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Nº 1, volume 11, artigo nº 2, Janeiro/Março 2016

D.O.I: http://dx.doi.org/10.6020/1679-9844/v11n1a2

O SIGNIFICADO POLÍTICO DO HOMO SACER NA FILOSOFIA DE


GIORGIO AGAMBEN

THE POLITICAL MEANING OF HOMO SACER IN GIORGIO


AGAMBEN'S PHILOSOPHY

Lucas Moraes Martins1

1
Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura / Professor de Direito, Belo Horizonte, Minas
Gerais, Brasil,
lucasmoraesmartins@hotmail.com

Resumo

O presente artigo objetiva apresentar, de forma concisa, o significado político da figura


do homo sacer, explicada por Giorgio Agamben na obra Homo sacer: o poder soberano
e a vida nua. A partir desse livro, em um primeiro momento, foi abordado o conceito de
vida nua, como aquela que se encontra em uma zona cinzenta entre zoé e bíos.
Posteriormente, foi pontuado como o homo sacer, o portador da vida nua, aparece de
modo obscuro no direito romano arcaico. Estabelecido estes dois pontos, buscou-se
explicar o significado político-filosófico, e nem tanto histórico, do homo sacer. Ao final,
realizou-se uma reflexão sobre como as formas de vida, as identidades jurídico-sociais,
repousam, em última instância, no solo podre da vida nua. Apenas entendendo que a
vida nua do homo sacer não é um dado natural, mas um produto de um ato jurídico-
político, pode-se fortalecer a nossa luta contra os espaços de exceção.

Palavras-chave: Homo sacer. Vida nua. Estado de exceção. Giorgio Agamben.


Filosofia política.

ISSN: 16799844 - InterSciencePlace - Revista Científica Internacional Páginas 23 de 179


Abstract

This article explains, in a concise manner, the political significance of the homo sacer,
figure presented by Giorgio Agamben in the book Homo sacer: sovereign power and
bare life. From this book, at first, was approached the concept of bare life, as one that
rests in a gray area between zoé and bíos. Later, it was scored as homo sacer (the
bearer of bare life) appears obscurely in archaic Roman law. Established these two
points, we attempted to explain the political and philosophical meaning of homo sacer,
and not the historic significance. At the end, there was a discussion about forms of life
(the social and legal identities) and how these forms lie, ultimately, on the rotting ground
of bare life. Only understanding that the bare life of homo sacer is not a natural given,
but a product of a legal-political act, we can strengthen our fight against the spaces of
exception.

Keywords: Homo sacer. Bare life. State of exception. Giorgio Agamben. Political
Philosophy.

INTRODUÇÃO

A propósito dos vinte anos do lançamento da obra Homo sacer. Il potere sovrano e la nuda
vita de Giorgio Agamben, não seria estranho o questionamento sobre a atualidade política
da figura do homo sacer. Imerso em uma névoa histórica, a imagem do homo sacer poderia
ser julgada, equivocadamente, como imprópria para descrever a vida nua e a sujeição do
vivente ao poder soberano. Entretanto, o trabalho de Agamben não é meramente histórico.
Ao retirar o homo sacer dos primórdios de Roma, situando-o como o primeiro paradigma do
espaço político ocidental, o gesto de Agamben não pretende ser historicamente neutro, mas
sim o de atribuir à figura do portador da vida nua um conteúdo político efetivo.

Alguns romanistas, críticos da ideia de que o homo sacer representaria


adequadamente o portador da vida nua, se esquecem que Agamben nunca reivindicou um
tratamento exclusivamente histórico desta figura. “Protagonista deste livro é a vida nua, isto
é, a vida matável e insacrificável do homo sacer, cuja função essencial na política moderna
pretendemos reivindicar.” (AGAMBEN, 2010, p.16). A busca pela “função política” do homo
sacer, portanto, é uma das linhas invisíveis que guiam a investigação de Agamben em
Homo sacer. Il potere sovrano e la nuda vita.

Se, atualmente, uma grande parte do pensamento jurídico-político não concebe a


condição humana fora do âmbito de proteção do direito, talvez, isso ocorra porque não se
entendeu que as identidades jurídicas, sociais e políticas, em última instância, dentro do
espaço político do Ocidente, convergem no ponto da vida nua e desta dependem. Esta

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dupla face dos direitos e liberdades adquiridas inscrevem, cada vez mais, a vida na ordem
estatal, o que implica uma sujeição crescente ao poder soberano.

A CRIATURA

Em Paris, entre 1974 e 1976, Giorgio Agamben encontrou-se, regularmente, com


Ítalo Calvino e Claudio Rugafiori, para planejar a publicação de uma revista. Uma das
seções deste periódico seria dedicada às “Categorias italianas”, estas entendidas como
estruturas categóricas da cultura italiana, unidas através de uma série de conceitos polares.
Agamben propôs explorar uma série de oposições: tragédia/comédia, direito/criatura,
biografia/fábula. O projeto da revista nunca foi realizado (AGAMBEN, 1999, p.xi).

Entretanto, no texto Al di là dei diritti dell’uomo, publicado originalmente em francês


pelo periódico Libération em 19931, Agamben deixa claro como o horizonte aberto pela
dupla categorial direito/criatura, influenciou-o marcadamente. Neste escrito, Agamben afirma
que “a vida nua (a criatura humana) que, no Antigo Regime, pertencia a Deus e, no mundo
clássico, era claramente distinta (como zoé) da vida política (bíos) aparece, agora, em
primeiro plano sob os cuidados do Estado [...].”. (Tradução livre) (AGAMBEN, 1996, p.24). 2.

A tradução inglesa do texto não foi fiel ao vocábulo criatura ao traduzi-lo pelo termo
“human being” (AGAMBEN, 2000, p.20), que indica criatura, mas também ser humano.

A palavra criatura, derivada do particípio futuro ativo do verbo latino creare, integrada
e dirigida pelo sufixo –ura (o que está prestes a ocorrer), indica algo imperfeito em um
perpétuo processo de criação, engendrado e comandado por um criador, isto é, uma vida
submetida a um processo eterno de criação, sujeita à transformação a mando dos
comandos arbitrários do soberano:

O que é uma criatura? Derivada do particípio futuro ativo do verbo latino creare ("criar"), criatura
indica uma coisa feita ou uma coisa formada, mas no sentido de continuidade ou processo
potencial, de ação ou emergência, construída pela orientação futura da sua forma ativa verbal. Em
uma tensão eternamente imperfeita, creatura se assemelha às construções paralelas natura e
figura, em que as determinações conferidas pela natividade e facticidade são, todavia, abertas à
possibilidade de metamorfose posterior frente à unidade do sufixo -ura ("o que está prestes a
ocorrer"). A creatura é uma coisa sempre em um processo de sofrer criação; a criatura ativamente
passiva, ou melhor, apaixonada, tornando-se perpetuamente criada, sujeita à transformação a
3
mando dos comandos arbitrários do Outro. (Tradução livre). (LUPTON, 2000, p.1) .

1
Título original: Au-delà des droits de l‟homme.
2
No original: “Quella nuda vita (la creatura umana) che, nell‟Ancien Régime, apparteneva a Dio e, nel mondo classico, era
chiaramente distinta (come zoé) dalla vita politica (bíos), entra ora in primo piano nella cura dello Stato […].”.

3
No original: “What is a creature? Derived from the future-active participle of the Latin verb creare (“to create”), creature

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Do mesmo modo que, em nascituro, o sufixo –uro indica a mesma construção verbal
latina do particípio futuro ativo (o que está para + verbo), significando o que está para
nascer, criatura indica o que está prestes a ser criado, isto é, aquilo que é criado
perpetuamente e aberto às metamorfoses. Por causa desta indeterminação, a criatura pode
articular uma série de separações, inclusive a entre humano e animal. Neste contexto, a
criatura, produzida e controlada, devota e submetida ao criador, está presa em um limbo
que transita continuamente entre homem e animal. Este é o preciso sentido de vida nua.

Esta vida nua, vida em permanente exposição à violência soberana, é, no fundo,


uma vida abandonada, que se encontra na relação de bando. A palavra bando registra uma
ambiguidade semântica: “in bando, a bandono significam originalmente em italiano „à mercê
de...‟ quanto „a seu talante, livremente‟” (AGAMBEN, 2010, p.110). Esta incerteza semântica
revelada quanto a algo ou alguém que está à mercê (ao arbítrio de alguém) e, ao mesmo
tempo, se encontra livremente (ao próprio arbítrio), demonstra como vida nua se encontra
em uma zona cinzenta entre zoé e bíos.

Agamben relata que os gregos do mundo clássico não possuíam um termo único
para designar a palavra vida como entendida atualmente. Na verdade, os gregos se valiam
de dois termos: zoé e bíos. O primeiro termo exprimia o simples fato de viver, comum a
todos os seres vivos, sejam eles animais, homens ou deuses; o segundo, a forma de viver
própria de um indivíduo ou grupo (AGAMBEN, 2010, p.9). Enquanto zoé designava,
portanto, a vida animal ou orgânica, bíos indicava a vida qualificada de cidadão, a vida
politicamente qualificada.

A vida na relação de bando, ou seja, a vida abandonada, pressupõe um constante


trânsito entre zoé e bíos. A vida abandonada, também denominada de vida nua, se encontra
no limiar entre zoé, vida biológica, e bíos, vida politicamente qualificada.

Compreende-se, portanto, que a vida abandonada não é aquela deixada de lado em


uma pura exclusão. Pelo contrário, o abandono pressupõe a relação de exclusão inclusiva,
ou seja, aquele que tem o poder de abandonar se relaciona soberanamente com o
abandonado através da violência da decisão soberana. Relação de bando implica a vida
excluída e incluída, dispensada e capturada que, por isso mesmo, se encontra unida e
sujeita ao poder soberano (AGAMBEN, 2010, p.109).

indicates a made or fashioned thing but with the sense of continued or potential process, action, or emergence built into the
future thrust of its active verbal form. Its tense forever imperfect, creatura resembles those parallel constructions natura and
figura, in which the determinations conferred by nativity and facticity are nonetheless opened to the possibility of further
metamorphosis by the forward drive of the suffix -ura (“that which is about to occur”). The creatura is a thing always in the
process of undergoing creation; the creature actively passive or, better, passionate, perpetually becoming created, subject
to transformation at the behest of the arbitrary commands of the Other”.

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O NÓMOS

Carl Schmitt explica que antes da palavra nómos adquirir um sentido genérico
indicando regulação ou ordenamento normativo, significava assentamento e ordenação
originários do espaço físico, isto é, um ato constitutivo concreto de ordenamento espacial, a
primeira partição e divisão da terra (SCHMITT, 1979, p.48).

A palavra nómos, proveniente de nemein – que significava primitivamente tanto


dividir como alimentar – denota a forma imediata através da qual se faz visível a ordenação
política e social de um povo enquanto localizado em um determinado espaço (SCHMITT,
1979, p.52). O ordenamento do espaço implica, portanto, a tomada ou apropriação da terra
com a consequente fixação de uma ordem jurídica e territorial.

Etimologicamente, nómos significa, ainda, cercado, ou melhor, a muralha protetora


construída pelo homem para permitir a convivência religiosa e jurídico-política. No vocábulo
nómos, a coincidência entre localização territorial e ordenamento jurídico, implicada no
cercado, traz consigo a constituição de um lugar sagrado, seja na relação entre o divino e
homem ou entre os próprios homens (SCHMITT, 1979, p.57).

Entretanto, já na época clássica com os sofistas, a palavra nómos perdera o


significado de “apropriação da terra” adquirindo o significado de uma mera regra, disposição
ou preceito convencionalmente estabelecido entre os homens (SCHMITT, 1979, p.58).

Agamben retoma a polêmica referente à contraposição entre physis e nómos para


afirmar que esta oposição pode ser considerada “como premissa necessária da oposição
entre estado de natureza e commonwealth, que Hobbes coloca à base de sua concepção de
soberania” (AGAMBEN, 2010, p.41). Para “Hobbes é precisamente esta mesma identidade
de estado de natureza e violência (homo hominis lupus) a justificar o poder absoluto do
soberano” (AGAMBEN, 2010, p.41). Neste sentido é que, na fundação do Estado em
Hobbes, o soberano conserva o natural ius contra omnes, direito este que não foi dado ao
soberano, mas deixado a ele, no momento em que todos os demais homens abandonaram
os direitos próprios em prol da preservação do direito de todos (AGAMBEN, 2010, p.106).

Se o soberano conserva este “direito contra todos”, o estado de natureza não é um


dado esquecido ou simplesmente excluído no momento da fundação da Cidade, mas o
princípio perene interno a ela, isto é, aqueles que a habitam estão submetidos
permanentemente à violência soberana. O que a revisitação ao mitologema hobbesiano

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demonstra, portanto, é a diferença entre um estado de natureza em si (homo hominis lupus,
Bellum omnia omnes) e o estado de natureza incorporado na fundação da Cidade como
princípio inerente desta e permanentemente presente.

Enquanto homo hominis lupus, tem-se no estado de natureza a vida natural ou a vida
do homem como fera, como lobo, uma vez que todos os homens reservam para si o ius
contra omnes: bellum omnium contra omnes. Na fundação da Cidade ou do Estado, o que
se deseja é justamente excluir este estado da natureza, no qual o homem é o lobo do
homem. Contudo, ao fundar a Cidade e deixar exclusivamente ao soberano o ius contra
omnes, o estado de natureza é encarnado na figura do soberano e imediatamente incluído
na formação da Cidade, no estado civil.

Não se trata, portanto, de uma inclusão da vida natural, mas da vida nua. A vida nua,
a vida constantemente ameaçada por um poder de morte, ao ser excluída através da
fundação da Cidade, é automaticamente incluída na figura da submissão ao soberano que
reservou para si o ius contra omnes (AGAMBEN, 2010, p.105-6).

Assim, a fundação da Cidade é estruturada não no pacto, mas na exclusão inclusiva


da violência na qual estava imersa a vida natural. Ao se tentar excluir a vida natural (zoé)
com a criação do Estado, ela deu um salto para dentro da Cidade, não mais como vida
natural, e sim na forma de vida nua. Isso significa que o estado de natureza ao ser
incorporado na Cidade, não pode ser mais denominado de estado de natureza, mas de
estado de exceção, o paradigma constitutivo do ordenamento jurídico.

Enquanto no estado de natureza os homens eram feras, lobos, bestas; no estado de


exceção, os homens, enquanto portadores da vida nua, não são nem feras (zoé), nem
homens politicamente qualificados (bíos), não pertencem a nenhum destes mundos, mas
são homens-lobos, lobisomens.

Um exemplo de como a vida nua é disseminada com a fundação da Cidade, pode


ser encontrado na chegada ao Brasil da família real portuguesa em 1808. Ocorre que a
chegada da família real favoreceu o desenvolvimento urbano da cidade do Rio de Janeiro,
pautado sob três aspectos: beleza, higiene e circulação (CARVALHO, 2008, p.85-91).

Antes do período joanino, em meados de 1755, por exemplo, o Rio de Janeiro era
marcado pela desordem e, apesar de já contar com edificações e algumas ruas, em sua
maioria estreitas, a marca característica da cidade ainda eram os grandes espaços vazios
não urbanizados (BICALHO, 2003, 236-48).

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Com a chegada da família real e a corte portuguesa, a civilização se firmaria na
tríade política beleza-higiene-circulação e as mudanças político-sociais seriam realizadas
sob esta ótica. Por exemplo, novas ruas começaram a ser demarcadas e alargadas. As
edificações tendiam a se tornar uniformes. Cuidou-se, inclusive, para que houvesse uma
vasta iluminação da cidade à noite, visando garantir a segurança da população contra os
delitos (CARVALHO, 2008, p.95-103).

Para garantir e fiscalizar o cumprimento desta nova política urbana e social, criou-se
a Intendência Geral da Polícia do Rio de Janeiro em 10 de maio de 1808. Com fundamento
no Traité de la Police de Nicolas de La Mare, a Polícia tinha como objetivo fixar normas de
comportamento através de editais e fiscalizar o seu cumprimento pela sociedade. Estas
funções eram exercidas por um Intendente, com auxílio dos comissários de polícia, dos
juízes de crime de cada bairro e dos comissários de polícia. Algumas das funções mais
importantes do Intendente eram: promover a disciplina dos costumes, afiançar o respeito à
religião, resguardar a salubridade do ar, promover a segurança e a tranquilidade, coibir
reuniões que incitassem à sedição, entre outros (CARVALHO, 2008, p.111).

Por exemplo, havia editais da Polícia que regulamentavam a construção das casas,
buscando a beleza da uniformidade. Outros determinavam a vistoria das edificações
deterioradas. Proibiu-se também o despejo de lixos nas ruas, sob pena de crime de
desobediência. O corte de árvores nas beiras dos rios, as queimadas e a lavagem de roupa
nas nascentes foram terminantemente proibidas. Disciplinou-se o horário dos
estabelecimentos comerciais, que deveriam fechar às dez horas da noite. Proibiu-se
também, com o fim de evitar delitos, a aglomeração de escravos e de vadios (CARVALHO,
2008, p.131-146). Ademais, também cabia à Polícia elaborar as denominadas devassas,
procedimentos investigativos.

A Intendência Geral da Polícia tornou-se, portanto, um instrumento do qual se serviu


o rei para impor sua autoridade no território (CARVALHO, 2008, p.110).

As implicações da instituição da civilização no Brasil são claras: “Instituir a civilização


significava, igualmente, policiar a cidade do Rio de Janeiro, dotando-a de todas as
comodidades necessárias para a sobrevivência da corte.” (CARVALHO, 2008, p.103).

Pode-se dizer de outro modo: incluir a civilização significava excluir alguém desta
nova ordem. Entretanto, o excluído imediatamente é incluído em virtude da própria exclusão,
pois, se não fosse assim, não haveria a necessidade do policiamento. Por outro lado, aquele
que é incluído só o é na forma de vida nua, sob o preço de submissão da vida a um poder

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soberano. Nesta nova Lisboa, a palavra nómos nunca fez tanto sentido...

A vida nua não é, portanto, um fato natural, mas um produto de um ato jurídico-
político. O clássico exemplo do portador da vida nua empresta nome ao projeto filosófico de
Agamben: o homo sacer.

A FIGURA DO HOMO SACER

A figura do homo sacer foi fruto de muitas dúvidas e de não poucas contradições e
perplexidades entre os estudiosos da história e do direito romano.

A ambiguidade do homo sacer foi registrada por Festus: Sacer homo is est, quem
populus judicavit ob maleficium, neques fas est eum immolari, sed qui occidit parricidii non
damnatur (STRACHAN-DAVIDSON, 1912, p.3-4). O homem sacro era aquele que o povo
havia julgado pelo cometimento de um delito, não sendo permitido, portanto, sacrificá-lo,
mas tampouco seria condenado por homicídio aquele que o matasse.

O comentário de Strachan-Davidson sobre o registro realizado por Festus em relação


ao homo sacer demonstra a incerteza quanto a este “homem sagrado”. A expressão “Sacer
homo is est quem populus judicavit ob maleficium” demonstraria que não há
incompatibilidade entre a pena de consecratio capitis e um julgamento criminal:

Um sinal adicional da obrigação religiosa sobre a qual o direito criminal se


apoiava pode ser encontrado na utilização da famosa palavra sanctio para
denotar uma penalidade imposta pela violação do direito; esta está
evidentemente conectada com sanctus, sacer e sacratio. As últimas duas
palavras, entretanto, sacer e sacratio, nos trazem à vista um problema
difícil. Seria de se esperar encontrar estas palavras em íntima conexão com
a execução de quase-sacrifício pelo machado. Mas, ao contrário, nós as
encontramos diversas vezes nos casos em que não havia execução que
lembrasse um sacrifício. [...]. Por um lado, a descrição dele [de Festus],
„sacer homo is est quem populus judicavit ob maleficum‟, demonstra que
não há inconsistência entre a sacratio capitis e um julgamento criminal
adequado. As palavras apontam naturalmente para um criminoso julgado
regularmente, condenado e executado, normalmente, através do machado.
(Tradução livre) (STRACHAN-DAVIDSON, 1912, p.3-4)4.

4
No original: “A further token of the religious obligation on which the criminal law rested may be found in the use of the famous
word sanctio to denote the penalty proposed for breaking a law; this is evidently connected with sanctus, sacer, and
sacratio. The last two words, however, sacer and sacratio, bring us within sight of a difficult problem. One would expect to
find these words used in the closest connexion with the quasi-sacrificial execution by axe. But, on the contrary, we find them
over and over again in cases where there was no execution at all resembling a sacrifice. […]. On the one hand his [Festus]
description, „sacer homo is est quem populus judicavit ob maleficum,‟ shows that there is no inconsistency between sacratio
capitis and a proper criminal trial. As the words stand they would naturally point to criminal regularly tried, condemned, and
executed in a normal manner with an axe.”.

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A consecratio capitis era uma sanção sacral aplicada àquele que cometia uma
transgressão contra os deuses, cujas iras não poderiam ser aplacadas com a simples
expiação religiosa da sanção de expiação (piaculum), que era uma oferta expiatória, como
por exemplo, o sacrifício de um animal. A consecratio capitis, aplicada aos casos de ofensas
graves às divindades, poderia consistir no abandono do culpado à divindade ofendida ou em
sua direta execução pelo pecado cometido (SANTALUCIA, 1998, p.6-7; SANTALUCIA,
2009, p.11-4). A primeira sanção, o abandono, era expressa através da fórmula sacer esto
(SANTALUCIA, 1998, p.8).

Entretanto, a segunda parte da frase, “neques fas est eum immolari, sed qui occidit
parricidii non damnatur”, indica um sentido contrário à primeira, pois proíbe o sacrifício
(immolatio) do homo sacer, mas aquele que eventualmente o matasse, não seria punido.
Por isso, Strachan-Davidson comenta com estranheza:

Mas as palavras seguintes, „neques fas est eum immolari, sed qui occidit
parricidii non damnatur‟ nos conduzem em outra direção bem diferente.
Parece que estamos diante de um homem que não desperta nenhuma
preocupação para a lei em si, alguém que era deixado para a vingança
púbica casual. (Tradução livre) (STRACHAN-DAVIDSON, 1912, p.4)5.

O homo sacer não era um transgressor ordinário, mas aquele que, pela natureza do
fato criminoso, deveria ser colocado para fora da sociedade. Não lhe era permitido sequer
expiar a culpa com um castigo, porque a espada da justiça poderia ser manchada com seu
sangue a tal ponto que nem mesmo os justiceiros desejavam lidar com o homo sacer
(STRACHAN-DAVIDSON, 1912, p.7). O homo sacer era evitado por todos por medo do
contágio de sua culpa.

Outro teórico, Fowler, retoma a origem da palavra sacer afirmando que esta pode ter
significado simplesmente taboo, isto é, o homo sacer era aquele que havia sido “removido
para fora da região do profanum, sem qualquer referência especial a uma divindade, mas a
uma 'santa' ou amaldiçoada, de acordo com as circunstâncias.” (FOWLER, 1920, p.23) 6. Ao
comentar sobre o termo sacer, Fowler afirma que a confusão deste termo com o vocábulo
sacrum deve-se ao fato de a palavra sacer ter sido entendida como definida por Aelius
Gallus, isto é, “Uma coisa que era sacrum era conhecida por todos como propriedade de
uma divindade, e sua violação era nefas, um crime mortal.” (FOWLER, 1920, p.17)7.
Entretanto, acrescenta que, mesmo assim, havia mais um objeto que recebia o adjetivo
5
No original: “But the next words, „neques fas est eum immolari, sed qui occidit parricidii non damnatur‟, lead us in a quite
another direction. We seem to have to do here with a man about whom the law does not trouble itself, whom it leaves to the
causal vengeance of the public.”.
6
No original: “[...] removed out of the region of the profanum, without any special reference to a deity, but a „holy‟ or accursed,
according to circumstances.”.
7
No original: “A thing that was sacrum was know by all to be the property of a deity, and violate it was nefas, a deadly crime.”.

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sacer: o homo sacer, aquele que podia ser violado sem nefas (violação às divindades), um
homem que podia ser morto impunemente (FOWLER, 1920, p.17).

Para Fowler (1920, p.17), sacer esto era uma maldição e homo sacer, o
amaldiçoado, o homem banido, interditado, perigoso. Uma coisa “santa” (holy), segundo
Fowler seguindo as lições de Robertson Smith, originalmente não implicava uma
propriedade de um deus, mas simplesmente algo proibido (tabooed), por qualquer razão,
sem referência aos deuses ou espíritos. O homem declarado sacer era, ao mesmo tempo,
amaldiçoado e consagrado (FOWLER, 1920, p.17). Todavia, a consagração do homo sacer
não podia ser feita tal qual um sacrifício às deidades, porque a morte daquele que fora
declarado sacer não realizava a passagem do profanum para o sacrum (FOWLER, 1920,
p.18).

Fowler afirma ainda que várias passagens das regras jurídicas antigas relacionam o
homo sacer ao sacrifício a deidades. Para manter a coerência, Fowler escreve que a palavra
sacer deve ser traduzida, portanto, não como ‟sacred to‟ (sagrado) mas „accursed and
devoted to‟ (amaldiçoado e dedicado a), talvez como indicação de que o homo sacer era
consagrado a deidades do inferno, em expiação pelo prejuízo que ele havia levado à
comunidade. “Estas divindades infernais não tinham altares de sacrifício regularmente
ordenados: se alguém desejava apaziguá-los com uma vítima, devia amaldiçoá-la e fazê-la
sacer no velho sentido de 'taboo', e deixá-la ao seu destino." (Tradução livre). (FOWLER,
1920, p.21)8. Isso explicaria, enfim, a razão de se considerar o homo sacer um banido, um
„sagrado‟ ou perigoso (FOWLER, 1920, p.21)9.

Estas breves notas sobre o homo sacer servem apenas para pontuar a obscuridade
do tema, demonstrada com precisão por Agamben (2010, p.76): se o homo sacer era impuro
(sacralidade negativa), ou uma propriedade dos deuses (sacralidade positiva) como para
alguns autores (SANTALUCIA, 1998, p.11-2), por que se podia matá-lo sem contaminar-se
ou cometer sacrilégio? Por outro lado, continua Agamben (2010, p.76), se o homo sacer era
vítima de um sacrifício arcaico, por que não era fas (permissão divina) levá-lo à morte
através das formas sacrificais prescritas?

O SIGNIFICADO POLÍTICO DO HOMO SACER

8
No original: “These infernal deities had no regular ordered altar sacrifices: if one wished to appease them with a victim one
must curse him and make him sacer in the old sense of „taboo‟, and leave
9
No original: “These infernal deities had no regular ordered altar sacrifices: if one wished to appease them with a victim one
must curse him and make him sacer in the old sense of „taboo‟, and leave him to his fate.”.

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No direito romano arcaico, a pessoa declarada ou constituída como sacer era
excluída da jurisdição humana, sem passar, entretanto, para a esfera divina, acarretando
uma dupla exclusão e, consequentemente, uma dupla inclusão. O homo sacer era excluído
do ius humanum e do ius divinum e, por isso mesmo, a vida do homo sacer era incluída na
forma de insacrificável e matável. A vida consagrada, sagrada, no homo sacer, implicava a
possibilidade de matá-lo sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício (AGAMBEN,
2010, p.83-6).

Enquanto membro do ius humanum a morte pode ser considerada criminosa, um


homicídio. Enquanto membro do ius divinum, a vida pode ser sacrificada aos deuses.
Entretanto, o homo sacer é excluído destes dois âmbitos, visto sua vida ser imediatamente
incluída em duas formas: quanto ao ius humanum, a vida do homo sacer é incluída como
uma vida que pode ser tirada impunemente. Matá-lo já não é mais crime, porquanto não faz
mais parte da sociedade. Quanto ius divinum, a vida do homo sacer é incluída na forma de
insacrificável (AGAMBEN, 2010, p.83-6).

Neste sentido é que se pode afirmar que a vida do homo sacer, dentro dessa relação
de abandono, estava constantemente exposta a um poder de morte. Abandonada, excluída,
da esfera do direito dos homens e do direito dos deuses, esta mesma vida é imediatamente
incluída – capturada de fora – na forma de sujeição a um poder soberano, exposta à
violência soberana, tornando-se completamente nua.

Se vida nua é interligada ao poder soberano através da relação de bando, pode-se


afirmar, portanto, que “soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são
potencialmente homines sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens
agem como soberanos” (AGAMBEN, 2010, p.86).

Sacra é a vida exposta constantemente ao poder de morte e sacer esto é a fórmula


política que marca a submissão da vida ao poder soberano expondo-a a uma matabilidade
virtual (AGAMBEN, 2010, p.86-90). Walter Benjamin já havia expressado que “a ideia de
sacralidade do homem dá motivos para uma reflexão na qual, aqui, o que é dito sagrado,
segundo o antigo pensamento mítico, é o portador marcado pela culpa: a mera vida.”
(Tradução livre) (BENJAMIN, 1996, p.251)10.

Ademais, caberia uma nota adicional: para Agamben, a dimensão da vida nua é
“mais original que a oposição sacrificável/insacrificável” (AGAMBEN, 2010, p.112) e isso

10
No original (tradução inglesa): “this idea of man‟s sacredness gives grounds for reflection that what is here pronounced
sacred was, according to ancient mythic thought, that marked bearer of guilty: life itself.”.

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significa que a inclusão do homem na pólis não se deu com o desaparecimento do sacrifício,
como propõe Jean Luc-Nancy (2003, p.52), mas com a inclusão exclusiva da vida nua.

Esta é a leitura que se faz nas entrelinhas do trecho no qual Agamben afirma que, na
modernidade, o princípio da sacralidade da vida se viu “completamente emancipado da
ideologia sacrificial, e o significado do termo sacro na nossa cultura dá continuidade à
história semântica do homo sacer e não à do sacrifício.” (AGAMBEN, 2010, p.112). O homo
sacer é insacrificável não porque o ocidente só conheça simulacros de sacrifícios ou não
possa mais conhecer como ocorriam os verdadeiros sacrifícios, como pontua Jean-Luc
Nancy (2003, p.55-64), mas porque a mera matabilidade é inerente à condição de vida nua
do homo sacer. Esta afirmação pode ser feita porque o olhar de Agamben está voltado para
a experiência-limite biopolítica dos campos de concentração. O extermínio dos judeus, no
campo, não configurou nem uma execução capital, nem um sacrifício, mas apenas a
realização de uma “mera „matabilidade‟ que é inerente à condição de hebreu como tal”
(AGAMBEN, 2010, p.113) e, por isso, a violência soberana não pode ser recoberta com
véus sacrificiais. “A dimensão na qual o extermínio teve lugar não é nem a religião nem o
direito, mas a biopolítica” (AGAMBEN, 2010, p.113).

Afirmar, portanto, que a vida sacra é aquela insacrificável e, todavia, matável,


significa ter entendido que “Sacra a vida é apenas na medida em que está presa à exceção
soberana” (AGAMBEN, 2010, p.86). Para Agamben, a insacrificável matabilidade do homo
sacer é um fenômeno jurídico-político por excelência e ter tomado este fenômeno jurídico-
político “por um fenômeno genuinamente religioso é a raiz dos equívocos que marcam no
nosso tempo tanto os estudos sobre o sacro como aqueles sobre a soberania.” (AGAMBEN,
2010, p.86). A vida sacra ou vida nua, e o homo sacer, são produtos de um ato jurídico-
político, de uma máquina antropológica.

Alguns romanistas, como pontuou Romandini, questionam que a vida nua não
corresponderia adequadamente à figura do homo sacer, mas sim à do hostis rei publicae,
pois, enquanto a punição da primeira, historicamente, ocorria no âmbito das relações
privadas, a da segunda, representaria um verdadeiro exemplo de punição soberana:

Os romanistas recordarão, então, que o poder soberano no direito romano


arcaico castigava por meio do sacrificium, ou seja, uma pena capital de tipo
ritual. Nesse sentido, o homo sacer fica excluído dos meios da penalização
soberana por se tratar de um assassinato consentido aos privati em forma
não ritual, mas somente a esses e não aos magistratus legitimi.
Consequentemente, a única figura que realmente representa a exceção
soberana seria o hostis rei publicae que é privado de todo direito e
assassinato pelo poder soberano, mediante a declaração de um iustitium

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com seu correspondente senatus consultum ultimum. Com efeito, é possível
sinalizar notáveis analogias entre o homo sacer e o hostis rei publicae, entre
as quais cabe mencionar o fato de que, se o hostis publicus estava em
mãos do senado, comportava sua imediata execução. Contudo, se não era
possível ter com o culpado imediatamente, o senatus consultum ultimum
consentia, ao menos a partir do ano 88 a.C., que qualquer cidadão pudesse
assassiná-lo sem que isso resultasse ser um homicídio. Como corolário
dessas características próprias do instituto, a declaração de hostis publicus
também podia ser emitida sem que fosse necessária a declaração de um
estado de exceção, ainda se a ação pudesse ser concebida como um
bellum iustum. (ROMANDINI, 2013, p.252-3).

Entretanto, buscar um significado puramente historicista de uma figura, o homo sacer,


que surge na obra de Agamben com um sentido eminentemente político, significa ter
esquecido o alerta, segundo o qual a insacrificável matabilidade do homo sacer é um
fenômeno jurídico-político por excelência. Se não se deve tomar este fenômeno jurídico-
político por um genuinamente religioso, tampouco seria válida uma interpretação puramente
historicista, porquanto, “pouco importa quem execute o vivente declarado sacer, pois quem
o faça, nesse preciso instante, passa a exercer a função soberana de dar à morte.”
(ROMANDINI, 2013, p.255).

A fórmula sacer esto, como uma formulação política original da imposição do vínculo
de violência soberana, implica uma ligação na qual o homo sacer “é aquele em relação ao
qual todos os homens agem como soberanos.” (AGAMBEN, 2010, p.86). Se, historicamente,
a vida nua corresponderia mais adequadamente ao hostis rei publicae, e não ao homo
sacer, isso não altera a perspectiva política da obra de Agamben, tampouco a proposta
filosófica que emerge do estudo do homo sacer, pois, ao contrário, apenas se enriqueceria a
investigação “com o tratamento de duas figuras solidárias a um mesmo paradigma.”
(ROMANDINI, 2013, p.254).

Por outro lado, há autores que criticam o estudo do homo sacer, proposto por
Agamben, afirmando que aquele homem sacro do direito romano arcaico estaria imerso em
uma historicidade fragmentária, isto é, as referências históricas em relação ao homo sacer
seriam insuficientes para se alcançar as conclusões pretendidas por Agamben:

Ninguém conhece o homo sacer. Transmitiram-se apenas farrapos da sua


existência como criminoso que pode ser morto sem que o assassino seja
punido, ou seja, como aquele que pode andar pela cidade e pelo campo
como morto-vivo. As fontes não revelam nem um contorno jurídico e nem
pessoal do homo sacer, embora se trate, para Agamben, de uma
(„enigmática‟) „figura do Direito Romano Arcaico‟. Wilhelm Rein, Rudolph
von Jhering, Theodor Mommsen, E. Brunnenmeister, Max Weber, Kurt
Latte, Max Kaser, Wolfgang Kunkel, Giuliano Crifò, Yan Thomas e –

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resumindo agora a discussão - Claire Lovisi (entre outros) não avistaram,
pesaram, pronunciaram os raros testemunhos da antiga maldição „sacer
esto‟. [...]. Ninguém sabe – exatamente ou nem ao menos mais ou menos –
qual o significado de sacer na antiga Roma. A ideia de que nesta época
existiria um imaginário diferenciado religiosamente, juridicamente ou
politicamente, que produzia vida nua no estado de exceção, deve ser antes
ancorada no âmbito da fantasia histórica. As condições eram ásperas, não
se pode falar de uma cidade no sentido romano clássico. (Tradução livre)
(KIESOW, 2002, p.62-3)11.

Essa corrente interpretativa mecânica da história se esquece que o método de


investigação de Agamben, se bem próximo à arqueologia de Foucault, se alinha, também,
às ideias de Walter Benjamin. Agamben não se preocupa com a gênese, mas sim com a
origem – no sentido benjaminiano do termo (Der Ursprung) –, o ponto de insurgência do
fenômeno (BENJAMIN, 2009, p.45), rompendo, assim, com uma interpretação linear da
história. No curso das investigações, Agamben analisou certas figuras – como, por exemplo,
o Homo sacer, o Muçulmano, o estado de exceção e o campo de concentração – e estas,
mesmo possuindo um conteúdo histórico, foram tratadas como paradigmas, cuja tarefa era a
de constituir e tornar inteligível um conjunto problemático mais abrangente (AGAMBEN,
2008, p.11). A partir destas figuras epistemológicas, como o homo sacer, Agamben tenta
romper com a antinomia entre particular e universal, cristalizando-as como exemplos,
singularidades.

Trabalhando com paradigmas ou exemplos, Agamben isola-os dos respectivos


contextos para exibir as singularidades que lhes são próprias. O resgate histórico de um
determinado fenômeno particular pressupõe, portanto, a desativação de seu uso normal,
para apresentar, de modo mais inteligível, a regra ou o cânone deste uso, o qual não
poderia ser apresentado de outra forma. (AGAMBEN, 2008, p.20). Com este gesto,
Agamben pode dotar determinada figura histórica de um conteúdo político efetivo para a
compreensão e constituição de um contexto histórico-problemático mais abrangente, algo
bem próximo ao trabalho do anti-jornalista de Benjamin. A citação do anti-jornalista, sempre
fragmentária, ao retirar do contexto, produz um estranhamento em relação à autoridade que
se atribui a um certo texto, o que permite surgir a singularidade de um determinado trecho
citado. A citação, portanto, não revive o passado, mas, ao contrário, tem a dupla função de

11
No original: “Niemand kennt den homo sacer. Nur einige Fetzen seiner Existenz als ein Straftäter, der ungestraft getötet
werden kann, der also als lebender Toter durch Stadt und Land läuft, sind überliefert. Für Agamben handelt es sich zwar
um eine (immerhin „rätselhafte‟) „Figur des archaischen römischen Rechts‟, doch geben die Quellen weder eine figürliche
noch eine juristische Kontur des homo sacer preis. Wilhelm Rein, Rudolph von Jhering, Theodor Mommsen, E.
Brunnenmeister, Max Weber, Kurt Latte, Max Kaser, Wolfgang Kunkel, Giuliano Crifò, Yan Thomas und – nun die
Diskussion zusammenfassend – Claire Lovisi haben (neben anderen) die raren Zeugnisse vom alten Fluch „sacer esto‟
gesichtet, gewichtet, gerichtet. [...] Niemand weiß – genau, oder auch nur ungefähr –, was sacer im frühen Rom bedeutet
hat. Die Vorstellung, dass zu dieser Zeit eine religiös, juristisch, politisch differenzierte Vorstellungswelt existiert habe, die
im Ausnahmezustand bloßes Leben produziert, ist eher im Bereich der historischen Phantasie anzusiedeln. Die
Verhältnisse waren rau, von einer Stadt im klassischen römischen Sinne kann keine Rede sein.“.

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destruir e construir. Destrói na medida em que arranca a palavra ou frase citada de seu
contexto histórico original e constrói porque, ao situá-la em um novo texto, cristaliza-a como
singularidade (BENJAMIN, 2005, p.454-5; AGAMBEN, 2005, p.167-8).

Coletando e entrelaçando referências formadas por conceitos, ideias, fatos e


fenômenos históricos (NASCIMENTO, 2012, p.22-3), Agamben pode formar constelações
de singularidades, para as quais a interpretação histórica deixa de ter o caráter
pretensamente neutro, adquirindo uma atualidade explosiva, capaz de romper com o
continuum temporal, tão caro à tradição dos vencedores, aumentando, assim, as nossas
chances na luta contra os espaços de exceção.

O presente artigo não propõe uma defesa irrestrita da obra de Giorgio Agamben,
que, obviamente, está sujeita a críticas, muitas delas, inclusive, bem pertinentes. Entretanto,
não se pode negar que o aporte político-filosófico do estudo sobre o homo sacer ainda
permanece relevante, notadamente no momento em que o estado de exceção – que,
antigamente, fora concebido como uma medida essencialmente temporal – converteu-se em
regra, nos dias atuais, como técnica usual de governo (AGAMBEN, 2014, p.3).

A vida nua do homo sacer não é um dado natural, mas um produto de um ato
jurídico-político. Esta frase sintetizaria uma parte relevante do significado político-filosófico
da figura do homo sacer. Este representaria “a figura originária da vida presa no bando
soberano e conservaria a memória da exclusão originária através da qual se constituiu a
dimensão política” (AGAMBEN, 2010, p.84). Isso deve levar à reflexão que uma vida nua
não seria aquela desprovida de direitos, mas, ao contrário, a nudez da vida oculta-se em
uma vida plena de direitos e garantias jurídico-políticas institucionalizadas.

O resultado desta fabricação jurídico-política do homem é a vida nua em suas mais


variadas roupagens adotadas pela política ocidental: as formas de vida. As formas de vida
(forma de viver) podem ser encontradas em todas as identidades jurídico-sociais
(AGAMBEN, 2000, p.5-6), tais como o indígena, o brasileiro, o homossexual, o trabalhador,
o cidadão, e em outros nomes. Ocorre que ao predicar ou qualificar a vida, como, por
exemplo, “vida de estudante”, abre-se a possibilidade de retirar o qualificativo (“estudante”) e
isolar a palavra “vida”. Ao predicar ou qualificar a vida, ao dar formas de vida (bíos) a um
singular ou a um grupo, procurou-se excluir a zoé. Entretanto, o que está sendo
constantemente capturado nestas formas de vida é justamente a vida nua, pois o
qualificativo ou atributo dado pode, a qualquer momento, ser retirado, restando somente
uma vida exposta ao poder soberano. Ao se falar, portanto, em “vida de estudante”, na

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verdade, fala-se em “vida (nua) de estudante”, pois o atributo não acompanha simplesmente
a vida orgânica (zoé), mas a vida nua. O que a figura do homo sacer, portador da vida nua,
vem demonstrar é que o “ser” da política ocidental atual nada mais é do que um produto de
um poder político que outorga vida nua com vestes variáveis (formas de vida) ao vivente, ou
melhor, produz formas de vida sob o preço da total submissão à violência soberana do
próprio vivente.

Não se trata de um mero jogo com as palavras. No estado de exceção, no qual


direito (e as formas de vida politicamente qualificadas) e violência, norma e fato, se colocam
em um patamar de indiscernibilidade (AGAMBEN, 2007, p.131-3), o que se tem não é mais
uma forma de vida, pois esta forma de viver qualificada estaria totalmente imersa em uma
zona de anomia, em um vácuo jurídico. No estado de exceção, no qual a vida pode ser
isolada de sua forma, tem-se apenas vida nua, aquela permanentemente exposta à
violência soberana. Esta situação-limite demonstra como as formas de vida, as identidades
jurídico-sociais, repousam, em última análise, na figura da vida nua: todos os homens são
virtualmente homines sacri, notadamente no momento atual, em que o estado de exceção
tem se convertido em regra.

Os campos de concentração do Terceiro Reich demonstraram com clareza como a


vida nua é o fundamento oculto das formas de vida. Neste estado de exceção
(Ausnahmezustand), a vida dos prisioneiros (Häftling) perdera qualquer qualificativo jurídico,
pois na zona cinzenta criada nos campos, na qual fato e norma, exceção e regra, violência e
direito, tornavam-se indiscerníveis, conceitos como o de direito subjetivo e de proteção
jurídica careciam de qualquer sentido (AGAMBEN, 2010, p.166). A vida dos prisioneiros no
campo não se encontrava na esfera da bíos e tampouco na dimensão da zoé, mas deixava
transparecer a vida nua sem nenhum tipo de vestimenta. A forma de vida, em última
instância, indica uma cesura radical entre a vida (ser/ontologia) e as formas qualificadas de
viver (política) e, este ponto, é justamente o que torna possível isolar uma vida nua das
formas de vida, possibilitando a incidência do poder soberano e a experiência biopolítica.

O estado de exceção, enquanto fundamento oculto do direito e da política moderna,


utilizado crescentemente como técnica de governo nos dias atuais (AGAMBEN, 2011, p.64;
AGAMBEN, 2014, p.3), é o espaço que possibilita regular cesuras jurídico-políticas precisas,
separando e articulando a humanidade e a animalidade, criando a vida nua. A decisão
soberana decide sobre (über) a exceção (SCHMITT, 2004, p.13), mas também decidirá,
enfim, sobre o valor e o desvalor da vida.

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CONCLUSÃO

A figura do homo sacer, portador da vida nua, contém um significado político atual.
Se, historicamente, a vida nua corresponderia mais adequadamente ao hostis rei publicae, e
não ao homo sacer, e se esta figura está imersa em uma historicidade fragmentária, nem
por isso a proposta filosófica que emerge do estudo do homo sacer seria obliterada. Ao
contrário, a imagem do hostis rei publicae apenas enriquece investigação. Homo sacer e
hostis rei publicae são solidários a um mesmo paradigma que busca descrever, ao menos, a
relação entre vida nua e poder soberano. Por outro lado, a névoa que paira sobre os
registros históricos do homo sacer tampouco deve ser motivo para se abandonar as
investigações ou subestimar as conclusões alcançadas por Agamben, notadamente no livro
Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Interpretar a figura do homo sacer
exclusivamente através do linear histórico, significa não ter entendido que Agamben trabalha
com constelações de singularidades – formadas por conceitos, ideias, fatos e fenômenos
históricos – para chegar às conclusões. Não se trata, portanto, de seguir o continuum
temporal, mas de montar a origem – no sentido benjaminiano do termo –, o salto original de
uma determinada figura ou fenômeno, para fortalecer a nossa luta contra os espaços de
exceção. Um gesto político, afinal.

Passados quase vinte anos do lançamento de Homo sacer. Il potere sovrano e la


nuda vita, a lição sobre o homos sacer continua atual: a vida nua do homo sacer não é um
dado natural, mas um produto de um ato jurídico-político. A política ocidental produz e
outorga vida nua com vestes variáveis (formas de vida) ao vivente, sob o preço da completa
submissão à violência soberana. A situação-limite do estado de exceção, que atualmente
tem se convertido em regra, demonstra como a vida pode ser isolada de sua forma. Se o
estado de exceção é o paradigma constitutivo da ordem jurídica e, além disso, tem se
erigido como uma técnica de governo, todos os homens são, portanto, potencialmente
homines sacri.

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Sobre autores:

Lucas Moraes Martins é doutor em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Professor nos cursos de graduação em direito da universidade FUMEC, Centro
Universitário UNA e da Faculdade Santo Agostinho (MG). E-mail:
lucasmoraesmartins@hotmail.com.

Data de submissão: 29/06/2015

Data de aceite: 27/02/2016

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