crenças vagas, amor sem
entusiasmo, virtudes sem raízes... Piedade que servia para formar boas criaturas,
incapazes de fazer mal a alguém, mas sem força de carácter; criaturas à mercê da
sensibilidade e da imaginação. Vida cristã sem horizontes, incapaz de formar mulheres
fortes, preparadas para a luta: vida cristã que, quando muito, conseguia manter aquelas
crianças dentro da “gaiola”, a suspirar pelo dia de poderem escapar.
Muda o espírito dessas duas comunidades. Tudo muda de aspecto. A oração torna-se
intensa e fervorosa; os sacramentos fecundos. Melhora a compostura na capela, no
trabalho e no recreio. Que paz, que entusiasmo, que amor à virtude! Nalgumas almas
um desejo intenso de abraçar a vocação religiosa. A que atribuir tal transformação? À
profunda vida interior da superiora e do capelão.
Em grande número de colégios, externatos, hospitais, paróquias, comunidades e
seminários, o observador atento verá idênticos efeitos, produzidos pelas mesmas causas.
Ouçamos S. João da Cruz: “Reflictam durante alguns instantes —diz ele— esses
homens devorados pelas actividades e que pensam revolver o mundo com pregações e
obras, e compreenderão que muito mais úteis seriam à Igreja, e muito mais agradariam
ao Senhor, se consagrassem mais tempo à oração e aos exercícios da vida interior. Com
uma só obra, e muito menos trabalho, fariam maior bem do que fazem com milhares de
outras a que dedicam toda a sua vida. A oração dar-lhes-ia a força espiritual de que
necessitam. Sem ela, tudo se reduz a muito ruído e pouco, ou nenhum, fruto, pois nada
de bom se pode realizar sem a virtude de Deus. Aquelas pessoas que abandonam a vida
interior e aspiram a obras retumbantes, que dão fama e agradam a todos, nada entendem
do veio da água viva, e da fonte misteriosa que tudo faz frutificar”.56
Estas palavras de S. João da Cruz são tão veementes que fazem recordar a
expressão, antes citada, de S. Bernardo: “ocupações malditas”. Mas nada têm de
exageradas, basta-nos recordar que as qualidades que Bossuet mais admirava neste
santo eram, precisamente, o bom senso e o rigor com que exprimia os seus
pensamentos.
Procuremos, agora, estudar algumas das causas da fecundidade da vida interior.
1. A vida interior atrai as bênçãos de Deus
“Inebriarei de gordura a alma dos sacerdotes, e o meu povo saciar-se-á dos meus
bens” (Jer 31, 14). Notemos a conexão das duas partes deste texto bíblico. Deus não diz:
Darei mais zelo, mais talento aos meus sacerdotes, mas: “Inebriarei a sua alma”, isto é,
comunicar-lhes-ei o meu espírito e as minhas graças, e “o meu povo saciar-se-á dos
meus bens”.
Poderia Deus ter distribuído a sua graça conforme quisesse, sem ter em conta a
piedade do apóstolo ou as disposições dos fiéis. Assim procede, por exemplo, no
baptismo das crianças. Consoante, porém, a lei ordinária da sua Providência, esses dois
elementos são a medida dos dons celestes.
“Sem Mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Tal é o princípio. No Calvário correu o
sangue redentor. Como irá Deus assegurar a sua primeira fecundidade? Por meio de um
milagre de difusão de vida interior. Nada mais acanhado que a motivação dos apóstolos
antes do Pentecostes. Ora, o Espírito Santo transforma-os em homens de vida interior e
a sua pregação começa, logo, a operar maravilhas. Deus não voltou a renovar o prodígio
do Cenáculo. Deixou as graças de santificação entregues à livre e laboriosa
correspondência dos fiéis. Mas, ao fazer do Pentecostes a data oficial do nascimento da
Igreja, deu-nos, claramente, a entender que os seus ministros devem considerar como
prelúdio das suas obras co-redentoras a sua santificação pessoal.
Por isso, os verdadeiros apóstolos confiam muito mais nos sacrifícios e orações
do que no exercício da sua actividade. Antes de subir os degraus do púlpito, o Padre
Lacordaire rezava durante muito tempo e, quando voltava à sua cela, disciplinava-se. O
Padre Monsabré, antes de usar da palavra, na Catedral de Paris, rezava de joelhos o seu
rosário inteiro. “Tomo a minha última infusão”, respondia ele a sorrir, a um amigo que
o interrogava sobre este exercício. Ambos estes religiosos seguiam o princípio
enunciado por S. Boaventura: “O segredo do apostolado encontra-se aos pés do
crucifixo, e não na ostentação de qualidades brilhantes”. “Estas três coisas permanecem:
a palavra, o exemplo e a oração; mas a maior das três é a oração”, exclama São
Bernardo. Comentário categórico do santo à resolução tomada pelos Apóstolos de
deixarem certas obras, para se poderem aplicar de preferência à oração: “Quanto a nós,
entregar-nos-emos assiduamente à oração” e, só depois, ao “ministério da palavra” (Act
6, 4).
O Salvador dá uma importância primordial ao espírito de oração. Lançando um
olhar sobre o mundo e sobre os séculos vindouros, e vendo a multidão de almas
chamadas aos benefícios do Evangelho, Jesus exclama entristecido: “A seara é grande,
mas os trabalhadores são poucos” (Mt 9, 37). Que meio irá propor para difundir,
rapidamente, a sua doutrina? Exigirá que os seus discípulos frequentem as escolas de
Atenas ou estudem, junto dos césares de Roma, como se conquistam e governam os
impérios?… Escutai o Mestre, ó novos apóstolos! Ele indica-nos um programa
luminoso: “Rogai, pois, ao Senhor da seara que envie trabalhadores para a sua seara”
(Mt 9, 38). Sábias organizações, recursos a procurar, templos a erigir, escolas a
construir: nada disto menciona. “Rogai, pois”. A oração, o espírito de oração, eis a
verdade fundamental que o Mestre não cessa de recordar. O resto virá por acréscimo.
“Rogai, pois!” Se a humilde súplica de uma alma santa é mais capaz de suscitar
legiões de apóstolos que a voz eloquente de um recrutador de vocações carente do
espírito de Deus, que concluir daqui, senão que o espírito de oração é a causa principal
da fecundidade do trabalho do verdadeiro apóstolo?
“Rogai, pois!” Orai antes de mais nada: só depois é que Nosso Senhor
acrescenta: “Ide, pois, ensinai... pregai” (Mt, 10, 7). Certamente, Deus quer utilizar este
segundo meio; porém, as bênçãos que tornam o ministério fecundo estão reservadas à
prece do homem de oração, prece poderosa para fazer sair do seio de Deus uma acção
irresistível sobre as almas.
A voz autorizada de São Pio X corrobora a tese da nossa modesta obra: “Para
instaurar todas as coisas em Cristo pelo apostolado das obras, é preciso a graça divina e,
para a receber, deve o apóstolo estar sempre unido a Cristo. Somente depois de termos
formado Jesus Cristo em nós mesmos, é que poderemos facilmente restituí-l’O às
famílias e às sociedades. Todos aqueles que tomam parte no apostolado devem portanto
revestir-se de uma verdadeira piedade”.57
E o que dizemos da oração aplica-se também ao outro elemento da vida interior:
o sofrimento.
Pode-se sofrer como pagão, como condenado, ou como santo. Para sofrer com
Jesus Cristo, é necessário procurar sofrer como um santo. O sofrimento serve, então,
para o nosso proveito pessoal e para a aplicação dos méritos da Paixão às almas:
“Completo na minha carne o que falta padecer a Jesus Cristo pelo seu corpo que é a
Igreja” (Col 1, 24). “Os sofrimentos de Cristo estavam completos, mas só na cabeça —
diz Santo Agostinho, comentando este texto— faltam ainda os sofrimentos de Cristo
nos seus membros místicos”. Jesus Cristo sofreu como cabeça. Agora é ao seu corpo
místico que cumpre sofrer. Cada sacerdote, cada apóstolo, pode, pois, dizer: – Esse
corpo sou eu, sou membro de Cristo, e é necessário que eu complete, pelo seu corpo que
é a Igreja, o que falta aos sofrimentos de Cristo.
O sofrimento, diz o Padre Faber, é o maior dos sacramentos. Este grande teólogo
demonstra a necessidade do sofrimento e a glória que dele provém. A fecundidade das
obras resulta, para o célebre oratoriano, da união dos sacrifícios do apóstolo com o
sacrifício redentor de Cristo, união que os torna participantes na eficácia infinita do
sangue divino.
2. Torna o apóstolo santificador, pelo bom exemplo
No sermão da montanha, o divino Mestre chama aos seus apóstolos o “sal da
terra” e a “luz do mundo” (Mt 5, 13-14).
Seremos “sal da terra” na medida em que formos santos. O sal insípido para que
serve? “Que pode sair de puro de uma fonte impura?” (Ecli 34, 4). Só presta para ser
atirado aos caminhos e calcado aos pés.
Verdadeiro “sal da terra”, pelo contrário, o apóstolo piedoso será um verdadeiro
agente de conservação da sociedade, no meio da corrupção humana. Farol que brilha
durante a noite, o clarão do seu exemplo, mais ainda do que da sua palavra, dissipará —
como verdadeira “luz do mundo”— as trevas acumuladas pelo espírito do mundo, e fará
resplandecer o ideal da verdadeira felicidade, que Jesus traçou nas oito bem-
aventuranças.
O que mais favorece a prática da vida cristã são, precisamente, as virtudes
daqueles que têm a missão de ensinar os fiéis. Pelo contrário, as suas fraquezas afastam
as almas de Deus: “Por vossa causa o nome de Deus é blasfemado entre os gentios”
(Rom 2, 24). O apóstolo deve ter nas mãos a tocha do bom exemplo, mais do que
bonitas palavras nos lábios e, antes de pregar a virtude, deve praticá-la. “Aquele que
tem a missão de dizer coisas sublimes é, por isso mesmo, obrigado a traduzi-las na
prática”, diz S. Gregório.58
Com toda a razão alguém observou que o médico do corpo pode tratar dos seus
doentes sem que ele próprio goze de saúde. Porém, o médico das almas deve ter a alma
sã, porque dá alguma coisa de si mesmo. Os homens têm o direito de ser exigentes com
aqueles que pretendem reformá-los. Com efeito, se a moral com que se orna o pregador
mais não é do que um invólucro falaz, logo o descobrem e recusam-lhe a confiança.
O sacerdote terá grande poder para falar da oração, se o povo o vir
frequentemente em colóquios íntimos com o Hóspede do tabernáculo, tantas vezes
abandonado. Será ouvido ao pregar o trabalho e a penitência, se ele próprio for
laborioso e mortificado. Ao fazer a apologia da caridade fraterna, encontrará corações
atentos, se difundir à sua volta o bom odor de Jesus Cristo, reflectindo na sua conduta a
doçura e a humildade do divino Mestre, “como modelo do seu rebanho” (1 Ped 5, 3).
O professor sem vida interior julga ter cumprido o seu dever, cingindo-se
exclusivamente ao programa lectivo. Se tiver vida interior, uma frase que lhe escape dos
lábios, uma comoção que se lhe espelhe no rosto, um gesto expressivo, a sua maneira de
fazer o sinal da cruz, de dizer uma oração, antes ou depois da aula —mesmo que seja de
matemática— podem ser mais eficazes do que um sermão inteiro.
A religiosa, em serviço num hospital ou num asilo, tem poder e meios eficazes
para fazer germinar nas almas um amor profundo a Jesus Cristo e ao Evangelho. Falte-
lhe a vida interior, e nem sequer dará por esse poder, ou conseguirá, apenas, promover
actos exteriores de piedade.
O cristianismo propagou-se menos pelos sermões e polémicas, do que pelo
espectáculo dos costumes cristãos, tão opostos ao egoísmo, à injustiça e à corrupção dos
pagãos. Na sua obra prima, “Fabíola”, o cardeal Wiseman descreve bem o fascínio que
o exemplo dos primeiros cristãos exerceu sobre as almas pagãs mais carregadas de
preconceitos contra a nova religião. Nessa belíssima narração, assistimos à ascensão de
uma alma para a luz. Os sentimentos nobres, as virtudes modestas ou heróicas, que a
filha de Fábio descobre em certas pessoas de todas as classes sociais, impõem-se à sua
capacidade de admirar. Mas que revelação para a sua alma, quando verifica que todos
aqueles cuja caridade, dedicação, modéstia, doçura, moderação, culto da justiça e da
castidade ela admira, pertencem a essa “seita” que sempre lhe apresentaram como a
mais execrável! Desde aquele momento, torna-se cristã.
Como seria irresistível o apostolado dos católicos sobre os pagãos modernos, se
possuíssem o esplendor de vida cristã descrito pelo ilustre purpurado, e que afinal mais
não é do que a fidelidade ao Evangelho! Muitas vezes, contudo, a agressividade das
nossas polémicas, ou a maneira de reivindicar direitos, mais parece provir do orgulho
ferido que do desejo de defender os interesses de Jesus!
A irradiação exterior de uma alma unida a Deus é extraordinariamente poderosa.
Foi ao ver o modo como o Padre Passerat celebrava a santa Missa, que o jovem
Desurmont decidiu entrar na Congregação do Santíssimo Redentor, que tanto haveria de
ilustrar.
O povo tem intuições que não falham. Pregue um homem de Deus e o povo
acode em multidão. Cesse porém a sua conduta de corresponder ao que se tinha o direito
de esperar, e logo a obra fica comprometida e ameaça ruína.
“Que vejam as vossas obras, e glorifiquem o vosso Pai, que está nos Céus” (Mt
5, 16), dizia Nosso Senhor. S. Paulo recomenda, frequentemente, o bom exemplo aos
seus dois discípulos Tito e Timóteo: “E tu serve de exemplo em tudo pelo teu bom
comportamento” ( Tit 2, 7). “Sê o exemplo dos fiéis: Na palavra, no procedimento, na
caridade, na fé e na castidade” (1 Tim 4, 12). Ele próprio exclama: “O que vistes em
mim é o que deveis praticar” (Fil 4, 9). “Sede imitadores meus, como eu o sou de
Cristo” (1 Cor 11, 1). E a sua linguagem de verdade apoia-se nessa segurança e nesse
zelo que, de forma alguma, excluem a humildade e que faziam dizer a Nosso Senhor:
“Qual de vós me acusará de pecado?” (Jo 8, 46).
É tão somente quando seguir “as obras e os ensinamentos de Jesus” (Act 1, 1),
que o apóstolo se tornará “um operário que não tem de que se envergonhar” (2 Tim 2,
15).
“Antes de tudo, caríssimos filhos —dizia Leão XIII— lembrai-vos de que a
pureza e a santidade da vida são a condição indispensável do verdadeiro zelo e o melhor
penhor de vitória”.59
“Um homem perfeito e santo —diz Santa Teresa— faz maior bem às almas do
que grande número de outros, que apenas sejam bem instruídos e prendados”.
“Se o espírito não for regulado por uma conduta verdadeiramente cristã e santa
—declara São Pio X— difícil será levar os outros à prática do bem”. E acrescenta:
“Aqueles que são chamados às obras católicas, devem ser homens de vida tão ilibada
que a todos sirvam de exemplo eficaz”. 60
3. Produz no apóstolo uma irradiação sobrenatural

O facto do nosso Deus ser um “Deus oculto” 61 é um dos grandes obstáculos


para a conversão de uma alma. Porém, na sua infinita bondade, Ele condescendeu
manifestar-se por meio dos seus santos e das almas fervorosas, que deixam transparecer
alguma coisa do mistério divino.
O que é, pois, esta difusão do sobrenatural, este brilho da santidade? É o
esplendor da graça santificante. Ou melhor: o resultado da presença inefável das
Pessoas divinas naqueles que por elas são santificados.
“Quando o Espírito Santo —diz S. Basílio— se une às almas que a sua graça
purificou, é para espiritualizá-las ainda mais. Como o sol torna mais rutilante o cristal
que toca e penetra com os seus raios, assim o Espírito santificador torna luminosas as
almas onde habita e estas, devido a uma tal presença, tornam-se, por sua vez, outros
tantos focos que difundem à sua volta a graça e a caridade”. 62
O Homem-Deus manifesta-se nas almas dotadas de vida interior. As conversões
maravilhosas, que operaram certos santos, revelam o segredo do seu silencioso
apostolado. Santo Antão povoou os desertos do Oriente. São Bento fez surgir uma
inumerável falange de santos religiosos que civilizaram a Europa inteira. São Bernardo
exerceu uma influência sem par sobre a Igreja, sobre os reis e os povos. São Vicente
Ferrer excitou, à sua passagem, um entusiasmo indescritível nas multidões e, o que é
mais, provocou a sua sincera conversão. No encalço de Santo Inácio, ergueu-se um
exército de bravos, um dos quais, Francisco Xavier, trouxe para a luz da fé uma
incalculável quantidade de pagãos. A razão destes prodígios está na irradiação do poder
do próprio Deus, através de instrumentos humanos.
Que desgraça, quando não há almas verdadeiramente interiores à frente das
obras importantes! O sobrenatural parece eclipsar-se e é, então, como ensinam os
santos, que os países declinam e que a Providência dá aos obreiros da iniquidade o
poder de fazer grandes estragos.
As almas percebem, como que instintivamente, essa irradiação do sobrenatural
na alma dos apóstolos. O pecador vai prostrar-se, de bom grado, aos pés do sacerdote
em quem reconhece o próprio Deus.
“Na verdade, João não fez milagre algum” (Jo 10, 41). Sem fazer milagres, João
Baptista atraía as multidões.
A voz do Santo Cura de Ars era fraca para se fazer ouvir pela multidão, mas a
sua simples vista subjugava completamente e convertia os assistentes, que viam nele
uma custódia viva de Deus. Alguém perguntou a um advogado o que vira em Ars. Ele
respondeu: “Vi Deus num homem”.
Seja-nos permitido resumir tudo por meio do seguinte exemplo físico. Uma
pessoa que lida com a electricidade fica, por vezes, carregada de um fluido poderoso. Se
alguém lhe toca, recebe uma descarga que o faz estremecer. Assim acontece com o
homem interior. Uma vez desapegado das criaturas, estabelece-se entre Jesus e ele uma
corrente contínua. O apóstolo torna-se um acumulador de vida sobrenatural, que
condensa em si o fluido divino. “Saía dele uma virtude que a todos curava” (Lc 6, 19).
As suas palavras e actos tornam-se então eflúvios dessa força que derruba obstáculos,
obtém conversões e aumenta o fervor.
Quanto mais as virtudes teologais existirem num coração, tanto mais esses
eflúvios ajudarão a fazê-las nascer nas almas dos outros.
Por meio da vida interior o apóstolo irradia a fé. – A presença de Deus nele
patenteia-se às pessoas que o ouvem. A exemplo de São Bernardo, o apóstolo consegue
ficar interiormente isolado das outras pessoas; mas logo se percebe que ele não está só:
tem no coração um Hóspede misterioso, com o qual conversa a cada momento, e,
quando fala, segue os seus conselhos e ordens. Sente-se que é sustentado e guiado por
esse Hóspede, e que as palavras da sua boca são o eco fiel das que pronuncia esse Verbo
interior: “Se alguém fala, fale palavras de Deus” (1 Ped 4, 11). Então, a lógica e a força
dos argumentos manifestam-se menos do que o próprio Verbo interior, a falar por meio
da sua criatura. “As palavras que Eu vos digo, não as digo de Mim mesmo, mas o Pai,
que está em Mim, é que faz as obras” (Jo 14, 10). Influência profunda e duradoura,
muitíssimo mais profunda que a admiração superficial ou a devoção passageira que o
homem sem espírito interior pode excitar. Este pode levar o auditório a dizer: Isto é
verdadeiro e interessante. Mas não consegue dar às almas uma fé sobrenatural, e fazê-
las viver dessa fé.
Frei Gabriel, irmão leigo trapista,63 exercendo as funções de segundo
hospedeiro, reavivava a fé de numerosos visitantes muito melhor do que um douto
sacerdote, cuja linguagem falasse mais ao espírito que ao coração. O general Miribel ia,
por vezes, conversar com o humilde frade e comprazia-se em dizer: – “Venho
retemperar a minha fé”.
Nunca se pregou tanto e se escreveram tantos tratados de apologética como nos
nossos dias e, no entanto, a fé está a esmorecer na grande maioria das almas. Muitas
vezes, aqueles que têm a missão de ensinar só vêem no acto de fé um acto de
inteligência, quando ele depende também da vontade. Esquecem-se de que crer é um
dom sobrenatural, e que há um abismo entre a percepção dos motivos de credibilidade e
o acto definitivo de fé. Só Deus, e a boa vontade daquele que é ensinado, logram
preencher esse abismo. Mas a santidade daquele que ensina ajuda a preencher tal
abismo.
Irradia esperança. – A fé do homem de oração dá-lhe a firme convicção de que
a felicidade se encontra somente em Deus. A sua conversação irradia a esperança do
Céu e ele possui vastos recursos para consolar as almas.
A cruz é apanágio de qualquer mortal; o segredo para nos fazermos ouvir pelos
homens é saber ensiná-los a descobrir as doçuras inefáveis da cruz. Ora, a Eucaristia e a
esperança do céu encerram esse segredo. Como é forte a palavra de consolação do
homem que, sem mentir, pode dizer como o Apóstolo. “A nossa conversação está nos
Céus!” (Fil 3, 20). Qualquer outro, com mais frases e retórica, pode falar das alegrias da
pátria celeste; os seus discursos serão, porém, infrutuosos: ao passo que uma só palavra
do primeiro bastará para acalmar a perturbação, aliviar a tristeza, fazer aceitar com
resignação a dor mais pungente. É que a virtude da esperança passa, irresistivelmente,
do homem interior para a alma que está para cair no desespero.
Irradia caridade. – A alma que quer santificar-se ambiciona, sobretudo, possuir
a caridade. “Permanecer em Jesus e Jesus nele”, eis o que pretende o homem
verdadeiramente interior.
Os pregadores experientes são unânimes em reconhecer que, se as práticas sobre
a morte, o juízo, o inferno, são sempre salutares num retiro ou numa missão, a instrução
sobre o amor de Deus produz, em geral, efeito muito mais salutar. Dada por um
verdadeiro apóstolo, capaz de fazer partilhar pelo auditório os sentimentos que o
animam, essa instrução assegura o êxito e determina as conversões.
Quer se trate de afastar a alma do pecado, quer de levá-la do fervor até à
perfeição, o amor de Jesus é sempre uma alavanca incomparável. O cristão atolado no
lodo, que percebe esse amor no seu semelhante, considera mais facilmente a fatuidade
dos amores terrenos, e começa a sentir repugnância pelo pecado. Descobre o imenso
amor de Jesus por ele, sente dentro de si os suaves ecos da graça do baptismo e da
primeira comunhão. É que, na fisionomia e na voz do ministro de Deus que lhe fala,
transparece um amor nobre, puro e ardente, que sobreleva todo o amor das criaturas.
À medida que o Deus do Amor se manifesta por meio do seu arauto, a alma vai
saindo do lodo onde se atolava e torna-se capaz de todos os sacrifícios para adquirir o
tesouro do amor divino, até então quase desconhecido para ela.
Irradia bondade. – “Um zelo não caritativo —disse S. Francisco de Sales—
procede de uma falsa caridade”. As almas transformam-se, quando saboreiam, por meio
da oração, a suavidade d’Aquele a quem a Igreja chama “Oceano de bondade”.64
Mesmo que uma alma seja naturalmente inclinada ao egoísmo e à dureza, esses defeitos
vão desaparecendo, se ela se alimentar n’Aquele em quem “apareceu a bondade do
Salvador, nosso Deus, e o seu amor pelos homens” (Tit 3, 4).
Unindo-se Àquele que é a expressão do amor de Deus e a “imagem da sua
bondade” (Sab 7, 26), o apóstolo sente que o seu amor se torna “difusivo”, como o de
Deus. Quanto mais se unir a Jesus Cristo, tanto mais participará na sua indulgência,
benevolência e compaixão. E a sua generosidade tanto mais caminha para a imolação
alegre e magnânima.
Transfigurado pelo amor divino, o apóstolo atrai a simpatia das almas: “Agradou
por causa do seu zelo e da sua bondade” (Ecli 45, 29). As suas palavras e actos exalam
bondade; a bondade desinteressada, que não é inspirada por desejo de popularidade ou
egoísmo subtil.
“Deus determinou —escrevia Lacordaire— que para fazer bem aos homens
fosse necessário amá-los e que a insensibilidade fosse, para sempre, incapaz de lhes
comunicar a luz e inspirar a virtude.”
Com efeito, o homem considera uma glória resistir ao que lhe é imposto pela
força; uma questão de honra, opor objecções à ciência que pretende ter sempre razão;
mas não considera humilhação ser desarmado pela bondade.
As Irmãzinhas dos Pobres, as Irmãzinhas da Assunção, as Irmãs da Caridade
obtiveram inúmeras conversões sem qualquer discussão, somente através de uma
infatigável e heróica bondade.
“Deus está aqui —exclama o pecador perante a generosidade dessas irmãs—
vejo-O realmente como o ‘Deus bom’. E bom tem de ser, para que a união com Ele
torne seres tão egoístas, como são as criaturas humanas, capazes de aniquilar o seu amor
próprio e contrariar as repugnâncias mais legítimas da natureza!”
Esses anjos terrestres realizam, na prática, a seguinte definição do Padre Faber:
“A bondade é a entrega de si mesmo aos outros. Ser bom é pôr os outros no lugar de si
mesmo. A bondade tem convertido mais pecadores do que o zelo, a eloquência ou a
instrução, e estas três coisas não converteram pessoa alguma, sem que a bondade nisso
influa de algum modo (...). É a manifestação deste sentimento nos apóstolos que atrai os
pecadores e que concorre para a sua conversão”.
E acrescenta: “Por toda a parte, a bondade se mostra o melhor paladino do
preciosíssimo sangue de Cristo (…). É certo que o temor do Senhor é, frequentemente,
o princípio dessa sabedoria que se chama conversão; é, porém, necessário que ele seja
acompanhado pela bondade, porque, doutro modo, o temor apenas fará infiéis”.65
“Tende o coração de uma mãe —diz São Vicente Ferrer— quando preciseis de animar
ou de atemorizar. Mostrai entranhas de caridade para com todos; sinta o pecador que a
vossa linguagem é inspirada pela caridade. Se quereis ser úteis às almas, começai por
recorrer a Deus, com todo o vosso coração, para que Ele difunda em vós essa caridade
que é a síntese de todas as virtudes, a fim de que, mediante ela, possais alcançar
eficazmente o fim proposto”. 66
A bondade natural, simples fruto do temperamento, dista tanto da bondade
sobrenatural do verdadeiro apóstolo, como o que é humano dista do que é divino. A
primeira, fará nascer o respeito ou a simpatia pelo apóstolo e pode desviar para a
criatura uma afeição que apenas deveria ter Deus como objecto. Nunca conseguirá,
porém, determinar as almas a fazerem os sacrifícios necessários para regressarem ao seu
Criador. Só a bondade, que promana da união com Jesus, realizará esse efeito.
O amor ardente a Jesus e às almas dará ao apóstolo a audácia compatível com a
prudência. A um leigo eminente ouvimos contar, certa vez, o seguinte facto. Falando
com o Santo Pontífice Pio X, tinha esse leigo, no decurso da audiência, usado palavras
ásperas para referir-se a um determinado inimigo da Igreja. “Meu Filho —diz-lhe o
Papa— não aprovo a sua linguagem. Como castigo, ouça esta história. Acabava de
chegar à sua primeira paróquia um sacerdote que eu conheci muito bem. Julgou ele do
seu dever visitar todas as famílias. Judeus, protestantes e até mações, ninguém foi
excluído, e o pároco anunciou do púlpito que renovaria a sua visita todos os anos. Tanto
se admiraram disto os seus colegas que se queixaram ao bispo. Este mandou logo
chamar o acusado e repreendeu-o com veemência. ‘Monsenhor —respondeu-lhe
modestamente o pároco— Jesus, no Evangelho, ordena ao pastor que conduza ao
aprisco todas as suas ovelhas: “Ainda tenho outras ovelhas que não são deste aprisco e
também tenho de as conduzir” (Jo 10, 16). Como atingir esse resultado sem ir à procura
delas? Por outro lado, eu nunca transijo nos princípios; limito-me a testemunhar o meu
interesse e caridade a todas as almas, mesmo às que andam desgarradas, mas que Deus
me confiou. Anunciei essas visitas do púlpito; e se é vosso desejo formal que eu deixe
de as fazer, tende a bondade de me dar, por escrito, essa proibição, a fim de que se saiba
que eu apenas obedeço às ordens de V. Exª. Rvdma.’. Abalado pelo acerto destas
palavras, o bispo não insistiu. O futuro veio dar razão a esse sacerdote, que teve a
alegria de converter algumas dessas almas desgarradas e comunicou às outras um
grande respeito pela nossa santa religião. O humilde sacerdote veio a ser, por vontade de
Deus, o Papa que agora lhe dá, meu filho, esta lição de caridade. Seja, pois, inabalável
nos princípios, mas estenda a sua caridade a todos os homens, mesmo que eles sejam os
piores inimigos da Igreja.”
Irradia humildade. – Facilmente se compreende que a bondade e a doçura de
Jesus atraíssem as multidões. Pode-se atribuir o mesmo poder à sua humildade? Sem
sombra de dúvida.
“Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Elevado pelo Criador à dignidade de
cooperador, o apóstolo torna-se um agente de operações sobrenaturais, mas com a
condição de que só Jesus apareça. Quanto mais ele souber abater-se e tornar-se
impessoal, tanto mais Jesus se manifestará. Sem esta impessoalidade, fruto da vida
interior, o apóstolo debalde plantará e regará; nada fará germinar.
A verdadeira humildade tem encantos especiais, cuja fonte está em Jesus. “É
necessário que Ele cresça e que eu diminua” (Jo 2, 30). Quanto mais o apóstolo se
abate, tanto mais consegue conquistar os corações. A humildade é um dos mais
poderosos meios de acção sobre as almas. “Crede-me —dizia São Vicente de Paulo aos
seus sacerdotes— só realizaremos a obra de Deus se nos persuadirmos de que, por nós
próprios, apenas, estragamos tudo”.
Talvez alguém estranhe que repitamos, várias vezes, os mesmos pensamentos,
mas a nossa intenção é gravá-los profundamente no espírito dos nossos queridos leitores
e, também, realçar a sua importância.
As maneiras arrogantes contribuem, muitas vezes, para a infecundidade das
obras. O cristão “moderno” preza muito a sua “independência”. Aceitará obedecer, mas
só a Deus. Não gosta de receber ordens e conselhos do ministro de Deus, se neles não
perceber o sinete de Deus. Por isso, mais necessário do que nunca se torna que o
apóstolo saiba abater-se e desaparecer, pela humildade e pela vida interior, seguindo o
conselho do divino Mestre “Vós, porém, não queirais ser chamados mestres (...) nem
permitais que vos tratem por doutores (...). O maior de entre vós será o vosso servo.
Quem se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado” (Mt 23, 8-12).
O aspecto do homem interior torna-se um ensinamento da “ciência da vida”, isto
é, da “ciência da oração”, de que fala Santo Agostinho. Porquê? Porque a sua humildade
reflecte a dependência de Deus. E a dependência, em que tal alma se conserva,
manifesta-se pelo hábito de recorrer sempre a Deus em todas as dificuldades.
São Beda comenta assim as palavras pusillus grex, do Evangelho de São Lucas:
“O Salvador —diz ele— chama “pequenino” ao rebanho dos eleitos, já porque o
compara à multidão dos réprobos, já, sobretudo, pelo seu amor apaixonado à humildade,
porquanto, por mais numerosa e dilatada que seja a sua Igreja, ele quer vê-la crescer
sempre, até ao fim do mundo, em humildade, para assim chegar ao Reino prometido”.67
Inspira-se este texto na enérgica lição que Nosso Senhor deu aos seus Apóstolos,
quando pretendiam alcançar vantagens pessoais e se mostravam cheios de ambições e
ciúmes. “Disse-lhes Jesus: os reis das nações imperam sobre elas e os que nelas
exercem autoridade são chamados benfeitores. Convosco não deve ser assim; que o
maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve” (Lc
22, 25-26).
“Mas —diz Bourdaloue— com isto, não se está a enfraquecer a autoridade?
Sempre haverá bastante autoridade entre vós, se houver humildade; faltando esta, a
autoridade tornar-se-á onerosa e insuportável”.
Sem humildade, o apóstolo cairá em excessivas tolerâncias ou, pelo contrário, no
despotismo, sem conseguir o equilíbrio entre os dois extremos. Será pusilânime, deixará
degenerar em fraqueza o espírito de caridade, fará concessões exageradas e opções
minimalistas, alegando razões de prudência; ou então, dará livre curso a
susceptibilidades, ódios pessoais, rancores, ânsias de protagonismo, ciúmes,
maledicências, para cair, inevitavelmente, no autoritarismo.
As ofensas à glória de Deus e à Igreja, darão pretexto a reacções destemperadas,
em que o apóstolo mais procurará afirmar a sua personalidade ou os privilégios da sua
classe, do que os interesses do Criador.
A segurança de doutrina e de critérios não basta para preservá-lo desses desvios,
já que, sem vida interior, e por conseguinte sem verdadeira humildade, o apóstolo
deixar-se-á influenciar pelas suas paixões. A humildade dar-lhe-á rectidão de critérios,
equilíbrio e estabilidade, devido à união com Deus, que o torna, por assim dizer,
participante na imutabilidade divina. Será como a hera frágil, que se torna forte, quando
se liga ao robusto tronco do carvalho, esse imponente rei das florestas.
Não hesitemos em reconhecê-lo; sem humildade, andaremos ao sabor das
circunstâncias e das paixões, e acabaremos por cair em numerosas faltas, pois, como diz
S. Tomás: “O homem é um ser mutável; só é constante na sua inconstância”. Se o
apóstolo não for humilde, verá a sua autoridade desprezada, por ser pusilânime, ou,
então, despertará a desconfiança e o ódio contra a sua autoridade despótica, por não
reflectir o poder de Deus.
Irradia firmeza e doçura. – Os santos foram paladinos na luta contra o erro e a
hipocrisia. São Bernardo, o oráculo do seu século, pode ser citado como um dos santos
cujo zelo irradiou mais firmeza. Mas ao ler atentamente a vida deste homem de Deus, o
leitor verifica maravilhado que a sua vida interior o torna completamente desinteressado
e impessoal. Só recorria a medidas drásticas, quando todos os outros meios se
revelavam ineficazes. No seu grande amor pelas almas, depois de defender, às vezes
com santa indignação, os princípios e exigido reparações e promessas, vemo-lo, logo de
seguida, consagrar-se com entusiasmo à conversão daqueles mesmos a quem a sua recta
consciência tinha obrigado a combater. Inexorável, por exemplo, com os erros de
Abelardo, consegue tornar-se seu amigo, logo depois de o reduzir ao silêncio.
Quando não estavam em causa princípios, São Bernardo impedia que os homens
da Igreja lançassem mão de procedimentos violentos. Chega um dia ao seu
conhecimento que se preparava uma perseguição e massacre de judeus na Alemanha.
Sem hesitar, abandona o seu mosteiro, para correr em sua defesa e pregar uma cruzada
de paz. O Beato Afonso Ratisbonna —ele próprio judeu— cita, na sua Vida de São
Bernardo, um documento em que o rabino-mor daquele país manifesta a sua admiração
pelo monge de Claraval, “sem o qual —diz ele— nenhum de nós estaria vivo na
Alemanha”. E roga às gerações futuras dos israelitas que não esqueçam a dívida de
gratidão para com o santo abade. “Nós somos —dizia São Bernardo nessa ocasião— os
soldados da paz, somos o exército dos pacíficos. A persuasão, o exemplo e a dedicação:
eis as únicas armas dignas de um filho do Evangelho.”
O segredo da generosidade desinteressada, que sempre caracterizou a alma dos
santos, encontra-se na sua vida interior.
Na Suíça, os chefes protestantes preparavam-se para uma luta encarniçada.
Queriam, nada menos, que assassinar São Francisco de Sales, que era bispo de Genebra.
Apresenta-se o santo, a irradiar doçura e humildade; os protestantes vêem nele um
homem no qual resplandece, maravilhosamente, o amor de Deus e do próximo. A
história aí está para contar os resultados fulgurantes produzidos pelo seu apostolado.
Mas ele mesmo, o doce São Francisco de Sales, soube mostrar também firmeza
inexorável, quando se tornou necessária. Não hesitou em invocar a força das leis
humanas, para confirmar os resultados obtidos pela suavidade da sua palavra e pelo
exemplo das suas virtudes. Foi assim que o santo bispo aconselhou ao duque de Sabóia
medidas severas contra a heresia.
Os santos procuraram imitar o divino Mestre. O Salvador acolhia os pecadores
com misericórdia, era amigo de Zaqueu e dos publicanos, cheio de bondade para com os
doentes, os aflitos e as crianças. Mas Ele, que era todo doçura e mansidão, não hesitou
em pegar no açoite para expulsar os vendilhões do Templo. E que severidade, que força
nas suas expressões, quando fala de Herodes, ou quando estigmatiza os vícios dos
escribas e fariseus hipócritas!
Somente depois de empregar em vão os demais meios, é que, com relutância, e
para impedir o contágio, portanto por caridade, o apóstolo pode recorrer a processos
mais drásticos.
Exceptuando estes casos, e quando não estão em jogo os princípios, a mansidão
deve prevalecer na conduta do apóstolo. “Apanham-se mais moscas —diz S. Francisco
de Sales— com uma colher de mel do que com pipas de vinagre”.
Lembremo-nos da censura feita por Jesus aos seus Apóstolos, quando estes,
ofendidos e humilhados na sua dignidade humana, e claramente movidos por amor-
próprio, queriam recorrer à violência e pediam que o fogo do céu descesse sobre a
cidade da Samaria, que recusara recebê-los. O Evangelho diz-nos expressivamente:
“Mas Ele, voltando-se, repreendeu-os” (Lc 10, 55).
Um dos nossos bispos, cuja firmeza de princípios é bem conhecida, visitou as
famílias enlutadas, da sua diocese, em cujo seio a guerra que nos flagela68 tinha feito
algumas vítimas. Encontrou-se, assim, com um calvinista, que chorava, amargamente,
um filho morto no campo de batalha, e procurou consolá-lo com palavras cordiais e
comovidas. Enternecido por este acto de caridade, o protestante exclamou, depois:
“Parecia impossível que um bispo, de nobre nascimento e instrução tão esmerada, se
dignasse transpor a porta da minha modesta casa, devido à diversidade das nossas
crenças. E, no entanto, veio. O seu procedimento e as suas palavras tocaram-me o
coração.” Esse pastor de almas manifestou, verdadeiramente, a mansidão de Nosso
Senhor. O pobre pai viu, por assim dizer, diante dele o Salvador, e a sua alma foi tocada
pela graça divina.
A vida interior mantém o espírito e a vontade ao serviço do Evangelho. A alma
unida ao Coração de Jesus não se deixa dominar pela indolência, nem pela violência
injustificada. Só tem prudência e coragem, quando movida por esse Coração adorável.
Eis o segredo das suas vitórias. Pelo contrário, a falta de vida interior é a razão de
muitíssimas derrotas.
Irradia mortificação. – O espírito de mortificação é outro princípio fecundador
das obras. Enquanto não fizermos penetrar nas almas o mistério da cruz, apenas
lograremos tocá-las superficialmente. Ora, a dor repugna à natureza humana. Somente a
aceita, verdadeiramente, aquele que puder dizer com o grande Apóstolo: “Estou
crucificado com Cristo!” (Gal 2, 19). Somente conseguimos suportar o sofrimento se
“trouxermos no nosso corpo os traços da morte de Jesus, para que também a vida de
Jesus se manifeste no nosso corpo” (2 Cor, 4, 10). Mortificar-se é imitar Jesus Cristo
que “não procurou o que Lhe era agradável” (Rom 15, 3), é renunciar a si mesmo, é
amar o que custa, é procurar ser uma vítima incessantemente imolada.
Sem vida interior, não conseguimos dominar as nossas paixões. O mundo está de
tal modo entrincheirado na vida de prazeres que, para difundir nas almas o espírito de
penitência, de pouco valem os argumentos comuns e até mesmo as grandiosas
apóstrofes. A Paixão de Cristo há-de tornar-se sensível aos fiéis pela mortificação e
desapego dos ministros de Deus. O pobrezinho de Assis, percorrendo em silêncio as
ruas das cidades, persuadia mais almas a abraçarem a cruz, do que a oratória do grande
Bossuet, com as suas belíssimas apóstrofes sobre o Calvário.
“Inimigos da cruz de Cristo”, diria São Paulo, são os cristãos que só vêem na
religião uma forma de “snobismo”, uma prática exterior legada pela tradição e cumprida
periodicamente, mas sem influência na emenda da vida e na luta contra as paixões.
“Este povo honra-Me com os lábios —poderia dizer o Senhor— mas o seu coração está
longe de Mim” (Mt 15, 8).
“Inimigos da Cruz”, os cristãos que julgam indispensável rodearem-se de todas
as comodidades, cederem a todas as exigências do mundo, seguirem todas as modas,
entregarem-se a prazeres ilícitos; os cristãos que ficam chocados com estas palavras de
Jesus: “Se não fizerdes penitência, todos perecereis da mesma maneira” (Lc 13, 3-5). A
cruz, segundo a expressão de S. Paulo, tornou-se para eles “um escândalo” (1 Cor 1,
23).
Uma numerosa assistência à Missa alegra o coração do verdadeiro sacerdote,
mas não o satisfaz, se tal afluência se deve apenas à rotina, à tradição familiar, embora
respeitável, ao prazer de ouvir boa música, contemplar uma bela ornamentação, ou
escutar uma homilia eloquente.
Nosso Senhor quer apenas o nosso coração. Foi para o conquistar, para possuir a
nossa vontade e para nos animar a segui-l’O pelo caminho da renúncia que veio revelar
ao homem as verdades sublimes da fé.
O apóstolo que “se nega a si mesmo” (Mt 16, 24), terá poder suficiente para
fazer nascer nas almas a abnegação, que é o ponto de partida da santidade.
Ninguém dá o que não tem. O apóstolo, que não tiver a coragem de imitar Jesus
crucificado, não conseguirá convencer o povo a mover a guerra santa contra as paixões,
para a qual Nosso Senhor nos convida.
Só o apóstolo desinteressado, humilde e casto, consegue arrastar as almas para a
luta contra a cobiça, a ambição e a impureza. Só quem conhece a ciência do crucifixo
poderá conter o culto pelo prazer que ameaça destruir, nos nossos dias, todas as famílias
e nações.
Pregar Jesus crucificado, eis como São Paulo resume o seu apostolado. E porque
vive de Jesus, e de Jesus crucificado, consegue ensinar às almas o mistério da cruz e
fazê-las saborear esse mistério. Hoje, falta vida interior a muitos apóstolos para poder
irradiar esse vivificante mistério; consideram na religião os lados filosóficos, sociais ou
estéticos, capazes de interessar as inteligências e excitar a sensibilidade; vêem nela uma
escola sublime de poesia e arte. Certamente, a Religião Católica possui essas
qualidades; mas considerá-la apenas sob tais aspectos secundários é desfigurar a
economia do Evangelho, pondo como fim o que apenas é meio. Fazer do Cristo de
Getsémani, do Pretório e do Calvário, um Cristo “perfumado”, parece sacrilégio. Depois
do pecado, a penitência e o combate espiritual tornaram-se contingências indispensáveis
da vida. Não basta, pois, admirar o zelo do Verbo Encarnado pela glória do seu Pai, é
preciso segui-l’O no caminho da cruz.
Bento XV, na sua Encíclica de 1 de Novembro de 1914, convida os católicos a
arrancarem as almas ao comodismo, aos maus costumes e ao esquecimento dos bens
eternos. Por outras palavras, convida à vida interior os ministros do divino Crucificado.
Deus, que tanto nos deu, exige que o cristão se una à Paixão de Jesus, fazendo os
sacrifícios necessários para observar as leis divinas. Ora, o fiel só conseguirá sacrificar
bens, prazeres e honras, se o seu apóstolo der o exemplo e possuir espírito de sacrifício.
De onde virá a salvação para a sociedade? Perguntam hoje muitos, perante as
retumbantes vitórias da impiedade. Quando chegará o dia em que a Igreja triunfe
novamente? Respondo com o divino Mestre: “Esta espécie de demónios só se expulsa à
força de oração e de jejum” (Mt 17, 21).
Quando surgir uma nova plêiade de sacerdotes e religiosos mortificados que
façam resplandecer no mundo o mistério da Cruz, os povos compreenderão a Redenção
pelo Sangue de Jesus Cristo. Então, o exército do demónio recuará, e o Salvador
ultrajado deixará de repetir a sua queixa dolorosa: “Procurei entre eles alguém que
reparasse a muralha e permanecesse na brecha diante de Mim, em favor do país, para
evitar a destruição e não encontrei ninguém” (Ez 22, 30).
O modo como o Padre Ravignan fazia o sinal da cruz, produzia efeitos
admiráveis nas almas, até em ateus que o ouviam por simples curiosidade. Todos
concordavam que a vida interior e o espírito de penitência do famoso pregador se
manifestava de modo cativante nesse sinal da cruz unido ao mistério do Calvário.
4. Dá ao apóstolo a verdadeira eloquência
Já falámos da verdadeira eloquência do apóstolo, que é um canal da graça
suficiente para converter as almas e levá-las à virtude. Limitemo-nos, agora, a
acrescentar alguns comentários.
No ofício de São João, lemos o seguinte responsório: “Este é João, o que na
Última Ceia reclinou a cabeça sobre o peito do Senhor. Feliz o Apóstolo a quem foram
revelados os mistérios celestes. Do próprio coração de Cristo bebeu as águas vivas do
Evangelho” e “difundiu a graça do Verbo de Deus no mundo inteiro”. Que lição nestas
palavras, para todos aqueles que difundem a palavra divina como pregadores, escritores
ou catequistas! A Igreja indica nelas a fonte da verdadeira eloquência.
Todos os Evangelistas são igualmente inspirados. Todos têm o seu fim
providencial. No entanto, cada um tem a sua eloquência própria. São João dirige-se
especialmente à vontade através do coração, onde difunde “a graça do Verbo de Deus”.
O seu Evangelho é, com as Epístolas de São Paulo, o livro preferido pelas almas que
buscam na união a Cristo o sentido para a vida.
De onde procede a cativante eloquência de São João? Em que montanha se
encontra a nascente desse “grande rio, cujas águas benéficas regam o mundo inteiro”?
“É um dos rios do Paraíso”, diz o texto litúrgico.
Para que servem tantas montanhas altíssimas e tantos picos cobertos de neve?
Não seriam mais úteis, dirá o ignorante, se fossem planícies? Sem esses píncaros
elevados, as planícies e os vales tornar-se-iam estéreis como desertos. As montanhas,
com efeito, são os reservatórios dos rios que, por sua vez, dão fertilidade à terra.
Qual é esse cume elevado do Paraíso, donde brota a fonte que alimenta o
Evangelho de São João? É o Coração de Cristo. Foi por ter sentido, mediante a vida
interior, as palpitações do Coração do Homem-Deus e a imensidade do seu amor pelos
homens, que a palavra do Evangelista se tornou canal da graça do Verbo divino.
As almas interiores são os rios do Paraíso. Não só vão buscar ao Céu, com
súplicas e sacrifícios, as águas vivas da graça, e desviam ou atenuam os castigos que o
mundo merece, como também difundem abundantemente a graça nas almas: Haurietis
aquas de fontibus Salvatoris (Tirareis as águas das fontes do Salvador). Chamados a
proclamar a palavra de Deus, fazem-no com eloquência adquirida na meditação, nas
visitas ao Santíssimo Sacramento, na Missa e, sobretudo, na sagrada Comunhão. Falam
do Céu para a Terra. Iluminam, abrasam, consolam, fortificam.
Pertenço eu, verdadeiramente, a esse número? Se não pertencer, posso ressoar
solenemente como o bronze, mas não sou canal do amor, esse amor que torna
irresistível a eloquência dos amigos de Deus.
A verdade cristã, exposta por um pregador erudito, mas de piedade medíocre,
pode comover as almas, aumentar mesmo a sua fé e aproximá-las de Deus. Mas para
que progridam na virtude, devem saborear primeiro, na meditação, o espírito do
Evangelho e fazer dele a substância da sua vida.
Convém repetir: só o Espírito divino derrama as graças e opera as conversões
que levam a abandonar o vício e a praticar a virtude. A palavra do apóstolo, carregada
da unção do Espírito santificador, torna-se canal vivo da graça. Os apóstolos, antes do
Pentecostes, já tinham pregado, mas quase sem resultados. Após dez dias de retiro e
vida interior, o Espírito de Deus vem a eles e transforma-os. Os seus primeiros ensaios
de pregação são verdadeiras pescas milagrosas de almas. Do mesmo modo acontece aos
semeadores do Evangelho. Por meio da vida interior, trazem Cristo consigo. Semeiam e
regam eficazmente. A sua palavra é a semente que cai e a chuva que fecunda. Jamais
lhes faltará o sol do Espírito Santo, que incrementa e amadurece os frutos.
“O brilho, sem mais, é uma vaidade —dizia S. Bernardo— o calor, sem mais, é
pouca coisa; a luz unida ao calor é a perfeição”. E mais adiante: “É, sobretudo, aos
apóstolos que foi dito: ‘Brilhe a vossa luz diante dos homens’. Eles devem, com efeito,
ser ardentes, muito ardentes”.
O apóstolo deve haurir a sua eloquência na união com Jesus, mediante a
meditação, a guarda de coração e o estudo apaixonado da Sagrada Escritura. Cada
palavra de Deus, cada expressão saída dos lábios adoráveis de Jesus, é para tal apóstolo
um diamante, cujas facetas admira à luz do dom da sabedoria que o Espírito Santo
infunde na sua alma. Só abre o livro inspirado depois de ter rezado. Assim, não se
contenta em admirá-lo, mas saboreia os seus ensinamentos, como se o Espírito Santo os
tivesse ditado só para si. Por isso, que unção, quando, na pregação, cita a palavra de
Deus! E que diferença das engenhosas aplicações feitas por um pregador com pouca fé,
auxiliado, apenas, pelos recursos da razão! O primeiro mostra a verdade viva. O
segundo fala dela como se fosse uma fria equação algébrica. Deixa-a abstracta e, por
assim dizer, no estado de simples memorial, ou, quando muito, realça apenas o seu lado
estético. “A majestade das Escrituras enche-me de admiração. A simplicidade do
Evangelho fala ao meu coração”, confessava o sentimental Rousseau. Mas que
importam à glória de Deus essas vagas e estéreis comoções! O verdadeiro apóstolo
possui o segredo de manifestar às almas o Evangelho, na sua verdade sempre actual e
eficaz, porque divina. Sem perder tempo em atingir o sentimento, esse apóstolo vai, por
meio da palavra divina, direito à vontade em que reside a correspondência à verdadeira
vida. As convicções que ele produz geram amor e resolução. Só ele tem a verdadeira
eloquência evangélica.
Não há, porém, vida interior completa, sem uma terna e incessante devoção a
Maria Imaculada, medianeira de todas as graças. São Bernardo não compreendia que
um verdadeiro filho de Maria não recorresse habitualmente a esta Mãe incomparável. O
verdadeiro apóstolo sabe, pois, comunicar às almas a necessidade de recorrerem, em
qualquer dificuldade, à Rainha do Céu, e, por meio dela, ao Coração de Jesus.
5. A vida interior do apóstolo gera nas almas a vida interior
Este capítulo é dirigido, especialmente, ao coração dos sacerdotes.
Dissemos que as obras dependem, sobretudo, da vida interior do apóstolo. A
falta de oração e de meditação são a causa da esterilidade de certas obras. Convém
insistir agora que uma obra não criará raízes profundas e não se perpetuará, enquanto o
apóstolo não gerar almas para a vida interior. Mas, não poderá gerá-las, se ele mesmo
não estiver fortemente impregnado dessa vida.
Já referimos69 os conselhos do cónego Timon-David, sobre a necessidade de se
formar em cada obra um núcleo de cristãos fervorosos que se tornem apóstolos dos seus
semelhantes. Estes colaboradores podem multiplicar o poder de acção do apóstolo.
Só o apóstolo com vida interior produz outros focos de vida fecunda.
Certas obras, por meio de convívios, camaradagens, ambições terrenas e
rivalidades, conseguem propagandistas e conquistam influência. Porém, suscitar
apóstolos segundo o Coração de Jesus Cristo, apóstolos que participem na sua doçura e
humildade, na sua bondade desinteressada e no seu zelo exclusivo pela glória do Pai, só
é possível mediante a alavanca de uma vida interior intensa. Enquanto uma obra não
chegar a produzir este resultado, terá existência efémera. Quase com certeza, não
conseguirá sobreviver ao seu fundador. Pelo contrário, se se perpetuar, é porque, nela, a
vida interior consegue gerar vida interior.
Citemos um exemplo: O Padre Louis Lallemant, morto em odor de santidade,
fundou em Marselha, antes da Revolução, a Obra dos Estudantes e Empregados. Esta
obra para jovens conserva ainda hoje o nome do seu fundador e, mais de um século
depois, continua florescente. Todavia, esse sacerdote, míope, tímido e desprovido de
talentos oratórios, não possuía os dotes naturais exigidos pela actividade prodigiosa do
seu empreendimento. As feições desproporcionadas do seu rosto serviriam para as
zombarias dos jovens, se a beleza da sua alma não se reflectisse no seu olhar e em toda
a sua atitude. Graças a ela, o homem de Deus tinha sobre os jovens grande ascendente,
capaz de impor respeito e estima até aos mais rebeldes. O Padre Lallemant quis basear
tudo na vida interior e conseguiu formar um grupo de jovens aos quais não hesitava
pedir vida interior, guarda do coração, meditação da manhã, etc., numa palavra, a vida
cristã integral, tal como a compreendiam e praticavam os cristãos dos primeiros séculos.
Esses jovens apóstolos têm continuado, ininterruptamente, em Marselha, a ser a
verdadeira alma dessa obra, que já deu à Igreja muitos bispos, padres, missionários e
religiosos, além de milhares de pais de família que auxiliam as obras paroquiais,
formando uma plêiade de bons comerciantes, industriais e profissionais liberais, que
constituem também um exemplar foco de apostolado.
Pais de família, dissemos nós. Esta palavra evoca o que ouvimos por toda a
parte: “O apostolado com os jovens e com as mães de família é relativamente fácil, mas
com os homens é quase impossível. Contudo, se não conseguirmos tornar bons cristãos,
e até apóstolos, os chefes de família, a influência das mães cristãs será efémera, e não
chegaremos a estabelecer o reinado social de Jesus Cristo. Ora, nesta paróquia, neste
bairro, neste hospital, nesta fábrica, nada pudemos fazer para levar os homens a serem
autênticos cristãos.”
Confessando, assim, a nossa incapacidade, passamos uma certidão à
insuficiência da nossa vida interior, a única que nos fará descobrir os meios de impedir
que tão grande número de homens escapem à acção da Igreja. Aos trabalhos da
preparação cuidadosa de homilias, capazes de convencer e levar a resoluções profundas
os homens, preferimos os fáceis triunfos oratórios diante de jovens ou de mulheres. Só a
vida interior nos poderá sustentar na sementeira obscura, árdua, e aparentemente
infrutuosa, e nos fará progredir na imitação de todas as virtudes de Jesus Cristo,
multiplicando, desse modo, a eficácia do nosso apostolado.
Causou-nos, inicialmente, surpresa o que nos contaram acerca duma obra militar
na Normandia. Um exemplo: iam muito mais soldados ao círculo quando havia uma
longa vigília de adoração nocturna, em reparação das blasfémias e pecados cometidos
no quartel, do que quando lá se realizava um concerto ou uma representação teatral.
Findou a nossa surpresa quando nos disseram que o assistente espiritual desse círculo se
recolhia longamente diante do sacrário e que formava apóstolos devotos da Eucaristia.
Que pensar, então, de certos meios —como o cinema, o teatro e a ginástica—
que certos apóstolos consideram quase um quinto evangelho para a conversão dos
povos? À falta de outros, o emprego destes meios, para obter adeptos ou para conservar
as pessoas longe do mal, poderá dar alguns resultados. Deus nos livre de desanimar os
apóstolos que não sabem empregar outros métodos, e imaginam —como me sucedeu
sendo jovem sacerdote— que os seus patronatos ficarão desertos se consagrarem menos
tempo a preparar esses divertimentos. Queremos apenas premuni-los contra o perigo de
darem demasiada importância a esses meios e desejar-lhes a graça de compreenderem
os conselhos que me deu o já citado cónego Timon-David.
Um dia, tinha eu apenas dois anos de sacerdócio, esse venerável padre disse-me
afectuosamente, não sem alguma compaixão: “Somente quando tiver avançado na vida
interior me compreenderá melhor. Já que não pode actualmente prescindir desses meios,
empregue-os sem hesitar. Quanto a mim, facilmente mantenho os meus jovens na nossa
sede e atraio outros, embora só tenha esses divertimentos antigos e sempre novos, que
na sua simplicidade servem para distrair os jovens. Lembra-se —acrescentou ele— que
já lhe mostrei, ali arrumados num canto, os instrumentos musicais que eu também, a
princípio, julgava indispensáveis: a propósito, eis que se dirige para aqui a nossa banda:
vai poder apreciá-la.” Com efeito, começou a desfilar diante de nós um grupo de 40 a 50
rapazes de 12 a 17 anos. Que algazarra! Não reprimi uma gargalhada ao ver esse curioso
batalhão, que o olhar risonho do velho cónego contemplava com tanta satisfação. “Olhe
—disse-me ele— observe aquele que avança e recua à frente do grupo, agitando a sua
grossa bengala à guisa de maestro e que a leva comicamente à boca, como se fosse um
clarinete; é um dos nossos mais activos cooperadores. Sempre que pode, comunga todos
os dias, e nunca deixa de fazer a sua meia hora de oração mental. É a alma de todos os
divertimentos e tira proveito de todos os seus talentos, a fim de que os recreios dos
rapazes não esmoreçam. Como dispõe de inesgotáveis recursos para esse efeito, mantém
o entusiasmo dos jovens. Nada, porém, escapa ao seu olhar vigilante, nem ao seu
coração de apóstolo”. Executavam modinhas conhecidíssimas. O estribilho mudava,
logo que o maestro dava o sinal. Cada um simulava um instrumento: uns fingiam um
trombone com as mãos; outros faziam vibrar entre os lábios uma folha de papel; outros
tocavam flauta; outro, tambor numa velha lata de petróleo, etc... As caras radiantes dos
rapazes mostravam bem que a brincadeira os deliciava. “Sigamos a banda”, disse-me o
cónego. Ao fundo de uma alameda, erguia-se uma imagem de Nossa Senhora. “De
joelhos, meus amigos, disse o maestro. Um Ave Maris stella à nossa Mãe do céu e,
depois, uma dezena do terço.” Toda aquela rapaziada fica em silêncio durante alguns
momentos, e depois reza, com piedade e recolhimento, as Ave Marias. Alguns minutos
antes, verdadeiros diabretes, aqueles jovens meridionais transformam-se subitamente
em anjos de Fra Angélico. “Não se esqueça —diz-me o meu guia— que o termómetro
da obra é reter, mediante divertimentos simples e animados, os nossos jovens e
conseguir que eles se entretenham com pouca coisa; chegar, sobretudo, a fazê-los rezar,
mas verdadeiramente rezar, mesmo no meio das brincadeiras. Todos os nossos
responsáveis visam esse fim”. A banda levanta-se para prosseguir com novas proezas
artísticas, cujos ecos reboam pelo pátio fora. Minutos depois, era o jogo da barra que
estava no auge. Entretanto, notei que o oficial, ao erguer-se depois do Ave Maris Stella,
murmurou algumas palavras ao ouvido de dois ou três jovens, os quais, imediatamente,
foram deixar o calçado e os trajos próprios do jogo e se dirigiram à capela, a fim de lá
passarem um quarto de hora aos pés do divino Prisioneiro.
“A nossa ambição —acrescentou então o cónego Timon-David, com profunda
convicção— é formar dirigentes com suficiente amor de Deus para que, quando saírem
do patronato e constituírem família, sejam verdadeiros apóstolos e comuniquem ao
maior número possível de almas os ardores da sua caridade. Se o nosso apostolado —
continuava aquele santo sacerdote— visasse apenas fazer bons cristãos, seria medíocre.
Devemos criar legiões de apóstolos para que a célula fundamental da sociedade, que é a
família, se torne um foco de apostolado. Ora, só uma vida de sacrifício e de intimidade
com Jesus nos dará a força e o segredo para realizar integralmente esse programa.
Somente assim, poderemos transformar a sociedade e cumprir a palavra do Mestre: “Eu
vim lançar fogo à terra; e que quero Eu senão que ele já se tenha ateado?” (Lc 12, 49).
Infelizmente, só muitos anos depois, soube compreender o alcance desta lição e
comparar os resultados dos diversos meios empregados. Esses meios podem servir para
avaliar uma obra e os seus dirigentes.
O pequeno David avançou para Golias, contra o qual em vão combatiam, bem
armados, os valentes de Israel. Uma funda, um cajado, cinco pedras da torrente, nada
mais pedia o rapaz. Mas o seu brado: “vou a ti em nome do Senhor dos Exércitos” (1
Sam 17, 45) era o reflexo de uma alma capaz de chegar até à santidade.
Muito se fala hoje das actividades extra-escolares. O Estado põe à sua disposição
enormes somas de dinheiro, magníficas sedes, etc.. As obras extra-escolares da Igreja
nada têm a temer com aquela concorrência, se se basearem na vida interior. Se
souberem despertar os verdadeiros ideais, hão-de conquistar o escol da juventude.
Terminemos com um último facto. Serve-nos para analisar o homem de obras
que parece arrastar as almas para Nosso Senhor, mas que, na realidade, apenas suscita
entusiasmos nascidos da simpatia natural pela sua pessoa e do fascínio que exerce.
Ufanos, porque o vêem ocupar-se deles, os seus adeptos formam uma espécie de corte à
sua volta e, para o agradarem, até lhe obedecem.
Uma Congregação de admiráveis irmãs catequistas era dirigida por um religioso,
cuja vida foi escrita há pouco. “Minha Madre —disse um dia esse homem interior a
uma superiora local— sou de opinião que a Irmã X… deixe, pelo menos durante um
ano, de ensinar o catecismo. – Mas, Senhor Padre, talvez V. Rev.ª não tenha pensado
que essa irmã é a melhor das catequistas. As crianças vêm de todos os bairros da cidade,
atraídas pelos seus métodos maravilhosos. Retirá-la do catecismo é provocar a deserção
da maior parte dessas crianças. – Assisti da tribuna ao seu catecismo, respondeu o
sacerdote. Ela deslumbra as crianças, mas de forma demasiadamente humana. Após um
ano de novo noviciado, melhor formada na vida interior, santificará a sua alma e as
almas das crianças. Mas, actualmente, ela é, sem saber, um obstáculo à acção directa de
Nosso Senhor sobre essas almas que se estão a preparar para a primeira comunhão. Vejo
que a minha insistência a entristece. Pois bem: faço uma concessão. Conheço a Irmã
N…, alma de grande vida interior, mas sem grandes dotes de inteligência. Peça à sua
superiora geral que lha envie por algum tempo. A Irmã X... virá começar, durante um
quarto de hora, a aula de catecismo, precisamente para acalmar os seus temores de
deserção; depois, pouco a pouco, há-de retirar-se completamente. Verá como as crianças
rezarão melhor e cantarão com mais devoção. O seu recolhimento e docilidade
reflectirão um carácter mais sobrenatural. Esse será o termómetro.”
Quinze dias depois (a superiora pôde comprová-lo), a Irmã N… dava sozinha as
lições, mas o número de crianças já tinha aumentado. Podia-se dizer que era Jesus quem
dava o catecismo por ela. O olhar, a modéstia, a doçura, a bondade, a maneira de fazer o
sinal da cruz, tudo nesta irmã falava de Nosso Senhor. A Irmã X… conseguia explicar
as coisas com mais talento e tornar interessantes as coisas áridas. A Irmã N… fazia
mais. Certamente, preparava com cuidado as suas aulas e procurava expô-las com
clareza, mas o seu segredo era a unção. E é por meio desta unção que as almas se põem
verdadeiramente em contacto com Jesus.
No catecismo da Irmã N… não havia expansões ruidosas e olhares esgazeados,
nem o fascínio que provoca a conferência interessantíssima de um explorador ou a
vibrante narração de uma batalha.
Pelo contrário, havia uma atmosfera de atenção recolhida. As crianças assistiam ao
catecismo como se estivessem na igreja. Nenhum meio humano se empregava para
impedir a dissipação ou o cansaço. Qual era, pois, a influência misteriosa que pairava
sobre aquela assistência? Não nos iludamos, era a influência de Jesus que ali,
directamente, se exercia. Porque uma alma com vida interior, a explicar as lições de
catecismo, é uma lira tocada pelos dedos do Artista divino. E nenhuma arte humana, por
maravilhosa que seja, é comparável à acção de Jesus.
6. Importância da formação das elites e da direcção espiritual
Voltemos novamente à conversa, tão cheia de interesse, que tive com o cónego
Timon-David. Uma metáfora pitoresca que ele utilizou, as muletas, sintetizava o seu
pensamento sobre o emprego de certas diversões modernas (teatro, banda, cinema, jogos
variados, etc.), para atrair os jovens.
Tais atracções excitam a imaginação e a sensibilidade, mas, muitas vezes, não
favorecem a saúde nem elevam a alma. Evidentemente, há jogos interessantes, embora
simples, que repousam a alma e fortificam o corpo. A tais jogos, que entretiveram tantas
gerações cristãs, não se pode aplicar o termo muletas.
Sem falar das obras destinadas a aliviar as misérias corporais, podemos dividir
as outras obras católicas em duas categorias: aquelas em que se pretende formar elites
cristãs e as que se destinam a toda a gente. Mesmo nestas, deve existir sempre a
preocupação de formar elites, habilitadas a actuarem sobre as outras almas e a conduzi-
las a uma vida profundamente cristã.
Para atingir este fim, é que as referidas muletas são instrumentos secundários, e
muitas vezes até desnecessários.
A restauração da sociedade terá de passar, necessariamente, por uma intensa
irradiação da santidade da Igreja. Foi assim, e não através de conferências de
apologética, que o cristianismo se desenvolveu, tão rapidamente, nos primeiros séculos
da sua história, apesar do poder e dos preconceitos dos seus inimigos e da corrupção
generalizada da sociedade.
Na verdade, não há notícia de que, naquela época, a Igreja tivesse necessidade
de inventar diversões capazes de afastar dos espectáculos pagãos as almas que devia
conquistar. Poderemos descobrir, por exemplo, nas vidas de Santo Ambrósio e Santo
Agostinho, um só facto que os mostre a organizar obras, com o fim de oferecer às suas
ovelhas divertimentos capazes de os afastar dos prazeres oferecidos pelo paganismo?
Para converter Roma, tão amolecida pelo espírito da Renascença, onde
encontramos factos que provem que São Filipe de Néri teve necessidade de muletas?
Pelo contrário, entre a multidão dos seus fiéis, a Igreja primitiva soube organizar uma
fervorosa elite, cujas virtudes surpreendiam os pagãos e enchiam de admiração as almas
rectas, até mesmo as que possuíam os maiores preconceitos contra a religião cristã. As
conversões sucediam-se, continuamente, até nos meios onde os sacerdotes não podiam
entrar.
Perante estas lições do passado, pergunto se, no nosso século, não teremos uma
confiança excessiva, não só em diversões estonteantes, mas também em certos meios
(peregrinações, festas, congressos, discursos, publicações, sindicatos, acção política,
etc.), que actualmente proliferam e que até podem ser úteis, mas que, de todo em todo, é
deplorável colocar em primeiro plano.
A pregação pelo exemplo será sempre a principal alavanca da Igreja. Só “os
exemplos arrastam”. As conferências, os bons livros, a imprensa cristã e as boas
homilias deverão sempre gravitar em torno deste programa fundamental: fazer com que
o apostolado destinado ao povo se exerça através do exemplo dos cristãos fervorosos.
Infelizmente, há muitos sacerdotes que se deixam absorver pelas funções do seu
ministério, esquecendo o dever de formar elites cristãs pela grande propaganda do bom
exemplo. Não é, pois, de estranhar que tantas nações católicas resvalem, rapidamente,
para a indiferença e até para a impiedade, e que a Igreja, embora ainda seja respeitada e
considerada como uma entidade com interesse para a sociedade, deixe de ser vista como
a força propulsora da existência individual, o fecho de abóbada das famílias e das
nações e, acima de tudo, a mestra da verdade e da vida eterna.
“Que religião é esta, capaz de iluminar, fortificar e inflamar o coração
humano?”, exclamavam os pagãos extasiados com o maravilhoso exemplo dos
primeiros cristãos.
A força de alma dos primeiros cristãos não provinha só do cumprimento do preceito
divino: “Afasta-te do mal” (Sl 36, 27). A abstenção dos actos condenados pela decálogo
não teria sido capaz de gerar, só por si, a admiração e o desejo de os imitar. É, antes de
tudo, à prática do preceito seguinte: “E faz o bem” (Sl 36, 27), ou seja, à força do
exemplo, que se deve a sua poderosa capacidade de conduzir as almas a praticar a
virtude.
“Se a Igreja —dizia-nos um estadista eminente, mas incrédulo— soubesse
gravar, mais profundamente, nos corações o testamento do seu Fundador: Amai-vos uns
aos outros, tornar-se-ia a grande potência indispensável às nações”. Não seria o caso de
fazer a mesma reflexão a respeito de várias outras virtudes?
Com o seu conhecimento profundo e extraordinariamente lúcido das
necessidades da Igreja, São Pio X perguntou, certa vez, a um grupo de cardeais: “Qual
é, hoje, a obra que vos parece mais necessária à salvação da sociedade? – Edificar
escolas católicas, responde um deles. – Não. Multiplicar as igrejas, continua outro. –
Ainda não. – Fomentar as vocações sacerdotais, diz um terceiro. – Não, não, replica São
Pio X. O que, no momento presente, é mais necessário, é ter, em cada paróquia, um
grupo de leigos virtuoso, esclarecido, resoluto e apostólico”.70
Outros factos, ainda, autorizam-nos a afirmar que este santo Papa esperava a
conversão do mundo, através da acção de apóstolos formados pelo clero, cujo
apostolado se fizesse, sobretudo, por meio do exemplo. Nas dioceses onde, antes de ser
Papa, exerceu o munus episcopal, procurou sempre formar cristãos de escol e, por isso,
classificava os seus padres de acordo com os resultados que, neste campo, tinham
alcançado.
A opinião do santo Pontífice confirma que a única e verdadeira estratégia para agir
sobre as multidões consiste na formação de elites cristãs. É erro conservar nas obras
católicas elementos que não se conseguirá tornar fervorosos, quando se corre o risco de
reduzir o fervor dos melhores.
Pode-se, é certo, argumentar a favor do emprego das muletas, alegando que são
indispensáveis, a fim de atrair para as obras católicas muitas almas que, de outro modo,
se perderiam. Alegam, assim, os defensores das muletas que, ao querer formar elites, se
acaba por atrair um número reduzido, deixando muitas almas na atmosfera deletéria em
que, habitualmente, vivem. Seria injusto e cruel, dizem eles, descuidar as multidões e
pretender atingi-las somente pela irradiação da virtude dos melhores, sem tentar actuar,
directamente, sobre os medíocres, para impedir que eles caiam ainda mais baixo.
Evidentemente, os meios a que chamamos muletas, podem ser úteis, a princípio,
para atrair os jovens, reuni-los e interessá-los por uma obra, onde poderão receber
benefícios espirituais. E é com muito respeito que tenho escutado a opinião de
defensores destes meios, que, muitas vezes, são directores e directoras de obras, com
boa-fé e zelo incontestáveis.
Contudo, pensando nos ensinamentos do P. Lallemant e do cónego Timon-
David, julgo que as duas teses se poderiam harmonizar seguindo as suas directrizes, do
seguinte modo:
1º Descobrir entre as centenas de jovens cristãos que constituem uma obra, uma
minoria, que pode ser ínfima, mas que é capaz de desejar ardentemente e praticar,
seriamente, a vida interior.
2º Cultivar com carinho muito especial estas almas, fazendo-as amar,
apaixonadamente, Nosso Senhor. Incutir nelas o ideal das virtudes cristãs. Isolá-las o
mais possível dos outros jovens menos fervorosos, enquanto não alcançarem o grau de
vida interior que os torne imunes aos maus contágios;
3º Enfim, chegado o momento, infundir nestes jovens a sede de almas,
animando-os a fazerem apostolado com os seus companheiros. Para chegar a este ponto,
é fundamental conduzi-los através de uma sólida direcção espiritual.
Depois da oração e do sacrifício, o meio mais eficaz para se obter de Deus o
aparecimento de verdadeiras elites cristãs, capazes de regenerar o mundo, é a acção do
sacerdote pelo conjunto do seu ministério, mas, especialmente, através da confissão —
onde descobre e cura as feridas das almas— e da direcção espiritual, meio
importantíssimo, através do qual o confessor inflama os corações no amor à virtude.
Ninguém tem capacidade para se dirigir espiritualmente a si próprio.
Todos os homens têm fraquezas a vencer, inclinações a dominar, deveres a
cumprir, riscos a correr, perigos a evitar e dificuldades a resolver. Se, para tudo isso, é
preciso o auxílio de guias, com maior razão para trilhar o caminho da perfeição. O
sacerdote faltaria gravemente à sua obrigação de doutor e médico das almas, se, depois
de as confessar, as privasse do grande propulsor da vida interior que se chama direcção
espiritual. Umas breves exortações antes da absolvição não bastam. É indispensável
uma verdadeira direcção espiritual para que a alma progrida na virtude.
Que lastimável sorte a das obras, cujos directores, sempre com falta de tempo,
antes da absolvição, fazem uma vaga exortação, muitas vezes sempre a mesma, aos seus
penitentes, em vez da palavra certa que o médico das almas experiente escolhe para o
estado patológico do seu doente.
Apesar da sua fé na eficácia do sacramento, o penitente pode começar a ver no
sacerdote apenas um “distribuidor automático”, semelhante a esses aparelhos que
oferecem, mecanicamente, um objecto de consumo.
Que diferente o confessor que conhece a arte da direcção espiritual e a põe em
prática! Ele consegue que as almas vibrem por um ideal e se entreguem resolutamente
aos exercícios da vida interior.
Quantos pais e quantas mães de família têm visto a sua acção educativa sobre os
filhos progredir e dar melhores frutos, somente porque encontraram um bom confessor!
Quantos tesouros por explorar na alma de uma criança, ou de um adolescente! É
o momento em que a árvore se inclina, e muitas vezes definitivamente, para um lado ou
para outro.
Quantas vocações sacerdotais e religiosas estão, nesse momento, a desabrochar!
Às vezes, numa paróquia, numa obra, ou numa missão, continua ao longo de
muitas gerações o impulso dado por um sacerdote cheio de zelo e prudência, que soube
ser mais do que um simples “distribuidor de absolvições”. Qual não foi a minha
admiração, na viagem que fiz ao Japão, quando tive a felicidade de entrar em contacto
com alguns membros de numerosas famílias cristãs, descobertas, pouco tempo antes,
perto de Nagasáqui. Facto extraordinário: cercados de pagãos, obrigados pelas
autoridades a esconder a sua religião, privados de sacerdotes, durante três séculos, esses
fiéis de escol tinham recebido dos seus antepassados, não só a fé católica, mas também
um grande fervor. Qual foi o poderoso impulso inicial que explica a força e a
persistência de tão extraordinária transmissão?
A resposta é fácil. Os seus antepassados tiveram a felicidade de encontrar em
São Francisco Xavier um maravilhoso formador de elites cristãs.
Quem não terá notado o papel importante atribuído pelos hagiógrafos ao director
espiritual da maior parte dos santos?
Não seriam mais numerosos os santos na Igreja, se os sacerdotes, os religiosos e
os leigos consagrados ao apostolado recebessem sólida direcção espiritual?
Sem a direcção espiritual recebida pelos pais de Santa Teresinha do Menino
Jesus e, mais tarde, por ela mesma, teria hoje a terra essa “chuva de rosas” que a
inunda?
O sacerdote que não estude a arte da direcção espiritual, e não aceite o trabalho
que a sua prática exige é, até certo ponto, responsável pela mediocridade e até pela
perda de muitas almas. Poderá ser bom administrador, excelente pregador, ter carinho e
solicitude pelos doentes e pelos pobres, mas descuidou a grande táctica empregue pelo
próprio Salvador: transformar a sociedade através dos mais fervorosos.
O pequeno rebanho de discípulos que Jesus escolheu e formou pessoalmente e
que, depois, o Espírito Santo inflamou, bastou para começar a regeneração do mundo.
Saudemos com respeito os bispos, cada vez mais numerosos, que, seguindo o
exemplo de São Pio X, estimam que, nos seus seminários maiores, um curso de ascética
ou de mística é de mais utilidade do que conferências sobre temas sociológicos.

a) A verdadeira direcção espiritual


Quantas erros e preconceitos circulam por aí a respeito da direcção espiritual!
Se consultarmos os autores tidos na Igreja como mestres da vida espiritual,
verificamos que a direcção espiritual não é uma escola de “beatice” e de
sentimentalismo, mas consiste no conjunto metódico e perseverante dos conselhos que
uma pessoa —que tenha para isso graça de estado, ciência e experiência (mormente o
sacerdote)— dá a uma alma recta e generosa, para fazê-la progredir na piedade e na
perfeição.
É, antes de tudo, a educação da vontade, desta faculdade mestra na qual, em
última análise, reside a união com Nosso Senhor e a imitação das suas virtudes.
O director espiritual digno deste nome inteira-se, não somente das causas
profundas das faltas, mas ainda dos vários pendores da alma. Analisa as suas
dificuldades e repugnâncias na luta espiritual. Apresenta-lhe, em todo o seu esplendor, o
ideal a seguir, e escolhe, experimenta e controla os meios de o alcançar; assinala os
escolhos e as ilusões; sacode a indolência; anima, repreende e consola, para retemperar
a vontade contra o desânimo e o desespero.
A direcção espiritual prende-se, ordinariamente, à confissão, enquanto a alma,
ainda apegada ao pecado, continua na vida purgativa.
Quando a alma se vai orientando, seriamente, para a vida fervorosa, então, a
direcção pode tornar-se distinta da confissão. É para evitar a confusão entre uma e outra
que certos sacerdotes só a dão depois da absolvição, e, uma vez por mês, aos que se
confessam cada semana.

b) Classificação útil para a direcção espiritual


Não pretendemos neste livro desenvolver o processo pelo qual se pratica a
direcção espiritual.71 Cada alma é um mundo à parte, com os seus matizes próprios.
Entretanto, os cristãos podem ser classificados em vários grupos. Por nos parecer útil,
sobretudo para os directores espirituais, damos a seguir esta classificação, adoptando
como pedra de toque, de um lado, o pecado ou a imperfeição e, de outro, a oração.
1. Empedernimento
Pecado mortal. – Estagnação neste pecado, por ignorância, ou conscientemente.
Abafamento ou ausência de remorsos.
Oração. – Supressão voluntária de qualquer recurso a Deus.
2. Verniz cristão
Pecado mortal. – Considerado como mal irrelevante e facilmente perdoado; a alma
comete-o, sem resistir às ocasiões e tentações. Confissões quase sem contrição.
Oração. – Maquinal, distraída e ditada, frequentemente, por interesses temporais.
Concentrações raras e superficiais.
3. Piedade medíocre
Pecado mortal. – Fracamente combatido. Fuga pouco frequente das ocasiões, mas
arrependimento sério e confissões sinceras.
Pecado venial. – Pacto com este pecado, considerado como mal insignificante; logo,
tibieza da vontade. Nada faz para o descobrir, prevenir e arrancar.
Oração. – De longe a longe, bem feita. Veleidades passageiras de fervor.
4. Piedade intermitente
Pecado mortal. – Lealmente combatido, fuga habitual das ocasiões. Profundo
arrependimento. Penitências para reparar.
Pecado venial. – Às vezes, deliberado. Combate fraco. Pesar superficial. Exame
particular sem objecto preciso, sem espírito de continuidade.
Oração. – Resolução insuficiente de fidelidade à meditação, que é abandonada se
aparece a aridez ou uma ocupação importante.
5. Piedade perseverante
Pecado mortal. – Nunca. Ou pecado repentino, e muitas vezes duvidoso, mas
acompanhado sempre de ardente compunção e penitência.
Pecado venial. – Vigilância para evitá-lo e combatê-lo. Raras vezes deliberado.
Vivamente sentido, mas pouco reparado. Fidelidade ao exame particular, visando
apenas as fugas dos pecados veniais.
Imperfeições. – A alma evita descobri-las para não ter de as combater, ou arranja
desculpas com facilidade. A renúncia às imperfeições é admirada, desejada até, mas
pouco praticada.
Oração. – Fidelidade constante à meditação, muitas vezes afectiva. Alternância de
consolações e aridezes suportadas com mágoa.
6. Fervor
Pecado venial. – Nunca deliberado. Às vezes, de surpresa ou sem advertência.
Vivamente sentido e seriamente reparado.
Imperfeições. – Reprovadas, vigiadas e combatidas com energia, para agradar a Deus.
Às vezes, talvez, aceites, mas logo rejeitadas. Frequentes actos de renúncia. Exame
particular visando o aperfeiçoamento de uma virtude.
Oração. – Oração mental que se prolonga com gosto. Meditação, sobretudo afectiva e
de simplicidade. Alternâncias entre vivas consolações e provações cruciantes.
7. Perfeição relativa
Imperfeições. – Prevenidas com toda a energia e muito amor. Sobrevêm apenas com
semi-advertência.
Oração. – Vida habitual de oração, mesmo nas ocupações exteriores. Sede de renúncia,
de aniquilamento, de desapego, de amor divino. Fome da Eucaristia e desejo ardente do
Céu. Graças de oração infusa, em vários graus. Muitas vezes, purificações passivas.
8. Heroicidade
Imperfeições. – Só no primeiro movimento.
Oração. – Dons sobrenaturais de contemplação, às vezes acompanhados de fenómenos
extraordinários. Purificações passivas acentuadas. Humildade levada até ao
esquecimento de si mesmo. Preferência dada aos padecimentos sobre as alegrias.
9. Santidade consumada
Imperfeições. – Apenas aparentes.
Oração. – Quase sempre, união transformante. Matrimónio espiritual ou místico.
Purificações de amor. Sede ardente de sofrimentos e humilhações.
São muito poucas as almas de escol que atingem os três últimos estados. O
pecado venial nelas é muito raro. Por isso, compreende-se que os sacerdotes aguardem a
ocasião de ter de dar direcção espiritual a pessoas assim para, só então, estudarem o que
os melhores autores indicam para a direcção prudente e segura.
Mas como desculpar o confessor que, sem zelo para aprender e aplicar o que se
refere aos quatro graus (piedade medíocre, piedade intermitente, piedade constante e
fervor) deixe as almas estagnadas na tibieza, ou num grau muito inferior àquele a que
Deus as destina?
Quanto aos pontos sobre os quais convém insistir na direcção espiritual dos
principiantes, parece-me que podem ser reduzidos a quatro:
1. Paz. – Examinar se a alma possui a verdadeira paz, não a que o mundo dá, ou que
resulta da falta de luta. Caso contrário, estabelecê-la numa paz relativa, apesar das suas
dificuldades. Essa é a base de qualquer direcção. A calma, o recolhimento e a confiança
ligam-se a este ponto.
2.Ideal. – Uma vez coligidos os elementos necessários à sua classificação e à
determinação dos seus pontos fracos, do seu génio e temperamento, assim como o grau
de perfeição, procurar os meios capazes de reavivar o seu desejo de viver em união com
Jesus Cristo, de derrubar as barreiras que se opõem à acção da graça. Numa palavra,
envidar esforços para que a alma aspire a ser melhor.
3. Oração. – Indagar o modo como a pessoa reza e, em particular, a fidelidade à
meditação, o género de meditação, os obstáculos que nela encontra e os frutos que dela
colhe. Proveito que tira dos sacramentos, da vida litúrgica, das devoções particulares,
das orações jaculatórias e do exercício da presença de Deus.
4. Renúncia. – Estudar o método e a matéria do exame particular; a maneira como se
exerce a renúncia, por ódio ao pecado ou por amor à virtude; a guarda do coração, ou
seja, a vigilância e o combate espiritual, em espírito de oração, no decorrer do dia.
Estes quatro pontos resumem o essencial da direcção espiritual. Podem ser
examinados todos os quatro em cada mês, ou, alternativamente, um deles, para não
parecer demasiadamente longo.
Combatendo nas almas os elementos de morte e reanimando nelas os germens de
vida, o sacerdote zeloso, cedo ou tarde, apaixona-se pelo exercício desta arte suprema, e
o divino Espírito Santo, de quem é instrumento fiel, não lhe poupa as inefáveis
consolações que constituem, cá na terra, uma das maiores alegrias do sacerdócio.
Concede-lhas, na medida em que se dedica a aplicar às almas os princípios que estudou.
Quem mais do que São Paulo saboreou as alegrias do apostolado? Mas também que
ardores não lhe devoravam o coração para que deixasse escrito: “Durante três anos, de
noite e de dia, não cessei de exortar com lágrimas, cada um de vós” (Act 20, 31).
A aplicação da ciência e o zelo apostólico recebem, certamente, as bênçãos de Deus.
Mas estes dois factores adquirem força sobre-humana, quando o sacerdote que delas
lança mão procura, verdadeiramente, a santidade. Que transformação se verificaria se,
em cada paróquia, em cada comunidade ou agrupamento católico, houvesse verdadeiros
directores de almas!
Quem se dê ao trabalho de comparar as obras, conforme os seus resultados, há-
de, forçosamente, chegar à seguinte conclusão: onde existir autêntica direcção
espiritual, não haverá necessidade das famosas muletas para que a obra tenha êxito. O
uso de muletas poderá, talvez, disfarçar a falta de direcção espiritual numa obra; nunca
logrará, porém, atenuar a sua necessidade. Quanto mais zelo tiverem os sacerdotes em
se aperfeiçoarem na arte da direcção espiritual, tanto mais se atenuará aos seus olhos a
necessidade das muletas —úteis a princípio para entrar em contacto com os fiéis, atraí-
los, agrupá-los, interessá-los e mantê-los sob a influência da Igreja— e só se darão por
plenamente satisfeitos quando as almas se unirem plenamente a Cristo.
7. A vida eucarística resume a fecundidade do apostolado
O fim da Encarnação, e, consequentemente, do apostolado, é divinizar a
humanidade, conforme as palavras de Santo Agostinho: “Cristo encarnou-se para que o
homem se tornasse Deus”.
“Querendo que nos tornássemos participantes na sua divindade, o Filho
Unigénito de Deus assumiu a nossa natureza, a fim de que, feito homem, fizesse dos
homens deuses” 72. Ora, é na Eucaristia, ou melhor, é na vida eucarística —isto é, na
vida interior sólida, alimentada no banquete divino— que o apóstolo assimila a vida
divina. Aí está a peremptória palavra do Mestre, que não dá lugar a equívocos: “Se não
comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em
vós” (Jo 6, 53). A vida eucarística é a vida de Nosso Senhor em nós, não só por meio do
indispensável estado de graça, mas também por meio da superabundância da sua acção.
“Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). Se a vida divina
deve superabundar no apóstolo, a fim de que este a difunda pelos fiéis, e se apenas na
Eucaristia se encontra a fonte dessa vida, como supor a eficácia das obras sem a acção
da Eucaristia sobre aqueles que, directa ou indirectamente, devem ser os dispensadores
dessa vida por meio das obras?
Impossível é meditarmos sobre as consequências do dogma da Presença real, do
Sacrifício do altar, da Comunhão, sem sermos levados a concluir que Nosso Senhor quis
instituir este sacramento para fazer dele o foco do apostolado verdadeiramente útil à
Igreja. Se a Redenção se consumou pelo Sacrifício do Calvário, é do altar que
promanam as graças desse mistério. E o apóstolo, que não vive das graças do altar, terá
uma palavra morta, uma palavra que não salva.
Nosso Senhor, logo após a Última Ceia, explicou, com insistência e precisão,
por meio da parábola da videira, a inutilidade da acção que não for animada pelo
espírito interior: “Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo se não estiver unida à
videira, assim acontecerá convosco se não estiverdes em Mim” (Jo 15, 4).
Imediatamente depois, indicou o valor da acção exercida pelo apóstolo que possui vida
interior, vida eucarística! “O que permanece em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto” (Jo
15, 5). Esse, mas só esse. É por meio dele que Deus realiza as suas grandes obras. É
que, diz Santo Atanásio, “tornámo-nos deuses pela carne de Cristo”. Quando o coração
do pregador, ou do catequista, é abrasado pelo mesmo fogo que consome o Coração
eucarístico de Jesus, a sua palavra inflama-se. Quando os que Deus escolheu para
trabalhar numa escola, num hospital, ou num asilo, reanimam o seu zelo na comunhão,
esses passam a irradiar a presença de Jesus.
A Eucaristia defende o apóstolo contra os demónios que tratam de conservar as
almas na ignorância, e contra os espíritos soberbos e impuros que procuram embriagá-
las no orgulho ou atolá-las na lama.
O amor aperfeiçoa-se por meio da Eucaristia. Esse memorial vivo da Paixão
reanima no apóstolo o fogo divino. Faz-lhe reviver o Getsémani, o Pretório, o Calvário
e dá-lhe a ciência da dor e da humilhação.
O apóstolo fala aos aflitos uma língua capaz de os tornar participantes nas
consolações hauridas nessa sublime escola. Fala a linguagem das virtudes de Jesus,
porque cada uma das suas palavras é como uma gota de sangue eucarístico lançado
sobre as almas.
Sem vida eucarística, a palavra do apóstolo pode chegar a impressionar, mas o
coração dos ouvintes continuará inexpugnável.
Conforme o grau de vida eucarística de uma alma, assim será a fecundidade do
seu apostolado. O sinal distintivo da eficácia de um apostolado é a sede eucarística
despertada nas almas. Mas tal resultado só se obtém se o apóstolo for um verdadeiro
devoto da Eucaristia.
Tal como São Tomás de Aquino, que pousava a cabeça no sacrário para pedir a
solução de alguma dificuldade, o apóstolo confia tudo ao Hóspede divino, e a sua acção
sobre as almas é a realização prática das suas confidências ao Autor da vida. O nosso
admirável Pontífice Pio X, o Papa da comunhão frequente, é também o Papa da vida
interior. “Instaurar todas as coisas em Cristo” (Ef 1, 10), tal foi o seu primeiro conselho
a quem se dedica ao apostolado. É o programa de um apóstolo que vive da Eucaristia e
espera a vitória da Igreja dos progressos da vida eucarística nas almas.
Por que razão as obras do nosso tempo não regeneram a sociedade? Por que não
evitam que a impiedade, em proporções aterradoras, assole o campo do pai de família.
Porquê? Porque não estão suficientemente fundamentadas na vida interior, na vida
eucarística, na vida litúrgica bem compreendida. Por isso, não podem comunicar esse
calor que move as vontades.
Os seminários e os noviciados não produzem multidões de sacerdotes, religiosos
e religiosas inebriados no vinho eucarístico. O fogo que, por meio dessas almas
escolhidas, se devia difundir pelos leigos votados à obras, ficou em estado latente. Têm
dado à Igreja apóstolos piedosos, mas não lhe deram, senão raramente, apóstolos que,
mediante uma intensa vida eucarística, tenham uma piedade integral, ardente, activa,
generosa e prática, que se chama vida interior.
Às vezes ouve-se qualificar como boa, ou até excelente, uma freguesia porque os
paroquianos cumprimentam amavelmente o sacerdote, e lhe prestam, quando
necessário, algum serviço, mas onde o maior número abandona a assistência à Missa ao
domingo, os sacramentos são esquecidos, reinam a ignorância da religião, a
intemperança e a blasfémia, e a moral deixa bastante a desejar. Paróquia excelente?
Podemos chamar cristãos a essas pessoas de vida inteiramente pagã?
Como é que nós, que deploramos essa situação, não vamos com mais frequência
a essa escola onde o Verbo ensina os pregadores! Porque não haurimos, em colóquios
íntimos com o Deus da Eucaristia, as palavras da vida? Deus não fala pela nossa boca. É
fatal.
Mas não nos admiremos. É que não somos um reflexo de Jesus e da sua vida na
Igreja. Para que o povo cresse em nós, seria necessário que a nossa fronte brilhasse, de
algum modo, como a de Moisés quando, descendo do Sinai, voltou para o meio dos
israelitas. Aos olhos dos hebreus esse brilho era um testemunho da intimidade do
enviado com Aquele que o enviara. Os nossos resultados têm sido imperfeitos, porque
não reflectimos a intimidade com o Deus vivo a quem nada resiste.
Todos os homens desejam ser felizes. Se as nossas obras fracassaram, não será
porque eles não viram em nós a irradiação da felicidade eterna e infinita de Deus? Se
estivéssemos unidos Àquele que é a alegria da corte celeste, irradiaríamos essa
felicidade.
O Mestre, não esqueceu esse alimento de alegria, indispensável aos seus
Apóstolos. “Digo-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa
alegria seja completa” (Jo 15, 11), afirmou Ele, logo depois da Última Ceia, para
recordar até que ponto a Eucaristia há-de ser a fonte de todas as grandes alegrias deste
mundo.
Ministros do Senhor, para quem é mudo o sacrário, fria a pedra de ara, inerte a
santa Hóstia, deixámos de fazer bem às almas e não as conseguimos tirar do lodo!
Porquê? Porque não soubemos saciar a nossa sede nas águas vivas do Cordeiro,
não soubemos falar-lhes dessas alegrias inefáveis, cujo desejo teria quebrado as cadeias
da tríplice concupiscência, com muito maior eficácia que as palavras terríveis sobre o
Inferno. Por meio de nós, as almas viram em Deus —que é todo Amor— sobretudo um
legislador austero, um juiz inexorável nas suas sentenças e rigoroso nos seus castigos.
Os nossos lábios não souberam falar a linguagem do Coração d’Aquele que ama os
homens, porque os nossos entretenimentos com esse Coração eram poucos e distantes.
Não rejeitemos as culpas sobre o estado de desmoralização profunda em que se
encontra a sociedade, porque, se quiséssemos, poderíamos mudar tudo. Com efeito, em
paróquias quase descristianizadas, houve sacerdotes criteriosos e dedicados, que,
haurindo forças no fogo do tabernáculo, souberam dar aos fiéis uma tal têmpera que
todos os demónios conjurados têm sido incapazes de vencer.
A sua oração junto do altar não foi estéril, porque compreenderam esta verdade,
ensinada por São Francisco de Assis: “A oração é a fonte da graça. A pregação é o canal
que distribui as graças que tivermos recebido do Céu. Os ministros da palavra de Deus
são os escolhidos pelo grande Rei para levar aos povos o que eles próprios aprenderem
e receberem da sua boca, sobretudo junto do sacrário”.

Parte V

Alguns princípios e advertências

para a vida interior


1. Convicções e princípios
Convicções:
· O verdadeiro Apóstolo é Jesus Cristo; nós apenas somos seus instrumentos.
· Jesus Cristo não abençoa as obras em que o apóstolo só confia nos seus próprios
meios.
· Jesus Cristo não abençoa as obras mantidas por actividade meramente natural.
· Jesus Cristo não abençoa as obras em que o amor próprio se sobrepõe ao amor de
Deus.
· Ai daquele que rejeita a obra para a qual Deus o chama!
· Ai daquele que empreende as obras sem estar certo da vontade de Deus!
· Ai daquele que, nas obras, quer mandar sem depender de Deus!
· Ai daquele que, nas obras, não põe os meios para conservar ou recuperar a vida
interior!
· Ai daquele que não ordena a vida interior e a vida activa, de tal modo que esta não
prejudique aquela!
Princípios:
1º princípio. – Não começar as obras por mera actividade natural, mas procurar sempre
conhecer a vontade de Deus, para ter a certeza moral de que se procede inspirado pela
graça.
2º princípio. – É imprudente entregar-se muito tempo a ocupações excessivas,
incompatíveis com os exercícios essenciais da vida interior. É, então, o caso, sobretudo
para os sacerdotes e religiosos, de aplicar, até ao trabalho mais santo, o conselho do
Senhor: “arranca-o e lança-o fora” (Mt 5, 29), ou a expressão, já citada, de São
Bernardo: “ocupações malditas”.
3º princípio. – Estabelecer, custe o que custar, um regulamento que determine o
emprego do tempo, feito sob a orientação de um sacerdote esclarecido, experiente e com
vida interior.
4º princípio. – Antes de tudo, cultivar a vida interior. Quanto mais ocupado se
estiver, tanto maior é a necessidade desta vida, e maior sede se deve ter dela.
5º princípio. – Quando o apóstolo se encontra muito ocupado por vontade de Deus, e se
vê obrigado a reduzir os exercícios de piedade, possui um termómetro infalível que lhe
indica o seu grau de fervor: Se tiver sede de vida interior, e aproveitar todas as ocasiões
para cumprir as suas práticas essenciais, pode estar certo de que Deus continuará a
ajudá-lo a progredir na vida espiritual.
6º princípio. – Enquanto o apóstolo não permanecer recolhido e na dependência da
graça, a sua vida interior é insuficiente. Pelo grau de recolhimento, sabemos se a acção
depende, verdadeiramente, de Jesus.
Advertências práticas:
1º O regulamento e a vontade firme de o cumprir, especialmente a hora certa de
levantar, são condições insubstituíveis da vida interior.
2º A meditação da manhã é a base da vida interior. “Aquele —diz Santa
Teresa— que está firmemente decidido a fazer, a todo o custo, a meia hora de
meditação pela manhã, andou já metade do caminho”. Sem a meditação, o dia será,
quase forçosamente, de tibieza.
3º Missa, comunhão, recitação do breviário, funções litúrgicas, terço, são minas
incomparáveis de vida interior e devem ser exploradas, todos os dias, com fé e fervor
crescentes.
4º O exame particular e o exame geral, bem como a meditação e a vida litúrgica,
devem cuidar muito a guarda do coração — ou seja, o conselho de Jesus: “vigiai e orai,
para não cairdes em tentação”. O apóstolo atento ao que se passa no seu interior, e à
presença da Santíssima Trindade na sua alma, adquire o instinto de recorrer a Jesus em
todas as circunstâncias, sobretudo quando entrevê o perigo de se dissipar ou esmorecer.
5º Por isso, incessantes comunhões espirituais e orações jaculatórias nos perigos,
dificuldades, fadiga, decepções, etc.
6º Para os sacerdotes, estudo diário, quanto possível, da Sagrada Escritura,
sobretudo do Novo Testamento. O espírito tem necessidade de ser posto em presença
das verdades sobrenaturais, geradoras da piedade e de sérias resoluções morais.
7º A confissão semanal —para a qual a guarda de coração muito pode
contribuir— deverá ter contrição sincera, dor verdadeira e firme propósito de emenda.
8º O retiro anual é utilíssimo, mas insuficiente. O retiro mensal (um dia inteiro
ou pelo menos meio dia) é quase indispensável para o equilíbrio de alma do apóstolo.
2. A meditação, elemento indispensável do apostolado
Nenhum resultado terá um desejo vago de possuir a vida interior, concebido
após a rápida leitura de um livro. É preciso ter, ainda, uma resolução precisa, ardente e
prática.
Pessoas dedicadas ao apostolado pediram-me que lhes indicasse certas
resoluções úteis para a vida interior. A resposta a este desejo, que dou com o maior
gosto, tornou-se uma espécie de apêndice a este livro.
Contudo, não tirará proveito da leitura destas páginas quem não se dispuser,
realmente, a consagrar, cada manhã, alguns momentos à oração mental. Quanto aos
sacerdotes, se quiserem progredir na vida interior, não podem descuidar, também, a vida
litúrgica nem a guarda do coração.
Não temos a pretensão de oferecer um novo método de oração; procurámos,
apenas, basear-nos nos melhores métodos, que apresentamos sob a forma de resolução
pessoal.
a) Fidelidade à meditação da manhã
No retiro que precedeu a minha ordenação sacerdotal, ouvi estas graves
palavras: Sacerdos alter Christus (O sacerdote é outro Cristo). Compreendi, então, que
devia viver em união com Jesus, para ser um sacerdote segundo o seu Coração. “Já não
vos chamo servos (...) chamei-vos amigos” (Jo 15, 15).
Mas a minha vida com Jesus somente se desenvolverá, na medida em que Ele for
a luz da minha razão e dos meus actos, o amor que rege os afectos do meu coração, a
minha força nas provações e nas lutas, o alimento sobrenatural, que me torna
participante na própria vida de Deus.
Ora, sem meditação, esta vida com Jesus é moralmente impossível.
A meditação reveste-me de uma armadura invulnerável. Sem meditação, cairei
numa multidão de faltas.
“Meditação, ou risco gravíssimo de condenação para o sacerdote em contacto
com o mundo”, dizia o Padre Desurmont, experiente pregador de retiros sacerdotais.
Cada sacerdote pode aplicar à sua meditação a palavra que o Espírito Santo
inspirou ao salmista: “Se não meditasse com prazer a vossa Lei, já teria perecido na
minha miséria” (Sl 118, 92). Ora, esta Lei obriga o sacerdote a reproduzir em si o
espírito de Nosso Senhor.
Um sacerdote vale o que vale a sua meditação. Só em casos raríssimos de força
maior, o sacerdote deve adiar —para outra meia hora da manhã, e nada mais— a sua
meditação. Deve empenhar-se, seriamente, em obter bons resultados na meditação, que
é, evidentemente, distinta da acção de graças depois da missa, ou de qualquer leitura
espiritual, e, a fortiori, da preparação de uma homilia.
A meditação leva o sacerdote a desejar, eficazmente, a santidade; mas se adia,
desleixa, ou omite a meditação, acaba por embotar a consciência, torna-se escravo de
ilusões, mais ou menos subtis… ou seja, entra no caminho escorregadio da tibieza, que
conduz ao abismo. A santa missa e a comunhão deixam de dar frutos pessoais e poderão
chegar a ser, até mesmo, ocasiões de pecado. A recitação do breviário torna-se penosa e
quase mecânica. Desaparecem a vigilância, o recolhimento, as orações jaculatórias, as
leituras espirituais, o exame das faltas e o exame particular. As confissões passam a ser
rotineiras, ou duvidosas, quando não sacrílegas. O apostolado deixa de ser fecundo.
A cidadela, cada vez menos defendida, fica à mercê dos assaltos dos inimigos, e
acabará por cair em ruínas.
b) O que deve ser a meditação
É a ascensão do espírito até Deus. “Subir deste modo —diz São Tomás— como
é um acto da razão não especulativa, mas prática, supõe actos da vontade.”
Consequência:
Verdadeiro trabalho. A oração mental é um verdadeiro trabalho, sobretudo
para os principiantes. Trabalho, para se afastar, um instante, das criaturas e elevar-se até
Deus. Trabalho, para ficar, durante uma meia hora, fixo em Deus, e adquirir novo
impulso para o bem. Trabalho penoso, a princípio, mas que se deve desejar,
generosamente. Trabalho que é coroado, em pouco tempo, pela maior consolação deste
mundo: a paz, na amizade e união com Jesus.
“A oração —diz Santa Teresa— é apenas um trato de amizade, em que a alma
fala intimamente com Aquele que a ama”.
Trato cordial. Deus convida-nos, com amor, para este trato, mas também nos dá
forças para fazermos a meditação. Convida-nos a escutar a sua palavra, conversar
filialmente com Ele, e abrir-Lhe o coração, falando —para usar a feliz expressão de
Bossuet— a linguagem da fé, da esperança e da caridade.
Trato simples. Falarei a Deus, tal como sou, isto é, como tíbio, como pecador,
ou como fervoroso. Com a ingenuidade e franqueza de uma criança, revelarei a Deus o
verdadeiro estado da minha alma.
Trato prático. O ferreiro põe o ferro ao fogo, não para torná-lo brilhante, mas
para o moldar. Assim, também, a meditação ilumina a inteligência e aquece o coração,
para tornar a alma flexível, tirar as faltas, ou a forma, do velho homem, e dar-lhe as
virtudes e a forma de Jesus Cristo. Por conseguinte, a meditação eleva a alma até à
santidade de Jesus, para que Ele a afeiçoe, à sua imagem.
Tu, Domine, Jesu, tu ipse, manu mitissima, misericordissima, sed tamen
fortissima formans ac pertractans cor meum. (Vós, Senhor Jesus, Vós mesmo, com a
vossa mão dulcíssima, misericordiosíssima, mas também fortíssima, formareis e
amassareis o meu coração — Santo Agostinho).
c) Como se faz a meditação
Seguirei este caminho lógico: Coloco-me diante de Nosso Senhor que me ensina
uma verdade ou uma virtude. Excito em mim —pela razão, pela fé, e com todo o meu
coração— a sede de harmonizar a minha alma com esse ideal. Deploro tudo quanto, em
mim, lhe for contrário. Decido combater os obstáculos, persuadido de que nada
conseguirei sozinho e que tudo poderei obter pela oração.
Como peregrino exausto, procuro matar a minha sede… Enfim, video: vejo uma
fonte, mas ela brota num rochedo escarpado… Sitio: tenho sede. Quanto mais
contemplo essa água límpida, que me permitirá prosseguir o caminho, mais sede tenho.
Volo: quero, a todo o custo, chegar a essa fonte e esforçar-me por atingi-la. Mas
conheço a minha fraqueza. Volo tecum: quero convosco. Aparece um guia. Quer
ajudar-me, e só espera o meu pedido. Conduz-me pelas passagens mais difíceis e, em
breve, consigo saciar a minha sede, nas águas vivas da graça, que brotam do Coração de
Jesus.
A leitura espiritual da tarde, elemento tão precioso de vida interior, reavivou o
desejo de fazer a meditação na manhã do dia seguinte… Antes de dormir, escolho, de
modo sumário mas definido, o assunto da meditação 73 e os frutos a tirar dela,
excitando diante de Deus o desejo de obter tais frutos.
No momento da meditação.74 Esforço-me por trazer ao espírito uma cena
muito expressiva, que substitua as minhas preocupações e distracções.75 Cena capaz de
me empolgar e de me colocar na presença de Deus, que, no seu amor infinito, quer ser o
meu interlocutor.76 Imediatamente depois, impõe-se um acto de adoração profunda.
Humilho-me, profundamente, diante de Deus, faço um acto sincero de contrição, e uma
oração humilde e confiante para que Deus abençoe esta meditação.77
Video. Empolgado pela vossa presença viva, ó meu Jesus, e, assim,
desembaraçado das distracções naturais, começo a minha meditação pela linguagem da
fé, mais fecunda que os discursos da razão. Com este objectivo, leio ou recordo,
cuidadosamente, o ponto a meditar. Resumo-o, e concentro nele a minha atenção.
Sois vós, ó meu Jesus, que me falais e ensinais esta verdade. Quero reavivar e
aumentar a minha fé naquilo que me ensinais. Não cesso, pois, de repetir: creio. Repito-
o muitas vezes, como uma criança que estuda a lição, aderindo a esta doutrina e às suas
consequências para toda a eternidade.78
Ó meu Jesus, isto é verdadeiro, absolutamente verdadeiro. Creio-o firmemente.
Quero que este raio do sol da Revelação seja o farol do meu dia. Tornai a minha fé mais
ardente. Inspirai-me um desejo veemente de viver para este ideal e uma santa repulsa
contra tudo o que se lhe opuser. Quero alimentar-me na vossa verdade e assimilá-la.
Se, após alguns minutos, continuar inerte perante a verdade que me é
apresentada, não insistirei. Direi, filialmente, ao bom Mestre, que não tenho forças e
pedirei a sua ajuda.
Sitio. A fé faz-me participar na própria inteligência divina. Da frequência e,
sobretudo, da energia dos meus actos de fé nasce a linguagem da caridade afectiva.
Nascem —espontaneamente, ou excitados pela vontade— os afectos, que são flores que
a minha alma oferece a Jesus, como se fosse uma criança: De um lado, adoração,
gratidão, amor, alegria, apego à vontade divina. De outro, desapego de tudo o mais, com
sentimentos de aversão, temor, esperança, abandono. O meu coração escolhe um, ou
muitos, destes sentimentos, compenetra-se deles, e repete-os, muitas vezes, a Jesus, com
ternura, lealdade e simplicidade.
A ajuda da sensibilidade pode ser útil, mas não é indispensável. Um afecto
calmo e profundo, é mais fecundo que as comoções superficiais. Estas últimas não
dependem de mim e não são o termómetro da meditação verdadeira e frutuosa. O que é
verdadeiramente importante é o esforço para sacudir o torpor do meu coração e fazer-
lhe dizer: Meu Deus, quero unir-me a Vós. Quero aniquilar-me perante Vós. Quero
cantar a minha gratidão e a minha alegria por cumprir a vossa vontade. Nunca mais
quero mentir, quando digo que Vos amo, ou que detesto tudo o que Vos ofende, etc..
Embora me esforce, posso ter dificuldade em expressar os meus afectos.
Humilho-me, então, com simplicidade, diante de Jesus, e exponho-Lhe o meu desejo.
Queixo-me, insistentemente, da minha aridez, certo de que Ele não deixará de me unir
aos afectos do seu divino Coração.
Como é belo e perfeito, ó Jesus, o vosso Ideal. Estará, porventura, a minha vida
em harmonia com ele? Faço este inquérito sob o vosso olhar, agora cheio de
misericórdia, mas que, um dia, me julgará com justiça, perscrutando os motivos secretos
dos meus actos. Se, neste momento, morresse, não estaria a minha conduta em
contradição com esse Ideal?
Ajudai-me, Senhor, a descobrir os obstáculos que me impedem de Vos imitar, e
as causas internas ou externas das minhas faltas. “Quero agradar a Deus em todas as
coisas”.79
A consideração das minhas misérias, na presença do meu Redentor, traduz-se em
actos de humildade e dor profunda, no desejo de ser melhor e na resolução de nada
recusar a Deus.
Volo. Faço mais um progresso na escola do querer. É a linguagem da caridade
efectiva. Os afectos fizeram nascer em mim o desejo de me corrigir. Vi os obstáculos;
agora quero removê-los. A força deste quero depende do meu fervor em repetir: creio,
amo, arrependo-me dos meus defeitos, detesto-os.
Se este querer não brotar com a energia que desejo, deploro esta fraqueza da
minha vontade e, sem perder a coragem, não me cansarei de repetir que desejo ser
generoso no serviço do Pai do Céu.
À minha resolução de trabalhar para salvar-me e amar mais a Deus, juntarei a
resolução de aplicar a minha meditação às dificuldades, tentações e perigos daquele dia.
Sobretudo, procurarei forjar de novo, com amor mais vivo, a resolução,80 objecto do
meu exame particular (falta a combater ou virtude a praticar). Hei-de fortalecê-la, com
motivos hauridos no Coração do Mestre, escolherei os meios de a executar, prever as
ocasiões e preparar-me para a luta.
Se prevejo ocasiões de dissipação, humilhação, tentação, decisões graves, etc.,
fico vigilante e, sobretudo, rezo a Jesus, por meio de Maria.
Se, apesar disso, ainda cair, será uma queda de surpresa, muito diferente das
outras. Não desanimarei, pois sei que Deus quer que eu não desista, que peça forças e
me torne resoluto e vigilante. Só assim. conseguirei vencer.
Volo Tecum. “Obrigar um coxo a andar bem é menos difícil do que querer
realizar bem qualquer empreendimento sem Vós, ó meu Salvador”, dizia Santo
Agostinho. Se as minhas resoluções têm ficado estéreis é porque o “tudo posso” não se
tem apoiado “n’Aquele que me conforta” (Fil 4, 13). Chego pois ao ponto, sob certo
aspecto, mais importante da minha meditação: a súplica ou linguagem da esperança.
Sem a vossa graça, ó meu Jesus, nada posso. Bem sei que não a mereço, mas sei
que acolheis benignamente as minhas súplicas, se elas reflectirem a minha sede de ser
vosso, a desconfiança em mim mesmo e a confiança ilimitada no vosso Coração. Tal
como fez a mulher cananeia, prostro-me aos vossos pés, e, com constância humilde e
cheia de esperança, peço-Vos, não só as migalhas, mas a participação nessa festa, da
qual dissestes: “O meu alimento é fazer a vontade do meu Pai”.
Tornado, pela graça, membro do vosso Corpo Místico, participo na vossa Vida e
nos vossos méritos e rezo confiado na vossa mediação, ó Jesus! Ó Pai Santo, eu invoco
o sangue divino que clama misericórdia: Podereis rejeitar a minha oração? É a súplica
do mendigo que eu profiro aos vossos pés, ó riqueza inesgotável: “Ouve-me, porque sou
pobre e miserável (Sl 85, 1). Revesti-me da vossa força e glorificai o vosso poder na
minha fraqueza. A vossa bondade, as vossas promessas e os vossos méritos, ó meu
Jesus, a minha miséria e a minha confiança, são os únicos títulos que a minha súplica
possui para obter, em união convosco, a guarda do coração e forças para este dia.
Levarei comigo um texto ou um pensamento para recordar as minhas resoluções,
quando surja a tentação, obstáculo, ou sacrifício; e suplicarei, então, com ardor filial.
Este hábito é um dos principais frutos da minha meditação: “Pelos frutos, pois, os
conhecereis” (Mt 7, 20).
Só quando chegar a viver da fé e da sede habitual de Deus, é que o trabalho do
video será às vezes supresso; o sitio e o volo brotarão, logo desde o princípio da
meditação, que se passará a produzir afectos e oferecimentos, em afirmar a minha
vontade resoluta; e em suplicar, directamente, a Jesus, ou por meio de Maria Imaculada,
dos anjos ou dos santos, uma união íntima e constante com a vontade divina.
Espera-me agora o santo Sacrifício. A meditação preparou-me para ele. A minha
participação no Calvário, em nome da Igreja, e a comunhão são a continuação da minha
meditação.81 Na acção de graças, estenderei as minhas súplicas aos interesses da Igreja,
às almas que estão a meu encargo, aos defuntos, às minhas obras, parentes, amigos,
benfeitores, inimigos, etc..
Recitação das diversas horas do breviário em união com a Igreja. Frequentes
orações jaculatórias, comunhões espirituais, exame particular, visita ao Santíssimo
Sacramento, leitura espiritual, terço, exame geral, etc., Tudo isso reavivará as minhas
forças e me conservará unido, durante o dia, a Nosso Senhor. O recurso habitual a Jesus,
directamente ou por intermédio de sua Mãe, fará cessar as contradições entre a minha
admiração pela sua doutrina e a minha vida de emancipação, entre a minha fé e a minha
conduta.
Para abreviar este volume, não falaremos aqui da resolução do exame
particular. Todavia, da leitura de Cassiano, de muitos Padres da Igreja, bem como de
Santo Inácio, de São Francisco de Sales e de São Vicente de Paulo, ressalta claramente
que o exame particular e o exame geral são corolários obrigatórios da meditação, e
estão ligados à guarda do coração.
De acordo com o director espiritual, a alma decidiu combater tal falta ou
favorecer tal virtude, na meditação e no decurso do dia. A análise cuidadosa da alma,
mediante o exame particular, para verificar se houve progresso, retrocesso, ou
estagnação nalgum ponto bem escolhido, é elemento fundamental da guarda do coração.
3. A vida litúrgica, fonte de vida interior e de apostolado
Por meio da missa, do breviário e das outras funções litúrgicas, quero unir-me à
vida da Igreja, como seu membro ou embaixador, revestindo-me, cada vez mais, de
Jesus crucificado, sobretudo se for sacerdote.
a) O que é a liturgia?
Ó Jesus, sois Vós quem eu adoro como centro da liturgia. Sois Vós quem dais
unidade à liturgia, isto é, ao conjunto dos meios consignados pela Igreja, especialmente
no missal, no ritual e no breviário, dos quais ela se serve para exprimir a sua religião
para com a Santíssima Trindade, e também para instruir e santificar as almas.
É no próprio seio da Santíssima Trindade que a minha alma deve contemplar a
eterna liturgia, pela qual as três Pessoas cantam uma à outra a vida divina e a santidade
infinita, nesse hino inefável da geração do Verbo e da processão do Espírito Santo.
“Assim como era no princípio...”
Deus quis, porém, ser louvado fora d’Ele. Criou os anjos, e, logo, as suas
aclamações reboaram pelo céu: “Santo, Santo, Santo”. Criou o mundo visível, e, logo,
este fez resplandecer a sua omnipotência: “Os Céus proclamam a glória de Deus”.
Adão aparece, e logo começa, em nome de toda a criação, um hino de louvor,
que é o eco da eterna liturgia. Abel, Noé, Melquisedeque, Abraão, Moisés, o povo de
Deus, David, e todos os santos da antiga Lei, cantam à porfia esse hino. A Páscoa
israelita, os sacrifícios e os holocaustos, o culto solene prestado a Iavé no seu Templo,
dão-lhe uma forma oficial. Hino imperfeito, sobretudo depois da queda, porque: “O
louvor não tem beleza na boca do pecador” (Ecli 15, 9).
Só Vós, ó Jesus, somente Vós, sois o hino perfeito, porque sois a verdadeira
glória do Pai. Ninguém pode, dignamente, glorificar o vosso Pai, senão por Vós. Per
Ipsum, et cum Ipso, et in Ipso est tibi Deo Patri omnipotenti, in unitate Spiritus Sancti,
omnis honor et gloria.82 Vós sois o traço de união entre a liturgia da terra e a liturgia do
céu, à qual associais, mais directamente, os vossos eleitos. A vossa Encarnação veio
unir, de maneira substancial e viva, a humanidade e a criação inteira à liturgia divina. É
um Deus que louva a Deus. Louvor completo e perfeito, que tem o seu apogeu no
Sacrifício do Calvário.
Antes de deixar a terra, ó divino Salvador, instituístes o Sacrifício da nova Lei
para renovar a vossa imolação. Instituístes, também, os sacramentos, a fim de
comunicar a vossa vida às almas. Deixastes, porém, à vossa Igreja o cuidado de rodear
esse Sacrifício e esses sacramentos de símbolos, cerimónias, exortações e orações, para
que ela honre o mistério da Redenção, ajude os seus filhos a tirarem dele proveito,
compreendam o seu significado, e, adquirindo nas suas almas um temor reverencial,
cresçam, verdadeiramente, no amor de Deus.
A esta mesma Igreja, destes, também, a missão de continuar, até a consumação
dos séculos, a oração e o louvor que não cessastes de fazer subir ao Pai, durante a vossa
vida mortal, tal como fazeis no sacrário e nos esplendores da glória celeste.
Com o amor de Esposa que ela nutre por Vós, com a solicitude de Mãe que o
vosso Coração nela depôs por nós, desempenhou-se a Igreja dessa dupla tarefa. Assim
se formaram as maravilhosas colecções que encerram os tesouros da liturgia. Desde
então, a Igreja une-se ao louvor que os anjos e os seus filhos escolhidos tributam a Deus
no Céu. Preludia, assim, a sua ocupação eterna. Unindo-se ao louvor do Homem-Deus,
o louvor e a oração da Igreja divinizam-se, e a liturgia da terra vai fundir-se com a
liturgia das hierarquias celestes no Coração de Jesus, para se tornar eco desse louvor
eterno, o qual brota do foco de amor infinito que é a Santíssima Trindade.
b) O que é a vida litúrgica?
Estritamente, só exigis de mim, Senhor, a observância fiel dos ritos e a repetição
exacta das palavras. Mas quereis mais. Quereis que o meu coração tire proveito das
riquezas ocultas na liturgia, para que se una, plenamente, à vossa Igreja e, por ela, a
Vós.
Determinado pelo exemplo dos vossos servos mais fiéis, eu quero, meu bom
Mestre, solicitamente, participar no banquete a que a Igreja me convida, certíssimo de
encontrar no ofício divino, nas fórmulas, cerimónias, colectas, epístolas, evangelhos,
etc., que acompanham o augusto sacrifício da missa e a administração dos sacramentos,
alimento benéfico e abundante para o desenvolvimento da minha vida interior.
Algumas reflexões sobre o pensamento dominante que encadeia os elementos
litúrgicos, e sobre os frutos pelos quais reconhecerei os meus progressos, evitarão que
me iluda. Cada rito sagrado pode-se comparar a uma pedra preciosa, e o maravilhoso
conjunto, chamado ciclo litúrgico,83 realça o seu brilho e valor. Cada período litúrgico
alimenta a nossa alma com as coisas mais instrutivas que, a respeito de determinado
mistério, se encontram na Escritura e na Tradição. A liturgia ajuda a alma a saborear e
aproveitar a graça especial, que Deus reserva para cada ciclo. O mistério penetra em
nós, não apenas como verdade abstracta que se assimila pela meditação, mas cativa
também todo o nosso ser, e apela para as faculdades sensíveis, a fim de excitar o nosso
coração e determinar a nossa vontade. Não se trata de simples lembrança do passado,
um simples aniversário, mas um facto com carácter de acontecimento presente, de que a
Igreja faz uma aplicação actual, e no qual, realmente, participa.
No tempo do Natal, por exemplo, festejando junto do altar a vinda do Deus
Menino, a minha alma pode repetir: “Hoje nasceu Jesus Cristo, hoje apareceu o
Salvador, hoje os anjos cantam na terra” (Ofício de Natal). Em cada período do ciclo
litúrgico, o missal e o breviário patenteiam-me um novo aspecto do amor d’Aquele que
é ao mesmo tempo Rei, Doutor, Médico, Consolador, Salvador e Amigo. No altar, como
em Belém, em Nazaré, ou nas margens do lago de Tiberíades, Jesus aparece cheio de
luz, ternura e misericórdia. Ele é o Amor personificado, porque é o Sofrimento
personificado, o Agonizante de Getsémani e o Reparador do Calvário.
Deste modo, a liturgia faz desabrochar a vida eucarística; faz-nos assistir a todos
os mistérios da vida oculta, pública, paciente e gloriosa de Jesus; por seu intermédio,
Deus torna-se visível em Jesus e eu recolho os frutos da vida adorável do Salvador.
Além disso, as festas periódicas de Nossa Senhora e dos santos que melhor
imitaram a vida interior de Jesus, pondo-me os seus exemplos diante dos olhos, ajudam-
me a imitar as suas virtudes e a imprimir na alma dos fiéis o espírito do Evangelho.
Como posso realizar no meu apostolado o anseio de São Pio X? Como podem os
fiéis participar nos santos mistérios e na oração pública e solene da Igreja —que é, diz o
Papa, fonte primária e indispensável do verdadeiro espírito cristão— se eu próprio for
insensível aos tesouros da liturgia?
Para dar unidade à minha vida espiritual e unir-me à vida da Igreja, procurarei
relacionar com a liturgia os outros exercícios de piedade. Por exemplo, escolherei de
preferência os assuntos de meditação que se relacionem com o período ou a festa do
ciclo litúrgico; nas minhas visitas ao Santíssimo Sacramento, procurarei ter colóquios,
segundo o tempo do ano, com Jesus menino, Jesus glorificado, Jesus vivo na sua Igreja,
etc. Leituras particulares sobre o mistério ou sobre a vida do santo, cuja memória se
honra, hão-de concorrer também para este plano de espiritualidade litúrgica.
Mestre adorável, preservai-me das adulterações da vida litúrgica. São elas
prejudiciais à vida interior, sobretudo porque atenuam o combate espiritual. Preservai-
me de certa piedade que faz consistir a vida litúrgica em alegrias poéticas, ou numa
espécie de arqueologia religiosa. Não permitais que me incline para o quietismo e, com
ele, para o enfraquecimento de tudo o que dá força à vida interior: o temor, a esperança,
o desejo de salvação e de perfeição, a luta contra os defeitos e o trabalho para adquirir a
virtude.
Dai-me a convicção de que, neste século de ocupações absorventes e perigosas,
a vida litúrgica, por mais perfeita que seja, de modo algum dispensa a meditação da
manhã.
Afastai de mim o sentimentalismo e o “pietismo” que fazem consistir a vida
litúrgica em sensações, e que escravizam a vontade à imaginação e à sensibilidade.
Certamente não quereis que me torne insensível às belezas e à poesia que a liturgia
encerra. Por meio dos seus cantos e cerimónias, a vossa Igreja dirige-se precisamente às
faculdades sensitivas, com o fim de mobilizar as almas dos seus filhos e elevá-las para
Deus. Posso, por conseguinte, saborear a frescura inalterável e benéfica dos dogmas
postos em relevo pela liturgia, deixar-me comover perante o espectáculo cheio de
majestade de uma missa cantada, apreciar as orações da absolvição ou os ritos tão
tocantes do baptismo, da extrema-unção e dos outros sacramentos. Mas não devo perder
de vista que todos os recursos da liturgia são apenas meios para chegar à vida interior:
Fazer morrer o homem velho, a fim de que Jesus possa reinar em seu lugar.
Só terei verdadeira vida litúrgica quando utilizar a missa, as orações e os ritos
oficiais para aumentar a minha união com a Igreja e a participação na vida interior de
Jesus Cristo e, portanto, das suas virtudes, reflectindo-as melhor aos olhos dos fiéis.
c) Espírito litúrgico. Três princípios
Esta vida litúrgica, ó meu Jesus, supõe uma atracção especial por tudo o que se
relaciona com o culto. Algumas pessoas já receberam de Vós essa atracção, outras não;
mas, se rezarem e recorrerem ao estudo e à reflexão, hão-de por certo obtê-la.
A meditação sobre as vantagens da vida litúrgica aumentará a minha sede de
adquirir, a todo o custo, essa atracção. Por agora, fixo o meu espírito nos caracteres que
distinguem esta vida e lhe dão um lugar importantíssimo na espiritualidade.
Unir-se, com a Igreja, ao vosso sacrifício, ó meu Jesus! Fundir a nossa oração,
em pensamento e intenção, com a oração oficial e incessante da vossa Igreja, como isto
é sublime! O coração do baptizado voa, com segurança, para Deus, assim levado pelos
vossos louvores, adorações, acções de graças, reparações e súplicas 84.
“Tomar parte activa” —são as próprias palavras de São Pio X— e cooperar nos
sagrados mistérios e na oração pública numa atitude piedosa e esclarecida, com avidez
em tirar proveito das cerimónias, respondendo, ou prestando o concurso próprio à
recitação ou ao canto dos ofícios, não é, porventura, o meio de entrar em comunicação
mais directa com o pensamento da Igreja, e de haurir, na fonte, o verdadeiro espírito
cristão?85
Que sublime missão a do sacerdote: apresentar-se, cada dia, unido aos anjos e
aos eleitos, como embaixador perante o trono de Deus, para recitar a oração oficial! E
mais, incomparavelmente mais: tornar-se outro Cristo, pela administração dos
sacramentos e, sobretudo, pela celebração do santo sacrifício!
1º Princípio: Quando, como cristão, tomo parte numa cerimónia litúrgica, estou
unido a toda a Igreja, não só pela comunhão dos santos, mas também em virtude da
cooperação activa num acto de religião que a Igreja, corpo místico de Jesus Cristo,
oferece a Deus. Mediante esta união, também a Igreja favorece, maternalmente, a
formação das virtudes cristãs na minha alma.86
A vossa Igreja, ó meu Jesus, forma uma sociedade perfeita, cujos membros,
estreitamente unidos entre si, estão destinados a constituir uma sociedade, ainda mais
perfeita e mais santa, no Céu. Como cristão, sou membro desse corpo, cuja cabeça e
cuja vida sois Vós. Sou uma das ovelhas desse redil de que sois o único Pastor, e que,
na sua unidade, encerra todos os meus irmãos da Igreja militante, purgante e triunfante.
O vosso Apóstolo ensina-me essa doutrina que me entusiasma e rasga horizontes
à minha espiritualidade. “Assim —diz ele— como num só corpo temos muitos
membros, e nem todos os membros têm a mesma função, assim nós, que somos muitos,
constituímos um só corpo em Cristo, e todos, reciprocamente, somos membros uns dos
outros” (Rom 12, 4-5). “Assim como o corpo é um só —diz ele noutra parte— e tem
muitos membros, e todos os membros do corpo, embora sejam muitos, constituem um
só corpo, assim também Cristo” (1 Cor 12, 12).
Nisto consiste a unidade da vossa Igreja, indivisível no seu todo e nas suas
partes, toda inteira no todo e toda inteira em cada uma das suas partes,87 unida no
Espírito Santo, unida a Vós, ó meu Jesus, e, mediante essa união, introduzida na única e
eterna sociedade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.88
A Igreja é a assembleia dos fiéis que, sob o governo da mesma autoridade, estão
unidos pela mesma fé e pela mesma caridade e tendem para o mesmo fim, isto é, para a
incorporação a Cristo, pelos mesmos meios, os quais se resumem na graça, cujos canais
ordinários são a oração e os sacramentos.
A grande oração, canal preferido da graça, é a oração litúrgica, a oração da
própria Igreja, mais poderosa que a oração dos particulares.89
Incorporado à verdadeira Igreja, filho de Deus e membro de Cristo pelo
sacramento do baptismo, eu adquiro o direito de participar nos sacramentos, nos ofícios
divinos, nos frutos da Missa, nas indulgências e nas orações da Igreja. Podendo lucrar
todas as graças e todos os méritos dos meus irmãos.
Pelo baptismo, estou marcado com um “carácter indelével que me insere no
culto de Deus segundo o rito da religião cristã”.90 Pela consagração baptismal, torno-
me membro do Reino de Deus e faço parte da “raça escolhida, sacerdócio real, nação
santa, povo resgatado” (1 Ped 2, 9). Por conseguinte, como cristão, participo do
ministério sagrado, embora de maneira remota e indirecta, pelas minhas orações, pela
minha parte de oblação, pelo meu concurso no sacrifício da missa e nos ofícios
litúrgicos, multiplicado “por meio de um sacerdócio santo —como São Pedro
recomenda— cujo fim é oferecer sacrifícios espirituais que serão agradáveis a Deus por
Jesus Cristo” (1 Ped 2, 5). É isto que a santa Igreja me faz compreender, quando, pela
boca do sacerdote, diz aos fiéis: “Orai irmãos, para que este sacrifício, meu e vosso, seja
aceite por Deus Pai todo-poderoso”, ou quando diz, no cânon: “Lembrai-vos, Senhor,
dos vossos servos e servas... e de todos aqueles que aqui estão presentes (…). Por eles
Vos oferecemos, ou eles próprios Vos oferecem, este sacrifício de louvor”. E mais
adiante: “Recebei, Senhor, com bondade, nós Vos pedimos, esta oblação, que nós,
vossos servos, e toda a vossa família Vos oferecemos”.
A santa liturgia é obra comum de toda a Igreja, isto é, do sacerdócio e do povo.
O mistério dessa unidade está presente nela pela força indestrutível da comunhão dos
santos, proposta à nossa fé no símbolo dos Apóstolos. Na celebração do ofício divino e
da santa Missa toda a Igreja está misteriosamente presente.91 Por isso, na liturgia, tudo
se faz em nome de todos e para proveito de todos. As suas orações são, geralmente, no
plural.
Desse laço íntimo que une os católicos entre si pela mesma fé e pela participação
nos mesmos sacramentos, nasce nas almas a caridade fraterna, sinal distintivo daqueles
que querem ser imitadores de Jesus Cristo: “É por isto que todos saberão que sois meus
discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 35).
Ó santa Igreja de Deus, amo-vos de todo o meu coração! Sou um dos vossos
membros; sou um membro de Cristo! Amo todos os cristãos, porque são meus irmãos e
todos somos um, em Cristo! Amo de todo o meu coração o meu divino Chefe, Jesus
Cristo! Nada do que vos diz respeito me deixa indiferente. Fico triste, se, ó Igreja, vos
vejo perseguida, e rejubilo-me com as vossas conquistas e triunfos.
Que alegria ao pensar que, santificando-me, contribuo para aumentar a vossa
beleza e a santidade de todos os filhos da Igreja meus irmãos, e para a salvação da
grande família humana!
Ó santa Igreja de Deus, tanto quanto de mim depende, quero que vos torneis
mais bela, mais santa e mais numerosa, pela perfeição de cada um dos vossos filhos,
unidos nessa caridade íntima que foi o pensamento dominante de Jesus na última ceia:
“Para que todos sejam um só (...) para que eles sejam perfeitos na unidade” (Jo 17, 21,
23).
Amo a vossa oração litúrgica, ó Igreja, minha mãe! Uma gota de água nada vale.
Unida ao oceano, porém, participa do seu poder e da sua imensidade. Assim acontece
com a minha oração unida à vossa. Aos olhos de Deus —que vê o passado, o presente e
o futuro— ela está unida a esse concerto universal de louvores que, desde o princípio e
até ao fim dos tempos, fazeis subir para o trono de Eterno.
Quereis, meu Jesus, que reze pelos meus interesses. Mas também me ensinastes,
no Pai Nosso, que a minha piedade deve, antes de mais, consagrar-se ao louvor de Deus
92, e que longe de ser egoísta, peça por todas as necessidades dos meus irmãos, pelas
almas e por todas as solicitudes da Igreja.
A missão da santa Igreja é gerar, incessantemente, novos filhos para Cristo e
educá-los “à medida da estatura completa de Cristo” (Ef 4, 13). É pela liturgia que ela
nos inicia no louvor divino e desenvolve os nossos progressos espirituais.
Durante a sua vida pública, Jesus “falava como quem possui autoridade” (Mt 7,
29). Assim também fala a santa Igreja, minha Mãe. Depositária dos tesouros da verdade,
dispensadora do sangue redentor. Pela liturgia, expressão autêntica dos seus
pensamentos e sentimentos, guia-nos e forma-nos, verdadeiramente, no espírito do
Redentor.
Ó Igreja santa, convosco hei-de alegrar-me, gemer, louvar, implorar
misericórdia, esperar e amar. Associar-me-ei, com ardor, às petições que formulais nas
vossas orações, a fim de que as comoções salutares que fazeis brotar das palavras e dos
ritos sagrados penetrem, profundamente, no meu coração, o abram à acção do Espírito
Santo e unam a minha vontade à de Deus.
2º princípio: Quando, numa função litúrgica, opero como representante da
Igreja,93 Deus quer que eu exprima a virtude da religião, consciente do mandato
oficial de que estou investido, e que, em nome da Igreja e de todos os seus filhos,
ofereça, incessantemente, a Deus por meio de Jesus, um sacrifício de louvor e de
súplica, tornando-me, na bela expressão de S. Bernardino de Sena, “a voz de toda a
Igreja”.94
Um embaixador, na vida privada, é um simples particular. Quando, porém, se
reveste das insígnias do seu cargo e fala em nome do seu soberano, torna-se, no mesmo
instante, o representante e, até certo ponto, a própria pessoa do soberano. Assim sucede
ao sacerdote ou ao religioso, quando desempenham as funções litúrgicas. Ao seu ser
individual, junta-se uma dignidade que os reveste de um mandato público, e os torna
deputados oficiais de toda a Igreja. Quando rezam o ofício, mesmo em particular, não o
fazem apenas em nome próprio. As fórmulas que empregam não foram escolhidas por
eles. É a Igreja que lhas põe nos lábios. Por conseguinte, é a Igreja que ora pela sua
boca, que fala e opera por seu intermédio, como o rei fala e opera por intermédio do seu
embaixador. Eles são, segundo a bela expressão de S. Pedro Damião, “pela unidade da
fé, a Igreja inteira”.95 Por seu intermédio, a Igreja une-se à divina religião de Jesus
Cristo e dirige à Santíssima Trindade a adoração, a acção de graças, a reparação e a
súplica.
Por conseguinte, se tenho alguma consciência da minha dignidade, como
poderei, por exemplo, começar o meu breviário, sem me elevar acima do curso natural
dos meus pensamentos, para me lançar em cheio na convicção de que sou “um
mediador entre o Céu e a terra”? 96
Que desgraça se chegasse a esquecer-me destas verdades! Os santos estavam
compenetrados delas.97 Viviam delas. Deus quer que eu também as recorde quando
exerço uma função. A Igreja, mediante a vida litúrgica, ajuda-me a não perder de vista
que sou seu representante, e Deus exige que a minha vida seja exemplar.98
3º princípio: Quando o sacerdote consagra a Eucaristia ou administra os
sacramentos, deve reavivar a convicção de que é ministro de Jesus Cristo, isto é, outro
Cristo; dele depende encontrar, no exercício das suas funções, graças especiais para
adquirir as virtudes exigidas pelo seu sacerdócio.99
Os membros da Igreja formam um só corpo, mas neste corpo, “nem todos os
membros têm a mesma função” (Rom 12, 4). “Há, pois, diversidade de dons, mas o
Espírito é o mesmo” (1 Cor 12, 4).
Tendo querido deixar, de modo visível, o seu Sacrifício à Igreja, Jesus criou o
sacerdócio, cujo fim principal é continuar a sua imolação sobre o altar, distribuir o seu
sangue, por meio dos sacramentos, e santificar o seu Corpo Místico, difundindo nele a
sua vida divina.
Ó meu Jesus, sacerdote supremo, desde toda a eternidade, decidistes escolher-me
e consagrar-me para vosso ministro, para exercerdes o vosso sacerdócio, por meu
intermédio. Comunicastes-me os vossos poderes, a fim de realizar, como “cooperador
de Deus” (1 Cor 3, 9) uma obra maior que a criação do universo: o milagre da
transubstanciação.
Compreendo, agora, as expressões de entusiasmo dos Santos Padres sobre a
grandeza da dignidade sacerdotal! 100 Jesus identifica-se comigo e a sua Pessoa une-se
à minha, quando faz suas estas palavras que eu pronuncio: Hoc est Corpus meum, Hic
est calix Sanguinis mei.
Empresto-vos, Senhor, os meus lábios, pois, sem mentir, posso dizer: O meu
corpo, o meu sangue. Basta que eu queira consagrar, para que Vós também queirais. No
acto maior que podeis fazer sobre a terra, a vossa alma está unida à minha. Empresto-
vos o que mais me pertence, a minha vontade. E a vossa vontade, imediatamente, une-se
à minha. De tal modo sois Vós quem operais, por meu intermédio, que se eu ousasse
dizer: Este é o Corpo de Jesus Cristo, em vez de: Este é o meu Corpo, a consagração
seria inválida.
Vós sois a Eucaristia, ó meu bom Jesus, sob as aparências do pão. E cada Missa
vem recordar-me que o sacerdote sois Vós, ó Sacerdote único, sob as aparências de um
homem que escolhestes para vosso ministro.
Alter Christus! Todas as vezes que administro os sacramentos, sou levado a
pensar nestas palavras. Só vós podeis dizer na qualidade de Redentor: “Eu te baptizo,
Eu te absolvo”, e exercer, assim, um poder tão divino como o de criar. Eu também
profiro essas palavras. E os anjos estão mais atentos a elas do que ao Fiat que tirou os
seres do nada, pois tais palavras são capazes de comunicar a vida divina a uma alma e
produzir um filho de Deus. “É maior obra fazer de um ímpio um justo —disse Santo
Agostinho— do que criar o Céu e a Terra”.
Como poderia, pois, Deus tolerar que, tendo feito de mim um “outro Cristo”,
viva eu “sem Cristo” ou até “contra Cristo”, tornando-me, pelo pecado, uma espécie de
anti-Cristo?
Absit. Podes contar com a minha misericórdia, quando está em jogo apenas a
fragilidade humana nas tuas faltas lamentadas e reparadas. Mas aceitar, friamente, um
caminho decidido de infidelidades, e voltar sem remorsos às tuas funções sublimes, o
mesmo é que excitar, seguramente, a minha cólera.
Entre as tuas funções e as dos sacerdotes da antiga Lei há um abismo. E,
entretanto, se já os meus profetas ameaçavam Sião por causa dos pecados do povo ou
dos seus governantes, ouve o que resultava da prevaricação dos sacerdotes: “O Senhor
saciou o seu furor e derramou o ardor da sua indignação, acendendo um fogo em Sião
que devorou os seus alicerces (...) por causa das iniquidades dos seus sacerdotes” (Lam
4, 11-13).
Pondera, também, com que rigor a minha Igreja proíbe ao sacerdote que suba ao
altar, ou administre os sacramentos, quando na sua consciência existir uma só falta
mortal!
Inspirada por Mim, ela vai mais além. Nas palavras e cerimónias sagradas,
obriga o sacerdote a pedir o espírito de compunção pelas suas faltas, portanto, guarda do
coração; espírito de adoração, portanto, de recolhimento; espírito de fé, esperança e
caridade, portanto, direcção sobrenatural da conduta exterior e das obras. Assim, ele tem
de decidir entre a piedade ou a impostura. Ou decide ter vida interior, ou, então,
exprime, do princípio ao fim da Missa, o que não pensa, e pede o que não deseja.
Compreendo agora, ó meu Jesus, que revestir-me dos paramentos sagrados sem
estar resolvido a esforçar-me por adquirir as virtudes que eles simbolizam, é uma
hipocrisia.
Apodere-se, pois, de mim um santo temor, cada vez que me aproxime dos
vossos mistérios e me revista dos paramentos litúrgicos. Que as orações com que
acompanho esses actos, que as fórmulas, tão repassadas de unção e de força, do missal e
do ritual, me convidem a examinar, cuidadosamente, o meu coração para ver se ele está
em harmonia com o vosso, mediante o desejo leal de Vos imitar pela minha vida
interior.
Ai de mim, se não souber aproveitar-me das minhas funções para conhecer as
vossas exigências, ou se ficar surdo à voz dos objectos santos que me rodeiam: altar,
confessionário, pias baptismais, vasos, roupas e paramentos sagrados! Pois, cada uma
daquelas funções é ocasião de graças actuais, que Vós me ofereceis para modelar à
minha alma à vossa imagem e semelhança.
É a Igreja que solicita esta graça. É o seu coração, desejoso de corresponder à
vossa expectativa, que me trata como a menina dos seus olhos. É Ela que, antes da
minha ordenação, me pôs em destaque as graves consequências da minha identificação
convosco.
“Colocai, Senhor, na minha cabeça o elmo da salvação (...). Cingi-me com o
cíngulo da pureza (...) Livrai-me de todas as minhas iniquidades e de todos os males;
fazei que eu seja sempre fiel cumpridor dos vossos mandamentos e não permitais que
me afaste de Vós...” Já não sou só eu que faço estas súplicas por mim. São todos os
verdadeiros fiéis, todas as almas fervorosas a vós consagradas, todos os membros da
hierarquia eclesiástica, que fazem da minha pobre oração a sua própria oração. O seu
grito eleva-se até ao vosso trono. É a voz da vossa Esposa que vós escutais. E quando,
resolvidos a procurar a vida interior, os vossos ministros harmonizam o seu coração
com as suas funções litúrgicas, sempre atendeis favoravelmente estas súplicas.
Em lugar de me excluir, por negligência voluntária, dos sufrágios que dirijo ao
vosso Pai pelo conjunto dos fiéis, por ocasião da Missa ou dos sacramentos, quero
aproveitar-me dessas graças, ó meu Jesus! Na prática de cada acto sacerdotal, abrirei o
meu coração à vossa acção. Lançareis, então, nele as luzes, as consolações e as energias
necessárias para que os meus juízos, afeições e vontade se identifiquem com os vossos,
ó Sacerdote eterno!
Resumo dos três princípios do espírito litúrgico:
Cum Ecclesia. Quando me uno à Igreja como simples cristão, esta união
convida-me a identificar-me com os seus sentimentos.
Ecclesia. Quando procedo como embaixador da própria Igreja, perante o trono
de Deus, sou ainda mais fortemente incitado a fazer minhas as suas aspirações, para me
tornar menos indigno de me dirigir à majestade três vezes santa, e exercer, por meio da
oração oficial, um apostolado mais fecundo.
Christus. Mas quando, pela participação no sacerdócio de Cristo, eu sou “outro
Cristo”, que palavras poderão traduzir os vossos apelos, ó Jesus, para que cada vez mais
me assemelhe a Vós, para que, com esta semelhança, me manifeste aos fiéis e por meio
do apostolado do exemplo os conduza para Vós!
d) A vida litúrgica favorece a permanência do sobrenatural em todas as nossas
acções
Muitas vezes, ao longo do dia, a pureza de intenções, que torna meritórias as
acções e fecundo o apostolado, vicia-se, por falta de vigilância. Só um esforço contínuo
me permitirá obter as graças necessárias para dirigir todos os meus actos, unicamente,
para Deus. Ora, para esse esforço, a meditação é indispensável. Mas, que diferença,
quando ele se exerce no seio da vida litúrgica! A meditação e a vida litúrgica são duas
irmãs que mutuamente se auxiliam. A meditação que precede a Missa e a leitura do
breviário introduzem-me no sobrenatural. A vida litúrgica dá-me o meio de fazer passar
a meditação para o dia inteiro.101
Na vossa escola, ó Igreja santa, é fácil adquirir o hábito de render ao Criador e
Pai o culto que lhe é devido. Ó Esposa d’Aquele que é a Adoração, a Acção de graças, a
Reparação e a Mediação por excelência, vós, por meio da liturgia, comunicais-me essa
sede que Jesus tinha de glorificar o Pai.
A liturgia cativa todo o meu ser. Por meio de um conjunto de cerimónias, de
genuflexões, de inclinações, de símbolos, de cantos, de textos que se dirigem aos olhos,
aos ouvidos, à imaginação, à inteligência e ao coração, ela orienta-me todo para Deus.
Na liturgia tudo me fala de Deus; tudo me leva a Deus; tudo me conduz à
santidade. A liturgia põe-me a falar com Deus e a manifestar-Lhe a minha religião por
variadíssimas formas.
Se me aplicar, cuidadosamente, à formação litúrgica, adquirirei hábitos de
alma e progredirei na vida interior.
A liturgia é uma escola da presença de Deus. Ela explica-nos as diversas
manifestações da vida de Jesus Cristo entre nós. Conserva-nos numa atmosfera
sobrenatural e divina, na qual acompanhamos a vida de Nosso Senhor, e em que Ele nos
manifesta o amor do seu Coração.
Sois Vós mesmo, ó Jesus, que, por meio da liturgia, continuais a ensinar-nos e a
manifestar-nos o vosso amor. Contemplo-vos, não como poderia conhecer-Vos um
arqueólogo, um historiador, ou um teólogo, através de árduas pesquisas e especulações.
Vós estais a meu lado; sois o Emanuel, Deus connosco; estais com a vossa Igreja e, por
conseguinte, também comigo.
Por meio do ciclo das festas e das lições escolhidas no vosso Evangelho e nos
escritos dos Apóstolos, por meio dos sacramentos e da eucaristia, a Igreja faz viver no
meio de nós o vosso Sagrado Coração, e faz-nos ouvir as suas palpitações de amor por
nós. Crer que Jesus vive em mim e quer operar em mim, se eu não levantar obstáculos,
que estímulo para a vida sobrenatural!
Esta maneira de me apresentar Jesus, assim vivo e sempre presente, dá força e
generosidade à minha vida interior. Os sofrimentos, as injúrias, os combates espirituais
e as virtudes perdem o seu lado doloroso ou repugnante, porque em lugar da cruz
despida, vejo nela cravado o meu Salvador.
A liturgia dá-me, por outro lado, um apoio precioso, mostrando-me que não
estou só na luta contra o naturalismo que, incessantemente, me procura arrastar. A
Igreja segue-me, maternalmente, partilha comigo os méritos de milhões de almas com
as quais estou em comunhão e que falam a mesma língua de amor que eu, e dá-me a
certeza de que o Céu inteiro e o Purgatório me acompanham, para me animar e me
assistir.
Nada ajuda tanto a dirigir as nossas acções para Deus, como a lembrança da
eternidade. Na liturgia, tudo me recorda os novíssimos. As referências à vida eterna, ao
Céu, ao Inferno, ao Purgatório, à morte, e outras equivalentes, encontram-se nela a cada
passo.
Os sufrágios e ofícios pelos defuntos põem-me diante dos olhos a morte, o juízo,
as recompensas e os castigos eternos, o valor do tempo, e as purificações
indispensáveis, neste mundo ou no Purgatório, para entrar no Céu. As festas dos
santos falam-me da glória dos que me precederam neste mundo e da coroa que me está
reservada, se seguir os seus passos e exemplos.
Por meio destas lições, a Igreja clama sem cessar: Alma querida, contempla os
séculos eternos a fim de seres fiel à tua divisa: Deus em tudo, sempre, e por toda a parte.
Divina liturgia, para reconhecer todos os benefícios que te devo, deveria falar de
todas as virtudes. Graças aos textos escolhidos da Sagrada Escritura, que fazes passar
sob os meus olhos, graças aos ritos e símbolos que traduzem os divinos mistérios, a
minha alma vê-se constantemente erguida da terra e orientada, ora para a virtude, a
confiança e a alegria espiritual, ora para o temor de Deus, o horror ao pecado e ao
espírito do mundo.
e) A vida litúrgica amolda a nossa vida interior à de Jesus Cristo
Três sentimentos dominam o Coração de Jesus: a humildade perfeita, a
caridade ardente e o espírito de sacrifício.
Humildade perfeita. Ao entrar neste mundo dissestes: “Pai, eis-Me aqui para
fazer a vossa vontade” (Heb 10, 5-7). Amiúde dizíeis: “Eu sempre faço o que é do seu
agrado” (Jo 8, 29). Vós sois Aquele “que Se humilhou a Si mesmo, fazendo-se
obediente até à morte e morte de cruz” (Fil 2, 8). Agora ainda, obedeceis aos vossos
sacerdotes. À sua voz, desceis à terra: “O Senhor obedeceu à voz de um homem” (Jos
10, 14).
A liturgia convida-me a imitar a vossa sujeição, dominando o meu entendimento
e a minha vontade, sempre inclinados a rejeitar o exemplo fundamental que nos destes
ao fazer sempre a vontade divina.
Cada vez que obrigo a minha personalidade a abater-se para obedecer à Igreja, e,
por conseguinte, a Vós, a minha alma faz um precioso exercício. “Quem é fiel no pouco
também é fiel no muito” (Lc 16, 10). Que admiráveis efeitos produz esta fidelidade às
mínimas prescrições das rubricas, quando trato de obrigar o meu orgulho a dobrar-
se nas circunstâncias difíceis.
Mas há mais. Recordando-me a certeza da vossa vida em mim, e a necessidade
da vossa graça para tirar fruto até de um simples pensamento, a liturgia combate a
presunção que poderia destruir, completamente, a minha vida interior. O “Por Nosso
Senhor Jesus Cristo...”, que serve de conclusão a quase todas as orações da liturgia,
lembra-me que eu, sozinho, nada posso. Tudo me compenetra da necessidade de
recorrer frequentemente a Vós.
A Igreja, mediante a liturgia, insiste, solicitamente, na necessidade da súplica.
Desta liturgia ela faz verdadeiramente a Escola de Oração, por conseguinte, da
humildade. Por meio das suas fórmulas, sacramentos e sacramentais, ensina-me que
tudo me é concedido pelo vosso precioso sangue, mas que, para tirar frutos desse
sangue, devo unir-me, em oração humilde, ao vosso vivíssimo desejo de no-lo aplicar.
Caridade universal. O vosso Coração, ó meu Jesus, estendeu a todos os homens
a sua missão redentora. O brado que destes, pouco antes de morrer na Cruz: “Tenho
sede!” ecoa no altar, no sacrário e até no seio da vossa glória, num apelo lancinante para
que todos os cristãos tenham sede de almas e trabalhem com ardor pela salvação de
todos os homens.
Essa sede de almas deve consumir, especialmente, os vossos ministros. Eles têm
a missão de Vos levar às almas. Eles são aqueles co-redentores e mediadores, de quem o
profeta disse: “Chorem os sacerdotes, ministros do Senhor, entre o pórtico e o altar” (Jl
2, 17) pelos pecados do mundo. Eles devem santificar-se, para poderem santificar os
homens; devem instruir, guiar e comunicar às almas a vossa vida. “Eu santifico-me a
mim próprio —diz São João— para eles serem também santificados” (Jo 17, 19).
A vida litúrgica aumenta o meu amor filial pela santa Igreja e pelo Pai comum
dos fiéis; torna-me dedicado e submisso aos meus superiores hierárquicos e faz minhas
as suas preocupações; ajuda-me a não esquecer que Jesus vive naqueles com quem
estou em contacto diário, e a ser manso e paciente para com eles; recorda-me que só a
cruz me pode levar ao Céu e que os meus louvores, adorações e sacrifícios só têm valor
pelo sangue de Jesus.
Espírito de sacrifício. Ó meu bom Jesus, para salvar a humanidade, fizestes da
vossa vida terrena uma imolação contínua.
Como sacerdote, identificado convosco, quando celebro a Missa, ó divino
Crucificado, convosco também quero ser hóstia: Em Vós, tudo gravita à roda da cruz.
Ela será, pois, o Sol dos meus dias, como o vosso Sacrifício é o acto central da liturgia.
Fazendo-me recordar, incessantemente, o Sacrifício do Calvário, a liturgia é a
escola do espírito de sacrifício. Comunicando-me os sentimentos da vossa Igreja,
comunica-me os vossos, ó Jesus, e assim realizarei a palavra de S. Paulo: “Tende entre
vós os mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus” (Fil 2, 5).
O missal, o ritual e o breviário, dos mais variados modos, começando pelo sinal
da cruz, recordam-me que, depois do pecado, o sacrifício se tornou a lei da humanidade,
e que esse sacrifício só tem valor se estiver unido ao vosso. Farei de mim mesmo uma
imolação total, unida à vossa imolação realizada no Calvário e renovada nas Missas que
se sucedem no mundo inteiro. A liturgia facilitará esta oblação e “completará na minha
carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu corpo, que é a Igreja” (Col 2, 24).
Contribuirei com a minha parte para essa grande hóstia feita dos “sacrifícios de
todos os cristãos”.102 Essa hóstia há-de subir ao Céu para expiar os pecados do mundo
e fazer descer sobre a Igreja militante e purgante os frutos da vossa Redenção.
Assim terei a verdadeira vida litúrgica. Assim tornar-me-ei uma dessas pedras
vivas e escolhidas, as quais, brunidas pela provação, se destinam a entrar na construção
da Jerusalém celeste.
f) A vida litúrgica faz-nos viver, já na Terra, a vida do Céu
“Nós somos cidadãos do Céu” (Fil 4, 20), dizia S. Paulo. Onde aprenderei
melhor a viver como cidadão do Céu do que na liturgia? A liturgia da terra imita a
liturgia celeste, que São João, o discípulo predilecto, descreveu no Apocalipse. Quando
canto ou rezo o ofício, uno-me à adoração dos anjos diante do trono do Eterno.
As festas dos santos fazem-me viver na presença dos meus irmãos do Paraíso,
que me protegem e oram por mim. As festas da Santíssima Virgem recordam-me que
tenho no céu uma Mãe, cheia de poder e bondade, que não terá descanso, enquanto me
não vir em segurança no Reino do seu Filho. Será possível que a liturgia das festas do
meu doce Salvador —o Natal, a Páscoa, a Ascensão...— não me causem as saudades
do Céu que S. Gregório considera um penhor de predestinação?
g) Prática da vida litúrgica
As exigências do ministério sacerdotal podem servir, por vezes, de pretexto para
nos subtrairmos à prática da vida litúrgica. Ora, desempenhar bem as funções litúrgicas
não requer mais tempo que desempenhá-las maquinalmente. Os santos, onerados por
numerosas e absorventes ocupações, foram almas litúrgicas de primeira grandeza.
A. Preparação remota
Dai-me, bom Salvador, grande espírito de fé em tudo quanto se relaciona com o
culto divino.
Os vossos anjos e santos contemplam-Vos face a face. Nada consegue distrair o
seu espírito das augustas funções que constituem um dos elementos da sua indescritível
felicidade. Mas eu, sujeito como estou a todas as fraquezas da humana natureza, como
hei-de manter-me na vossa presença, se não tiver espírito de fé?
Dai-me, pois, uma fé viva, que fortaleça a minha vontade, ao considerar com
entusiasmo a sublimidade dos actos litúrgicos. Não permitais que considere as funções
litúrgicas com desmazelo, ou como uma tarefa a terminar depressa, ou a suportar porque
me dá certo lucro. Não quero que sirva de escândalo o que deve servir de edificação.
Todavia, estou certo de que cairei, se perder o espírito de fé.
Não o terei perdido, se perdi o zelo de conhecer e observar as rubricas? Os mais
belos pensamentos sobre a liturgia não desculpariam a minha negligência.
Se não sentir atractivo para fazer esse esforço, pouco importa; basta-me que Vos
agrade a minha obediência e que eu saiba quanto me será proveitosa. Quando fizer um
retiro esspiritual, nunca deixarei de examinar-me sobre este ponto, relativo ao missal, ao
ritual e ao breviário.
A Santa Igreja valeu-se, principalmente, das riquezas dos salmos para o seu
culto. Tenha eu espírito litúrgico, e a minha alma descobrirá nas riquezas dos salmos os
sentimentos que o Coração de Jesus dirigia ao Pai, durante a sua vida mortal,
encontrando, ali, maravilhosamente sintetizados, os principais ensinamentos do
Evangelho.
Sob os mesmos véus, ouvirei a voz da Igreja, continuando a vossa vida de
provações e manifestando a Deus, nos sofrimentos e triunfos, os seus sentimentos
modelados em Jesus.
Pela leitura da Sagrada Escritura, procurarei desenvolver o meu gosto pela
liturgia e facilitar a minha atenção às palavras.
A reflexão ensinar-me-á a descobrir, em qualquer acto litúrgico, uma ideia
central, em redor da qual gravitam os diversos ensinamentos, o que me ajudará a lutar
contra a mobilidade da minha imaginação.
Por outro lado, a Igreja emprega símbolos que falam aos sentidos uma
linguagem cativante, tornando sensíveis as verdades representadas. Tudo na Igreja —
cerimónias, paramentos, objectos sagrados— tem significado. Como conseguirei
iluminar a inteligência e atingir o coração dos fiéis, que a Igreja quer cativar por meio
dessa linguagem simples e grandiosa, se eu próprio não possuir a chave dessa pregação?
B. Preparação próxima
“Antes da oração, prepara a tua alma” (Ecli 18, 23). Imediatamente antes de
celebrar a Missa, ou recitar o breviário, devo procurar recolher-me, esquecendo tudo o
que não se refere a Deus e fixando n’Ele a minha atenção. É com Deus que vou falar.
Mas ele também é meu Pai. Ao temor reverencial, que a própria Rainha dos
Anjos tem perante a majestade infinita do seu Filho, unirei a confiança filial e ingénua
de uma criança. Terei a convicção de estar unido a Jesus Cristo e de representar toda a
Igreja, não obstante a minha indignidade. Não estarei só: “Na presença dos anjos
cantarei os vossos louvores” (Sl 137, 1).
Com a simplicidade e ingenuidade de uma criança, receberei da santa Igreja tudo
o que me apresentar para alimento da minha fé; aproveitarei os tesouros da liturgia e
deixar-me-ei cativar pela poesia que dela brota. Será mais fácil, então, entrar em
adoração e conservar-me nela durante a função litúrgica. Disso depende, em grande
parte, não só o proveito e o mérito do acto litúrgico em si, mas também as consolações
que me devem amparar nos trabalhos apostólicos.
Quero, por conseguinte, adorar. Quero unir-me às adorações do Homem-Deus,
a fim de render ao Pai esta homenagem. Mas quero que ela seja um impulso do coração,
e não um esforço da cabeça. Pedirei esta graça, por exemplo, ao rezar, pausadamente, as
orações iniciais do breviário e da santa Missa.
É esta vontade filial e afectuosa, forte e humilde, unida a um vivo desejo do
vosso auxílio, que exigis de mim.
Se a minha inteligência conseguir rasgar horizontes à minha fé, ou a
sensibilidade oferecer qualquer comoção piedosa, a vontade aproveitá-lo-á para mais
facilmente adorar. Se, porém, permanecer na aridez e na escuridão, lembrar-me-ei que a
união com Deus reside na parte superior da alma, na vontade, que terá, então, de voar,
contando somente com o apoio da fé, alcançando, assim, maiores méritos.
C. Desempenho da função litúrgica

Desempenhar bem as funções litúrgicas é dom da vossa munificência, ó meu

Deus! Dignai-vos conceder-me esse dom. Quero ser um verdadeiro adorador,

durante todo o acto litúrgico. Esta expressão resume todo o método.


A minha vontade lançou, e mantém, o meu coração na presença da majestade de
Deus. O seu trabalho pode resumir-se nas três palavras, “digna, atenta e devotamente”,
da oração inicial do ofício divino, que exprimem com precisão qual deva ser a atitude
do corpo, da inteligência e do coração.
Dignamente. Pela atitude respeitosa, pronúncia exacta das palavras (mais lenta
nas partes principais), cuidadosa observância das rubricas, tom da voz, maneira de
fazer o sinal da cruz, as genuflexões, etc., o meu corpo há-de manifestar que sei a Quem
estou a falar, que sei o que digo, que conheço o apostolado que estou a exercer juntos
dos fiéis 103, e, também, que é com o coração que estou a operar.
Na corte dos reis da terra, até os simples criados consideram grandes os cargos
pequenos, e assumem, naturalmente, ares solenes e majestosos. Eu, que faço parte da
guarda de honra do Rei dos reis e do Deus de toda a majestade, não deverei ter essa
distinção, que se manifesta na atitude de alma e na dignidade do porte?
Atentamente. Procurarei tirar proveito de tudo quanto possa servir de alimento,
nas palavras e ritos sagrados, ao meu coração. Umas vezes, aplicarei a atenção ao
sentido literal dos textos. Quer siga cada frase, quer medite sobre uma palavra que me
impressionou, procurarei seguir o conselho de São Bento: “Esteja o pensamento de
acordo com a voz”. Outras vezes, meditarei sobre o mistério do dia ou sobre a ideia
principal do tempo litúrgico.
Mas o papel da inteligência é secundário, comparado com o da vontade, pois
aquela apenas ajuda esta a manter-se em adoração ou a regressar a essa atitude. Por isso,
se me distrair, procurarei regressar, sem impaciência nem precipitação, mas com calma
e firme decisão, ao acto adorador.
Devotamente. É o ponto capital. Tudo deve tender a fazer do ofício ou outra
função litúrgica, um exercício de piedade, por conseguinte, um acto do coração.
“A precipitação é a morte da devoção.” Falando do breviário, e a fortiori da
missa, S. Francisco de Sales apresenta esta máxima como um princípio. Devo, portanto,
consagrar cerca de meia hora à minha Missa, a fim de que não só o cânone, mas toda
ela, seja rezada com piedade. Porei de lado todos os pretextos para celebrar
apressadamente este acto central do meu dia. Se estiver habituado a truncar certas
palavras ou cerimónias, hei-de aplicar-me, mesmo exagerando durante algum tempo,
em rezar muito devagar essas passagens defeituosas.
Guardadas as proporções, estenderei essa resolução a todos os outros actos
litúrgicos: sacramentos, bênçãos, enterros, etc.
Quanto ao breviário, terei o cuidado de prever as horas em que o deverei rezar.
Chegado esse tempo, obrigar-me-ei, custe o que custar, a pôr tudo de parte. Quero que
essa prece seja verdadeira oração do coração. Dai-me, Senhor, o horror à precipitação
quando desempenhar o vosso lugar, ou proceder em nome da Igreja. Dai-me a persuasão
de que a precipitação paralisa o grande sacramental da liturgia, e impede o espírito de
oração, sem o qual, sob as aparências de um sacerdote muito zeloso, serei tíbio aos
vossos olhos, ou menos ainda. Gravai na minha consciência estas palavras de Jeremias:
“Maldito o que faz com negligência a obra do Senhor” (Jer 48, 10).
Umas vezes, com um impulso do coração, abraçarei, numa síntese de fé, o
sentido geral do mistério recordado pelo ciclo litúrgico, e, com ele, alimentarei a minha
alma; outras vezes, saborearei, longamente, os actos de fé, de esperança, de desejo, de
pesar, ou de amor; outras vezes, ainda, um simples olhar bastará. Olhar íntimo e
demorado sobre um mistério, sobre uma perfeição de Deus, sobre a Igreja, sobre as
minhas misérias e necessidades, ou, ainda, sobre a minha dignidade de cristão, de
sacerdote, de religioso. Olhar inteiramente diferente do acto da inteligência durante um
estudo teológico. Olhar que aumente a minha fé, e o meu amor; olhar que seja um
reflexo pálido da visão beatífica, mas que realize, já neste mundo, o que Jesus prometeu
às almas puras: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5, 8).
Longe de serem um serviço pesado, as funções litúrgicas serão uma das maiores
consolações da minha vida; uma verdadeira respiração da minha alma, que as ocupações
tendiam a asfixiar.
E como poderia ser de outra forma? A lembrança de que sou filho e embaixador
da Igreja, membro e ministro de Jesus Cristo, revestir-me-á, cada vez mais, d’Aquele
que é a Alegria dos eleitos. Pela união com Ele, aprenderei a tirar proveito das cruzes
desta vida para semear a messe da minha felicidade eterna, e pela vida litúrgica, mais
eficaz do que qualquer apostolado, arrastarei após mim outras almas, pelos caminhos da
salvação e da santidade.
4. A guarda do coração, ponto capital da vida interior e, por conseguinte, do
apostolado
Quero, meu Jesus, ser vigilante, para preservar o meu coração de todos os
defeitos, e uni-lo, cada vez mais, ao vosso.
O elemento negativo desta resolução faz-me repudiar toda e qualquer mancha
nos motivos e na prática da acção.104
O elemento positivo leva-me a querer intensificar a fé, a esperança e a caridade,
que animam essa acção.
A resolução da guarda do coração é o verdadeiro termómetro do valor prático
das duas precedentes, pois nela se resume a vida interior, no exercício do apostolado.
A meditação e a vida litúrgica dão-me o impulso para me unir a Deus. Porém, a
guarda do coração é que vai permitir manter-me sempre nas boas disposições iniciais.
Já sei em que consiste esta guarda do coração 105 que realiza, verdadeiramente,
o “Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós” (Jo 15, 4).
Por seu intermédio, a minha união indirecta a Deus, pelas suas obras, isto é,
pelas relações que, consoante a sua vontade, tenho com as criaturas, torna-se
consequência da minha união directa com Ele, pela oração, pela vida litúrgica e pelos
sacramentos. Em ambos os casos, a união procede da fé e da caridade e realiza-se sob a
influência da graça. Na união directa, sois, Vós mesmo, ó meu Deus, o objecto da
minha intenção. Na indirecta, aplico-me a outros objectos. Mas, como faço isso para
Vos obedecer, esses actos tornam-se meios de me unir a Vós. Deixo-Vos, para Vos
voltar a encontrar. Sois sempre Vós que eu procuro, e com desejo igual, mas, fazendo a
vossa vontade. E esta divina vontade é o único farol que a guarda do coração me faz,
incessantemente, fixar, a fim de me orientar no vosso serviço. Em ambos os casos,
posso, por conseguinte, dizer: “Para mim, a felicidade é estar junto de Deus” (Sl 72,
28).
É erro julgar que, para me unir a Vós, devo adiar a acção ou esperar que ela
termine. É erro supor que os trabalhos prolongados tornam impossível a minha união
convosco. Quereis que eu permaneça livre, e que a acção não me chegue a dominar.
Quereis que eu seja o senhor, e não o seu escravo. E, com esse fim, ofereceis-me a
vossa graça, caso seja fiel à guarda do coração.
Portanto, se o meu senso sobrenatural, mediante a experiência, me faz discernir
que certa acção é da vontade de Deus, não me subtrairei a ela, mas também não a farei
por amor próprio. Devo empreendê-la e continuá-la, só para fazer a divina vontade.
Porque o amor próprio viciar-lhe-ia o valor e diminuiria o seu mérito.
a) Necessidade da guarda do coração
Meu Deus, vós sois a santidade, e, neste mundo, só admitis uma alma à vossa
intimidade, na medida em que ela se aplique a destruir ou a evitar tudo o que a pode
manchar. Preguiça espiritual de elevar o coração até vós; amor desordenado pelas
criaturas; modos bruscos e impaciências; rancor, caprichos, moleza, dissipação,
tagarelice, juízos vãos e temerários acerca do próximo, auto-complacência, desprezo
dos outros, presunção, teimosia, ciúme, falta de respeito à autoridade, murmurações;
falta de mortificação no beber e no comer, etc., que multidão de pecados veniais, ou de
imperfeições voluntárias, me poderá invadir, se deixo de estar vigilante, privando-me,
assim, das graças que me quereis dar!
Sim, se a meditação e a vida litúrgica não levarem, progressivamente, a minha
alma a conservar-se vigilante, até contra as faltas devidas à fragilidade humana, a
erguer-se com prontidão, mal a vontade comece a afrouxar, e até a impor-se penitências,
posso paralisar e tornar estéril a acção de Jesus em mim. “O Reino dos Céus exige
violência e os violentos apoderam-se dele à força” (Mt 11, 12), se eu não for desses
violentos, logo Satanás procurará sem descanso surpreender o meu coração.
Não te iludas, minha alma. Certas quedas, que qualificas como de pura
fragilidade, talvez não o sejam aos olhos de Deus, pois não praticas o exercício da
guarda do coração e Jesus não é o motivo de cada uma das tuas acções.

b) Presença de Deus, base da guarda do coração


Trindade Santíssima, se eu, como espero, estou em estado de graça, Vós habitais
no meu coração, com toda a vossa glória, com todas as vossas perfeições infinitas,
enfim, tal como habitais no Céu.
Se a vossa vida em mim fosse o centro da minha atenção, porventura estaria eu
tanto tempo sem pensar nela? Não será esta falta de atenção a causa dos fracassos das
minhas tentativas de guarda do coração? Se as orações jaculatórias se sucedessem,
regularmente, pelo dia adiante, ter-me-iam recordado a presença, cheia de amor, do meu
Deus em mim.
Tenho norteado, assim, a minha vida, ao menos uma vez em cada hora? Tenho
aproveitado a meditação quotidiana e a vida litúrgica para visitar o santuário íntimo do
meu coração, para adorar aí a Beleza infinita, a Imensidade, a Omnipotência, a
Santidade, a Vida, o Amor, numa palavra, o Bem supremo e perfeito, que lá se digna
residir e que é o meu Princípio e o meu Fim?
Que lugar ocupam no meu dia as comunhões espirituais? E, entretanto, posso
fazê-las, a cada momento, não só para recordar a vida da Santíssima Trindade em mim,
mas também para aumentar essa vida, por nova infusão do Sangue redentor na minha
alma!
Que caso tenho feito desses tesouros, postos à minha disposição? Como estou
longe das almas que, sem deixar o trabalho, voltam, milhares de vezes por dia, ao seu
hóspede divino! Contraíram esse hábito, e o seu coração nunca mais abandonou o seu
tesouro.

c) A devoção a Nossa Senhora facilita a guarda do coração


Ó Maria Imaculada, a palavra do vosso Filho, no Calvário, constituiu-me filho
vosso, para que me ajudeis a conservar o coração unido ao de Jesus. Peço-Vos, pois, a
guarda do coração que purifique as minhas tendências, desejos e afectos. Quantas vezes,
durante as minhas ocupações, falais à minha consciência, pedindo, maternalmente, que
o meu coração só deseje a glória de Deus! Quantas vezes, porém, me torno surdo à
vossa doce voz!
Minha Mãe, de hoje em diante, prestarei ouvidos às advertências do vosso
Coração e procurarei corresponder-lhes com energia. Perguntarei a mim mesmo: Para
quem é a acção presente? Como procederia Jesus em meu lugar? Estas interrogações
íntimas, transformadas em hábito, constituem a guarda do coração, que me conservará
na dependência completa de Deus, que vive na minha alma.
d) Aprendizagem da guarda do coração
Lamento ter ficado tanto tempo longe da presença de Deus. Lamento comprovar
que nesse tempo me escapam numerosas faltas. Quero, pois, remediar isso, desde já,
exercitando a guarda do coração.
De manhã, durante a meditação, determinarei, com precisão, o momento do meu
trabalho, no qual —sem deixar de me aplicar com ardor à obra desejada por Deus— me
esforçarei por aperfeiçoar a vida interior. Começarei por cinco minutos, ou até menos,
de manhã, e outros cinco à noite.106 Procurarei aperfeiçoar mais este exercício, do que
aumentar a sua duração. E farei como teria procedido Jesus, se tivesse que o
desempenhar.
Será uma aprendizagem prática de vida interior e uma lição contra o meu hábito
de dissipação. Amo a Deus. Desejo o seu reinado. Quero que, durante as ocupações
exteriores, continue em mim esse reinado. Não quero que a minha alma esteja exposta a
todos os ventos da dispersão, que a impedem de viver unida a Deus.
Durante breves momentos, ponderarei, com calma, mas atentamente, as diversas
intenções da minha alma. Não pouparei esforços para viver uma vida perfeita durante
esse curto intervalo. Recorrerei, frequentemente, a Nosso Senhor, pedindo-Lhe que
mantenha o meu coração nesse ensaio de santidade.
Este exercício deve ser cordial e alegre. É certo que a mortificação e a vigilância
serão necessárias para me conservar na presença de Deus. Mas não me contentarei só
com este lado negativo. Procurarei, sobretudo, praticar este exercício com grande amor
e esmero, aplicando o “age quod agis”,107 primeiro, pela pureza de intenções e,
depois, com ardor, desinteresse e generosidade sempre crescentes.
À noite, no exame geral (ou no particular, se tiver como objecto este exercício),
farei uma análise rigorosa do que foram esses minutos de guarda do coração, perto de
Jesus. Se verificar que não fui bastante vigilante, fervoroso e suplicante, durante essa
tentativa de guarda de coração, escolherei uma pequena penitência, por exemplo, a
privação de um pouco de vinho ou da sobremesa, ou uma curta oração com os braços
em cruz. Este exercício produzirá resultados admiráveis. Em pouco tempo, começarei a
descobrir pecados e imperfeições, cuja existência nem suspeitava.
Começarei a desejar prolongar esses benditos instantes. Contudo, não deverei
fazê-lo, enquanto não aperfeiçoar, ao máximo, aqueles momentos de recolhimento.
Contrairei, assim, o hábito deste exercício, que tornará pura a minha alma e,
verdadeiramente, unida a Jesus.
e) Condições da guarda do coração
Vigilância enérgica, calma, doce e leal; grande desconfiança de mim mesmo e
das criaturas; renovação frequente da minha resolução; recomeçar incansavelmente,
cheio de confiança na misericórdia de Jesus; certeza de que não combato sozinho, mas
unido a Jesus, a Nossa Senhora, ao meu anjo da guarda e aos santos; convicção de que
esses poderosos aliados me assistirão a todo o momento, contanto que procure a guarda
do coração, e não me afaste da sua assistência; enfim, recurso cordial e frequente a
todos esses auxílios divinos para que me ajudem a fazer “o que Deus quer, como quer, e
porque quer”.
Se guardar o meu coração unido a Jesus, a minha vida ficará completamente
transformada. A inteligência poderá estar absorvida na acção presente, mas a respiração
do meu coração estará em Cristo.
A respiração da minha alma nessa atmosfera de amor que Vós sois, meu bom
Jesus, longe de diminuir a liberdade de acção necessária às minhas faculdades, para o
desempenho dos deveres de estado, concorrerá para tornar a minha vida límpida, alegre,
enérgica e serena.
Em lugar de ser escravo das paixões e das impressões, tornar-me-ei, cada dia,
mais livre. E da minha liberdade, assim aperfeiçoada, poderei, meu Deus, prestar-vos
frequentes homenagens de dependência, reparação e amor, em união com Jesus Cristo,
o qual, durante a sua vida mortal, pôs em prática esse espírito de dependência,
transformado, agora, numa glória infinita e eterna: “Por isso é que Deus O exaltou e Lhe
deu um nome que está a cima de todo o nome” (Fil 2, 9).
5. O apóstolo deve possuir uma ardente devoção a Nossa Senhora
Sendo membro da Ordem de Cister e filho de São Bernardo, não posso deixar de
dizer que o santo Abade de Claraval atribuía a Maria todos os seus progressos na união
com Jesus e todas as suas vitórias no apostolado.
Todos sabem o que foi o apostolado do mais ilustre dos filhos do patriarca São
Bento, sobre os povos, os reis, os concílios, e até sobre o coração dos Papas. Todos
exaltam a santidade, o génio, a ciência e a unção dos escritos do último dos Padres da
Igreja. Porém, o que, sobretudo, sintetiza a admiração dos séculos pelo santo doutor, é o
título de “cantor de Maria”, que lhe foi outorgado.
Este incomparável apóstolo da Europa, não foi excedido por nenhum outro
daqueles que celebraram as glórias da Mãe de Deus. Grandes santos, como São
Bernardino de Sena, São Francisco de Sales, Santo Afonso de Ligório, São Luís de
Montfort, e outros, não deixaram de ir beber os tesouros de São Bernardo, quando
quiseram falar da Virgem Maria.
“Vejamos, meus irmãos —diz o santo doutor— quais os sentimentos de
devoção, com que Deus quis que honrássemos Maria, Ele que pôs n’Ela toda a
plenitude dos seus bens. Se, em nós, existe qualquer esperança, qualquer graça,
qualquer penhor de salvação, reconheçamos que tudo isso jorra sobre nós d’Aquela que
está cumulada de delícias (…) Tirai esse sol que alumia o mundo, e deixará de haver
dia. Tirai Maria, essa estrela do mar, do nosso grande e imenso mar, e que fica senão
profunda escuridão, sombras de morte e trevas espessas? É, pois, do fundo dos nossos
corações e das nossas entranhas, e com os nossos melhores anseios que devemos honrar
a Virgem Maria; pois tal é a vontade d’Aquele que quis que tudo tivéssemos por meio
d’Ela”.108
Apoiados nesta doutrina, não hesitamos em dizer que, se a actividade do
apóstolo não se fundar numa especialíssima devoção a Nossa Senhora, arrisca-se,
seriamente, a construir sobre a areia.
a) Para a vida interior pessoal.
O apóstolo será insuficientemente devoto de Nossa Senhora, se não tiver
confiança filial e amorosa na Mãe de Deus, ou se apenas for exterior o culto que lhe
prestar. Para sermos seus verdadeiros filhos, o nosso amor deve corresponder ao dela;
devemos estar firmemente convencidos das grandezas, privilégios e funções da Mãe de
Deus e dos homens; devemos estar compenetrados de que a luta contra as faltas, a
aquisição das virtudes, o reinado de Jesus Cristo nas almas, dependem do grau de
devoção que tivermos a Maria;109 devemos estar compenetrados de que a vida interior
é mais segura, mais suave e mais rápida, quando se opera com Maria;110 devemos
transbordar de confiança filial e de amor pela Medianeira de todas as graças.111
Todos estes sentimentos se encontravam em alto grau no coração do exemplar
apóstolo que foi São Bernardo. Quem não conhece as palavras que brotaram da alma
deste santo abade, quando, ao explicar aos seus monges o Evangelho Missus est,
exclamou:
“Ó tu que compreendes que, no fluxo e refluxo deste mundo, flutuas entre
ressacas e tempestades e não caminhas em terra firme, fixa os teus olhos sobre essa
estrela, para não pereceres na tormenta. Se os ventos das tentações se desencadearem, se
fores de encontro aos escolhos das tribulações, olha para a estrela, invoca Maria! Se te
vires sacudido pelas ondas do orgulho, da ambição, da maledicência, da inveja; olha
para a estrela, invoca Maria! Se a cólera, a avareza, ou a cobiça assaltarem a frágil
barquinha da tua alma, ergue os olhos para Maria! Se, acabrunhado pela enormidade das
tuas faltas, confundido pelas hediondas chagas da tua consciência, horrorizado pelo
pavor do juízo, começares a ser absorvido pelos abismos da tristeza e do desespero,
pensa em Maria! Nos perigos, nas angústias, nas dúvidas, pensa em Maria, invoca
Maria! Jamais saia Maria dos teus lábios; jamais fique Maria longe do teu coração; e,
para obteres o bom despacho das tuas preces, não olvides o exemplo da sua vida.
Seguindo-a, não te desviarás; invocando-a, não desesperarás; contemplando-a, não
errarás. Por ela amparado, nunca cairás; sob a sua protecção, nada te causará temor;
guiado por ela, nunca te cansarás; se ela te for propícia, chegarás, certamente, ao bom
porto.”
Não querendo alongar-me, mas desejando facultar aos apóstolos um resumo dos
conselhos de São Bernardo, para quem quiser ser verdadeiro filho de Maria, aconselho-
os, fraternalmente, a lerem com atenção o precioso livro: “La vie spirituelle, à l’école
du Bienheureux Grignion de Montfort”, escrito pelo Padre Lhoumeau, superior geral
dos Monfortinos.112
Esta obra sólida, do ponto de vista teológico, mas, ao mesmo tempo, prática e
cheia de unção, reflecte, maravilhosamente, o pensamento de São Bernardo. Nada lhe
falta para alcançar os resultados tão desejados pelo abade de Claraval: afeiçoar o
coração dos seus filhos à imagem do seu e dar-lhes o carácter dominante dos autores
cistercienses: a necessidade do recurso habitual a Maria e a vida de união com ela.
Terminemos com as palavras consoladoras que a admirável cisterciense Santa
Gertrudes ouviu dos lábios da Santíssima Virgem: “Não se diga que o meu dulcíssimo
Jesus é meu Filho único, mas meu primogénito. Foi Ele quem eu concebi primeiro, no
meu seio, mas, por Ele, concebi, depois, a todos vós para serdes seus irmãos e meus
filhos, adoptando-vos no seio do meu amor maternal”.
b) Quanto à fecundidade do apostolado.
Como diz São Paulo, quando o apóstolo tira as almas do pecado e as faz crescer
na virtude, está a gerar nelas o próprio Cristo. Por conseguinte, se Jesus Cristo veio ao
mundo por meio da Santíssima Virgem, também é por meio dela que Ele deve ser
gerado nas almas dos seus filhos.
Esquecer Maria no apostolado seria desconhecer uma parte essencial do plano
divino. “Todos os predestinados —diz Santo Agostinho— estão neste mundo ocultos no
seio da Santíssima Virgem, onde crescem, são guardados e alimentados por esta boa
Mãe, até nascerem para a glória, depois da morte.”
“Após a Encarnação —conclui justamente São Bernardino de Sena— Maria
adquiriu uma espécie de jurisdição sobre a missão temporal do Espírito Santo, de tal
modo que as criaturas só recebem graças pelas mãos d’Ela”. Por sua vez, o verdadeiro
devoto de Maria torna-se omnipotente sobre o Coração da sua Mãe. O seu apostolado é
eficacíssimo, pois dispõe da omnipotência de Maria sobre o sangue infinitamente
precioso do Redentor. Por isso, todos os grandes conquistadores de almas têm
extraordinária devoção à Santíssima Virgem. A força com que conseguem persuadir as
almas a abandonar o pecado, e a abraçarem a virtude, vem-lhes do horror ao mal e o
amor à pureza daquela que a si mesma se chamou Imaculada Conceição.
Ao ouvir a dulcíssima voz de Maria, São João Baptista reconheceu a presença de
Jesus, e exultou de alegria no seio de Santa Isabel. Os verdadeiros filhos de Nossa
Senhora sabem, também, encontrar as palavras capazes de tocarem os corações mais
empedernidos e abri-los para Jesus; sabem encontrar, com o auxílio da Mãe de
Misericórdia, a palavra que salva do desespero e abre as almas para as vias da
confiança; sabem colocar os pecadores nas mãos daquela que é o seu Refúgio seguro e a
sua verdadeira Mãe.
São João Baptista Vianney encontrou, por vezes, pecadores que se escudavam
em práticas exteriores de devoção à Santíssima Virgem, para calarem a própria
consciência, pecarem mais facilmente e não temerem a justiça de Deus. A palavra
incisiva do santo pároco de Ars revelava-lhes, contudo, a injúria que estavam a fazer à
Mãe de Misericórdia, e levava-os a servirem-se dessas mesmas práticas de devoção para
implorarem e, assim, obterem a graça da conversão.
Em caso igual, um apóstolo pouco devoto de Maria, poderia facilmente levar o
pobre náufrago a abandonar tais práticas que talvez fossem a sua única tábua de
salvação.
Se Maria viver no coração do apóstolo, ele conseguirá ter a eloquência maternal
que toque as almas mais duras. Dir-se-ia que, por uma delicadeza admirável, Nosso
Senhor reserva para a sua Mãe as conquistas mais difíceis e só as concede aos
verdadeiros devotos de Maria. O verdadeiro filho de Nossa Senhora nunca carecerá de
argumentos, meios e expedientes, quando haja de animar os fracos e consolar os
inconsoláveis.
O decreto pontifício que acrescentou à Ladainha Lauretana a invocação: “Mãe
do bom conselho”, funda-se nos títulos de “Tesoureira das graças celestes” e
“Consoladora universal” que Maria merece.
É aos seus verdadeiros devotos que a “Mãe do bom conselho” faculta, como em
Caná, o segredo de obterem, para distribuir, o vinho da força e da alegria. Mas,
sobretudo, quando é preciso falar do amor de Deus às almas, é que a “Raptora dos
corações”, Raptrix cordium, conforme expressão de São Bernardo, a Esposa do Amor
substancial, põe nos lábios dos seus filhos as palavras de fogo que ateiam o amor de
Jesus e, por meio desse amor, fazem germinar todas as virtudes.
O verdadeiro apóstolo deve amar, apaixonadamente, aquela a quem Pio IV
chamou Virgo sacerdos, cuja dignidade ultrapassa a de todos os sacerdotes e pontífices.
E este amor dar-lhe-á o direito de nunca considerar perdida uma obra, se a começou
com Maria e se com Ela a quer consolidar. Maria, com efeito, está na base e no topo de
tudo quanto interessa ao Reino de Cristo.
Mas trabalhar com Ela não é, apenas, erguer-lhe altares ou entoar cânticos em
sua honra. O que Ela quer, verdadeiramente, é que vivamos unidos a Ela, que as nossas
afeições passem pelo seu Coração e que recorramos ao seu conselho e auxílio.
Sobretudo, espera de nós a imitação das suas virtudes e a entrega total nas suas mãos,
para que nos possa revestir do seu divino Filho.
Se recorrermos habitualmente a Maria, imitaremos aquele general do Povo de
Deus que, antes de avançar contra o inimigo, dizia a Débora: “Se fores comigo, eu irei;
mas, se não fores, não irei” (Jz 4, 8), e faremos, então, verdadeiramente, todas as nossas
obras com Ela. E Ela entrará, não só nas decisões principais, mas também em todos os
casos imprevistos e em todos os pormenores da execução da obra.
Unidos àquela, cuja invocação de Nossa Senhora do Sagrado Coração, resume,
em nossa opinião, todos os outros títulos, não correremos o risco de desvirtuar as obras,
permitindo que elas prejudiquem a vida interior e se tornem um perigo para as nossas
almas. Pelo contrário, por meio dessas mesmas obras, progrediremos na vida interior,
em união com aquela que nos assegura a posse do seu divino Filho durante toda a
eternidade.
Epílogo
Depomos este modesto trabalho aos pés de Maria Imaculada.
O perfeito ideal do apostolado é o Coração da Santíssima Virgem, tal como
aparece na gravura bizantina, do século VI, reproduzida neste livro.113 Parece-nos a
própria imagem da vida interior. A Virgem tem no peito o Verbo Encarnado. Como o
Pai Eterno, conserva sempre em si o Verbo que deu ao mundo. Jesus vive n’Ela.
O Menino Jesus aparece, porém, dentro do seu Coração no acto de exercer o seu
apostolado. O seu porte, o rolo do Evangelho que tem na mão esquerda, o gesto da mão
direita, o seu olhar: tudo indica que está a ensinar. E a Virgem une-se à sua palavra. A
expressão do seu rosto parece dizer que quer também falar. Os seus olhos grandes
abertos procuram almas às quais possa comunicar o seu Filho: imagem perfeita da vida
activa, pela pregação e pelo ensino.
As suas mãos estendidas —como as dos orantes das catacumbas, ou as do
sacerdote que oferece a Vítima santa sobre o altar— recordam-nos que é, sobretudo,
pela oração e pela união ao sacrifício de Jesus que a nossa vida interior será profunda e
o nosso apostolado dará fruto.
Ela vive da vida de Jesus, do seu amor, do seu sacrifício, e Jesus fala nela e por
ela. Jesus é a sua vida e ela é o porta-voz, a custódia de Jesus. Assim deve ser a alma
dedicada ao apostolado, deve viver de Deus, para poder falar eficazmente d’Ele, já que
a vida activa é apenas a vida interior a transbordar da alma.
Salve, Virgem Mãe, receptáculo vivo do Coração de Jesus! Desta divina fonte
haurimos, por vosso intermédio, o espírito de sacrifício e de oração.
––––
1 “De Quem tudo, por Quem tudo, com Quem tudo” (Liturgia).
2 “E Ele fez-se homem, para que nós nos tornássemos deuses” (Santo Agostinho, serm.
9 de Nativ.)
3 Carta de Leão XIII, de 22 de Janeiro de 1899, ao Cardeal Gibbons.
4 Esta tibieza é diferente da secura ou repugnância que, às vezes, mesmo sem culpa,
sentem os fervorosos. Os pecados veniais que escapam à fragilidade e são combatidos e
imediatamente detestados, apenas cometidos, também não manifestam a tibieza da
vontade. A alma tíbia tem duas vontades diversas, boa uma e má a outra; uma ardente
e a outra fria. Por um lado, quer a salvação e por isso evita os pecados mortais; por
outro lado, não quer as exigências do amor de Deus e prefere uma vida livre e fácil,
cometendo pecados veniais deliberados… Quando a tibieza não é combatida, o facto
mesmo de o não ser mostra que na alma existe má vontade, não total, mas parcial; isto
é, que há uma parte da vontade que diz a Deus: “Neste ou naquele ponto, não quero
deixar de Vos desagradar.” (P. Achille Desurmont, C.SS. R. Le retour continuel à Dieu,
par la vraie oraison et la vraie pénitence, Nancy, 1884).
5 “Certamente, o homem foi criado para contemplar o seu Criador, a fim de procurar
sempre o seu rosto e habitar na solidez desse amor” (São Gregório Magno, Moralia, c.
XII).
6 “Sempre te hás-de lembrar de Deus. Assim, a tua mente chega ao Céu” (Santo
Efrém). “A mente é o paraíso da alma. Enquanto medita as coisas celestes, deleita-se
num paraíso de felicidade” (Hugo de São Victor).
7 São Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2ª 2ªe, q. 180, a. 4.
8 “Há maior trabalho em resistir aos vícios e paixões do que suar nos trabalhos
corporais” (São Gregório).
9 “Mostrando-se firme como se contemplasse o Invisível” (Heb 11, 27).
10 Palavras de D. Festugière O.S.B.: “Sejam quais forem as dificuldades da vida
activa, só os inexperientes é que ousam negar as provações da vida interior. Muitos
activos, apesar de sinceramente piedosos, confessam que, muitas vezes, o que mais lhes
custa na vida, não é a acção, mas a parte obrigatória da oração. Quando chega o
momento da acção sentem-se como que aliviados.”
11 São Tomás de Aquino, Suma Teológica, 1a 2ae, q. 108, a. 4.
12 “Sinto prazer na lei de Deus, de acordo com o homem interior. Mas vejo outra lei
nos meus membros a lutar contra a lei da minha razão e a reter-me cativo na lei do
pecado, que se encontra nos meus membros. Que desditoso homem que eu sou! Quem
me há-de libertar deste corpo de morte?” (Rom 7, 22-24).
13 “(O homem pode viver) de outro modo, quando se une totalmente às coisas divinas.
Desta forma, coloca-se acima do homem” (São Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2a
2ae, q. 188, a. 8. ad. 5).
14 N.T. Vale a pena lembrar aqui, neste sentido, o exemplo admirável dado pela
humilde religiosa contemplativa que foi Santa Teresinha do Menino Jesus, padroeira
das Missões. No silêncio do claustro, ela rezava e sofria pelos missionários que, na
longínqua Cochinchina e não só, obtinham a conversão de incontáveis pagãos.
15 São Gregório, Homilia 12 in Ezechielem prophetam.
16 São Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2a 2ae, q. 182, a. 2, ad 3.
17 “Caridade, primeiro para consigo mesmo”.
18 São Bernardo, I. II. De Consideratione libri quinque ad Eugenium III, c. III).
19 Godofredo, Vida de São Bernardo.
20 São Bernardo, I. II, op. cit., c. III).
21 P. Pierre Champion, La vie et la doctrine spirituelle du Père Louis Lallemant, S. J.,
Paris, 1694.
22 Ricardo de S. Victor, in Cant., 8.
23 São Bernardo, Hom. Simile est… bom. neg.
24 São Bernardo, 1. II, de Consideratione, III.
25 São Bernardo, II, op. cit., III).
26 Santo Agostinho, Doct. Crist., 1, IV).
27 Pseudo-Dionísio, Coel. hier., c. III.
28 São Bernardo, Serm. 18. in Cant.
29 São Bernardo, idem ibidem.
30 “É sabido, porém, que se requer maior perfeição naquele que comunique a
perfeição a outros, do que naquele que seja perfeito só em si mesmo; como vale mais
poder fazer que alguém seja perfeito do que sê-lo simplesmente, pois toda a causa é
superior ao seu efeito” (São Tomás de Aquino, Opúsculo sobre a perfeição da vida
religiosa).
31 “É preciso que o pregador se deixe primeiro impregnar com a doçura da doutrina,
para depois propor a verdade cristã aos outros” (São Boaventura, Illus. Eccl., serm.
17).
32 O cónego cujas palavras inolvidáveis aqui transcrevo, desenvolveu o mesmo
pensamento nalgumas das suas obras. Vejam-se: Joseph-Marie Timon David, Méthode
de direction des oeuvres de jeunesse, 2 vol., 1865 – Traité de la confession des enfants
et des jeunes gens, 3 vol., 1865 – Souvenirs de l’œuvre, ou vie et mort de quelques
Congréganistes. 1859 (Mignar Frères, Paris).
33 “Como na contemplação se deve amar a Deus e também na vida actual se deve
amar o próximo, por isso, como não podemos existir sem as duas vidas, assim também
não podemos existir, de nenhum modo, sem estes dois amores” (S. Isidoro, Different.,
livro II, XXXIV, n. 135).
34 Suarez, I De Religione, 1.I, c.v, n. 5.
35 “Quando alguém é chamado da vida contemplativa para a vida activa, isto não se
faz à maneira de subtracção, mas à maneira de adição” (S. Tomás de Aquino, Suma
Teológica, 2, 2ae, q. 182, a. I).
36 “Gozava de certa solidão interior, em qualquer parte por onde ele próprio se
movesse. E como no exterior se aplicava todo ao trabalho, também no seu interior se
dedicava todo a Deus” (Godofredo, Vida de São Bernardo, 1. I, c.v, e 1. III).
37 São Tomás de Aquino, Suma Teológica, 3ª p.q. 67, a.2, ad Ium.
38 P. Léon, O.F.M. Cap., Passim, op. cit.
39 São Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2ª 2ae, q. 188, a.6.
40 Tomo III, livro V.
41 São Boaventura, Vida de São Francisco, c.IX.
42 “Todas as vezes que vós fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequenos a Mim
o fizestes” (Mt 25, 40).
43 “Não tinha graça nem beleza para atrair o nosso olhar, e o seu aspecto não podia
cativar-nos. Era desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores,
experimentado nos sofrimentos; como aqueles diante dos quais se tapa o rosto, era
menosprezado, nenhum caso fazíamos dele” (Is 53, 2-3).
44 Padre Léon, O.F.M. Cap., Lumière et flamme, Note-se bem que nesta citação se
trata de uma vida activa cheia de espírito de fé, fecundada pela caridade e por uma
vida interior intensa.
45 Santo Agostinho, in Psalm., XXXI.
46 São Bernardo, De Consideratione, 1. II, c. II.
47 Dos ensinamentos de São Tomás infere-se que, quando a alma, em estado de graça,
pratica um acto, em si bom, mas sem o grau de fervor que Deus tem o direito de
esperar dela, esse acto diminui nela o grau de caridade que possui. Os textos, Maldito
aquele que faz a obra de Deus com negligência e Porque tu és tíbio… começo a expelir-
te da minha boca, assim se explicam. Por outro lado, cada pecado venial, sem privar do
estado de graça, diminui o fervor e dispõe para o pecado mortal. Ora, sem uma vida
interior séria, a alma dissipada, que cessou de viver o “vigiai e orai”, cai em
numerosos pecados veniais não combatidos, muitas vezes até não percebidos. Assim se
encontra em São Tomás o sentido da expressão “ocupações malditas”, da página
precedente, e de tudo o que se explana no presente capítulo.
48 Cfr. P. Achille Desurmont C. SS. R., op. cit.
49 N.T.: Hoje, seria preciso acrescentar: a televisão.
50 P. Louis Lallemant, op. cit..
51 Idem, ibidem.
52 São Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2a 2ae, q. 184, a. 18.
53 “Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do demónio
(…), para que possais resistir no dia mau, e ficar de pé depois de ter vencido em tudo.
Estai, pois, firmes, tendo os vossos rins cingidos com a verdade, vestindo a couraça da
justiça, tendo os pés calçados, prontos para ir anunciar o Evangelho da paz; sobretudo
tomai o escudo da fé, com que possais apagar todos os dardos inflamados do Maligno.
Tomai também o elmo da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus”
(Ef 6, 11-17).
54 Encíclica de São Pio X, de 11 de Junho de 1905, aos bispos da Itália.
55 Sentimentos admiráveis revelou o General de Sonis nesta oração quotidiana,
relatada pelo autor da sua “Vida”:
“Meu Deus! Eis-me aqui na vossa presença, pobre, pequenino, desprovido de tudo.
“Estou a vossos pés, abismado no meu nada.
“Desejaria possuir alguma coisa para vos oferecer; mas nada mais sou que miséria. Só
Vós sois o meu tudo, a minha riqueza.
“Meu Deus, agradeço-vos o terdes querido que eu fosse um pequeno nada diante de
Vós. Amo a minha humilhação, o meu nada. Agradeço-vos o terdes afastado de mim
certas satisfações do amor próprio, certas consolações de coração. Agradeço-vos as
decepções, as ingratidões, as humilhações. Reconheço que precisei de tudo isso e que
esses bens poderiam ter-me conservado longe de vós.
“Bendito sejais, meu Deus, quando me enviais provações. Gosto de ser acabrunhado,
esmagado, reduzido a nada por Vós. Aniquilai-me, pois, cada vez mais. Fazei que eu
seja, não como a pedra de um edifício, lavrada e polida pela mão do operário, mas
como o obscuro grãozinho de areia, tirado do pó do caminho.
“Meu Deus, agradeço-vos terdes-me deixado entrever a doçura das vossas consolações
e agradeço-vos o terdes-me privado delas. Justo e bom é tudo quanto fazeis. Bendigo-
vos no meio da minha indigência e só lamento o não vos ter amado ainda mais. Só
desejo que seja feita a vossa vontade.
“Vós sois o meu Senhor e eu a vossa propriedade. Disponde e tornai a dispor de mim
quanto quiserdes. Destruí-me e atormentai-me. Quero ser reduzido a nada por vosso
amor.
“Como a vossa mão é bondosa, o Jesus, mesmo no auge das provações. Permiti que eu
seja crucificado, mas crucificado por Vós. Assim seja.”
56 Cântico Espiritual, estrofe 29
57 Encíclica de São Pio X aos bispos de Itália, 11 de Junho de 1905.
58 São Gregório Magno, Pastor, 2 p, c. III).
59 Encíclica de Leão XIII, de 8 de Setembro de 1899.
60 Encíclica de São Pio X, aos bispos de Itália, de 11 de Junho de 1905.
61 « Na verdade um Deus Se esconde na tua casa, o Deus de Israel, Salvador » (Is 45,
15).
62 De Sp. Sancto, c. IX, nº 23.
63 A vida deste capitão de dragões, o qual, em 1870, durante a batalha de Gravelotte,
fez o voto de se fazer trapista e que na Trapa apenas quis ser irmão leigo, vem narrada
no excelente livro: Du champ de bataille à la Trappe (Perrin e Cª, Paris).
64 Ladainha do Coração de Jesus.
65 Conf. espir.
66 Tratado da vida espiritual, IIª p. c. x.
67 Hom. do Venerável Beda, liv. IV, cap. LIV sobre São Lucas, 12, 32.
68 N. T.: O autor refere-se à 1ª Guerra Mundial (1914-18).
69 No n.º 3 da II parte.
70 L’Ami du Clergé, 20 de Janeiro de 1921. Quando comparamos certas passagens da
primeira encíclica de São Pio X com palavras por ele mais tarde proferidas,
compreende-se que, na conversa a que acabamos de aludir, é do fervor dos sacerdotes
que ele espera a formação das elites cristãs, e é delas que espera o aumento do número
dos verdadeiros fiéis. Conseguido este resultado, asseguradas estão as vocações
sacerdotais e a multiplicação das escolas e das igrejas. Quando a quantidade não é
consequência da qualidade, corre-se o grave perigo de cair numa religiosidade vã,
enganadora e dissipada.
71 Referimos aqui algumas das melhores obras publicadas sobre este assunto:
Directoire spirituel, pelo V. P. François-Marie Libermann, Oeuvres de Saint Paul,
Paris, 1910; L’Esprit d’un directeur des âmes, M. Olier, De Gigord, Paris; La Charité
sacerdotale, pelo P. Achille Desurmont, Sainte Famille, Paris, 1879; Les degrés de la
vie spirituelle, pelo P. Auguste Saudreau, Grassin et Richou, Angers, 1896 ; La
pratique progressive de la confession et de la direction e diversos outros volumes do
mesmo autor sobre a formação moral e religiosa (Lib. Saint Paul, Paris); Pratique de
l’éducation chrétienne, por Antoine Monfat, Téqui, Paris, 1878-1889; L’éducateur
apôtre, por Joseph de Guibert, De Gigord, Paris. Eis mais alguns autores que trataram
da direcção espiritual: Cassiano, São Gregório Magno, São Bernardo, São
Boaventura, São Vicente de Ferrer, Santa Teresa, São Francisco de Sales, São Vicente
de Paulo, Santo Afonso de Ligório.
72 São Tomás de Aquino, ofício da festa do Corpo de Deus.
73 Quase sempre é indispensável um livro de meditação para impedir a divagação do
espírito. Deve utilizar-se um bom livro de meditação e não só de leitura espiritual.
Cada ponto encerra uma verdade empolgante apresentada com clareza, que favorece a
reflexão e traz consigo o entretenimento afectuoso e prático com Deus. Um só ponto
basta para uma meia hora, e esse ponto deve ser um texto bíblico ou litúrgico, ou uma
ideia principal adaptada ao estado de cada um. Antes de tudo, escolher os fins últimos
do homem, ou o pecado, ao menos uma vez por mês; depois, a vocação, os deveres de
estado, os pecados capitais, as virtudes principais, os atributos de Deus, os mistérios do
rosário, ou outra qualquer cena do Evangelho, sobretudo da Paixão. Nas festas
litúrgicas, o assunto está naturalmente indicado.
74 Deve-se preferir, para fazer a meditação, um “lugar afastado”, onde se esteja mais
à vontade: igreja, quarto, jardim, etc.
75 Por exemplo: Nosso Senhor a mostrar o seu Sagrado Coração e a dizer: “Eu sou a
Ressureição e a Vida” – ou “Eis o Coração que tanto amou os homens” – ou ainda
uma cena da sua vida: Belém, Tabor, Calvário, etc… Se, após um esforço leal e curto,
não se conseguir esta representação, passe-se adiante; Deus suprirá.
76 O êxito da oração depende muito do cuidado que se tiver em considerar o
Interlocutor divino como presente e vivo, e em deixar de O tratar como se fosse quase
uma abstracção.
77 Devemos persuadir-nos, firmemente, de que Deus só exige de nós a boa vontade, na
meditação. Uma alma, importunada pelas distracções, que se volta, cada dia, paciente
e fielmente, para o seu divino Interlocutor faz uma excelente meditação - Deus supre a
tudo.
78 Assim se radicam as convicções fortes e se adquire fé viva e intuição sobrenatural.
79 Com estas palavras, resume Suarez o fruto de todos os tratados ascéticos.
80 Convém que a mesma resolução dure meses inteiros, ou de um retiro até ao outro. O
exame particular, em forma de curto entretenimento com Nosso Senhor, completa a
meditação e, fazendo verificar avanços ou retrocessos, facilita, extraordinariamente, o
nosso progresso.
81 A meditação é o braseiro que revigora a guarda do coração. Mediante a fidelidade
a esta meditação, todos os exercícios de piedade serão vivificados. A alma irá, aos
poucos, adquirindo a vigilância e o espírito de oração, isto é, o hábito de recorrer,
continuamente, a Deus. A meditação gerará uma união íntima com Ele, mesmo durante
as ocupações mais absorventes. Vivendo a alma assim unida a Nosso Senhor pela
guarda do coração, atrairá a si os dons do Espírito Santo e as virtudes infusas, e
poderá ser chamada por Deus a um grau mais elevado de oração. O excelente livro: As
vias da oração mental, de D. Vital Lehodey (Ed. Lecoffre), define bem o que se requer
para a ascensão da alma pelos diversos graus de oração, e dá as regras para discernir
se uma oração superior é, verdadeiramente, um dom de Deus ou um fruto da ilusão.
Antes de falar da oração afectiva, primeiro grau das orações mais elevadas às quais
Deus, ordinariamente, só chama as almas que adquiriram a guarda do coração
mediante a meditação, o P. Rigoleuc S. J. indica, no seu livro Obras espirituais, dez
maneiras de falar com Deus, quando, após tentativas sérias, alguém se encontra na
impossibilidade moral de fazer a meditação sobre o assunto preparado de véspera.
Resumamos este piedoso autor.
1ª Maneira: Tomar um livro espiritual (Novo Testamento ou Imitação de Cristo) – ler
algumas linhas com intervalos – meditar um pouco no que se leu, procurar entender o
seu significado e gravá-lo no espírito. – Tirar daí qualquer afecto santo, amor ou
penitência, etc., e propor praticar uma virtude que mais agrade. Não ler muito, nem
meditar muito. – Demorar-se em cada pausa, enquanto o espírito nela encontrar
entretenimento agradável e útil.
2ª Maneira: Tomar qualquer expressão da Sagrada Escritura, ou qualquer oração
vocal: Pai Nosso, Ave Maria, Credo, por exemplo, pronunciá-la, demorar-se em cada
palavra, tirar dela diversos sentimentos de piedade, nos quais se demore, enquanto nele
se achar gosto. No fim, pedir a Deus alguma graça ou virtude, conforme o assunto
meditado. Não se demorar numa palavra, quando nela já não se encontrar com que
deleitar-se. Passar serenamente para outra. – Quando se sentir tocado por algum
sentimento bom, demorar-se enquanto ele dura, sem querer passar adiante. Não é
necessário fazer sempre actos novos, basta algumas vezes conservar-se perante Deus,
saboreando em silêncio as palavras já meditadas, ou os sentimentos que elas
produziram no coração.
3ª Maneira: Quando o assunto preparado não fornece entretenimento suficiente, fazer
actos de fé, adoração, acção de graças, esperança, amor, etc., dando-lhes a extensão
que se quiser, e demorando-se, um pouco, em cada um para o saborear.
4ª Maneira: Quando não se conseguir meditar, nem produzir afectos (impotência e
esterilidade), afirmar diante de Deus que se tem a intenção de fazer tantos actos de
contrição, por exemplo, quantas vezes se respirar, se fizerem passar as contas de terço
entre os dedos ou se pronunciar com a boca qualquer oração curta. Renovar, de
quando em quando, este propósito. Se Deus der outro qualquer bom sentimento,
recebê-lo com humildade e demorar-se nele.
5ª Maneira: Nas penas e aridezes, abandonar-se, generosamente, ao sofrimento sem se
inquietar nem fazer esforço para sair dele, sem fazer outros actos senão este abandono
de si mesmo nas mãos de Deus para sofrer essa provação e todas aquelas que a Ele
aprouver. Ou então, unir-se à Agonia de Nosso Senhor no Horto e ao seu desamparo na
Cruz. Persuadindo-se que nela se está cravado com o próprio Salvador e, com o seu
exemplo, desejando conservar-se lá e sofrer até à morte.
6ª Maneira: Exame interior. – Reconhecer as próprias faltas, paixões, fraquezas,
enfermidades, impotência, misérias, nada. – Adorar os juízos de Deus acerca do estado
em que a pessoa se encontra. – Submeter-se à sua santa vontade. – Bendizê-l’O,
igualmente, tanto pelos castigos da sua justiça como pelos favores da sua misericórdia.
– Humilhar-se perante a sua suprema Majestade. – Confessar-lhe, sinceramente, as
nossas infidelidades e pecados, e pedir-lhe perdão. – Detestar todo o mal que se fez e
propor corrigir-se para o futuro. Esta oração é livre e recebe toda a espécie de afectos;
pode-se fazer em qualquer ocasião, sobretudo, após uma queda inesperada, para se
submeter aos castigos da justiça de Deus, ou após o embaraço da acção, para voltar ao
recolhimento.
7ª Maneira: Meditação sobre os fins últimos. Considerar-se na agonia, entre o tempo e
a eternidade – entre a vida passada e o julgamento de Deus. – Que queria ter feito? –
Como queria ter vivido? – Recordar-se dos pecados, desregramentos, abuso das
graças. – Lamentar o mal feito. Propor remediar o que cause motivos de temor.
Imaginar-se no cemitério, esquecido de todos, – diante do Tribunal de Jesus Cristo, no
Purgatório, no Inferno. Quanto mais viva for a representação, tanto mais proveitosa a
meditação. É necessária esta morte mística para descarnar a alma e ressuscitá-la, isto
é, libertá-la da corrupção do vício. É preciso passar por este purgatório para se chegar
ao gozo de Deus nesta vida.
8ª Maneira: Aplicação do espírito a Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento. Saudar
Nosso Senhor, com todo o respeito que a presença real exige, unir-se a Ele e a todas as
suas divinas operações na eucaristia, onde, como Vítima, não cessa de adorar, louvar e
amar o Pai, em nome de todos os homens. Pensar no seu recolhimento, vida oculta,
obediência, humildade, etc. – Excitar o desejo dessas virtudes.
Oferecer Jesus Cristo ao Pai Eterno, como única vítima digna d’Ele, e pela qual
podemos render-Lhe homenagem, reconhecer os seus benefícios, satisfazer a sua
justiça e obter misericórdia. Oferecer-se a si mesmo para lhe sacrificar o ser, vida,
empregos. Apresentar-lhe um acto de virtude que se proponha fazer, uma mortificação
a praticar, pelos mesmos fins pelos quais Nosso Senhor se imola no Santíssimo
Sacramento. – Fazer esta oblação com um desejo ardente de aumentar, tanto quanto se
for capaz, a glória que Ele presta a seu Pai neste augusto mistério. Terminar fazendo a
comunhão espiritual. Tornar frequentes estas visitas, porque a nossa felicidade nesta
vida depende da nossa união a Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento.
9ª Maneira: Faz-se em nome de Jesus Cristo. – Aumenta a nossa confiança em Deus e
faz-nos entrar no espírito e nos sentimentos de Nosso Senhor. Funda-se na nossa
aliança com o Filho de Deus, em sermos seus irmãos, membros do seu corpo místico;
no facto de Ele nos ceder todos os seus méritos e nos legar todas as recompensas que o
seu Pai lhe deve pelos seus trabalhos e morte. É isto que nos torna capazes de honrar a
Deus com um culto digno de Deus e nos dá o direito de tratar com Deus e de exigir, de
algum modo, as suas graças como por justiça. – Não temos esse direito como criaturas,
menos ainda como pecadores, porque há desproporção infinita entre Deus e a criatura
e oposição infinita entre Deus e o pecador. Mas na qualidade de aliados do Verbo
Encarnado, de seus irmãos, de seus membros, podemos aparecer diante de Deus com
confiança, tratar familiarmente com Ele e obrigá-l’O a escutar-nos, favoravelmente, a
ouvir as nossas súplicas e a conceder-nos as suas graças, devido à aliança e à união
que temos com o seu Filho. Portanto, aparecer perante Deus, para O adorar, amar,
ou louvar, por intermédio de Jesus Cristo, operando em nós como a Cabeça nos seus
membros e elevando-nos, pelo seu espírito, a um estado todo divino; ou para pedir
qualquer favor, em virtude dos méritos do seu Filho. E, com este fim, apresentar-Lhe os
serviços que o seu Filho Lhe prestou, a sua vida, a sua morte, os seus sofrimentos.
Neste espírito, recitar o ofício divino.
10ª Maneira: Simples atenção à presença de Deus e meditação. Antes de se aplicar em
meditar o assunto preparado, pôr-se na presença de Deus, afastando qualquer
pensamento distinto, e excitando o respeito e amor a Deus que a sua presença inspira.
– Conservar-se, assim, diante de Deus, em silêncio, neste simples repouso de espírito
enquanto nele se encontrar gosto. – Em seguida, meditar segundo a maneira ordinária.
Bom é começar, assim, todas as meditações, e útil o fazê-lo depois de cada ponto. –
Repousar nesta simples atenção a Deus ajuda a estabelecer o recolhimento interior. –
O espírito fixa-se em Deus e prepara-se para a contemplação. – Mas não se deve
conservar assim por pura preguiça e para não se ter o trabalho de meditar.
82 “Por Ele, com Ele e n’Ele, a Vós, Deus Pai omnipotente, na unidade do Espírito
Santo, é dada toda a honra e glória” (Cânone da Missa).
83 “A Igreja, inspirada por Deus e instruída pelos santos Apóstolos, dispôs de tal sorte
a ano que, a par da vida, dos mistérios, da pregação e da doutrina de Jesus Cristo, nele
se encontra o verdadeiro fruto de tudo isso nas admiráveis virtudes dos seus servos e
nos exemplos dos seus santos, e também uma misteriosa síntese do Antigo e do Novo
Testamento e de toda a história eclesiástica. Devido a isso, todas as estações são
frutuosas para os cristãos: tudo ali está cheio de Jesus Cristo (…) Nessa variedade, que
vai toda terminar na unidade tão recomendada por Jesus Cristo, a alma inocente e
piedosa, além das alegrias celestes, encontra ainda um alimento sólido e uma
renovação perpétua do seu fervor” (J. Bénigne Bossuet, Oração fúnebre de Maria
Teresa de Áustria).
84 O unir-se à oração de outrem pode levar a uma oração muito perfeita. Certo
camponês ofereceu-se para levar as bagagens de Santo Inácio e dos seus
companheiros. Vendo que os Padres, ao chegar a uma estalagem, procuravam
qualquer recanto tranquilo para se recolherem diante de Deus, fazia o mesmo, e, como
eles, ajoelhava-se. Os Padres, um dia, perguntaram-lhe o que fazia, quando assim se
recolhia: “Nada mais faço —respondeu— do que dizer: Senhor, estes são santos e eu
sou o seu animal de carga; o que eles fazem, quero eu também fazer: eis o que eu
ofereço, então, a Deus” (Cf. Rodrigues, Perfeição cristã, Iª parte, trat. 5º, cap. XIX). Se
esse homem, mediante este exercício, chegou a um grau eminente de oração e de
espiritualidade, a fortiori até o analfabeto, unindo-se à vida litúrgica da Igreja, pode
tirar grandes proveitos dela.
Um Irmão Leigo de Claraval guardava ovelhas durante a noite da Assunção. Uniu-se
como pôde, sobretudo por meio da reza da saudação angélica, às matinas que os
monges cantavam, e cujos ecos longínquos chegavam até ele. Deus revelou a São
Bernardo que a sua devoção, tão humilde e tão simples, de tal modo tinha agradado a
Nossa Senhora que esta a havia preferido à oração dos religiosos, embora fervorosos
como eram. (Exordium magnum Ord. Cisterc. Distinc. 4ª, c. XIII.).
85 Moto próprio de São Pio X, de 22 de Novembro de 1903.
86 Compreenderemos melhor a eficácia da liturgia para nos fazer viver da graça e nos
facilitar a vida interior, se nos lembrarmos de que as orações oficiais e as cerimónias
instituídas pela Igreja possuem um poder de impetração de si mesmo irresistível. Aqui,
o poder posto em execução para obter tal graça não é apenas o gesto individual, a
oração isolada de uma alma, mesmo excelentemente disposta; é, também, o gesto da
Igreja, tornando-se suplicante connosco, é a voz da Esposa muito amada, que alegra
sempre o Coração de Deus e que é sempre ouvida. Resumindo isto em duas palavras,
diremos que o poder de impetração da oração litúrgica é constituído por dois
elementos: o opus operantis da alma que se utiliza do grande sacramental da lititurgia
e o opus operantis Ecclesiae. As duas acções: a da alma e a da Igreja, são como duas
forças que se combinam e que, num mesmo impulso, são levadas para Deus.
87 São Pedro Damião, Opusc. XI, cap. X. – Pat. lat., t. CXLV, col. 239.
88 São Pedro Damião, citado por Dom Gréa: La Sainte Liturgie, p. 51.
89 Santo Afonso de Ligório preferia uma oração do breviário a cem orações privadas.
90 Cardeal Billot, De Ecclesiae Sacram., t. I, thes. 2.
91 São Pedro Damião, citado por Dom Gréa, no seu livro La Sainte Liturgie, p.51.
92 O nosso fim é o serviço de Nosso Senhor e é para melhor o servir que devemos
corrigir as nossas faltas e adquirir as virtudes; a santidade é o melhor meio de servir
(São Pedro Julião Eymard).
93 São deste modo delegados da Igreja os clérigos e os religiosos obrigados ao
breviário, mesmo quando o rezam privadamente. Da mesma forma, nas suas Igrejas
canonicamente erectas, aqueles que estão obrigados ao ofício do coro e às missas
capitulares ou conventuais. E até aqueles que, embora não tenham recebido as ordens,
desempenham funções delas, como, por exemplo, os que ajudam à missa.
94 Sermão XX.
95 São Pedro Damião, Opusc. XI, cap. X. – Patr. lat., t. CXLV, col. 239.
96 São João Crisóstomo, Hom.V, n.1, in illud: Vidi Dominum.
97 Diz São Pedro Damião: “Por que diz o sacerdote ao rezar o breviário, mesmo
quando está só: Dominus vobiscum? E porque responde: Et cum spiritu tuo, em vez de
responder: Et cum spiritu meo? Não, diz S. Pedro Damião, o sacerdote não está só.
Quando celebra ou reza, tem diante de si toda a Igreja misteriosamente presente, e é
ela que o sacerdote saúda, dizendo-lhe: Dominus vobiscum. Depois, como ele
representa a Igreja, esta responde-lhe pela própria boca dele: Et cum spiritu tuo” (cf.
São Pedro Damião, 1. Dom. Vob., c. 6, 10, etc.).
98 “Louvai o Senhor! Mas que esse louvor saia de vós, isto é, que não sejais apenas vós
e a vossa língua a louvar a Deus, mas também a vossa consciência, a vossa vida, as
vossas acções” (Santo Agostinho, Comentário aos Salmos, Sl 148, 2). – Assim como os
homens exigem de vós a santidade quando vos apresentais como embaixador de Deus
junto deles, assim também Deus a exige de vós quando, diante d’Ele, apareceis como
intercessor dos homens. Um intercessor é um parlamentário da miséria terrestre
delegado ante a Justiça divina. Ora, para que um parlamentário seja favoravelmente
acolhido, diz São Tomás, duas condições são necessárias. A primeira é ser um digno
representante do povo que o envia; a segunda é ser amigo do príncipe para junto do
qual é enviado: Um sacerdote sem qualquer estima pela sua santidade, será,
porventura, um digno representante do povo cristão, quando não exprime as virtudes
cristãs? Será amigo de Deus, quando nem chega a ser um seu servo fiel? (Padre
Caussette, Manrèze du Prêtre, 1er jour, 2e discours).
99 O que dizemos do sacerdote aplica-se também, guardadas as proporções, ao
diácono e sub-diácono.
100 Ao falarem da dignidade do sacerdote, os Santos Padres parecem ter esgotado a
sua eloquência. O seu pensamento pode-se resumir nestas palavras: Esta dignidade
sobrepuja tudo o que foi criado: só Deus é maior. – “Nada se pode comparar à
sublimidade do sacerdócio” (Santo Ambrósio, lib. de Dign. Sacerd., cap. II). “A
palavra sacerdote sugere um homem divino” (São Dionísio Areopagita). “Pôs-vos à
frente de reis e imperadores, pôs a vossa Ordem à frente de todas as ordens; mas, para
melhor dizer, pôs-vos à frente dos anjos e dos arcanjos, dos tronos e das dominações”
(São Bernardo, Sermão aos Pastores em Sínodo, entre as obras apócrifas, na
“Patrologia Latina”, tomo CLXXXIV, col. 1086). – “É evidente que a função daqueles
sacerdotes é a maior que se possa excogitar. Com razão, por isso, eles não só são
chamados anjos, mas também deuses, porque junto de nós têm a força e a potência do
Deus imortal” (Catecismo Romano, A Ordem, 1).
101 Faço bem a meditação para celebrar bem a Missa; e celebro a Missa e rezo
piedosamente o breviário para, no dia seguinte, fazer bem a meditação (Padre
Olivaint).
102 “Toda esta cidade resgatada, isto é, a assembleia e a sociedade dos santos, é
oferecida a Deus como um sacrifício universal pelo Magno Sacerdote que, para de nós
fazer o corpo de uma tal cabeça, a Si mesmo se ofereceu por nós na sua Paixão, sob a
forma de escravo (…). Por isso nos exortou o Apóstolo a que ofereçamos os nossos
corpos como hóstia viva, santa, agradável a Deus, como homenagem racional (...). Tal
é o sacrifício dos cristãos: muitos somos um só corpo em Cristo. E este sacrifício a
Igreja não cessa de o reproduzir no Sacramento do altar bem conhecido dos fiéis: nele
se mostra que ela própria é oferecida no que oferece” (Santo Agostinho, A Cidade de
Deus, Vol. II, livro X, cap. VI, Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1993).
103 Apostolado ou escândalo: Uma homilia feita por um sacerdote relaxado é muito
menos eficaz que o apostolado do verdadeiro sacerdote cuja fé e piedade irradiam por
ocasião de um baptizado, um enterro e, sobretudo, de uma Missa. Palavras e ritos são
flechas capazes de excitar os corações. A liturgia assim vivida reflecte-lhes a realidade
do mistério, e convida-os a invocarem esse Jesus, quase desconhecido para elas, mas
com o qual sentem que esse sacerdote está em íntima comunicação.
Pelo contrário, a fé atenua-se ou perde-se de todo, quando elas exclamam
desanimadas: “Não, não é possível que este sacerdote acredite que há um Deus e o
tema, pelo modo como celebra, baptiza, reza e faz as cerimónias”. Que
responsabilidade! E quem ousará sustentar que escândalos tais não serão objecto de
um julgamento rigoroso?
Que grande influência exerce sobre os fiéis a manifestação do temor reverencial ou
pelo contrário, o desmazelo nas funções sagradas!
Sendo estudante numa Universidade, e subtraído a qualquer influência clerical, tive
ensejo de ver, sem que ele o notasse, um sacerdote a rezar o seu breviário. Foi uma
revelação para mim a sua atitude, cheia de respeito e recolhimento, e senti, desde
então, manifestar-se em mim a necessidade de imitar esse sacerdote. A Igreja aparecia-
me como que concretizada nesse digno ministro em comunicação com o seu Deus.
“Ao invés —confessava-nos ultimamente uma alma leal, vendo a rapidez com que o seu
pároco despachava a missa— fiquei perturbado e persuadido de que ele não tinha fé.
Desde então, deixei de rezar, e até de crer, e a repugnância de ver esse sacerdote a
celebrar, afasta-me, desde então, da igreja.”
104 P. Como se adquire a pureza de intenções?
R. Adquire-se por meio de uma grande atenção sobre nós mesmos, no começo e,
sobretudo, no progresso das nossas acções.
P. Porque é necessária tal atenção, no começo das nossas acções?
R. Porque, se essas acções forem agradáveis, úteis e conformes às inclinações da
natureza, logo essa atenção, espontaneamente, se dirige para elas, em virtude desse
prazer e interesse. Ora, que domínio não é necessário termos sobre nós mesmos, para
impedir que a vontade seja logo arrastada pela impressão dos motivos naturais que a
lisonjeiam e deslumbram?
P. Porque é necessária tal atenção durante o progresso das nossas acções?
R. Porque, mesmo que se tenha a força de renunciar, logo no princípio, a qualquer
atractivo lisonjeiro para os sentidos e para o amor próprio, para seguir somente a fé,
por meio de intenções puras, se, na continuação, deixarmos de nos observar de perto, o
gozo actual ou o interesse, vêm sempre causar novas impressões, o coração amolece-
se, e a natureza, mesmo mortificada pelas primeiras renúncias, desperta e retoma o seu
ascendente; em pouco tempo, o amor próprio introduz em nós, subtilmente e quase sem
darmos por isso, as suas inclinações interesseiras, pondo-as em lugar dos motivos
bons, pelos quais empreendêramos as nossas acções: daqui vem, em muitos casos, o
que diz São Paulo: que, depois de se ter começado pelo espírito, acaba-se pela carne,
isto é, com vistas baixas, terrenas ou interesseiras. (Padre Caussade).
105 Veja-se atrás, pág. 19.
106 É o que Bossuet chama “momento de solidão afectuosa, que devemos procurar, a
todo o custo, pelo dia adiante”. É, também, o que, instantemente, aconselhava São
Francisco de Sales, sob o nome de retiros espirituais. “É neste exercício do retiro
espiritual e das orações jaculatórias que consiste a grande obra da devoção. Este
exercício pode suprir a falta de todas as outras orações, mas a falta dele, quase
sempre, não pode ser reparada por outro qualquer meio. Sem ele, a vida activa será
mal orientada (…) e o trabalho será apenas um embaraço… (São Francisco de Sales,
Introdução à vida devota, 2ª parte, c. III).
107 “Faz o que tens a fazer”, isto é, aplica-te, inteiramente, à acção presente.
108 São Bernardo, Serm. in Nat. B. M. V. alias de Aquaeductu.
109 “Ninguém recebe o dom de Deus senão por vós, ó cheia de graça” (São Germano).
“A santidade cresce, em razão da devoção que se professa a Maria” (Padre Faber).
110 “Com Maria, fazem-se mais progressos no amor de Jesus num só mês, do que em
vários anos vivendo-se menos unidos a esta boa Mãe” (São Luís de Montfort).
111 “Meus filhos, ela é a base da minha confiança e a razão da minha esperança” (São
Bernardo).
112 Livraria Oudin, Paris.
113 A imagem que aqui reproduzimos representa a “Panaghia Parthenos”, uma das
mais célebres e antigas imagens da Mãe de Deus. O original, dádiva da imperatriz
Pulquéria (450-453), encontrava-se numa das mais belas e ricas igrejas de
Constantinopla, e ainda aí se conservava nos fins do século XIV. Encontram-se, com
bastante frequência, reproduções desta célebre pintura na Rússia, por exemplo em
Kiev, Novgorod e Moscovo, bem como na Grécia.
Índice
Proémio...........................................................................................................
Parte I Deus quer as obras e a vida interior............................................................
1. O que é o apostolado?.................................................................................
2. Deus quer que Jesus seja a vida das obras...................................................
3. O que é a vida interior?...............................................................................
4. Esta vida interior é muito pouco conhecida................................................
5. Resposta a uma primeira objecção: É ociosa a vida interior?.....................
6. Resposta a uma segunda objecção: É egoísta a vida interior?....................
7. Objecção decorrente da importância da salvação das almas.......................
Parte II União da via activa e da vida interior..........................................................
1. Prioridade da vida activa sobre a vida interior............................................
2. As obras devem transbordar da vida interior...............................................
3. A base, o fim e os meios de uma obra devem estar impregnados de vida
interior.............................................................................................................
4. A vida interior e a vida activa reclamam-se mutuamente...........................
5. Excelência desta união................................................................................
Parte III A vida activa, unida à vida interior, assegura o progresso na
virtude.............................................................................................................
1. As obras: meio de santificação, ou perigo para a salvação?.......................
a) Meio de santificação.............................................................................
b) Perigo para a salvação...........................................................................
2. Do apóstolo sem vida interior.....................................................................
3. A vida interior, base da santidade do apóstolo............................................
a) Acautela a alma contra os perigos do ministério exterior.....................
b) Repara as forças do apóstolo.................................................................
c) Multiplica as suas energias...................................................................
d) Dá-lhe alegrias e consolações...............................................................
e) Acrisola a sua pureza de intenções........................................................
f) É escudo contra o desânimo..................................................................
Parte IV A vida interior é condição da fecundidade das obras................................
1. A vida interior atrai as bênçãos de Deus.....................................................
2. Torna o apóstolo santificador, pelo bom exemplo......................................
3. Produz no apóstolo uma irradiação sobrenatural........................................
4. Dá ao apóstolo a verdadeira eloquência......................................................
5. A vida interior do apóstolo gera nas almas a vida interior..........................
6. Importância da formação das elites e da direcção espiritual.......................
a) A verdadeira direcção espiritual............................................................
b) Classificação útil para a direcção espiritual..........................................
7. A vida eucarística resume a fecundidade do apostolado.............................
Parte V Alguns princípios e advertências para a vida interior...............................
1. Convicções e princípios...............................................................................
2. A meditação, elemento indispensável do apostolado..................................
a) Fidelidade à meditação da manhã.........................................................
b) O que deve ser a meditação...................................................................
c) Como se faz a meditação......................................................................
3. A vida litúrgica, fonte de vida interior e de apostolado..............................
a) O que é a liturgia?.................................................................................
b) O que é a vida litúrgica?.......................................................................
c) Espírito litúrgico. Três princípios.........................................................
d) A vida litúrgica favorece a permanência do sobrenatural em todas as nossas
acções.........................................................................................
e) A vida litúrgica amolda a nossa vida interior à de Jesus Cristo............
f) A vida litúrgica faz-nos viver, já na Terra, a vida do Céu....................
g) Prática da vida litúrgica.........................................................................
A. Preparação remota.......................................................................
B. Preparação próxima....................................................................
C. Desempenho da função litúrgica.................................................
4. A guarda do coração, ponto capital da vida interior e, por conseguinte, do
apostolado...................................................................................................
a) Necessidade da guarda do coração........................................................
b) Presença de Deus, base da guarda do coração......................................
c) A devoção a Nossa Senhora facilita a guarda do coração.....................
d) Aprendizagem da guarda do coração....................................................
e) Condições da guarda do coração...........................................................
5. O apóstolo deve possuir uma ardente devoção a Nossa Senhora................
a) Para a vida interior pessoal...................................................................
b) Quanto à fecundidade do apostolado....................................................
Epílogo............................................................................................................

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