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Por UMA HISTORIA DAS SENSIBILIDADES Serge Gruzinski* O sabor dos abacaxis ou do arroz, os aromas de especiarias, uma paisagem luxuriante, a lembranca de uma noite de prazer, as harmonias de uma missa indigena, a repulsa provacada pelos sa- crificios humanos ou pela antropofagia, tudo isso serve para enri- quecer um artigo ou para apimentar uma conferéncia. Mas o que fazer com essas reagées to dificeis de colocar em palavras? Geral- mente os pesquisadores sacrificam-nas nos altares das representa Ges ou no vasto templo dos imagindrios. Na melhor das hipéte- Ses, acomodam-nas entre praticas e discursos. A histéria das sensi- bilidades gostaria de Ihes dar um tratamento especial. Em que essa historia se distingue da histéria das mentalidades, essa joven. aposentada das Ciéncias Sociais, da etne-histéria ou da antropo- logia histérica? Os pesquisadores cujos textos reunimos aqui se dedicam, cada um a seu modo, a responder a essa questao. A histéria das sensibilidades diz respeito a zonas ainda pouco estudadas, que se estendem 4 margem da historia das idéias, das representacées, dos conpos ou das imagens. Ela toca o que se situa além da elaboracao intelectual, mas nunca se separa dela. Ela co- incide com os territérios do imaginario, mas tampouco se confun- decom ele. Aguas turvas enquanto ignoradas ou enquanto escoa- das simplesmente para as mentalidades. Houve um tempo em que a etnopsiquiatria de Georges Devereux tentava extrair quadros Nigorosos de interpretacio das abordagens cruzadas da psicandlise e da etnografia de campo. Essa tentativa, alguns lamentarao, foi pouco Seguida e logo sofreu os contragolpes dos exeessos da ts de mare de pales ein ar scp Depo disso, a disciplina impésse discreta, mas A histria das sensibilidades interessa-se pelo indfdu, por suas reagoes intimas, por suas contradigdes abertas ou encober- * Tradugio de Patricia Chinoni Ramos Reuillard (UFRCS). tas. Ela escava destinos, exuma afetos, mas sempre para reinseri- los em conjuntos significativos mais vastos, grupos, clas, faccdes, classes, conjuntos, que eles iluminam a seu modo, restituindo-lhes uma complexidade quase sempre escamoteada ou negada. A his- toria das sensibilidades rejuvenesce a histéria do politico, fustiga a histéria das imagens trazendo para o primeiro plano os mecanis- mos da recepcao e da absorcao, agita a histéria das artes, explo- rando a percepcao dos estilos, das modas, perseguindo a menor inflexo dos gostas. Por que esta historia prospera entre Europa e América? Aba- Jando as tradigées e as transmissdes, a experiéncia colonial ibérica ¢ a globalizagio que a subentende nao cessam de entrecruzar patrim6nios étnicos ¢ culturais, de misturaras sensages, os dese- Jos, 08 gostos ¢ os desgostos, de dar nascimento a novas maneiras de sentir ¢ de perceber. Paradoxalmente, trazendo mais comple- xidade 4s coisas, o cendrio americano oferece mais uma vez a0 pesquisador a possibilidade de superar seu etnocentrismo e de afiar seus instrumentos nas realidades de além-mar. Deixemos ao leitor o cuidado de confirmé-lo e de se regozijar com isso. ‘SENSIBILIDADES: ESCRITA E LEITURA DA ALMA Sandra Jatahy Pesavento/UFRGS Um historiador da [dade Média que confiasse demasiadamente nos documentos oficiais— que raramente se referem is paixdes, exceto wioléncia ¢ 4 cupider —arriscave-se, por vezes, a perder de vista a diferenca de tonalidade que existe entre a vida daquela época e ade nossos dias. Tais documentos far-nosiam 4s vezes esquecer a veeméncia ppatética da vida medicval para.a qual os cronistas, nao obstanteas deficiénciasno registro dos fatos, nos chamam sempre aatengio. Johan Huizinga. © éeclinio da dade Média A publicacdo da obra de Huizinga, em 1924, chamavaaatenqao para aquilo que denominavao teor da vida, ou seja, aquilo que mobi- lizava as paixdes e os sentimentos, impelia as agoes ¢ regulamentava 05 gestos, sacramentava valores e virtudes e condenava vicios e peca- dos. Em suma, Johan Huizinga lidava com os sentidos conferidos 4 Vida em um momento dado da histéria, alertando para a diferenca ‘entre as formas de agir ¢ pensar des homens de uma outra€épocae a nossa e para as formas de recuperar estas sensibilidades do pasado, para além das tradicionais fontes usadas pelos historiadores. De Huizinga para ca, muito mudou a forma de entender € estudar o passado, mas a obra do historiador holandés nos aponta Para questoes muito atuais, sobretudo paraaqueles que, trabalhan- do com uma histéria cultural, esto empenhados em resgatar 0 sis- tema de representagdes que compoem 0 imagindrio social, esta ca- pacidade humana e hist6rica de criar um mundo paralelo de sinais que se coloca no Jugar da realidade. Nesta medida, Johan Huizinga nos faz refletir sobre as sensibilidades dos homens de um outro tempo, sobre a alteridade do passado e sobre a natureza das mar- cas de historicidade que nos permitem reconfigurar o tempo do acontecido. A estas questées, gostariamos de acrescentar uma re- flexdo sobre a sensibilidade como uma escrita € leitura da alma.

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